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O Inquisidor como Antropélogo™ + Carlo Guinzburg RESUMO ABSTRACT Sublinhando a analogia entre 0 The Inquisitor as Anthropologist inquisidor e 0 antropélogo com relago a Drawing an analogy between Inquisitor utilizagdo de documentagéo escrita, produ- and Anthropologist, with respect to their zida a partir de relatos orais, este artigo use of documents produced from oral ac- discute as implicagbes das fontes inquisito- counts, this article discusses the implica- rriais para o trabatho do historiador. tions of Inquisition sources for Historians, A analogia sobre a qual gostaria de falar chamou-me a atenciio, pela primeira vez, dez anos atrds em Bolonha, onde participava de um coléquio sobre "Histéria oral", Historiadores de sociedades européias contempora- neas e distintos africanistas antropélogos, como por exemplo Jean Vansina e Jack Goody, estavam debatendo sobre as diferentes maneiras de lidar com ‘0s testemunhos orais. Repentinamente me ocorreu que mesmo os historia- dores que estudam a Histéria moderna européia — ou seja, uma sociedade ndo contemporanea que deixou enorme quantidade de documentacao escrita —usam por vezes fontes orais. Mais precisamente, registros escritos de rela- tos orais. Registros judicidrios de cortes leigas e eclesidsticas podem ser comparadas, eu entio sugeri, a cadernos de anotacdes de antropdlogos Tradugdo de Jénatas Batista Neto. ” Professor da Universidade de Bolonha. set. 90/ fev. 91 mortos reunindo o material de um trabalho de campo realizado alguns sécu- los atrés 1, ‘Vamos tomar essa analogia entre inquisidores ¢ antropdlogos (bem como entre réus € “nativos") como um experimento, Suas implicagOes pare- cem-me bastante interessantes. Gostaria de discutir algumas delas do ponto de vista de um historiador que trabalhou especialmente com registros inqui- sitoriais, interessando-se particularmente pela feitigaria da Baixa Idade Média ¢ do inicio da Idade Modema. A descoberta dos registros inquisitoriais como um testemunho hist6- rico extremamente valioso é um fenémeno surpreendentemente tardio. Por Iongo tempo os historiadores da Inquisigao concentraram-se nos mecanis- mos daquela especifica instituicdo, de uma maneira muito descritiva, em- bora freqiientemente polémica também: os préprios registros permaneceram largamente inexplorados, ainda que em alguns casos fossem acessiveis aos eruditos. Como € bem sabido, eles comegaram a ser usados por historiado- res protestantes no sentido de mostrar a atitude herdica de seus precursores diante da perseguigio catélica. Um livro chamado I nostri protestanti (Os nossos protestantes)2, escrito no final do século XIX pelo erudito italiano Emilio Comba, pode ser encarado como um exemplo tipico dessa tentativa de continuar, com base em pesquisa de arquivo, uma tradi¢do iniciada no século XVI por Crespin com a sua Histoire des Martyrs. Por outro lado, historiadores catélicos mostraram uma notével relutancia em usar registros inquisitoriais na sua propria pesquisa. Por trés dessa atitude, podemos ver uma tendéncia consciente ou inconsciente no sentido de subestimar o im- pacto da Reforma, bem como um certo desconforto em lidar com uma insti- tui¢do que se tornara to impopular — mesmo entre os catélicos. Gostaria de recordar aqui um pequeno caso pessoal. O préprio historiador que bondo- samente me facultou o uso dos arquivos eclesidsticos de Udine - 0 culto padre catdlico Pio Paschini, e que também era friulano — nunca pensara em * Sobre assunto similar, mas de uma perspectiva diferente, V. agora R. Rosaldo, From the Door of His Tent: The Fieldworker and the Inquisitor, in Writing Culture. The Poetics and Politics of Ethnography, ed. por. J. Clifford e G.E. Marcus, Berkerley € Los Angeles 1986, pp. 77-97, baseado numa comparagio entre o trabalho de Evans-Pritchard © de Le Roy Ladue, 2 ‘Veneza 1897. 10 explorar os processos inquisitoriais nos seus livros sobre heresia ¢ Contra- Reforma no Friul 3, Quando entrei pela primeira vez no amplo salao no qual cerca de dois mil processos inquisitoriais abertos no Friul esto cuidadosa- mente conservados, senti subitamente a emogo de descobrir uma mina de ouro ainda intocada. Deve-se enfatizar, todavia, que, no caso da feitigaria, a relutancia em usar registros da Inquisi¢do tem sido partilhada, hé longo tempo, tanto por historiadores religiosos (catdlicos ¢ protestantes) quanto por historiadores liberais. As raz6es disso so Obvias. Faltava identificagao religiosa, intelec- tual e emocional em ambos os casos. O testemunho fornecido por processos contra bruxas era visto usualmente como uma mistura de curiosidades teol6- gicas e superstig6es camponesas. Estas eram por definicdo irrelevantes, aquelas poderiam ser melhor e mais facilmente estudadas com base nos tra- tados demonolégicos impressos. Para eruditos que pensavam ser a perse- guicio a feitigaria, e nao a simples acusag4o, 0 tinico t6pico histérico “apropriado", demorar-se em confissdes longas e supostamente repetitivas, de homens e mulheres acusados de feiticaria, teria sido uma tarefa tediosa & até mesmo imitil. Isso soa como uma velha histéria — ainda que a mesma atitude tenha escoado ainda, h4 menos de 20 anos, na obra de Hugh Trevor-Roper 4. Nesse meio tempo, contudo, a situago mudou dramaticamente. A feitigaria deslocoiu-se da periferia para o centro dos temas histéricos "adequados", para nao dizer “temas histéricos da moda”. Isso € apenas um sintoma de uma tendéncia historiografica j4 bem estabelecida, rapidamente percebida por Momigliano ha varios anos: isto 6, a de estudar grupos sexuais ou so- ciais como mulheres € camponeses, normalmente mal representados no que podemos chamar de fontes “oficiais" 5. Os "arquivos da repressao” certa- mente nos dao uma rica informagdo sobre essa gente. Mas a relevancia atri- buida a feiticaria nessa perspectiva deve ser associada a um fendmeno mais especifico, ainda que relacionado, ou seja: a crescente influéncia da Antropologia sobre a Histéria. Nao é por acaso que 0 clissico sobre a feiti- caria entre os Azande, escrito por Evans-Pritchard hé aproximadamente 50 a A. Del Col, La Riforma cattolica nel Friuli vista da Paschini, in Atti del convegno di studio su Pio Paschini nel centenario della nascita, s.n.d., pp. 123 sqq, especialmente p. 134, H. Trevor-Roper, The European Witch-Craze of the 16th and 17th Centuries, Londres 1969. 5 4. Momigliano, Linee per una valuatione della storiografia del quindicennio 1961-1976, in "Rivista storica italiana", LXXXIX (1977), p. 585 sqq- u anos, forneceu 0 esquema cognitivo para Alan McFarlane e Keith Thomas para as suas obras sobre a feitigaria no século XVII ®, A variedade de intui- ges reunidas no classico de Evans-Pritchard 6, naturalmente, inegdvel — ainda que a comparagdo entre feiticeiras ou feiticeiros ingleses do século XVII e seus colegas Azande deva ser complementada, penso eu, por uma comparagao (evitada sistematicamente na leitura recente) com as bruxas do Continente, perseguidas no mesmo periodo. Sugeriu-se que o aspecto peculiar dos processos ingleses de feitigaria (particularmente a notdvel falta de confiss6es relacionadas com o sabé das bruxas) deva ser explicado também pela insularizagdo legal. Nao hd diivida que processos continentais levados avante pela Inquisiga0 fornecem infor- magdo muito mais abundante para os historiadores que tentam reconstituir as crengas do povo comum relativas a feitigaria. Aqui a analogia entre in- quisidores e antropslogos (assim como historiadores) comega a revelar as suas ambiguas implicagdes. O testemunho ilusdrio que os inquisidores esta- vam tentando arrancar dos réus nao era tao diferente, no fim das contas, da- quilo que nds estamos procurando; diferente, naturalmente, eram os seus meios ¢ fins tiltimos. Enquanto estava lendo os processos inquisitoriais, fre- qiientemente eu me sentia como se observasse por sobre os ombros dos juf- zes, seguindo as suas pegadas, esperando (assim como eles provavelmente esperavam) que o réu fosse bastante loquaz sobre as suas crengas — cor- rendo o seu préprio risco, naturalmente. A proximidade com os inquisidores de certa forma se opunha a minha identificagao emocional com os réus. Mas eu nao gostaria de insistir neste ponto. Uma diferente espécie de con- tradig&o pode ser experimentada a nivel intelectual. O desejo de verdade por parte dos inquisidores (a verdade deles, naturalmente) produziu um teste- munho extremamente rico para nés — profundamente distorcido, todavia, pelas pressdes psicoldgicas e fisicas que representavam um papel tao pode- Toso nos processos de feiticaria. A indugo ficava particularmente evidente has quest6es dos inquisidores relacionadas com o saba das bruxas — 0 ver- dadeiro micleo da feitigaria, de acordo com os demondlogos. Neste caso, os réus ecoavam, mais Ou menos espontaneamente, esteredtipos inquisitoriais espalhados por toda a Europa por pregadores, tedlogos, juristas e outros. 6 Cf. BE. Evans-Pritchard, Witchraft, Oracles and Magic among the Azande, Londres 1937; ‘A. Macfarlane, Witchcraft in Tudor and Stuart England. Londres 1970; K. Thomas, Religion and the Decline of Magic, LOndres 1971. 12 A escorregadia natureza do testemunho inquisitorial provavelmente explica por que tantos historiadores tenham decidido concentrar-se na per- seguigdo a feiticaria, analisando padroes regionais, esteredtipos inquisito- riais, etc. — um terreno mais tradicional mas, obviamente, mais seguro, se comparado com as tentativas de reconstituigdo das crengas das bruxas. Referéncias de passagem aos feiticeiros Azande ndo conseguem ocultar 0 fato Sbvio de que muito pouco dentre os estudos histéricos dedicados a fei- ticaria européia nos tltimos vinte anos tém sido realmente inspirados pela pesquisa antropolégica. O debate iniciado por Keith Thomas e Hildred Geertz no Journal of Interdisciplinary History mostra que 0 didlogo entre historiadores e antrop6logos ¢ dificil 7. A obtengao da informagao parece crucial neste contexto. Os historiadores das sociedades do passado nao po- dem produzir as suas fontes como fazem os antropdlogos. Fichas de ar- quivo, vistas deste Angulo, no podem substituir os gravadores. Tém os his toriadores informagao suficiente para reconstituir as crengas da feitigaria na Europa medieval e no inicio da Idade Moderna, que permita ir além dos es- terectipos dos juizes? Obviamente, este é um problema de qualidade, nao de mera quantidade. Num livro bastante distanciado da trilha principal da pes- quisa atual, Richard Kieckhefer estabeleccu uma distingdo entre esteredti- pos cultos e feiticaria popular, baseado num exame detalhado (embora cla- ramente ndo-convincente) da informacao disponivel. Significativamente, ele sugeriu uma avaliagdo negativa das confissées dos réus diante da Inquisigaa, comparando-as desfavoravelmente ou com protestos escritos por pessoas que haviam sido previamente acusadas de serem bruxas ou com relatos de testemunhas de processos de feitigaria 8. Esses documentos, de acordo com Kieckhefer, nos dio uma imagem mais fiel das crengas popula- res relativas & feiticaria. Assim, a comparagao que eu sugeri acima entre processos inquisitoriais e notas de campo antropoldgicas teria, do ponto de vista do historiador, uma implicagao negativa: a presenga daqueles antrop6- logos mortos seria tao incémoda que nos impediria de conhecer as crengas € pensamentos dos infelizes nativos trazidos até eles. Eu nao compartilho dessa conclusdo pessimista. Com vistas a dizer por que, gostaria de fazer mais algumas reflexes sobre a analogia de que estou falando. As suas bases sdo textuais. Em ambos os casos, nds temos 1 Cf. H. Geertz — K. Thomas, An Anthropology of Religion and Magic, in "Journal of Interdisciplinary History”, VI (1975), p. 71 saa. 8 R. Kieckhefer, European Witchcraft Trials, Londres 1976. 13 textos que so intrinsecamente dialégicos. A estrutura dialdgica pode ser explicita, como nas séries de questOes € respostas que pontuam tanto um Processo inquisitorial quanto uma transcrigio de conversas entre um antro- p6logo e seu informante, Mas pode ser também implicit gGes de pesquisa etn fica de campo descrevendo um strument ((Posigdovdial6gica. Seu fundamento tedrico, num nivel lingiiistico (e nao psicol6gico), foi assinalado numa densa ia a isse) que 0 discurso interior € na sua esséncia um didlogo e que qualquer discurso registrado ¢ apropriado e remodelado por quem cita, seja citagao de um alter ou de uma fase anterior do ego” 9. Num nivel mais cir- canscrto, outto grande erudito rus, Mikal Bae, tancia do elemento dialdgico na sua acentuou a impor- tou preocupado aqui com as reflexdes de Bakhtin sobre o género literdrio peculiar no qual as novelas de Dostoievski se enquadram. Penso, contudo, que a sua nogdo de textos dialégicos pode langar luz sobre alguns aspectos Particulares os quais, de tempo em tempos, chegam a superficie dos proces- sos de feiticaria da Inquisiga0. Obviamente, os Penyomagens conflitantes que falam nesses nana nao no Parecem apenas repetitivos mas igualmente monolégicos (para usar um termo favorito de Bakhtin) no sentido de que as respostas dos réus eram muito freqiientemente apenas um eco das perguntas dos inquisidores. Mas, em alguns casos excepcionais, nés temos um real didlogo: podemos ouvir vozes distintas, podemos detectar um choque entre vozes diferentes, até ° Jakobson, Language in Operation, in Mélanges Alexandre Koyr6, Tl Laventure de esprit, Paris, 1964, p. 273. 1 M. Bakhtin, Dostoevshij, rad. italiana, Turim, 1968, 4 conflitantes. Nos processos friulanos que estudei hé muitos anos, os benan- danti forneciam longas descrig6es das batalhas noturnas que eles travavam ‘em espirito contra as bruxas, pela fertilidade das colheitas. Para os inquisi- dores tudo isso soava como uma descrigo disfargada do sabé das bruxas. Contudo, nao obstante esforgos continuos, foram necessrios 50 anos para preencher a distAncia entre as expectativas dos inquisidores ¢ as confissdes espontaneas dos (benaAdanti) Tanto a distancia quanto a resisténcia dos be- nandanti as presses inquisitoriais indicam que temos aqui uma profunda camada cultural que era totalmente estranha aos inquisidores. A propria pa- lavra benandanti era desconhecida deles: 0 seu sentido (que era um sind- nimo de bruxo ou, pelo contrério, de contra-feiticeiro) era, de certo modo, 0 cerne de um longo conflito que opunha, no Friul, entre o final do século XVI e meados do XVII, inquisidores ¢ benandanti. A longo prazo, o poder resolveu essa disputa semantica (0 que sempre acaba fazendo, como os lei- tores de Through the Looking Glass bem o sabem). Os benandanti torna- ram-se bruxos 11, valor etnogrifico desses processos friulanos € verdadeiramente es- pantoso. Nao apenas palavras, mas gestos, reagGes repentinas como enru- bescimento, ¢ até siléncios eram registrados com minucioso cuidado pelos notérios do Santo Oficio. Para os altamente desconfiados inquisidores, qualquer pequeno indicio poderia fornecer uma brecha em diregdo & ver- dade. Eu no estou pretendendo naturalmente que esses documentos sejam neutros ou nos fornegam informagées “objetivas". Eles devem ser lidos como o produto de uma inter-relaco peculiar, claramente desequilibrada. No sentido de decifri-los, devemos aprender a captar, por baixo da superfi- cie uniforme do texto, uma interago sutil de ameagas ¢ temores, de ataques ¢ recuos. Devemos aprender a desenredar os diferentes fios que formam 0 tecido factual desses didlogos. ‘Nos tiltimos anos, a eonseiéncia textial veio para a linha de frente en- tre os ant ilogos, sendo mais ou menos diretamente inspirada pela obra - aneee Para historiadores que comumente (ainda que ndo exclusivamente) lidam com textos, isso no é propriamente uma novidade. 1 1 6 Ginzburg, 1 benandanti, Turim, 1966 (Os andarithos do bem. S. Paulo, 1988) V., por exemplo, G. E. Marcus ~ D. Cushman, Ethnographies as Texts, in “Annual Review of Anthropology", 11 (1982), pp. 23-69, bem como Writing Culture cit. A iltima colegio de ensaios de Geertz (Works and Lives. The Anthropologist as Author, Cambridge 1988) também € importante. 15 Mas a conclusiio nao é tao simples. Tornar-se consciente do aspecto textual da obra etnografica ("o que faz 0 etnégrafo? — ele escreve", responde ironi- camente Clifford Geertz, !3) implica na superagdo de uma epistemologia in- é ista e, no entanto, compartilhada por muitos historiadores. pode significar, como alguns hi lores e antropdlogos tém afirmado re- centemente, ou pelo menos sugerido, que Oitext6 & lipendislevidéncia dé sil (GGESnSIRIEONN RENTERIERGHARY © cevciomo refinado que tem inept rado a rejeicao da assim chamada "faldcia referencial" parece uma perigosa armadilha 14, Aqui também a comparagio entre inquisidores ¢ antropdlogos pode trazer recompensas. Como eu mostrei anteriormente, uma realidade cultural conflitante pode transpirar até mesmo de textos firmemente contro- lados como os processos inquisitoriais, As mesmas conclusdes podem ser estendidas também aos registros enogrificos. Um cético extremado poderia objetar que o termo "realidade” (ou mesmo "realidade cultural") é ilegitimo: nés temos vozes conflitantes no mesmo texto, nao realidades conflitantes. Qualquer inferéncia desse tipo seria injustificada. Responder a tal objeg4o pode parecer mera perda de tempo: no fim de contas, a integracdo de diferentes textos no sentido de es- crever Hist6ria ou Etnografia repousa sobre a sua referéncia comum a algo que devemos chamar, faute de mieux, de “realidade externa". Contudo, eu acredito que essas objeges céticas apontam, ainda que de uma maneira dis- torcida, para uma dificuldade real. No sentido de ilustrar isso, dar-Ihes-ei um exemplo. Em 1384 e 1390, duas mulheres, Sibillia Pierina, foram processadas pela inquisigéo milanesa. Seus processos perderam-se; apenas duas senten- gas detalhadas (uma delas citando in extenso uma anterior) sobraram. Esses documentos foram descobertos ¢ analisados por Ettore Verga, no final do século XIX, num ensaio notavel !5, Depois, eles foram estudados diversas vezes, sob diferentes perspectivas. No seu livro j4 citado European Witch- : C. Geertz, The Interpretation of Cultures, New York, 1973, p. 19. C. Ginzburg, Prove e possibilita, posfécio de N. Zemon Davis, /! ritorno di Martin Guerre, ‘Turim 1984, p. 131 sqq. E, Verga, Intorno a due inediti docwmenti di stregheria milanese del secolo XIV, in “Rendiconti de IR. Instituto lombard di scienze ¢ letere", s. II, 32 (1899), pp. 165 sqq. 16 Trials, Richard Kiechefer interpretou-os como prova de uma “festividade ou ritual popular" 16, Essa afirmagaio parece uma homenagem inesperada feita A notéria "tese Murray", que implicava na realidade fisica do sabé das bru- xas. De fato, as confissdes das duas mulheres milanesas esto cheias de de- talhes cercados por um halo mitico. Elas costumavam ir toda quinta-feira a uma reunido presidida por uma dama misteriosa, Madona Horiente. Todo tipo de animal comparecia, exceto o asno e a raposa; gente decapitada e en- forcada também participava da reunido; gado morto era trazido de volia & vida, ¢ assim por diante. Em 1390, uma das mulheres, Sibillia, disse ao in- quisidor Beltramino de Cernuscullo que, seis anos antes, ela havia confes- sado ao predecessor dele, Ruggero de Casale, que costumava ir "ad ludum Diane quam appellant Herodiadem" (ao jogo de Diana, que chamam de Herodjades), saudando-a com as palavras "Bene stage (Esteja bem) Madona Horiente". Essa série de nomes parece um pouco enigmatica, mas a solugao é bem simples. Tanto Sibillia quanto Pierina se referiam sempre a Horiente apenas: a identificag’io desta com Diana e Herodiades foi sugerida pelo in- quisidor Ruggero de Casale. Ele obviamente havia sido inspirado pelo fa- moso Canon episcopi, um texto escrito no inicio do século IX (ou até antes) no qual algumas mulheres supersticiosas foram rotuladas como seguidoras de Diana e de Herodiades. E desnecessério dizer que a mesma identificagao foi tomada por correta pelo segundo inquisidor, Beltramino de Cernuscullo, que tacitamente a atribuia e Pierina: tu foste, diz a sentenga, "ad ludum Diane quam vos appelatis Herodiadem (ao jogo de Diana que tu chamas de Herodiades)" 17, Evidentemente nés temos aqui a projec comum de este- restipos inquisitoriais sobre cren¢as populares. Mas, neste caso, as coisas so mais complicadas. Esses personagens femininos de religido popular apontam para uma inegvel unidade subjacente. Perchta, Holda, dama Abonde, Madona Horiente se apresentam como variagdes locais de uma nica deusa feminina, diretamente relacionada com o mundo dos mortos. A interpretatio romana ou biblica (Diana ou Herodiades) sugerida pelos in- R. Kieckhefer, European cit., pp. 21-22. A hipétese de que a domina Iudi fosse chamada de "Herodiades” pelos populares (ibid, p. 148) parece sem fundamento. Kieckhefer no faz. qualquer comentério sobre a identificagao de Madona Horiente com Diana-Herodiades feita pelos inquisidores. Para uma transcrigo (nem sempre satisfat6ria) das duas sentencas milanesas, V. L. Muraro, La Signora del gioco, Milio, 1976, pp. 240-245. V. agora C. Ginzburg, Storia notturna. Una decifrazione del sabba. Tu- rim, 1989, p. 68 ssq. 7 quisidores nao era, no fim ‘das contas, uma tentativa de perceber a sua uni- dade subjacente? N§o estou sugerindo que os inquisidores tenham sido os inhos da nossa tarefa é muito mais facil quando os inquisidores nfo entenderam — como no caso dos benandanti. Quando eles foram mais perceptivos, 0 pro- cesso perdeu (pelo menos numa certa medida) os seus elementos dialégicos, Neste tiltimo caso nés encaramos 0 testemunho como menos valioso, menos Eu disse "contaminada pela interpretagao deles”. Mas isso é muito in- justo para com a intui¢o antropoldégica dos inquisidores. Eu deveria acres- centar "mas igualmente elucidada". Fragmentos e exemplos de interpretagao sugerida pelos inquisidores, pregadores, canonistas podem nos fornecer pre- ciosos elementos, que preenchem os vazios de nossa informagdo. Eu lhes darei um outro exemplo. Johannes Herolt, um frade dominicano que, na primeira metade do século XV, era um pregador muito ativo, incluiu na sua colegio de sermées uma longa lista de tipos supersticiosos. Entre eles, “aqueles que acreditam (credunt) que, durante a noite, Diana, chamada em verndculo de Unholde, isto é: die selige Frawn (a mulher abengoada), parte com 0 seu exército, atravessando grandes distancias (cum exercitu suo de nocte ambulet per multa spacia)". Essa citago foi tirada de uma edigZo dos Sermones de Herolt, impressa em Colénia em 1487. EdigGes posteriores, publicadas em Estrasburgo em 1478 e em 1484, acrescentaram aos sindénimos de Diana, Fraw Berthe e Fraw Helt (como um substitutivo para Unholde 18), O texto de Herolt estava obviamente ecoando 0 famoso Canon episcopi: h4 mulheres que “credunt se et profitentur noc- turnis horis cum Diana paganorum dea et innumera multitudine mulierum equitare super quasdam bestias, et multa terrarum spatia intempestae noctis silentio pertransire... (acreditam e afirmam cavalgar, em horas noturnas, so- 18 J. Herolt, Sermones de tempore (serm. 41). Também utilizei as seguintes edigées: Nuremberg 1480, 1481, 1496; Estrasburgo 1499, 1503; Rudo 1513. 18 bre certos animais, com Diana, a deusa dos pagdos e uma inumerdvel multi- dao de mulheres ¢, no siléncio morto da noite, atravessar grandes espagos da terra...") 19. Mas Herolt nao citou o texto do Canon de modo literal; ele 0 usou como referéncia, suprimindo ou acrescentando detalhes com base na sua experiéncia pessoal — seu trabalho de campo, poderiamos dizer. A alu- s4o a cavalgar sobre animais desapareceu; sinénimos de Diana, tirados da tradigao popular germ4nica, foram incluidos, nao apenas pelo autor, mas igualmente por seus editores; a propria Diana foi contemplada com um exército (cum exercitu suo). Este tiltimo pormenor é 0 mais intrigante. Nao consigo encontrar paralelo algum nem em textos classicos, nem em medie- vais. Todavia, ele pode ser facilmente explicado no contexto do folclore europeu relacionado com as crengas da Hoste Selvagem ou da Caca Selvagem 20, No texto de Herolt, Diana é representada como lider do exér- cito dos mortos. Este testemunho comparativamente precoce parece dar sus- tentagSo a hip6tese que formulei alhures sobre a conexdo entre este nivel de crengas pré-sabaticas, j4 registradas pelo Canon episcopi, e 0 mundo dos mortos 21, Alguém poderia objetar, todavia, que 0 meu esquema de referén- cia interpretativo coincide, numa certa medida, com o esquema de referén- cia de inquisidores ou pregadores como Johannes Herolt. Essas pessoas no eram eruditos inocentes; eles tentavam, freqiientemente com sucesso, fazer com que os outros acreditassem que o que eles pensavam era verdade. Essa continuidade entre o testemunho e as primeiras interpretagdes implicaria em estarmos inevitavelmente presos na teia de categorias usada por aqueles re- motos antropélogos — pregadores e inquisidores? Essa questo ecoa, num nivel mais circunscrito, a objegiio extrema- mente cética que recordei anteriormente. Dessa forma, a critica & "falécia referencial” perderia as suas implicagdes epistemoldgicas universais, para apontar na direg4o de alguns aspectos especificos do testemunho de que es- tou tratando, Mas até esse ceticismo moderado nao parece justificado, Nés podemos testar a nossa interpretagao num contexto comparativo que é muito mais amplo do que o contexto disponivel aos inquisidores. Mais 19 ‘Tradugo utilizada: J. B. Russell, Witchcraft in The Middle Ages, Ithaca e Londres 1972, p. 6. 20 V., entre outros, A. Endter, Die Sage vom wilden Jagd, Frankfurt a. M. 1933; K. Meisen, Die Sagem vom Wiltenden Heer und Wilden Jager, Miinstcr i. W. 1935. 2 . Ginzburg, Présomptions sur le sabbat, in "Annales ESC", 39 (1984) p. 341 sqq. V. agora Storia notturna cit., pp. 78-79, passim. 19 ainda, nés podemos tirar proveito daqueles casos inestimAveis nos quais a falta de comunicagio cultural entre juizes e réus permitia, bastante parado- xalmente, a emergéncia de um didlogo real — no sentido bakhtiniano de um choque irresolvido de vozes conflitantes. Eu citei anteriormente o caso dos benandanti, chamando-o de "excepcior Ele nao , NO entan! espléndido testemunho sobre as| que Gustav Hennigsen, o folclorista dinamarqués, descobriu ha alguns anos nos arquivos espanhdis, mostra que na Europa do século XVI havia outros er ae de se ainda ndo contaminadas a ener que sejam as conseqiiéncias, os historiadores das sociedades do passado nfo podem produzir a sua documentagdo, como os antropélogos fazem, como os inquisidores fazem. Mas no que diz respeito a interpretagdo desta documen- taco eles tem algo a aprender com ambos 2 G. Hennigsen, Sicilien: Eu arkaiskt minster for sabbaten, in Hdxornas Europa (1400- 1700), ed. por B. Ankarloo e G. Hennigsen, Lund 1987, pp. 170-190 (uma versio inglesa deste ensaio foi lida pelo autor numa conferéncia sobre feitigaria feita em Estocolmo, em setembro de 1985). 20

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