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educação∗
Geraldo A. Lobato Franco
de novidades e idéias diferentes, raras ou ex- difícil essa resposta, pois só me dei conta de
traordinárias de todo o mundo. que me achava profundamente interessado
Eram as inolvidáveis Atualidades France- neles há uns poucos anos, dez, para ser pre-
sas, o Pathé Jornal (com o seu galinho Chan- ciso.
teclair e o seu comentarista o famoso Iberê Neste período coincidiu de matricular-me
da BBC), o Universal Newsreel (cujos cine- numa universidade canadense, a Université
grafistas Howard Winner e George Kraniu- de Montréal e de me preocupar mais pro-
kov filmaram quase todo o princípio das hos- fundamente com as Tecnologias Educacio-
tilidades da Guerra sino-japonesa, antes, nos nais o suficiente para conquistar uma bolsa
anos 30), o Movietone News cuja peça grá- de estudos do governo, especificamente do
fica ou logo de entrada era a frase feita: It CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvi-
speaks for itself (Fala por si mesmo) e o não mento Científico e Tecnológico, podendo as-
menos curioso, mais recente e nacional Atu- sim obter o meu título de Doutor, ao escrever
alidades Atlântida, com o intróito de uma uma tese sobre a Pesquisa-Ação Participativa
gloriosa fonte pseudo-greco-romana que pa- como instrumento educativo e as experiên-
rece ter sido obtida do cinema alemão, de um cias brasileiras neste tema.
dos Wochenshau, ainda dos anos 30. Para tal fim, passei quatro anos em Mon-
Havia também as mais raras e difíceis tréal, uma cidade de inverno pesado, onde é
de se ver ou encontrar, como as espanho- comum nevar quase sem parar, de seis a sete
las Atualidades No+Do, alemãs do Spie- meses ao ano.
gel, etc. No entanto, o que parecia inte- Sem exagero. Naturalmente passava uma
ressante era que, como parte das matérias boa parte do tempo dentro de casa, maior ra-
desses jornais-falados, havia quase sempre zão para me dedicar às leituras de materiais
uma seção de uma qualidade demonstrativa diversos e preparar os trabalhos acadêmicos
e tangente, que talvez pudesse se chamar de requeridos pelos professores.
quase-documentário. De resto, como dito, Saía muito raramente, somente para co-
falavam por si mesmos. mer ou comprar comida, e atender a cerca
Um arremedo daqueles que só muito de uma dezena de compromissos ou reque-
tempo depois viriam a se estabelecer, com rimentos de cursos universitários, pesquisar
uma clientela própria de fãs. Os tele- nas Bibliotecas, visitar as livrarias e aten-
noticiários tinham essa qualidade intrínseca: der a uns poucos encontros acadêmicos ou
mostrar a verdade, mesmo se re-interpretada, sociais, fossem com o meu orientador, fos-
observada pela lente-olho do cinegrafista, sem com os colegas, coisa que me tomava
das hábeis decisões do montador, da quali- um terço se tanto de minhas horas diárias.
dade de convencimento verbal do comenta- Obviamente, pude dedicar-me a mais um
dor, da distribuição perfeita dos elementos hobby do qual soube ser devotado, impo-
sonoros frente à imagem visual, enfim, da sição do vento frio e da neve: assistir aos
qualidade da direção conjunta de todos esses programas da rede de TV Norte Americana
elementos. PBS, das emissoras das redes CBC Cana-
Qual teria sido o meu primeiro documen- dense e da rede Franco-canadense, nem sem-
tário ou o que mais me marcou? Parece-me pre nessa ordem e não importa a que tivesse
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ainda não tudo aquilo que permeia o tema, tema, otários do capitalismo que agüentam o
ao menos uma boa parte, pois todos, creio, peso da pirâmide invertida do consumismo.
possuam um pedacinho dessa verdade. Sem dúvida, um legítimo vidro mole, como
Mas a sua totalidade e conseqüente siner- quer o Aurélio.
gia pertencem a outros ramos como ao da Para finalizar, procuro ainda explicar de
Economia Política, naquilo em que o capi- que forma os tele- documentários poderiam
tal e o capitalismo imperam como itens obri- ser melhor utilizados e concluo com algumas
gatórios de estudo mas que não afetam, por sugestões favoráveis de como fazê-lo e com
enquanto, a minha curiosidade o suficiente uma lista de alguns conhecidos com rápido
para abordá-los profundamente como talvez comentário sobre eles.
devesse. Portanto, aqui estão os resultados das mi-
Daí parto em procura de como poderiam nhas investidas no assunto, que, além do
ser revistos os parâmetros educacionais via mais me parece uma redenção do ensino e da
o uso mais completo e sistemático dos tele- aprendizagem, conforme muitos gostariam
documentários. de ter tido, desde o princípio de suas carrei-
Faço isto acreditando na possibilidade da ras de educandos e quem sabe de educado-
criação de uma utopia brasileira (ora, os que res.
se dizem povos universais não possuem as
deles?); revejo os espaços culturais aos quais
2 Alguns antecedentes
as mídias invadiram sem cerimônias, com ou
sem a anuência do povo brasileiro. histórico-literários do cinema
É bom lembrar que o povo seja o verda- Parece que foi ontem quando o mundo es-
deiro dono do espaço usado pelas televisões tava se preparando, vigorosa e febrilmente,
abertas, invasoras e exploradoras sem pie- para as grandes mudanças que então se pre-
dade ou respeito das casas nas cidades dos nunciavam com o advento de uma revolu-
que, afinal, pagam a conta da operação: a ção científico-tecnológica e industrial ocor-
já mencionada população, como um todo e rida na virada do Século XIX para o XX.
em especial as classes escolhidas e nome- Aproximava-se, célere, um novo século
adas pelas artes e manhas da mercadologia que já acordava tonto, embriagado das in-
especializada (marketing) dos segmentos C, venções e das técnicas modernas. Adentrava,
D e E. Ou algo muito próximo e que valha contente a civilização burguesa ocidental de
como tal. uma maneira extraordinária, quase inconsci-
Artes estas que, diga-se de passagem, pa- ente das inovações que iriam mudar a face da
recem prestar um grande favor e obséquio à Terra, a um só tempo que festejada, glorifi-
permanência de um status quo em que a po- cada, iluminada.
pulação deseducada se torne presa favorita E maravilhada com as diversas e bem or-
de aves de rapina do capitalismo transnaci- ganizadas Exposições Internacionais em que
onal travestidas de Papai Noel, o bonzinho. se anunciavam e comemoravam o advento, o
Tamanha estultícia, mesmo se colorida, aparecimento e o reino, ainda que nem sem-
inteligente e perfumada só engana os mais pre unido, da ciência, do comércio, da eco-
frágeis na cadeia de opções, trouxas do sis-
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O cinema, o documentário e a educação 5
nomia, das finanças, da indústria e da tecno- desenvolvidas ou quase sempre também des-
logia, onde pululavam livres, paralelamente cobertas, havia a fotografia de Nièpce e de
em todo o mundo que se julgava civilizado, Daguerre, mais tarde de Nadar, entre outros,
os modelos e os protótipos das muitas des- em que procuravam desde 1850, cada um de-
cobertas e invenções técnicas decorrentes do les por seu método e técnica, algo diferente
momento.1 e expressivo, que logo veio a se chamar de
A Exposição Universal de Paris de 1900, fotografia.
por exemplo, resumia em cerca de 1.5km2 Queria com rapidez saisir l’instant, captu-
de instalações e de espaço livre, a filosofia e rar o estático e fugidio momento, como an-
a síntese do século que aos poucos se des- tes o haviam feito diversos desenhistas e pin-
cortinava, tanto nos ramos do saber e das tores das inúmeras escolas com indiscutível
Artes, das Ciências e Técnicas, quanto nas beleza estética, todavia, imprecisa e vagaro-
práticas de Comércio e de Indústria. Criou- samente.
se ali um verdadeiro monumento arquitetu- Mais recentemente então, diversas tradi-
ral urbano aos novos tempos, à modernidade ções culturais se amalgamavam no Círculo
que despontava. Impressionista, um punhado de pintores que
Dentre as maravilhas criadas, recém- se propunham recriar a natureza da maneira
1 com que a viam e sentiam, a um passo da
PLUM, Werner Exposições Mundiais no Século
XIX: Espetáculos de Transformação Sócio-Cultural, recriação da natureza que se propunha e se
Bonn, Friederich-Ebert Foundation, 1979, p. 128. exaltava.
Note-se que os irmãos Lumière só iniciaram as suas Tentavam, em certos momentos de forma
atividades na Paris de 1895. “Louis Lumière registrou maravilhosa e apesar de um excelente do-
naquele ano o seu invento e com isto abriu o caminho
para o cinema-verdade.” In: TULARD, J. Dicioná-
mínio da técnica e da plástica, mas não re-
rio de cinema, Porto Alegre, L&PM, 1996, p. 402. tratavam nem a leveza nem a ubiqüidade,
Mais adiante, Jean Painlevé foi considerado inovador muito menos a inconstância dos fenômenos
por sua criação de Documentaires animaliers e em efêmeros da vida diária, como o fez magis-
seguida pela criação do cinema científico. Sobre o as- tralmente a fotografia.
sunto, ver: Cent ans de cinéma français, Paris, Les
images encyclopédiques, Sages, 1994, p. 19. So-
No fin de siècle além da fotografia, que já
bre a fotografia como um todo e o filme documen- se mostrava com os seus avanços galopan-
tário como uma invenção científica, ver: WINSTON, tes, momento em que surgiu a cinematogra-
Brian The Documentary Film as a Scientific Inscrip- fia: o filme e o cinema, cujas imagens se-
ton, in: RENOV, Michael (ed.) Theorizing Documen- guidas eram compostas de fotografias cap-
tary, New York, Routledge, 1993, pp. 37-57. Uma
pequena obra prima ricamente ilustrada sobre os pri- turadas em movimento aparente, presas fir-
mórdios do cinema, é: TOULET, Emmanuelle, O ci- memente em seqüência, numa tira de algum
nema, invenção do século, trad. de Eduardo Brandão, material em comum, opaco e translúcido.
Rio de Janeiro, Objetiva, 1998. Para um quadro com- Deslizavam defronte a uma fonte de luz,
pleto, ilustrado e geral da profusão de invenções e da
e eram refletidas numa tela, resultado defini-
riqueza intelectual dessa época notável em aconteci-
mentos e fatos históricos extraordinários, ver: BER- tivo das experiências iniciais de vários inven-
NAL, J. D. Science in History, Vol. 2, The Scientific tores, se bem que carregadas, aos poucos, de
and Industrial Revolutions, Carnbridge, MIT, 1971, ainda mais e maiores desenvolvimentos téc-
p. 371-693. nicos, tanto elétricos quanto mecânicos, dos
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irmãos Lumière, de Meliès, de Thomas Edi- ning Reality: The Faber Book of
son e logo de uma centena de outros mais, Documentary, Chap. 1 (O reino
pioneiros desconhecidos, obscuros ou em se- das Sombras) p. 3.
guida, mais ou menos famosos pelo seu tra-
E assim foi. Com a pressa de quem que-
balho e pela sua dedicação à Sétima Arte.
ria recuperar com urgência, o precioso tempo
Procurava-se adicionar um novo trata-
perdido, o cinema atingiu às demais camadas
mento da informação de parte dos filmes de
sociais e às multidões como um furacão be-
novidades, precursores das reportagens e dos
nigno que as arrebanhava de onde estivessem
tele-magazines, onde se mostrava a célere
para irem ver a novidade que se tornou um
conquista das ruas e estradas pelos automó-
modelo internacional: o cinema e o filme,
veis e trens, dos mares pelos céleres paquet-
milagres do século.
boats transoceânicos e dos ares nos aviões e
Foi com essa veemência da novidade des-
dirigíveis, para afinal, a aeronáutica de gente
conhecida e de repente descoberta, do des-
da estirpe de Dumont, Blériot e Garros, to-
velo do algo insó1ito e misterioso que dina-
marem a hegemonia e seguramente assumi-
mizava a stasis, com que alguns impressio-
rem o lugar de maior destaque, antes perten-
nados escritores expressaram a sua admira-
cente aos outros rápidos meios de transporte
ção, espanto e surpresa:
existentes.
“Ontem à noite eu estava no Reino das
Inventada e criada por uma minoria patrí-
Sombras
cia e burguesa das grandes urbes para o seu
Se vocês somente pudessem representar a
divertimento, os curtos filmes daquele prin-
estranheza desse mundo, um mundo sem cor,
cípio ainda incerto, apelaram ao senso crí-
sem som. Tudo aqui a terra, a água e o ar,
tico dos sábios e escritores como instrumen-
tudo é feito de um cinza monótono. Raios de
tos dos quais a humanidade usufruiria inte-
sol cinzentos num céu cinzento, olhos cin-
gralmente em futuro próximo.
zentos num rosto cinzento, folhas de árvore
que são cinzentas como a cinza. Não a vida,
Do outro lado da fronteira, es-
mas a sombra da vida. Não o movimento
tavam os irmãos Lumière. Se Edi-
da vida, mas uma espécie de espectro mudo.
son era quem originava o filme fic-
Aqui é preciso que eu tente me explicar antes
ção, eles foram os pais do docu-
que o leitor pense que fiquei completamente
mentário. As audiências que viram
maluco ...Eu estava na casa de Aumont e vi
o primeiro programa do cinemató-
o cinematógrafo de Lumière, as fotografias
grafo em Paris, em dezembro de
animadas."2
1895, confrontaram não as perfor-
Havia também os visionários de um fu-
mances exóticas, mas as vinhetas e
turo em que as invenções viessem a melhor
os incidentes da vida diária: traba-
2
lhadores passando pelas portas da GORKI, Maxim Nijegorodskilistok, 4 de julho,
fábrica, um trem chegando à es- 1896, in: LEYDA, J. Kino: Histoire du cinema russe
et soviétique, Paris, L’Age d’Homme, 1976. Compi-
tação, um bebê sendo alimentado,
lado por PRIEUR, Jerôme, in: O espectador noturno:
um barquinho deixando o porto. os escritores e o cinema, Rio de Janeiro, Nova Fron-
Macdonald & Cousins, Imagi- teira, 1995, p. 28.
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e verbalmente a estes estímulos visuais. Era nífico que se prenunciava para o cinema. E
uma poderosa reação, mista de emocional e houve muitos outros.
racional. Possuíam esses primeiros desbravadores
E semelhante reviravolta acontecia logo do reino das luzes e sombras uma garan-
ali na Europa e nos Estados Unidos, assentos tida multidão de fanáticos clientes, animada
cativos do individualismo do Século das Lu- e curiosa: os espectadores simplesmente
zes. Desde o Cinèmatographe do bem apara- adoravam-nas. Mostravam reis, e rainhas,
tado tecnicamente Lumière, ao Kinetoscope pescadores e camponeses, poetas e escrito-
e ao Vitascope de Edison, de 1896, seguidos res da mesma e democrática forma com que
de seu desengonçado, ameaçador, mas com- o freqüentador do cinema queria que fossem
petente estúdio compacto, o Black Mariah, vistos: a uma certa distância.
[pronuncia-se maráia] de 1897, que ainda Dentre as cenas filmadas podiam-se divi-
se encontra no Laboratório de West Orange, sar uma ou outra pessoa conhecida e não raro
New Jersey, negro e tremebundo ao se deslo- elas mesmas. Então todos se iluminavam cu-
car, movia-se conforme a precisa direção da riosos, ao ver a si mesmos refletidos na tela,
luz solar. ou sabendo que isso viria, eventualmente, a
Em breve seguiram-se muitos e muitos acontecer. Quel frisson!
outros estúdios de produção, uns ao ar li- Louvava-se a elementar constante, princi-
vre, outros enclausurados em depósitos mo- pal característica e integralidade indispensá-
numentais que se modificavam internamente vel do cinema, à época: a luz solar e as suas
segundo o interesse dos diretores e produto- decorrentes sombras.
res. Eram os estúdios que de primitivos se Sol, sombras e seus reflexos capturados,
tornaram aos poucos verdadeiras fábricas de todos controlados ao espectro visível da
filmes. luz, domados pelas rústicas lentes óticas
A técnica de filmagem e de apresentação da câmara manual, gravados indelevelmente
destes que se tornava aos poucos modelo, a numa fita à base de nitrato de prata, capa-
dos irmãos Lumière, em que uma fita per- zes em seu conjunto de mover as mentes hu-
furada em trilha era carregada num aparelho manas daquele princípio de século que ora
de projeção, assim crescia com o volume de finda.
produções que surgia, não só num como nou- Como resultado, o sol, os seus reflexos e
tro continente. suas sombras, adestrados e amansados pelo
Especialmente se localizava na França, olho e técnica do cinegrafista, obtinha uma
onde uma das primeiras situações vividas a iluminação cada vez mais sabiamente con-
ser filmada, a Saída dos operários na fábrica trolada pela ótica que foi, aos poucos, se
Lumière, 1895 (La Sortie des Usines Lu- aperfeiçoando e aprimorando.
mière, 1895) entre outros filmes da época, Só mais tarde é que, primariamente sono-
hipnotizavam as pessoas, façanha curiosa de rizadas, com um gramofone, um piano, um
sua curta duração. trio ou uma pequena orquestra, alçou vôo; a
Este era um entre muitos dos brevíssimos princípio, alguns chegaram a ser até colori-
memorandos a serem lidos num futuro mag- dos manualmente, trabalho tedioso e infindo
de quadro por quadro, para a entrega final do
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produto nas salas de projeções e de espetá- cinematógrafo fazia mágicas para o melhor
culos de vaudeville. conhecimento científico do homem: mágicas
As casas de cinema surgiram como tal, so- ao desbravar as fronteiras do desconhecido,
mente já avançado o início do primeiro decê- mágicas ao divulgar abertamente o saber da
nio do século. Enchiam de gente curiosa em humanidade, além das novidades mundanas
cada apresentação. Tornaram-se famosas na a que todos eram atraídos inexoravelmente,
Europa. magicamente.
Ali, especificamente na França, esses ver- Conseqüentemente, viria a ser também
dadeiros desbravadores da Sétima Arte, os mágico, na disseminação de conhecimentos
irmãos Louis e Auguste Lumière, inaugu- e informações próprias da aprendizagem, do
raram com justeza a combinação da forma ensino e da educação. E toda essa magia era
e do conteúdo, cujos temas seguiam o seu também ligada intima, indissolúvel e profun-
nome, cinema verdade (cinèma verité), en- damente à alegria, a diversão e ao entreteni-
quanto que George Meliés se dedicava ao ci- mento das pessoas: crianças, jovens, adultos
nema espetáculo. Aos poucos se diferencia- e anciãos, que dela se acercassem.
vam os interesses de trabalho desses geniais Porém, só se pôde compreender bem isso
criadores. clara e definitivamente, muito de vagar, ao
Desde aquele princípio inconstante, in- lento sabor do tempo, o que veio acontecer
certo e interrompido já antes várias vezes, é com a análise meditada e refletida de uma
que se antevia, nitidamente, o futuro do ci- centena de outros expertsem diversos ramos
nema e do filme; não só se pensava ou se da ciência e da técnica em seu nascedouro e
sonhava acordado; agora já se atestava que, que rapidamente se aperfeiçoava.
“Considerado do ponto de vista científico, A arte que foi desenvolvida então por ver-
o cinematógrafo [era] uma das mais curiosas dadeiros artesãos, surgia num lento e seguro
e mesmo uma das mais belas invenções de amadurecer, seguida das novas práticas e téc-
nosso tempo. Alguns melhoramentos farão nicas que o fazer cinema suscitou. Mas, não
dele um instrumento perfeito e verdadeira- se tratava de um elemento sobrenatural.
mente mágico."5 O extraordinário é que a magia do cinema
Acrescentar-se-ia, em seguida, fluindo instigava pela sua racionalidade, pelo deleite
com a lógica inexorável dos acontecimentos das audiências estarrecidas que queriam ver
e dos fatos, que sim, se tratava de fato de mais e mais das suas novidades. Menos pelo
um instrumento mágico para os muitos fins fantástico, mais pelo delicioso, encantador e
do engrandecimento da cultura e principal- logo fascinante.
mente da educação dos povos. De fato, esta, Daí porque se chamou, nos princípios,
percepção era conseqüente. Fazia sentido. lanterna mágica.
E, por conseguinte, fazia mágicas. Sim, o Magia simpática? Talvez.
5
GOURMONT, Rémy de Epilogues: Cinémato-
graphe, Paris, Mercure de; in: France, setembro de
1907, um artigo compilado por PRIEUR, Jêrome, in:
O espectador noturno: os escritores e o cinema, Rio
de Janeiro, Nova Fronteira, 1995, p. 37.
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10 Geraldo Franco
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em celulose, a todos visível e palpável, assi- de nossas vidas, sobre a qual detalhava DEL-
milável pela sua incrível simplicidade, agra- TEIL, em 1923:
dável pela estética esperada, sobretudo pela “Adoro o cinema documentário. Aqui,
racionalidade lógica e moderna, tanto explí- aplaudo até quebrar meus dedos finos. Sejam
cita quanto implícita. fenômenos de ordem vegetal, divertimentos
Mas também frágil e facilmente incandes- de rinocerontes ou pulgas, efeitos de neve ou
cente, capaz de perder a sua flexibilidade de palmeiras, acho tudo admirável. Ali, não
e maleabilidade, apodrecendo e se deterio- sinto qualquer inquietação. Conheço os li-
rando depressa ao envelhecer, dado às qua- mites da reprodução e não espero que de uma
lidades químicas instáveis do material base vaca nasça um esquilo, nem de uma pêra ma-
utilizado. Os filmes antigos requeriam cui- dura uma obra de arte. A arte é um micróbio.
dados e muitos foram os que se perderam Falta ao cinema esse micróbio. Mas no do-
destruídos pela implacável voracidade de seu cumentário sinto-me seguro e estável. Aí, eu
primordial inimigo: o fogo. posso tocar minha obra com os olhos, com as
Consta que mais de 90% dos filmes à mãos. Ele é redondo e límpido. Ele é claro.
base de nitrato já não mais existam. Corre E quando essa documentação se aplica a uma
a rima, na arquivologia de cinema: nitrate operação sensual cheia de gosto e de risco,
don’t wait. [O nitrato não espera] de aventura e de saúde, fico à vontade e sor-
Mas enquanto isso não acontecia, conti- rio contente."10
nuava funcionando como se fosse um livro Aproximadamente nessa época (ao início
folheado em páginas ágeis, graciosas e rápi- dos anos 20) surge a opinião sensata en-
das, mais tarde sonorizado, desta ou daquela quanto teórica e funcional de um dos pais
maneira, falado ou musicado, ilustrado pela do documentário, o inglês Grierson, pelo
coloração ou pintura, para uma ainda maior que nos adverte a crônica daquele momento,
atração à todos os demais sentidos, levando à em que o documentarista deveria ser o pe-
platéia a um deleite cada vez mais acentuado rene “Portador de um conhecimento genera-
e marcante. lizado e assim do segredo da racionalidade
Realizar e dirigir um filme era e ainda é, na social harmonizada, o intelectual deve en-
opinião do profundo conhecedor do assunto, contrar meios sociais e intelectuais para tor-
CARRIERE, um trabalho “de alquimia, de nar aquele conhecimento efetivo.” Grier-
transmutar papel em filme. Transformação. son, um diretor virtuoso, preenche o dever de
Transformar a própria matéria". 9 educar, transmitir tal conhecimento às mo-
E essa alquimia vinha convenientemente dernas e divididas massas, a quem de outra
acompanhada e mesmo seguida bem de perto forma seria inacessível. Afinal, a conceptu-
por uma sequiosa audiência de curiosos inte- alização griersoniana do filme documentário
ressados. Esta pequena multidão tornava-se é de uma teoria sobre a função e o dever das
a sua cúmplice natural ao se confirmarem as elites com respeito às massas da população,
suas expectativas e ao se certificarem as suas não só como liderança política, mas como
estimativas da novidade que se tornaria parte 10
DELTEIL, Joseph Choléra, Paris, Grasset, 1923,
9
CARRIERE, op. cit., p. 146. compilado por PRIEUR, Jerôme, op. cit., p. 111.
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12 Geraldo Franco
“educadores de quem, entre outras coisas, se cativo dos fatos históricos que se sucediam
urge o trabalho de agentes produtivos da mí- e definidores dessa nova situação como um
dia."11 todo, em que hábil e sutilmente: “Os cine-
Desde logo percebem-se senão as inten- astas [deveriam] encontrar a verdade na in-
ções, ao menos as extensões fundacionais, da compreensibilidade e no rumor da realidade
criação mesma do documentário, qual sejam e deixar livre essa verdade a fim de que [pu-
as tarefas educativas, desde então persegui- desse] falar."14
das de perto mas nem sempre completas e O Século Vinte já se prenunciava com a
totalmente alcançadas. força e a pujança que exigia das cada vez
Logo adiante, seguindo a fugidia mas nem maiores populações, das também inchadas
sempre tão veloz flecha do tempo, quase que metrópoles. Numa potencialidade cósmica
culpa de um princípio incerto, já se haviam que prenunciava o forçado desconforto dos
identificado os dois gêneros, pela pena es- conflitos sociais internos e das guerras que
perta de outro dos primeiros especialistas e se sucederam como uma irônica exigência à
críticos da época, o húngaro BALAZS, que paz, à justiça social, à exigência da liberdade
explicava em suas palavras, a diferença do e dos direitos humanos que, mal ou bem, afi-
“filme de vanguarda ou abstrato e o docu- nal se seguiram bem ou mal, aproximando-se
mentário puro. Entre eles existem os gêneros do presente.
mais convencionais de filme ficcional, cine- Sem dúvida, desde os alvores do cinema-
jornal, filme educacional, documentário pes- tógrafo havia uma intensa e cálida relação
soal."12 carnal, comunicativa, espontânea, realística,
Supõe-se que ele acreditasse que entre es- características essas extremamente podero-
tas categorias houvessem gradações e que sas que visitavam tanto aos documentaristas
o documentário puro pretendesse, pelo que quanto aos demais realizadores e os ligavam
afirma diretamente ANDREW ao citar o au- à problemática social, de resto refletida com
tor Balázs, “penetrar tão profundamente no freqüência até os nossos dias. 15
âmago da vida, reproduzir tão vividamente Não só se mesclavam e tocavam os sen-
a matéria-prima da realidade, de modo a timentos mais profundos das platéias da
encontrar elementos dramáticos suficiente- época. Havia uma preocupação consensual
mente expressivos sem ter necessidade de e consentânea às pessoas, às gentes, aos po-
um enredo construtivo.” (sic) 13 vos, ao sofrimento das massas abandonadas,
Para aquele autor havia um fator qualifi- do lunpen proletariat e à sua vida diária.
11
Descortinavam-se as preocupações
ROSEN, Philip Document and Documentary: On
the Historical Concepts, in: RENOV, Michael (ed.) com os movimentos sociais engajados.
Documentary, New York, Routlege, 1993, p. 80. Demonstravam-se as prementes necessida-
12
ANDREW, J. Dudley As principais teorias do ci- 14
nema: uma introdução, Rio de Janeiro, Zahar, 1989, ANDREW, op. cit., p. 103.
15
p. 102. BARNOUW, Erik Documentary: a History of the
13 Non-fiction Film, New York, Oxford University, 1993,
ANDREW, op. cit., p. 103, citando BALÁZS,
passim. Trata-se de um trabalho claro, completo e ri-
Bela On the film, Londres, Dobson, 1952, p. 156.
camente pesquisado sobre a origem histórica dos do-
Note-se que os de Balász são dos anos 30 e 40.
cumentários.
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O cinema, o documentário e a educação 13
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14 Geraldo Franco
percepção e uma ética preocupada com o so- ciando ainda mais das inúmeras formas, já
cial existem até hoje."17 diametralmente opostas ou até relativamente
O que se torna de todo uma posição com- intermediárias. Ao fazê-lo aqui e ali, na re-
preensível e plausível desde que, rapida- alidade, as aproximavam, naquilo que reafir-
mente entendamos com clareza e não per- mavam a intimidade dos seres humanos no
sista a menor dúvida que: terreno concreto-pessoal, consigo mesmos e
“Inúmeras vezes lemos ou ouvimos dizer com tais avanços sociais.
que o cinema existe para nos fazer ver o E não parava nisso. Perto dali no
mundo tal como ele é, para nos permitir des- fértil campo naturalista, criavam-se e até
cobrir [a] sua textura visual e para fazer com solidificavam-se os conhecimentos por vias
que entendamos o lugar nele ocupado pelo do documentário mesmo ou do filme histó-
homem."18 rico e científico que se aproximava das ciên-
Essa calorosa, profunda e simpática car- cias exatas e da natureza, considerando a sua
nalidade humanística, tão vividamente de- por vezes ingênua atitude e questionamento,
monstrada em sua diversidade aqui e ali, com uma certa intimidade de quem vive essa
tornou-se-nos uma importante ferramenta- fase da história da humanidade.
chave no entendimento e a transferência do No reino abstrato lógico-filosófico, com a
conhecimento elementar do que seja hu- já mencionada ética e a estética embutidas no
mano, para fins de aumentar a percepção do filme documentário. A verdade se lhe igua-
indivíduo comum e revelar a sua íntima pro- lava ou ao menos emparelhava, julgando-
ximidade do micro e do macrocosmo, que se a parceira ideal do esteticamente belo,
ocorre praticamente em todos os gêneros ar- enfim, contendo partes do metafísico e do
tísticos, com maior ou menor intensidade e transcendental, transparecendo em exemplos
em todas as possíveis dimensões a se vislum- a todo momento, introjetados ampla ou res-
brarem através da Sétima Arte. tritamente nos diversos tipos ou gêneros ci-
Os desdobramentos da revolução cientí- nematográficos em trânsito, além do próprio
fica e tecnológica, bem como as diversas re- documentário, fiel às suas origens.
voluções sociais, assim o demandariam du- Inventavam-se o paradoxal e o enigmá-
rante todo o século que ora finda e que con- tico que poderia existir nas artes e ciências
tinua a exigir semelhante tarefa, um aporte mostrando-se todas as faces ocultas, mas
digno de um Sísifo moderno: construir, des- possíveis e imagináveis do gestalt comuni-
construir, freqüentemente destruir e de novo cativo.
reconstruir. Sempre, numa faina eterna e in- Continuava claramente valendo a afirma-
terminável. ção de quem presenciasse a todos os fenô-
Repetidamente. Não importa o quê, se menos a que a humanidade era afeita e a eles
prédios, ruas, cidades, estados ou socieda- possa se comprazer em estudar e observar, o
des, sistemas, teorias, ou a nós mesmos. Os que não raro o faça detidamente para o seu
extremos prenunciados em Balázs, se distan- prazer pessoal e o interesse de muitos.
17
Em última análise, tudo é, todos somos
ANDREW, op. cit., p. 112.
18
ANDREW, op. cit., p. 112. partículas de uma mesma poeira cósmica
transformada e quase indiscernível, con-
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nhecimento dos estudantes, dos professores sino baseadas na eletrônica (Internet, Intra-
e dos pesquisadores. net, CDRom, Videodisc, etc.) aumentaram o
Necessidades estas que não são cobertas escopo dos tele-documentários, introduzindo
pela mídia tele- documentada por absoluta maiores e melhores meios de divulgação das
impossibilidade física. Assim a estrutura idéias e das invenções humanas, em termos
completa da obra filmada poderá não só se práticos de entrega e de distribuição local,
completar como crescer, naquilo em que terá doméstica ou à distância.
uma diversidade praticalidade aumentada e Os tele-documentários são divulgados na
presente a todo o momento, com maiores ex- sala de aula, no laboratório, na biblioteca ou
tensões na biblioteca doméstica do estudante no lar de cada pesquisador, de acordo com
ou pesquisador, se ele assim o desejar. tabelas de horários para tal fim e em geral re-
Este tipo de situação criativa tem sido uti- lacionadas com cursos de extensão disponí-
lizada pela Open University (Universidade veis na maior parte das universidades de todo
Aberta inglesa) desde a sua incepção com o mundo.
resultados positivos quanto a adequação de Um caso que se pode descrever como ex-
custos de cursos e programas a eles acopla- traordinário é encontra-se na PBS, a Public
dos com respeito aos resultados como a aná- Broadcasting Corporation (Corporação Pú-
lise de custo e benefício. blica de Broadcasting) isto é, a própria tele-
Além dos filmes sugeridos apresentados visão educativa norte-americana.
na televisão ou em vídeo, são enviados aos Outro sistema que demonstra a facilidade
alunos inscritos nos cursos, pastas contendo com que os meios acadêmicos são facil-
uma pequena coleção de documentos e de fi- mente associados à televisão é o da British
tas cassete de autores importantes para o es- Broadcasting Company (Companhia de Bro-
clarecimento do assunto filmado. adcasting Britânica) a famosa BBC inglesa,
Um outro exemplo clássico se apresenta, em parceria com a Open University.
ao leitor. Intensamente preocupados com Durante muitos anos têm se dedicado à
o problema da política alimentar mundial a apresentação de programas sem patrocínio
Yorkshire Television Limited, uma compa- comercial explícito, por intermédio de suas
nhia paraestatal de televisão da Inglaterra, emissoras locais, localizadas em pratica-
produziu em 1987 o filme videografado na mente todos os estados Norte-americanos e
série The Politics of Food e em seguida o em todas a províncias da Inglaterra.
livro The Hunger Machine, baseado na re- O verdadeiro patrocinador dos programas
ferida série televisada que foi ao ar naquela e de todas as atividades da PBS é o povo
época.29 norte-americano que acolhe esta organização
Mas não param aí os exemplos das pos- em suas comunidades com doações e pela
sibilidades desde que as tecnologias de en- prática, por parte de algumas organizações
29
de negócios, de concessões de financiamen-
BENNET, J. The Hunger Machine, Cambridge,
CBC Enterprises, Polity Press, 1987. Sobre a Televi- tos afundo perdido, os famosos grants, ofe-
são européia, em particular a britânica, ver: LEAL recidos à sua Corporação.
FILHO, Laurindo L. A Melhor TV do Mundo, São Quanto a sua factibilidade econômica e
Paulo, Summus, 1997. financeira, ambas as experiências inglesa e
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se necessário responder a outra: Quem tem pior, os exemplos dessa injustiça abundam.
medo da verdade? A peça de arte e de educação que é o do-
O que seria a verdade factual vista nas co- cumentário ou o tele- documentário, deveria
municações modernas como um todo e na ser primariamente enfocada pela visão da ci-
mídia televisada em particular, senão uma in- nematografia, por sua história, a sua tradição
terpretação, não raro distorcida, dos fatos re- e o seu desenvolvimento, bem como a sua
ais? atual e presente inserção no mercado mun-
A realidade assim transformada e interpre- dial das artes, das tele-comunicações e da
tada, torna-se uma figura fugaz, um cavalo mídia televisada.
de batalha, um fenômeno metafísico, ou en- Mas, sabe-se que existem vários pesos e
tão no outro extremo, o dos cientistas da edu- várias medidas na realização de semelhantes
cação, um instrumento de ensino e aprendi- empreitadas. Por isso sempre se deve preca-
zagem. É por este ângulo que se aborda o tar quanto a honestidade de seus realizado-
problema. res. Ou ao menos quanto ao seu bom senso e
Esta é a forma de interpretação que nos in- à ideologia das empresas que os financiem.
teressa como educadores, se bem que outras Aqueles que o ignorem como uma obra de
tantas existam e sejam tão boas quanto a que arte ou como uma ferramenta para a melho-
escolhemos. Não raro se interpenetram, até ria do conhecimento e da cultura da popula-
paradoxalmente, coisa que faz parte da di- ção, em termos de transmissão de um saber
alética da arte como elemento condutor do recente e importante e em especial aos se-
conhecimento total, se é que tal coisa exista. tores carentes de educação ou deseducados,
Mas não muito diferente da realidade in- são exatamente aqueles que têm medo dos
terpretativa do cineasta e do diretor, como tele-documentários. E lamento afirmar, são
nos explica o argentino BIRRI, clarificando obscurantistas ao extremo.
ao estabelecer um desses paradoxos postos Talvez por medo de perder o seu nicho
e afirmando: "Já estão ultrapassadas as for- mercadológico, não importa qual, medo de
mas ortodoxas: documentário e ficção se in- aprender um pouco mais, mesmo se com os
tegram."31 seus próprios erros, medo de enfrentar a re-
Ou seja, leiam-se nas entrelinhas dessa alidade de um novo século que rapidamente
afirmação: quando assim o determinem os se aproxima em que o saber não é mais só
respectivos diretores, pois trata-se de um suficiente saber mais e melhor, sim, é o que
fenômeno subjetivo que não me parece aten- a todos falta e o que todos de fato carecem.
tar seriamente à realidade, nem ser muito Crianças, jovens, adultos, idosos ou não,
justo para com a audiência sequiosa de saber trabalhadores; empregados e aposentados.
a um só tempo que se divertir. Todos, todas as pessoas de todas as comu-
Mas, não creio que seja este o caminho nidades, urbanas, conurbanas, periféricas ou
certo de se admirar os documentários. E, rurais. Esta é a clientela em potencial do
31 tele-documentário. Percebe-se facilmente.
BIRRI, Fernando Entrevista à TVE (espanhola),
emissão de 2 de dezembro de 1998, (GNT) Rio de Mas, temem-no aqueles cujas inten-
Janeiro, 9:40 hs. ções sejam sistematicamente sub-reptícias,
motivadas por interesses investidos, auto-
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O cinema, o documentário e a educação 29
centrados e de razões ambíguas, ou, o que lista e subjetivo, inventado afim de se obte-
ainda pode ser pior, egoísta do tipo aprovei- rem resultados imediatos.
tador das circunstâncias, hipócrita e oportu- Porém, observe-se que o interesse de
nista. A estes os próximos anos estarão lhes Cousteau se situava tanto na Ciência quanto
reservando uma surpresa. A verdade é filha no entretenimento. Ele próprio o reconhecia
do tempo. e o reafirmava, pelo que pagou caro em ter-
De outro modo, descrever a realidade mos de credibilidade de audiência. 33
como uma de muitas expressões da verdade, Na Arte como na Ciência, a verdade fala
não raro é objeto de múltiplas interpretações, por si mesma, o legítimo se sobrepõe à
fashion & moods (modas & modismos) ou fraude, como se separa o azeite da água.
formas genéricas. Mesmo se as áreas cinza onde se mesclem
Pela via deste aspecto talvez seja mais fá- momentaneamente, sejam dificilmente de-
cil se compreender a questão, pois depende tectadas com os instrumentos mágicos, mas
do ponto de vista que se adote. parcos na medida do tempo e da razão. A sua
Talvez porque os que tentam compreendê- tinta parece indelével.
la se atenham à verdade científica objetiva, Logo, compreende-se com facilidade que
assim se escondendo, com vergonha, numa esse tipo de gestalt ou duplicidade criado
neutralidade da Ciência como se tal abstra- por certos documentaristas possuam as sua
ção pudesse garantir uma suficiente liber- próprias características e como tal possam
dade como ponto de observação, mesmo se ser admirados, examinados e observados, e
fosse uma liberdade aproximada ou tempo- mesmo criticados sem grande dificuldade.
rária, ou porque refletisse o poder da imagi- Quem teme entender perceptivamente o
nação, mesmo se claudicante ou carente de tele-documentário como um instrumento de
um apoio ideológico, seja qual for. ensino, aprendizagem e entretenimento edu-
No entanto, há que se reconhecer que cativo, teme reconhecer a verdade da novi-
não raro estas posições transitem do obje- dade científica e tecnológica, na medida em
tivo ao subjetivo e vice-versa, do muito bom que este nela mergulhe não só individual-
ao muito ruim, quase que livremente. Neste mente como no inconsciente coletivo, nas
sentido BARNOUW, fecha o seu livro sobre profundezas do primitivo das sociedades e
documentários, magistralmente: no seu ethos.
“A sua plausibilidade, a sua autenticidade, Vê-se então mais claramente que o docu-
são as qualidades especiais do documentário, mentário para convencer tem que vencer as
a sua atração aos que o usam, não importa o barreiras e distâncias sociais, de tempo, de
motivo, a fonte de seu poder de iluminar ou idéias pré-concebidas, da apresentação clara
decepcionar."32 e concisa do fato em si, da interpretação do
Alguns documentaristas notórios por sua saber transferido, da sua sensível apreensão
interpretação pessoal da realidade, tais como e descoberta e às barreiras de conhecimento
Jacques Cousteau, reconheceram-no e reafir- 33
FARREN, John Jacques Cousteau: vivendo a
maram esse realismo exageradamente idea- lenda. Da Série Grandes Nomes GNT, BBC, 1995
32
(?), levada ao ar pela NET-GNT, no Rio de Janeiro,
BARNOUW, E. op. cit. p. 349. 16 de abril de 1999.
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30 Geraldo Franco
ante outras áreas da cognição, compreensão, nhol Luis Buñuel, montado entre os anos
entendimento e percepção. 1932 e 34.
Ademais, trabalha-se à sabiendas que es- Consta, à boca pequena, que tenha sido
tas províncias dependam de ainda outras, de reconhecido pelo próprio autor que se tra-
outros domínios e disciplinas, como os das tasse de uma reconstrução, uma representa-
Ciências Sociais e Humanas, Físicas, Natu- ção, portanto até certo ponto fársica.
rais e sobretudo da Tecnologia que a todas Entretanto, observe-se que em sua auto-
abrange. biografia jamais se referiu como se o fosse
A procurada verdade pagando o devido e sequer tampouco parece ter sonhado em
respeito à ética educacional e pedagógica, e fazer um trabalho profundo de antropologia
em direta oposição ao filme de ficção, dadas social ou política, assim como foi visto e
as necessidades operacionais nele embutida, considerado mais tarde.
não conta necessariamente toda a verdade, Foi de fato um antecessor dos estudos e
quando diz alguma. preocupações sociais, mas, tratava-se, isto
O documentário tem que afirmar peremp- sim, de uma cinematografia artesanal, hu-
toriamente a verdade, de modo a se justificar manística, espontânea, quem sabe instintiva,
em termos de credibilidade, pelos fatos des- uma obra prima de um grande artista que
critos e filmados e muito em especial, pela pouco se importava com as contradições que
mostra gráfica da verdade científica objetiva. porventura existissem a tal respeito; à época
Este é o seu dogma e a sua virtude. No en- inexistiam esses cuidados e preocupações.34
tanto, isto não impede que se cometam exa- Em termos atuais, será que não existam
geros ou representações, digamos que sejam tantas Las Hurdes no mundo, que só uma
de extensão artística ou mesmo de reinterpre- pudesse representá-las? Não teria sido, su-
tação ou de licença poética. ponhamos, ao invés de um exagero, ao con-
Deve haver e, com efeito, há um espaço trário, uma subestimação do menos visível
para a interpretação da verdade de parte do ou do escondido, satisfazendo assim quem
diretor e que fique bem claro, trata-se de uma não quisesse ou se recusasse a ver a ver-
licença poética que lhe é conferida pelo ci- dade dos fatos, tornando-se uma simplifica-
nema como arte. ção necessária, dadas as circunstâncias re-
A audiência tem que dela estar avisada trógradas ultra-conservadoras das socieda-
para perceber o seu detalhamento e sofisti- des da época?
cação, sobretudo para precatar-se dos signi- Semelhantes especulações em defesa de
ficados implícitos que aí jazem. 34
CARRIERE, Jean Claude A linguagem secreta
Em Ciência e Tecnologia se há espaço do cinema, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1995, p.
para o engenho e a técnica, este é vedado 53. BUÑUEL, Luis Meu último suspiro, Rio de Ja-
à ingenuidade e à futilidade, exceto se estas neiro, Nova Fronteira, 1982 deixa claro: “Depois da
estão à serviço de alguma estratégia ou fim filmagem, sem dinheiro, tive que fazer eu mesmo a
montagem [do filme], numa mesa de cozinha em Ma-
interno, no caso, ao filme educativo.
drid. Não dispondo de moviola, olhava as imagens
Talvez tenha sido este o caso de Las Hur- com uma lente e as colava como podia. Certamente
des, também conhecido como Tierra sin pan, devo ter jogado no lixo imagens interessantes que via
um documentário do polêmico diretor espa- mal."{p. 196)
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O cinema, o documentário e a educação 31
Buñuel podem argumentar que, em seu filme damente concreto, parece secretamente ob-
a realidade da pobreza e da miséria humana, cecado com a criação de múltiplas materia-
nos alvores do século XX na Europa, só po- lizações do invisível. O cinema, é claro, to-
deria ser entendida e clarificada com as fer- mou parte dessa busca."35
ramentas ántropo-sociais do presente. Exceto, pelo menos assim se apresenta,
Seria isso concebível? Seria essa uma boa que o invisível social só o é para quem não o
explicação? Teria nisto o seu filme se ante- queira vê-lo e entendê-lo!
cipado, como numa premonição aos embates Segue que se torna menos difícil saber
que se sucederam na Espanha dos anos 30 ao quem tem medo do documentário:
presente? Com certeza serão os que se recusam a
Ora, tais interrogantes parecem razoáveis, perceber até mesmo o visível? Ou, como
reportando-se à época em que tão pouco se quer Carrière, noutro lugar da mesma obra:
conhecia em definitivo sobre as Ciências Hu- coisa dos que são capazes de olhar mas não
manas e Sociais. E quanto os europeus avan- de ver.
çaram depois das débâcle das duas Grandes Enquanto que ao artista lhe é ofertado
Guerras. esse pequeno dom, de perceber, sentir, ver,
Parece-me suficiente que se interprete as- até mesmo o socialmente visível, o nel-
sim. Mas, em complemento, Buñuel con- sonrodrigueano óbvio ululante, para então
firma a sua filosofia fílmica, mais tarde no transformá-lo em obra de arte.
México, criando o maravilhoso Los Olvida- Assim Arte, Ciência e Técnica são as três
dos um registro fotográfico e fílmico com- opções do documentário, o tripé em que se
pleto do lumpen proletariat mexicano, para- apóia e equilibra o conteúdo fílmico.
digma mundial, modelo internacional, ante- Essa é a tradição do cinema e do filme
rior ao neo-realismo italiano. documentário, cujo exemplo talvez mais
Los Olvidados confirma as premonições eloqüente seja Nanook of the North do Norte
de Buñuel, e reafirma, hoje em dia, essa in- Americano Flaherty (1922), que então final-
tuição do documentário sócio-político, tão mente inaugurou o gênero.
clara e lógica, mas sempre ignorada e mal- Foi um dos primeiros, senão o primeiro e
quista. Quem sabe se por ser verdadeira? desde cedo preocupou-se com o descritivo-
Por fim, como um excelente complemento biográfico, com o etnográfico, com o quoti-
aos diversos estudos antropológicos, históri- diano vivencial, com o exótico intra-cultural.
cos, políticos e sociais que permitam uma in- Sistematicamente fa-lo-á usando esses três
terpretação do filme mais atual, Las Hurdes meios, com isto criando um sistema descri-
mostra não mais que uma villa miséria, um tivo e explicativo.
shanty town, um bidonville, uma favela, tão A corrente documentarista ou não-fictiva
real quanto as que hoje existam e se encon- até hoje o segue de perto, prova de que o tele-
trem e se vejam em toda a parte do mundo. documentário esteja planejado tanto para au-
Inclusive ainda na Europa. diências domésticas quanto para as acadê-
O citado Carrière reconhece o fenômeno. 35
CARRIERE, op. cit. p. 33.
Antecipadamente afirma:
“Todo o nosso século, ainda que obstina-
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O cinema, o documentário e a educação 33
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34 Geraldo Franco
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O cinema, o documentário e a educação 35
a leitura e o entendimento claro, o que nem este conhecimento ao crivo direto da clien-
de longe chega a ser algo louvável. Mas de- tela de alunos e professores e indireta de
certo tornam-se verdadeiros ruídos visuais, grande parte da sociedade, por meio da cri-
absolutamente evitáveis, como já se expli- tica.
cou. Tais itens são, mas não se restringem, às
Tanto assim que, uma vez certos progra- novas descobertas, mesmo se de forma pas-
mas atinjam os intervalos requeridos de cer- sageira ou vicária, às experiências e às in-
tos anunciantes especiais, os inefáveis logos venções mais recentes, chegando à prospec-
desaparecem da tela rapidamente, é claro, tiva tecnológica, isto é, aos prospectos e ex-
obrigação contratual de gente que realmente pectativas de novos e mais importantes bre-
saiba distinguir o certo do errado, o bom do akthroughs científicos, ou seja, descobertas
ruim. E por isso paga caro e exige que as científicas inesperadas ou abruptas.
coisas sejam feitas corretamente, enquanto Acrescente-se que nem todos esses, além
o demais permanece com um tratamento de de outros mais, sejam os domínios da não
segunda-mão. ficção amplamente conhecidos, pois podem
englobar informações específicas de discipli-
nas ou de áreas do saber quase nunca abertas
6 À procura da verdade. Os
às grandes faixas populacionais.
Tele-documentários: a junção Assim, temos o exemplo, da Astronomia
da Pedagogia com a Didática e Cosmologia, da Informática e da Medi-
para o uso das demais áreas do cina experimental, bem como na Política In-
ternacional, na Antropologia e na Arqueolo-
saber
gia, para citar umas poucas disciplinas, dei-
A quê vieram e em quê os documentários xando desse modo mais claro os enuncia-
equilibrados e completos podem facilitar a dos técnico-científicos ou sócio-culturais via
Educação, a Pedagogia e a Didática? Como exemplos gráficos e fílmicos conhecidos ou
se concebem tele-documentários tendo essa aí então postulados.
finalidade em mente? Só na série de tele-documentários Nature
Se concebidos dentro das normas de quali- existem mais de 250 programas (de cerca de
dade pretendidas, os tele-documentários be- 50 minutos cada) e na série Nova (ambos da
neficiam e facilitam o entendimento, a com- PBS) provavelmente outros tantos.
preensão e a percepção de deixas, insinua- Tratam-se, pois de metragens filmadas in-
ções, pistas, em termos micro, cruzando ave- vejáveis, de que se estima um total de mais
nidas de pesquisa, enfim, chegando a cam- de 400 horas finais de programas levados ao
pos e áreas do macro-conhecimento, escan- ar naquela rede, em diversas de suas emisso-
carando as portas das ciências, já entreaber- ras coligadas em todo país (Estados Unidos)
tas, para um maior aprofundamento cogni- produzidas entre os anos de 1982 e 1993, tão
tivo, onde as próprias audiências elicitem e somente.
promovam a sua curiosidade. Forçosamente, há que se reconhecer que
Fa-lo-á ao classificar e mapear grafica- isto é vontade política de fazer as coisas bem
mente o conhecimento humano, expondo feitas, de acertar e repetir o acerto, de novo
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36 Geraldo Franco
e mais uma vez. Decerto, vai mais além de sadas e repassadas à clientela de seus usuá-
ser representativo do bom gosto e de uma rios, a forma mais simples. Mas, longe de se
boa programação em seqüência, fatores so- concentrar somente nessas formulações edu-
bremodo importantes para o conhecimento cativas, o tele-documentário extrapola e as
da natureza e da realidade humana no pla- une quando se acredita seja importante.
neta Terra. Já a sua avaliação em termos formais da
Com isso abandona-se o infértil isola- Ciência da Educação, só não é executada
mento de um paraíso fabricado pela mídia, com maior freqüência porque pode ser con-
para se compartilhar a variedade da flora, da fundida com a do cinema em que os filmes
fauna, sobre os seus conhecimentos científi- passam por um crivo da crítica de audiência,
cos, de fatos variados da tecnologia e de uma caso das apresentações de pré-estréia onde as
boa parte da História e da Geografia mundi- audiências convidadas preenchem um cartão
ais, conforme seria de se esperar numa ver- depois da sessão e depois da imprensa escrita
dadeira televisão que se diga educativa. Ou especializada.
que ao menos se reflita e projete como tal. Uma avaliação técnica de séries e de pro-
São peças de bom gosto porque são bo- gramas implica no conhecimento dos assun-
nitas, bonitas porque bem feitas, bem fei- tos de parte dos avaliadores, do conheci-
tas porque assim foram planejadas e precisa- mento profundo de técnicas de filmagem e
mente executadas e financiadas. Por isso são o conhecimento de para quê finalidade será
necessariamente peças de didaticismo com- usado.
provado, o que é facilmente avaliável quanto Deveriam existir no Brasil equipes para
a sua adequação à cultura e ao ensino, con- este fim, já que estamos cada vez mais
forme são conhecidos em termos científicos usando esta tecnologia educacional, entre-
mundiais. tanto, que se saiba, ainda não foram forma-
Mas o mapeamento a que nos referimos é das ou oficializadas por quem quer que seja.
e sempre será incompleto, pois a quantidade Com todos os problemas de pós-produção
de temas e assuntos é infinita, como infinitos (dublagem ou legendagem) e de avaliação
são os acervos das grandes coleções de bibli- existentes, resolvidos ou ainda não, esse sa-
otecas de todo o mundo. Infinito quanto é o ber e esse conhecimento infinito ainda con-
saber da humanidade, expresso pela Ciência, tinua a se multiplicar, sem precisar domar
pela Arte e pela própria natureza redescober- platéias passivas, mas dirigindo-se a um infi-
tas e explicitadas. nito de dimensões cósmicas que é a sabedo-
Resta-nos dele nos apossarmos, assumi-lo ria histórica da humanidade.
e apoiá-lo como os seus verdadeiros donos Mas claro que ainda haja muito que fa-
que de fato somos, especialmente pela tele- zer sobre este tema central que é a divul-
visão e pelo vídeo, dentro de nossas casas, gação racional do saber humano. A pró-
nas casas comunitárias e paroquiais, nos hos- pria Educação como Ciência moderna de-
pitais, nas universidades e nas escolas. manda e exige que todos nos cientifique-
Já o seu conteúdo didático, por ser com- mos rapidamente dos conhecimentos recém-
pleto e complexo, o é na medida em que hoje descobertos, de pesquisas em andamento re-
são as ciências e a tecnologia, ao serem pas- latadas quanto as suas últimas novidades,
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O cinema, o documentário e a educação 37
dos seus avanços, dificuldades, empecilhos final, a rede Internet tem sido ultimamente a
e sucessos finais. Mas qual a razão dessa ne- grande facilitadora deste fluxo livre do saber.
cessidade e dificuldade tão prementes? Tem-se com ela obtido resultados positivos,
Explica-se pelo publishing lag, isto é, o numa corrida para um futuro que já é hoje.
tempo que leva do dernier cri do autor ou Entretanto, não se sabe ainda ao certo, da-
do pesquisador, até a sua publicação em pe- das as flutuações do mercado dito global, se
riódicos de seu ramo ou em livros, conforme o seu custo e a sua qualidade técnica irão de-
se atesta freqüentemente. Este atraso tem se monstrar maiores benefícios que o determi-
tornado um verdadeiro estorvo aos autores e nado pela parcimoniosa tradição acadêmica.
aos leitores mundo afora. Até agora tudo o indica, tanto que funcio-
A indústria de publicações simplesmente nando em países centrais (e.g. Estados Uni-
não dá conta de sua carga de trabalho esti- dos, Inglaterra, etc.) em caráter experimen-
mada em muitos meses de espera para que tal, já existe uma rede Internet (WEB 2) ex-
se possa ler um artigo científico publicado clusiva para os fins de passagem de conheci-
em condições normais, ou em anos até, da- mentos acadêmicos.
das condições extraordinárias. Contudo, o reino e o ritmo dos tele-
A transferência de informações seja a tí- documentários são outros. Mais sutis, con-
tulo de ensino, seja a título de preservação do vincentes e dotados de equilíbrio de forças,
saber cientifico, para ter o seu up date, para se bem que, de outro lado, mais dependente
estar em dia com o novo, peca pela demora da mídia por ser mais consistente em termos
de ser produzida e circulada em papel via materiais. E ao não tentar competir de frente
meios tradicionais e o faz injustamente com com a mídia informativa primária, apesar de
semelhante espera forçada fenômeno que, de em determinados momentos poder fazê-lo, e
resto, é tão lastimável quanto esperado, pois o faz com todo o seu poder de persuasão me-
atrasa em demasia o fluxo de informações, diática e informacional.
de cognição e conseqüentemente de aprendi- Assim foi o caso específico de um pro-
zado. grama da série Nova (Confusion in a Jar) so-
Este é um problema que não tem uma so- bre a fusão nuclear à frio (cold fusion in vi-
lução visível dada a explosão das informa- tro) criada num laboratório universitário de
ções, assunto já intensamente pesquisado por Utah, Estados Unidos e depois recriada nou-
diversos especialistas da Ciência da Informa- tros laboratórios pelo mundo afora, até che-
ção. gar à visibilidade dos institutos de física das
Prejudica-se a passagem livre de conheci- universidades mais importantes (as Ivy Lea-
mentos importantes, o debate e a discussão gue} daquele país e da Europa, nos quais se
destes pela espera interminável. Assim, o es- constatou o dilema do pesquisador sério: es-
tamento científico tem optado por soluções tarei certo ou não frente à evidência obtida?
temporárias e dependentes de condições fa- Enfatizado em extremo pelas diversas tro-
voráveis, para a troca de novos conhecimen- cas de informações rápidas executas via e-
tos. Faz-se especial referência às cartas, aos mail, afinal, foi-se constatando o equívoco, o
pré-papers, enfim, à literatura dita cinzenta. exagero, o erro, quem sabe, a fraude! A dú-
Como um último paliativo, quem sabe se vida persiste e cabe à audiência, agora infor-
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38 Geraldo Franco
mada, chegar a um acordo e a uma conclusão freqüentemente é bom, por definição. Mas
sobre o assunto. caveat emptor! O inverso é quase sempre
Um outro exemplo em que o publishing verdadeiro: o que é maltratado e feio é sem-
lag é diminuído em termos de tempo, tem pre ruim ou vagabundo!
sido a passagem de informações em gené- Não existe espaço a imagens torpes ou de
tica aplicada à medicina, a Genômica, vol- mau gosto. O cafona, o kitsch e o vulgar
tada em particular à oncologia. É de Da- só têm ninho quando se ilustram a si mes-
vid Suzuki diretor e apresentador o programa mos. Podem até ser tema principal e como
The Cancer Hunters (da série Cracking the tal deveriam ser tratados. Mas, não contem
Code) da CBC, Canadá. sempre isso com uma regra geral, pois, no
Sendo o tele-documentário uma mídia se- cinema tudo vale e o tele-documentário é ci-
cundária, sem dúvida, é dotado de algumas nema.
características das mídias primárias. Só não De resto, o papel coadjuvante da televisão
poderia sê-lo em sua totalidade porque es- tem sido quase sempre mais o de entreter, e
barra na função técnica que no ramo significa sabe-se lá como, do que de educar. Objeto
qualidade de produção e de apresentação do de freqüentes artigos na imprensa brasileira
produto final, conforme assinalado.38 demonstra-se com vigor a existência ou não
Em compensação, essa qualidade ofere- da liberdade e dos direitos civis e humanos
cida, somada aos artefatos científicos e ar- por ela defendidos como missão exemplar.
tísticos conteudistas, revertem-se a seu favor Tais preocupações nunca serão adequada-
no trato com a matéria em as suas fontes, mente respondidas não importa as inúmeras
as suas vertentes e confluências, bem como tentativas de se clarificar o assunto. Mas
na imensa gama de possibilidades em que torna-se absolutamente explícito e claro que
surjam, comprovando, ou não, mas sempre a liberdade cessa quando:
evidenciando cada segmento, enfatizando ou “...a televisão impede de pensar. Nos pro-
sublinhando cada assunto. gramas de auditório e novelas, a fronteira en-
É por isso que se deve situar o tele- tre a realidade e ficção é cada vez menor:
documentário justamente como uma mídia a produção e a edição televisiva impedem
não só secundária como formativa, além de que a pessoa sequer reflita sobre o que se
educativa. passa, confundindo o real com o ilusório, fa-
Vai-se constatar que essa importância seja zendo com que o mundo simulado da imagi-
bem maior do que até agora se acreditava. nação lhe pareça mais verdadeiro que a pró-
Nunca parece de menos ao lado estético que pria vida."39
perpassa a Arte e a Ciência. Talvez se lhe No entanto, acredita-se que haja um fa-
possa classificar melhor como uma meta- tor de redenção na televisão compensatori-
mídia. amente ao circo empoeirado, envelhecido e
Se uma descoberta da Ciência é boa sem graça que resulta dessa fársica pseudo-
quando é elegante, no reino que ora se es- 39
RABAÇA, Carlos Alberto A educação e o papel
tuda o que é belo e claro, bonito e elegante, da televisão, Rio de Janeiro, Jornal do Brasil, Caderno
38
FRANCO, op. cit. p. 20-23. B, 01/12/1997, p. 9.
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O cinema, o documentário e a educação 39
manifestação libertária que nos é imposta pe- cativos e de bom gosto estético, entre os
los conglomerados jornalísticos, verdadeiro quais os tele-documentários.
abuso do direito das pessoas de terem um la- No hemisfério norte tem-se chegado a di-
zer decente e saudável dentro de suas casas. versos acordos sobre o que deveria ser o cur-
Mas, vejamos um exemplo do caso oposto. rículo diário da programação da TV aberta,
Em recente visita ao Brasil, Alvin Tofler inclusive com a adoção de chaves de controle
foi entrevistado por Tamara Leftel e entre eletrônico doméstico para a audiência de cer-
outras idéias interessantes ventiladas, saiu-se tos horários testadas no Canadá só há pouco
com a seguinte explicação: conhecidas.
“Combinem-se a televisão, o computador, No fundo da questão, o consumo domés-
os pais, as comunidades e as pessoas irão re- tico anglo-canadense tem sido matéria de
volucionar o ensino."E logo em seguida, ex- uma longa e equilibrada discussão dentro da
plicitou o fenômeno com alguns dados norte sociedade e motivo de profundos rearranjos
americanos: “A maior revolução no ensino quando se notam os equívocos ou as falhas
nos Estados Unidos de 75 a 95, até o pre- cometidas, ou surgem ainda dados de pesqui-
sente, foi que as pessoas ensinaram às outras sas mais recentes para abalar os estamentos
como usar o computador! Mais de 50 mi- sociais em disputa.
lhões delas o fizeram!"40 Já entre nós a coisa ainda continua numa
Se de um lado temos a limitação auto- queda de braço continua e aparentemente
imposta de uma liberdade pseudo-verdadeira sem fim, numa perda de tempo preciosa,
e mesmo negativa para uma sociedade sem- num gasto enorme de matéria cinzenta, de
pre em constante ebulição e efervescência, horas de trabalho inúteis de energia humana
ao impor-lhe certas normas comportamen- consumida ou desperdiçada sem uma finali-
tais que raramente não lhes são nocivas, te- dade especifica ou ao menos aceitável.
mos, como se procurou mostrar, as ,possibi- As barreiras ao conhecimento impostas
lidades que engrandecem a mídia ao invés de por uma sociedade baseada no capitalismo
vilifica-la ou torná-la vulgar. selvagem, edificadas no charco da incúria
Em última análise, pode-se pensar que se de políticos desinteressados e sectários, fun-
torna uma questão de escolha. Até poderia dada em princípios e em fins religiosos esta-
assim o ser, se assim o quiséssemos, pois se pafúrdios, estão nos levando anos perder no
vamos ter tantas horas de vulgaridade no ar, mar da ignorância e de miséria. E que es-
que haja uma negociação, se é que esse es- colha teremos a curto e médio- prazos? Que
paço é propriedade de todas as pessoas do saídas para o impasse?
país.
Assim, como compensação devida, tería-
mos ao menos o quádruplo dessas horas de
programação medíocre em programas edu-
40
TOFLER, Alvin Entrevista à Tamara Leftel em
Conta Corrente, Globo News (Canal 40 NET/Rio)
19/12/1997.
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40 Geraldo Franco
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O cinema, o documentário e a educação 41
claramente. E perde o seu tempo e da au- que, semanalmente, são publicados pela im-
diência interessada, segmentando bons tele- prensa (do Rio de Janeiro) determinando se
documentários em diversos programinhas de os espectadores de TV preferem o Gugu ou o
quatro ou cinco capítulos de cerca de meia Faustão, se o Ratinho é mais visto que Você
hora, picotando-os com anúncios imbecilói- decide, se a novela das oito passou ou não
des de doze em doze minutos. É de fato dos 40 pontos, se referem, exclusivamente, à
muita vontade de fazer a coisa de modo er- audiência paulista. É este mercado que inte-
rado e de propósito, com fins exclusivamente ressa às agências de publicidade. Como todo
de lucro. 41 o mundo sabe que o gosto gaúcho não é igual
Mas note-se que este ponto mereça uma ao gosto carioca, que não tem nada a ver com
discussão mais detalhada, pois, convenha-se, o gosto pernambucano, que passa longe do
ainda não existe que se saiba um processo gosto paulista, a inter-relação desses dados
de mensuração e de julgamento avaliativo de como verdade nacional é distorcida. E está
resultados finais, do produto documentário, fazendo o Brasil inteiro assistir a uma televi-
pronto para o uso para todas as regiões bra- são feita para paulistas."42
sileiras. Noutras palavras, uma minoria está enga-
Então aqui vale a regra de preponderân- nando um considerável segmento de audiên-
cia mediática para o tele-documentário, bem cia brasileira com bobagens e mentirinhas,
como para os demais programas das grades perigosas, mal-pensadas, produzidas e gera-
de todas as emissoras: o que é bem feito em das no centro político-econômico hegemô-
termos estéticos vale mais que o que é pobre- nico do país, e validando tais disparates ao
mente idealizado. invocarem uma audiência local que ao ser
Assim, não é por coincidência que quando extrapolada às demais torna-se fictiva, ima-
existe algo aproximado ao belo trata-se de ginada, nada além disso.
trabalho de equipes localizadas nos centros Não é por coincidência que ali se loca-
nervosos do mundo. Só os localizados na lizem os verdadeiros inimigos da verdade
meca da indústria brasileira, o eixo São e por conseguinte dos tele-documentários,
Paulo - Rio de Janeiro - Belo Horizonte, que pois surrupiam o lugar do bom e do verda-
são seguidos com anos luz de distância pelos deiro impondo o fácil, o de retorno imedi-
demais centros hegemônicos estaduais. É a ato, a falcatrua, o desonesto, o embuste, a
realidade dos fatos, por mais lamentável que uma população despreparada, carente de co-
seja. nhecimentos corretos e precisos e em certo
Para melhor esclarecer o ponto, transcrevo ponto desavisada, porque ingênua em acre-
uma mensagem sutil sobre o assunto, que de ditar em tamanho amontoado de patifaria
resto nunca é tratado em parte alguma, com semi-oficializada pelo Estado, cuja ação re-
raras exceções: gulatória é inversa ao quadrado da distância
"Só para ficar claro, os dados do IBOPE 42
XEXÉO, A. Conde loteia as calçadas da ci-
41
Como é o caso recente do documentário nacional dade, Rio de Janeiro, Jornal do Brasil, Caderno B,
Senta a Pua, de Erik de Castro, mostrado na TV à 30/09/1998, p. 8.
cabo há alguns meses.
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42 Geraldo Franco
que insiste em manter das camadas economi- tomado pela televisão no encaminhamento
camente ativas de segundo ranking. adequado da questão da educação no pais,
Magistralmente, Silviano Santiago mostra antes que o apartamento social se torne de
em artigo acadêmico- jornalístico, a combi- igual forma um apartamento cientifico e tec-
nação de “prisão"e “pátio de milagres"a que nológico.
se reduziram certos programas “ao vivo", Edgar Morin apresenta-se mais que con-
uma triste metáfora para ao morto, da TV vincente, talvez até inspirador, no que tange
brasileira, nomeadamente, “o faustão, o esse assunto, quando afirma, peremptoria-
gugu, ratinho et caterva."43 mente:
Nestes programas a auto-censura existente “Quantos sofrimentos e desorientações fo-
é a da “gramática e do dicionário"pois: ram causados por erros e ilusões ao longo da
“Ao combinar enunciados estereotipados história humana, e de maneira aterradora, no
(a um clichê segue outro clichê), o falante século XX! Por isso, o problema cognitivo
renega a liberdade que lhe é concedida pela é de importância antropológica, política, so-
escala ascendente de liberdade. Ele se deixa cial e histórica. Para que haja um progresso
encerrar, sem voz própria, na prisão da lín- de base no século XXI, os homens e as mu-
gua."44 (ênfase acrescentada) lheres não podem mais ser brinquedos in-
Afinal, a crítica da mídia que tem-nos ofe- conscientes não só de suas idéias, mas das
recido recentemente Alberto Dines, uma te- próprias mentiras. O dever principal da edu-
oria de crítica que abranja a todos, os meios cação é armar cada um para o combate vital
de divulgação, explicita ainda mais a matéria para a lucidez."46
quando afirma que: A sociedade civil organizada cabe enten-
"A questão da telenovela é secundária. La- der melhor desse assunto para reclamar de
ços de família [novela da rede Globo do iní- uma situação claramente injusta. Cabe-lhe
cio do Século XXI] é uma cortina mam- exigir uma cobrança do uso indébito do
bembe atrás da qual se esconde um poderoso tempo real na TV aberta e à cabo, ao en-
sistema de anestesia e emasculação."45 xovalhar e malversar os recursos indispensá-
Não é necessário maiores elaborações so- veis ao crescimento intelectual e quem sabe
bre o assunto. Afinal quase sempre o im- até moral, de gerações de pessoas educadas
possível torna-se possível. Só requer de e conhecedoras da ciência e tecnologia, e das
certas autoridades governamentais o pensa- situações a ela relacionadas pelas quais pas-
mento claro e a medida certa de vontade polí- sam o pais e o mundo.
tica para distribuir eqüitativamente o espaço Chega-se à cruel constatação que depois
43
de mais de cem anos de preocupações polí-
SANTIAGO, Silviano Ratinho preso: sobre a
censura, gramática e estilo, Rio de Janeiro, Jornal do ticas diversas, o documentário, per se, ainda
Brasil, caderno Idéias, 24/01/1990, p. 5. não cumpriu completa e totalmente, pelo me-
44
SANTIAGO, op. cit., loc. cit. nos entre nós, a sua missão favorita explici-
45
DINES, Alberto Horror à controvérsia - lá e
46
aqui. Jornal do Brasil, Opinião, 18/11/2000, p. 9. Ver, MORIN, Edgar Os Sete Saberes necessários à
do mesmo autor, Eppure se muove, Jornal do Brasil, Educação do Futuro, São Paulo, UNESCO, Cortez,
Opinião, 25/11/2000, p. 9 1999, p. 33.
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O cinema, o documentário e a educação 43
tada durante todo este tempo, qual seja, a de pior, facilita contrariamente a interpretação e
ensinar e divertir ao mesmo tempo. Nunca entendimento, ao impedir que se desenvolva
deixam que isto aconteça. um conhecimento generalizado inteligente e
E não é culpa sua ou dos competentes positivo numa sociedade em formação, pela
diretores que se esmeram em realizá-los e simples transferência maciça de quantidades
sim daqueles que dominam o mercado e os imensas de dados e mais dados, num movi-
instrumentos de divulgação televisados neste mento sem finalidade que não seja a de faci-
país, que se sentem acima das leis e pior litar e aumentar a passagem quantitativa de
ainda, do bom senso. dados, em simples detrimento do elemento
O grande tema da substituição da aldeia qualitativo dos temas apresentados, discuti-
global pelo cassino global, em sua profunda dos, representados ou analisados.
complexidade, tem sido exposto com algum Comenta ainda a autora, fundada em cerca
detalhe por Hazel Henderson em seu livro de três dezenas de anos de estudos do fenô-
Construindo um mundo onde todos ganhem, meno humano da midiacracia impingida, por
em que expõe alguns tabus internacionais sua qualidade representativa, deveras medío-
do ramo. Por exemplo, chama de “midia- cre, um jogo de palavras é aqui certamente
cracia” uma “nova forma de governo base- compreensível em vista da mediocridade dos
ada na mídia como sistema nervoso de um itens analisados e que vem sendo imposta às
novo corpo político (ainda não suficiente- populações mundiais desde 1969, pelo que
mente analisado por cientistas políticos, por diz a autora, quando inicialmente:
eruditos e pela própria mídia.” 47 “Os problemas tornaram-se mais críticos”
A autora inglesa acredita que exista uma pelo enraizamento sutil da “violência e por-
possível conspiração global para a obtenção nografia comercialmente lucrativas, má edu-
da atenção das populações economicamente cação das crianças devido às propagandas e
ativas e pelo controle geral das inativas (os ao comercialismo nas salas de aulas; (sic.)
antigamente chamados exércitos de trabalha- surgimento de multidões de programas de
dores de reserva) o que ela denominou “eco- entrevistas no rádio e na TV, e de shows de
nomia da atenção” e que impera tanto na pro- conversas odiosas” o que vale dizer, estamos
dução quanto na entrega dos “setores domi- agora presenciando no Brasil aquilo que de
nantes das midiacracias: cinemas, videocas- há muito vem acontecendo na TV de todo o
setes, audiocassetes e CD’s, TV e rádio...” 48 primeiro mundo.49
É de fácil observação como se introdu- E adverte com a segurança de quem com-
zem porta à dentro das nossas residências, preende bem e explicita as implicações pro-
estes e aqueles fenômenos da multiplicação fundas da situação:
dos conhecimentos midiáticos e comunicati- “Hoje, muitos países do mundo saltaram
vos, à sabiendas que semelhante fluxo ma- do feudalismo para a midiacracia sem ter
ciço de informações em nada ajuda, ou ainda passado pelos estágios do industrialismo e
47
da democracia. Esse novo tipo de governo
HENDERSON, H. Construindo um mundo onde
todos ganhem: a vida depois da guerra da economia acidental pela mídia concentra poder político
global, São Paulo, Cultrix, 2000, p. 130. 49
Id., Ibid., p. 133.
48
Id., Ibid., p. 130.
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44 Geraldo Franco
por vias não exploradas pelos cientistas polí- tos quase que somente para o uso do mo-
ticos.” 50 mento, interno e localizado, de um pequeno
Contudo, sejamos um pouco otimistas, grupo, desprovido de asas que possam voar e
pois nem tudo ainda está perdido. Além do fazer outros voarem na imaginação baseada
que já se afirmou acima, existem algumas na realidade.
sugestões que se oferecem para sairmos das O salto quântico qualitativo não foi ainda
sombras e sermos mais democrática e tro- sequer tentado e sabe-se que não seja à falta
picalmente banhados pelas luzes do sol do de recursos técnicos qualitativos e principal-
conhecimento sadio, representado pela ima- mente de confiança e fé nesses recursos de
gem nítida do documentário e de sua versão precisão e complexidade.
modesta ou encolhida, mas bela, para a tele- Falta, sim, uma coordenação e uma gerên-
visão e o vídeo. cia racional e superior de recursos, princi-
Seria de todo aconselhável sairmos aos palmente. E isso talvez seja fácil de enten-
pulos desse impasse, reconhecendo-se a der como e porquê se passa. Estaremos ou
qualidade do instrumento educacional, ora não “condenados à civilização” como queria
emergente, que, fato consumado, está prestes Monteiro Lobato. Afinal, se é fato consu-
a se reposicionar via computador e Internet. mado, é tempo de perguntarmos que civili-
Quem sabe se até mesmo tentando emulá- zação será essa? Pois algumas delas podem
lo com a filmagem e distribuição de produ- ser até bem melhores que outras...
tos nossos que possam ser oferecidos não só Para termos essa fé e confiança, esse con-
aqui como noutros lugares do mundo? trole de uma vantagem estratégica latente
Com esta pergunta se reafirma que não se e implícita a qualquer nação que se diga e
esteja negando a existência ou a competência aja civilizadamente, torna-se importante re-
de documentaristas brasileiros renomados e conhecermos a única maneira de se aprender
importantes, tantos são que nomear um ou a fazer documentários educativos, tão sim-
dois e ignorar os demais seria uma imensa ples: é fazendo. E fazendo sempre bem, e
injustiça. melhorando cada vez mais.
Tampouco de produtos e produtoras de ex- É estudando e aprendendo até com os nos-
celentes padrões de conteúdo educativo, de sos erros, e adquirindo confiança em nós
qualidade técnica e de beleza estética. Só mesmos. É dominando as técnicas utilizadas
não possuem infelizmente a constância, a fir- e repetindo-as até completarmos essa mis-
meza e a devoção ao trabalho proposto como são inglória que é a da reinvenção mágica da
seria de se esperar e que são um requisito in- roda. À brasileira, diga-se de passagem.
dispensável. Mas isto é esperado pois trata- Se tivermos de comprar know-how
se de uma imposição do capital e de mer- façamo-lo com estilo, aplicando os nossos
cado, conforme se pode observar. recursos variados, por exemplo, na troca
Se reafirmam incessantes, apenas, a exa- dos nossos espaços de locação por cursos
gerada domesticidade e paroquianismo de de aprendizado de técnicas de escrita de
uma maioria experimentalista: criam produ- roteiros para documentários e no conveni-
50
ente aprendizado de pré e pós-produção, ou
Id., Ibid., p. 133.
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O cinema, o documentário e a educação 45
por equipamentos modernos e material de soas interessadas no assunto, quem sabe para
consumo. firmemente organizar e sistematizar o que se
E não param ai as diversas possibilidades pensa da matéria e o que se executa e o que,
existentes. Parece inconcebível nos esque- se possa executar.
cermos do salvamento, restauração e prote- Como agora se apresentam as informações
ção de imagens de arquivo, indispensáveis sobre o assunto se encontram atomizadas,
para o conhecimento da realidade passada do mas a partir dessa dissipação, que pode ser
país, ao abandonar as sombras pela magia considerada até natural, dadas as circunstân-
das luzes. cias, talvez se possa chegar a um consenso
Exceto que se trata de um processo difícil, inicial, cristalizando-se as idéias e traçando-
trabalhoso e inglório, a que nem todos que- se as normas de como, quem, onde e porquê
rem se dedicar com boa vontade. atacar o problema do uso apropriado de re-
Para exemplificar, descendo um pouco cursos dispersos que existem, mais objetiva-
mais à fundo, imagine-se, à titulo de discus- mente, dada a complexidade das circunstân-
são, que não só uma larga percentagem de cias.
filmes mudos à base de nitrato tenham de- É lógico que cem anos de especialização
saparecido, conforme já se afirmou, o que num assunto não irão se amalgamar em seis
é pior, nunca foram recopilados em celulose ou sete rápidos dias. O certo é que raramente
ou em qualquer outro meio, restando apenas essa oportunidade é oferecida para se sair de
uns poucos quadros para provar a sua exis- uma situação em que, do contrário, só exis-
tência, se tanto. tam pequenos ganhadores e grandes perde-
Se isto é verdadeiro lá fora, entre nós não dores.
é mais que um tabu a que poucos discutem Convém-nos trabalhar e pensar em con-
ou se interessam estudar. junto, mesmo se separados pela distância
Porque então nos esquecermos assim fa- de nossos centros urbanos principais. Que
cilmente dos filmes domésticos, dos industri- semelhante distância seja somente física e
ais e dos militares escondidos e se perdendo nunca psicológica ou política, pois o que está
nos depósitos e arquivos mortos de nossas re- em jogo afinal é a felicidade de inúmeras
sidências, de nossas indústrias e de nossas pessoas.
Forças Armadas? Porque esquecermos que
existem quando sabemos que irão inexora-
8 Anexo: alguns
velmente para o lixo?
Vê-se que é por demais extensa a gama de tele-documentários
temas do muito que temos que aprender no Os itens seguintes são exemplos clássicos
futuro próximo sobre esta Arte. É impor- de tele-documentários de primeira categoria
tante e necessário entender o passado para e que se encaixam na descrição das supra-
construir o futuro, o lugar comum de todos mencionadas Séries, e que em alguns casos
os historiadores. seguem-se a textos escritos e publicados, em
Sugiro que seria ideal que a princípio hou- particular pelas editoras norte americanas e
vesse um seminário de alguns dias em que inglesas:
fosse organizado um brain storm pelas pes-
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