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PINHO, L. C.

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Dossiê Temático Filosofia

FOUCAULT E O USO INSTRUMENTAL DO


PENSAMENTO NIETZSCHIANO

LUIZ CELSO PINHO1

1. Professor Adjunto – UFRRJ/DLCS.

RESUM O: PINHO, L. C. Foucault e o uso instrumental do pensamento nietzschiano. Revista


Universidade Rural: Série Ciências Humanas, Seropédica, RJ: EDUR, v. 28, n. 1-2, p. 25-37,
jan.-dez., 2006. Este ensaio pretende mostrar que o pensamento de Nietzsche é utilizado ao longo das
análises histórico-filosóficas de Foucault de três formas distintas: com o intuito de criticar o projeto
humanista da modernidade, visando estabelecer um fundamento anti-metafísico para a escrita de uma
história política da verdade e, paradoxalmente, ao assinalar a passagem da cultura grega para a cristã do
ponto de vista ético, sem levar em conta a questão do niilismo.
Palavras-chave: antropologia, história, política, verdade, niilismo.

ABSTRACT: PINHO, L. C. Foucault and the instrumental use of Nietzshe’s thought. Revista
Universidade Rural: Série Ciências Humanas, Seropédica, RJ: EDUR, v. 28, n. 1-2, p. 25-37,
jan.-dez., 2006. This article aims to point out that Nietzsche’s thought is used in three different forms
throughout Foucault’s historical-philosophical analyses: 1) to criticize the humanist project of the modernity,
2) to provide an anti-metaphysical ground for the writing of a political history of truth and 3) paradoxically,
to mark the transition between Greek culture and Christian world from ethical point of view, discarding the
question of the nihilism.
Key words: anthropology, history, politcs, truth, nihilism.

pressupor o que poderia estar oculto nas


INTRODUÇÃO entrelinhas.
Apesar da abundância das referências
Não há como deixar passar de Foucault a Nietzsche, elas não se
despercebido a freqüência com que distribuem de forma homogênea, tendo em
Foucault se refere ao legado filosófico de vista a sua riqueza temática, nem se
Nietzsche. Essa afinidade se faz notar apresentam de forma sistemática (a
geralmente tanto pelo emprego de termos exceção do ensaio “Niet zsche, a
comuns quanto no que diz respeito ao genealogia a história” e da primeira
estilo contestatório de ambos, cuja conferência de A verdade e as formas
principal marca consiste em desfazer a jurídicas). Inicialmente, podemos
solidez daquilo que julgamos evidente. No circunscrever dois grandes conjuntos de
entanto, o modo como Foucault incorpora referências: um composto pelas análises
elementos nietzschianos em seu trabalho histórico-filosóficas de Foucault e outro
acaba dificultando a tarefa de discernir as que corresponde ao que foi afirmado em
particularidades dos projetos filosóficos de entrevistas. No primeiro caso, temos os
cada um, pois ele próprio raramente trabalhos que abordam a questão da
fornece indicações do tipo de necessidade loucura, da medicina, das ciências do
– teórica ou metodológica – que o move. homem, da prisão e da sexualidade.
Para dar conta dessa intrincada relação, Nesses textos, que constituem o veio
faz-se necessário tomar alguns cuidados principal dos escritos de Foucault, o
de ordem interpretativa, principalmente no pensamento nietzschiano aparece sob as
sentido de nos determos exclusivamente mais diversas formas: consciência trágica
na letra foucaultiana, ou seja, evitando (História da loucura na época clássica);

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enigmática oposição entre linguagem e Quanto à influência efetiva que Nietzsche


conhecimento no processo de produção de teve sobre mim, me seria bem difícil de
uma “ciência do indivíduo” (Prefácio de precisá-la, porque tão somente presumo o
Nascimento da clínica); trilogia morte de quanto ela foi profunda. Diria apenas que
permaneci ideologicamente “historicista” e
Deus, morte do homem, “super-homem”
hegeliano até ter lido Nietzsche
(As palavras e as coisas); história (FOUCAULT, 1994c, p. 613).
genealógica (Vigiar e punir) e relação entre
discurso e vontade de verdade (A vontade Junho de 1975:
de saber). É nessa mesma linha que outros
textos desenvolvem aspectos específicos. Agora permaneço mudo quando se trata
Destacam-se “Nietzsche, Freud e Marx”, de Nietzsche. No tempo em que era
conferência que concebe a atividade professor, freqüentemente ministrava
interpretativa na Modernidade como um cursos sobre ele, mas não o faço mais hoje
trabalho incessante, onde se dissolve a em dia. Se fosse pretensioso, daria como
materialidade tanto de quem interpreta título geral ao que faço genealogia da
quanto do que é interpretado; A ordem do moral (FOUCAULT, 1994f, p. 753).
discurso, ensaio que ressalta o quanto as
palavras estão submetidas a imperativos Junho de 1976: “A questão política (...)
de controle; e “A vontade de saber”, não é o erro, a ilusão, a consciência
resumo do primeiro curso no Colégio de alienada ou a ideologia: é a própria
França, que contrapões Aristóteles a verdade. Daí a importância de Nietzsche.”
Nietzsche no intuito de propor uma teoria (FOUCAULT, 1994g, p. 160). Outubro de
do conhecimento de base não-metafísica. 1982: “Nietzsche foi uma revelação para
O material a que nos referimos acima mim. Tive a impressão de descobrir um
reforça, sem dúvida, a importância de autor bem diferente daquele que me
Nietzsche. O que nos parece problemático, haviam ensinado” (FOUCAULT, 1994p, p.
contudo, é que na prática dispomos de 780). Primeiro semestre de 1983:
poucos subsídios no sentido de definir não
(...) não é tanto a história mesma do
apenas seu alcance teórico como também
pensamento que me interessa, mas essa
seu papel na estrutura argumentativa do espécie de desafio que senti quando li, há
pensamento foucaultiano. Dito de outro muito tempo, A gaia ciência e Aurora (...).
modo: é inegável que as referências a Qual é o máximo de intensidade filosófica
Nietzsche são marcantes em mais de uma e quais são os efeitos filosóficos atuais que
ocasião, mas que tipo de relação haveria se pode tirar desses textos? Eis o que era,
entre esses diversos momentos? Ou para mim, o desafio de Nietzsche
ainda: não seria possível circunscrever (FOUCAULT, 1994i, p. 446).
particularidades?
Nas entrevistas, por sua vez, nosso A pergunta que nos fazemos é até que
quadro adquire outros contornos, pois ponto essas declarações contribuem para
descobri mos um univ erso rico e que possamos definir de forma clara a
desconcertante de revelações. Eis alguns efetiva contribuição de Nietzsche.
exemplos marcantes. Junho de 1967: Ora, nas duas modalidades de fonte a
“Mi nha arqueologi a dev e mai s à que podemos recorrer – a “acadêmica” e
geneal ogia nietzschiana do que ao a “jornalística” –, inevitavelmente lidamos
est ruturalismo propri ament e di to” com algum ti po de lacuna, sej a a
(FOUCAULT, 1994b, p. 599). Setembro de provocada pela ausência de um material
1967: que f orneça elementos capazes de
estabelecer algum tipo de coesão ou
princípio organizador, já que lidamos com

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elementos pontuais, seja pela liberdade de ref erências a Niet zsche remetem
se poder estabelecer os mais diversos elos inevitavelmente a um uso instrumental, ou
ent re os dois, independente das seja, Foucault recorre a temáticas e
particularidades de cada um. Nossa tarefa conceitos nietzschianos no intuito de
se torna ainda mais complexa se levamos utilizá-los em função dos desafios teóricos
em conta declarações como as fornecidas de suas pesquisas histórico-filosóficas.
na derradeira entrevista de Foucault, Como ele mesmo apregoou, “a única
quando, ao ser levado a falar dos filósofos marca de reconhecimento que se pode
que lhe parecem imprescindíveis, acaba testemunhar a um pensamento como o de
afirmando: Nietzsche é precisamente utilizá-lo,
def ormá-lo, f azê-l o ranger, gritar”
sou simplesmente nietzschiano, e tento (FO UCAULT, 1994f , p. 753).
ver, na medida do possível, sobre certo Conseqüentemente, subordinaremos a
número de pontos, com a ajuda de textos diversidade de elementos nietzschianos
de Nietzsche – mas também com teses aos três principais fios condutores do
anti-nietzschianas (que são
pensamento foucaultiano – o saber, nos
completamente nietzschianas!) o que se
pode fazer neste ou naquele domínio anos 60, o poder, na década seguinte, e a
(FOUCAULT, 1994n, p. 704). ética, na primeira metade dos anos 80 –
para, a partir deles e das questões que lhes
Num prim eiro m oment o, essas são inerentes circunscrever usos distintos.
palavras, pronunciadas no limiar de trinta É nesse sentido que detectamos pelo
anos de intensa atividade intelectual, menos três f ormas de utilização do
chamam a atenção pelo inequívoco tom pensamento nietzschiano nas análises
solene que conferem à influência de um histórico-filosóficas de Foucault, três
único nome. Porém, ao nos determos em formas de fazê-lo ranger. Inicialmente, a
suas implicações, percebemos que elas se que apregoa o f i m do prim ado
mostram embaraçosas, tendo em vista que antropológico na Modernidade em função
não somente atestam a existência de um da promessa-ameaça do “super-homem”.
diálogo profícuo, jamais interrompido, Em seguida, a que permite repensar o
entre ambos, como também (e aqui estatuto da história e da verdade a partir
esbarramos num obstáculo de ordem de um referencial não-metafísico, isto é,
lógica), eventuais dissonâncias, em vez de através das rubricas genealogia e vontade
lev arem à ruptura, serv em como de verdade. Por fim, a que torna obsoleta
demonstração cabal de afinidade teórica. a concepção nietzschiana de niilismo,
Com o, então, do ponto de v i sta tendo em v ista que a abordagem
interpretativo, determinar de forma precisa genealógica desenvolvida por Foucault
o estatuto de Nietzsche nos ditos e escritos não considera que tenha havido uma
de Foucault? ruptura entre a conduta ética de gregos e
Entendemos ser necessário adotar aqui cristãos.
uma postura de cautela em relação tanto
ao que é afirmado de forma elogiosa nas
entrevistas quanto a toda e qualquer DO PRIMADO DO HOMEM À ERA DO
consideração de cunho retrospectivo. Daí SUPER-HOMEM
considerarmos oportuna a advertência de
Machado de que “nunca se deve aceitar A presença de Nietzsche nos escritos
como uma evidência inquestionável aquilo de Foucault se faz notar, pela primeira vez,
que [Foucault] diz de sua obra passada” no exato momento em que este passa a
(MACHADO, 2000, p. 37). Além disso, empregar o termo arqueologia, na virada
partiremos da hi pótese de que as dos anos 50 para a década de 60, para

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caracterizar o tipo de análise histórico- É interessante notar que na segunda


filosófica que então realizava. Dos três edição de História da loucura Foucault
requisitos elaborados no intuito de obter o redige um nov o pref ácio, na qual
título de Doutor – a tese propriamente dita, desaparece qualquer menção a Nietzsche.
a tradução de um opúsculo de Kant e o Essa omissão, contudo, não diminui a
comentário complementar ao material influência do filósofo alemão, pois a
traduzido – a referência ao pensamento adoção da trilogia trágica – nascimento,
nietzschiano ocupa lugar de destaque no morte, renascimento – para elucidar as
primeiro e no terceiro registros. condições de surgimento de um saber
A hipótese central do texto principal, psicológico, psiquiátrico e psicopatológico
Loucura e desrazão, publicado inicialmente sobre a loucura permanece inalterada.
em maio de 1961, e reeditado onze anos Além do mais, o próprio Nietzsche é
depois com o antigo subtítulo, História da saudado (ao lado de Van Gogh, Artaud,
loucura na época clássica, sustenta que Goya, Sade, Hölderlin, Nerval e, de certo
desde o Renascimento a cultura ocidental modo, Freud também) como aquele que
está cindida entre duas modalidades de reabilita uma linguagem própria da loucura.
consciência a respeito do mundo e dos O segundo registro que marca a
indivíduos: a trágica e a crítica. Sendo que presença de Nietzsche no inicio da fase
com o passar do tempo verifica-se uma arqueológica ocorre, surpreendentemente,
preponderância desta em relação àquela, no momento em que Foucault se detém
que culminará, na Modernidade, no num texto de Kant – Antropologia de um
silenciamento da primeira. Ora, no Prefácio ponto de vista pragmático [Anthropologie
original constatamos qual é a principal in pragmatischer Hinsicht] – no intuito de
fonte de inspiração de Foucault: “Nietzsche redigir os dois volumes de sua tese
mostrou que a estrutura trágica a partir da complementar. Um deles corresponde à
qual se faz a história do mundo ocidental tradução para o francês do referido texto;1
não é outra coisa que a recusa, o o outro contém um longo – e inédito –
esquecimento e a recaída silenciosa da comentário a seu respeito intitulado
tragédia” (FOUCAULT, 1961b, p. iv). Logo Introdução à Antropologia de Kant,2 cuja
adiante, a alusão a O nascimento da conclusão nos chama a atenção por
tragédia mostra-se inequívoca: “O estudo retratar um antagonismo entre a filosofia
que se vai ler é apenas o primeiro, e o mais crítica de Kant e a diretriz de superação
fácil sem dúvida, dessa longa investigação dos valores niilistas apregoada pelos
que, sob o sol da grande pesquisa discursos de Zaratustra. Independente da
nietzschiana, gostaria de confrontar as f orma como F oucault concebe a
dialéticas da história às estruturas imóveis problemática antropológica em Kant, o que
do trágico” (FOUCAULT, 1961b, p. v). As nos chama a atenção nesse momento
páginas que se seguem revelam um ini cial de seu percurso teórico é a
extenso estudo sobre o silêncio imposto compreensão de que a modernidade se
ao louco atrav és da segregação caracteriza por abrir duas vias para o
institucional, da invalidação discursiva e do pensamento, como se pode depreender da
enquadramento moral ao qual ele vem seguinte passagem:
sendo submetido desde o século XVII.

1
Cf. KANT, E. Anthropologie du point de vue pragmatique. 4a. ed. Paris: Vrin, 1984. 174 p. (Biblioteca de
Textos Filosóficos).

2
Esse ensaio teria sido batizado inicialmente de Gênese e estrutura da Antropologia de Kant, numa alusão
à obra que Jean Hyppolite dedica à elucidação da Fenomenologia do espírito de Hegel (DEFERT, 1994: I,
23).

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A Antropologia é esse caminho secreto


que, desde a fundação de nosso saber, Outra presença marcante de Nietzsche
religa por uma meditação não reflexiva a nas pesquisas arqueológicas ocorre, em
experiência do homem e a filosofia. Os 1966, com As palavras e as coisas. Desta
valores insidiosos da questão: W as ist
vez, sua posição de destaque se faz notar
der Mensch? [O que é o homem?] são
responsáveis por esse campo na célebre frase de que “o homem é uma
homogêneo, desestruturado, invenção cuja arqueologia de nosso
indefinidamente reversível onde o homem pensamento mostra facilmente a data
se dá como sua verdade e como alma da recente. E talv ez o f im próxi mo”
verdade (...) Que [as noções polimorfas (FOUCAULT, 1966, p. 398). Não estamos,
de “sentido”, “estrutura”, “gênese”] como vimos, diante de uma completa
circulem indiferentemente em todas as novidade, tendo em vista que no ensaio
ciências humanas e na filosofia, não introdutório de sua tese complementar,
funda o direito de pensar como uma coisa
Foucault já m anif estav a um
apenas esta e aquelas, mas assinala a
incapacidade na qual nos encontramos descontentamento para com o primado do
de exercer contra essa ilusão modelo antropológico na modernidade. A
antropológica uma verdadeira crítica. E, originalidade de As palavras e as coisas
no entanto, dessa crítica recebemos o reside, nesse caso, na constatação de que
modelo depois de mais de meio século a promessa-ameaça do “super-homem”
(...) A trajetória da questão: “Was ist der será reforçada por outros acontecimentos.
Mensch?” no campo da filosofia se acaba É o caso do surgimento da noção de
na resposta que a recusa e a desarma: estrutura nas esferas psicanalítica (Lacan),
der Uebermensch? [o “super-homem”]
etnológica (Lévi-Strauss) e lingüística
(FOUCAULT, 1961a, p. 127-8).
(Jackobson), configurando o que Foucault
Na passagem acima fica patente que batizou de “contra-ciências humanas”, pois
Foucault delineia, em consonância com estas dissolvem a solidez intemporal do
Nietzsche, o projeto de uma crítica geral homem. Acrescente-se a isso a difusão de
do humanismo. É através do “super- uma modalidade de escrita literária que
homem” nietzschiano que Foucault pode prescinde do sujeito como fio condutor da
realizar uma “verdadeira crítica”, ou seja, narrativa. Foucault def ende que na
um diagnóstico das condições de modernidade se instaura uma primazia da
possibilidade de um saber sobre o homem linguagem em relação ao sujeito que, no
que não esteja marcada por valores seu entender, foi proposta pelo Nietzsche
antropológicos (e nem teológicos). A de Genealogia da moral.
argumentação de História da loucura Apesar de essa soberania das palavras
contempla essa exigência metodológica na já ter sido assinalada no ano de 1963 em
medida em que não atribui à racionalidade textos que abordam o conceito de morte
psiquiátrica o mérito de libertar o louco dos tanto na históri a da medi cina (O
grilhões da intolerância, do medo e da nascimento da clínica) quanto no discurso
culpa. Como salienta Machado, literário (Raymond Roussel), o que nos
chama atenção agora é que ela aparece
o que demonstra Foucault é que o saber vinculada à retomada do diagnóstico
sobre a loucura não é o itinerário da razão nietzschiano da m odernidade, cujo
para a verdade, como é a ciência para a principal aspecto consiste em assinalar a
epistemologia, mas a progressiva passagem de uma era do homem para
descaracterização e dominação da loucura uma era do “super-homem”. Essa inflexão
para sua cada vez maior integração à no pensamento ocidental ainda é
ordem da razão. Eis o que é a história da ressaltada nas discussões metodológicas
loucura: a história da fabricação de uma de A arqueologia do saber, onde Nietzsche
grande mentira (MACHADO, 2006, p. 86).

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será saudado por “libertar a história do importância se fará notar apenas em duas
pensamento de sua sujei ção ocorrências isoladas: uma em 1963, num
transcendental” (FOUCAULT, 1969, p. 264). texto denominado “Debate sobre a poesia”,
A lição que retiramos do período onde é exaltada a capacidade de a
arqueológico é justamente a de que as literatura transgredir e contestar, e outra
referências a Nietzsche obedecem a um no ano seguinte, na célebre conferência
único propósito: estabelecer um critério de “Nietzsche, Freud, Marx”, em que surge a
av aliação que permita repensar a idéia de que o ato de interpretar, ao se
soberania do sujeito nos discursos que se voltar sobre si mesmo, penetra “nessa
referem ao ser humano. É nesse sentido região mitológica da loucura e da pura
que História da loucura recupera linguagem” (FOUCAULT, 1994a, p. 574).
elementos de O nascimento da tragédia O combate ao humanismo, por sua vez,
para dar conta do surgimento da psicologia fio condutor dos trabalhos do período
e As palavras e as coisas se inspira em arqueológico, não desaparece, mas perde
Assim falou Zaratustra no intuito de qualquer laço de parentesco com o tema
explicar o ocaso das ciências humanas. do “super-homem”. Um livro como Assim
Na “arqueologia do saber” a presença de falou Zaratustra deixa de serv ir de
Nietzsche permite a Foucault julgar inspiração, a ponto de, ao ser indagado,
criticamente o processo histórico que em 1972, sobre “qual” Nietzsche o
cul mina na i nstauração de um era agradav a, Foucault responder
antropológica. Mas em vez de almejar taxativamente: “não é, evidentemente, o
depurar seus pressupostos de Zaratustra” (FOUCAULT, 1994e, p.
epistemológicos ou mesmo resgatar seus 372). De modo geral, a polêmica suscitada
ideais perdidos, a crítica foucaultiana se pelo tema da “morte do homem” adquire
caracteriza por desferir um golpe mortal um tom ameno, chegando a se tornar um
no coração de toda forma de humanismo. pouco menos agressiv a, conf orme
podemos notar num ensaio do final da
década de 60, “O que é um autor?”, onde
POR UMA “TEORIA” NÃO- a arqueologi a é tida como um
METAFÍSICA DA HISTÓRIA E DA procedimento que pretendia “ver de que
VERDADE maneira, segundo quais regras se formou
e f uncionou o conceito de homem”
A partir de 1969, Foucault começa a dar (FOUCAULT, 1994d, p. 817). Aliás, tal
indícios de que está modificando seu modo posicionamento já havia sido sutilmente
de assimilar o legado de Nietzsche. exposto na quinta e última parte de A
Gradualmente, os temas que serviram de arqueologia do saber, ao Foucault declarar
apoio para a argumentação de História da que “não quis excluir o problema do
loucura, O nascimento da clínica e As sujeito”, mais sim “definir as posições e
palavras e as coisas vão sendo deixados as funções que o sujeito podia ocupar na
para trás, minimizados ou adquirindo outra diversidade dos discursos” (FOUCAULT,
roupagem – se bem que o interesse pela 1969, p. 261, grifos meus). Ocorre, deste
formação de um saber sobre o indivíduo modo, no curto espaço de três anos, o
na modernidade se mantenha como o deslocamento de uma postura negativa, ou
denominador comum de suas pesquisas. sej a, de elucidar as condi ções de
Um indí cio do desprendimento possibilidade de desaparecimento do
foucaultiano em relação ao que outrora lhe sujeito do campo epistêmico, para a
pareceu imprescindível diz respeito à análise, de cunho positivo, dos diversos
experiência trágica. Após ocupar lugar de “lugares ocupados” pelo autor dentro da
destaque na tese de doutorado, sua estrutura discursiva.

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Não se pretende, com isso, sugerir que inserção nos anos 70 tanto permite
Foucault tenha se afastado do projeto conceber um novo modelo de escrita da
inicial de denunciar a proliferação insidiosa história quanto está em consonância com
de noções antropológicas nas mais a tese foucaultiana de que a modernidade
diversas f ormas de saber. Porém, a culmina num insidioso processo de
redução do caráter polêmico de antigas interiorização da subjetividade. Além disso,
hipóteses de trabalho nos leva a concluir notamos a ocorrência de lentas gestações
que o rumo de suas pesquisas está sendo pel os quais passam os concei tos
reavaliado. Outro sinal que chama a nietzschianos de vontade e genealogia.
atenção é o abandono de qualquer Tendo despontado em A ordem do
menção à literatura e, conseqüentemente, discurso, adquirem outra função a partir
à apologia da linguagem, cuja principal do resumo do primeiro curso do Colégio
função consistia em retirar do homem seu de França, “A vontade de saber”, e do
poder fundante em relação às palavras. ensai o “Nietzsche, a genealogia, a
Para al ém dessas mudanças de história”, ambos de 1971. Inicialmente,
ênfase, a presença de Nietzsche ainda se aparecem atrelados a problemáticas
faz notar de forma indubitável nos anos 70, inerentes ao período arqueológico, como
como podemos constatar no papel central no caso da desqualificação da linguagem
que ele ocupa na crít ica da busca do louco e da formação de saberes sobre
metaf ísica de uma origem ideal em o homem. Com o passar do tempo,
“Nietzsche, a genealogia, a história”, na contudo, a vontade de verdade fornece
afirmação de que Vigiar e punir realiza uma subsídios para o desenvolvimento um
“genealogia da ‘alma’ moderna” est udo comparativ o das teorias do
(FO UCAULT, 1975, p. 38), na conhecimento inventadas pelos filósofos
surpreendente declaração que o título A enquanto a genealogia permite reformular
vontade de saber é a “única homenagem” as diretrizes metodológicas do ofício do
que prestou a Nietzsche (FOUCAULT, historiador. A dificuldade em acompanhar
1994i, p. 444), ou mesmo na adoção da como se dá a lenta assimilação de
hipótese de trabalho de que Nietzsche é o conceitos nietzschianos reside no fato de
“melhor, mais eficaz e atual” modelo para que Foucault praticamente nada ter dito
a análise das relações de poder no mundo sobre as etapas desse processo. Mas o
ocidental (FOUCAULT, 1996, p. 9). Através que fica patente é que não estamos diante
desses diversos registros não há como do mesmo tipo de utilização verificado nos
duvidar que Foucault ainda está fortemente anos 60.
marcado por Nietzsche. Ora, o que defendemos é que as
No entanto, e aqui reside o aspecto análises denominadas de “microfísica do
central de nossa análise, um exame atento poder” em Vigiar e punir (FOUCAULT,
rev ela que o modo como Foucault 1975, p. 34, p. 163, p. 175 e p. 188) ou
incorpora o referencial nietzschiano às “analítica do poder” em A vontade de saber
suas pesquisas histórico-filosóficas sofre (FOUCAULT, 1976, p. 108) recorrem a
uma sutil, porém significativa, modificação. Nietzsche no sentido de obter subsídios
Há mudanças de nítida visibilidade, como teóricos que permitam repensar a escrita
a do papel atribuído à Genealogia da moral. da história e a relação entre sujeito e
Se, nos anos 60, esse livro esteve em v erdade sem adotar um ref erencial
maior ou menor escala associado à metafísico. Em função disso, o sujeito
elucidação das bases m orais do passa a ser tido como um “átomo fictício”
conhecimento psiquiátrico, ao surgimento (FOUCAULT, 1975, p. 227), ou seja, cabe
de uma região onde reina a linguagem e ao historiador mostrar que ele deixou de
ao fim do primado antropológico, sua ser o motor da história para se tornar

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produto de sutis e i ninterruptos isto é, à relação da força com um ser ou


mecanismos de controle, v igilância, um objeto; consiste na relação da força
adestramento e confissão. Nesse mesmo com outras forças que ela afeta, ou mesmo
contexto nos damos conta de que a que a afetam (incitar, suscitar, induzir,
seduzir etc.). Em segundo lugar, (...) [tem-
questão do conhecimento nas ciências
se] todo o tema da morte do homem em
humanas deve mais ser entendida a partir Foucault e seu vínculo com o super-
processos que se delineiam de forma livre homem de Nietzsche (...) Enfim, o terceiro
e desinteressada, como se a busca da encontro diz respeito aos processos de
verdade fosse uma necessidade natural, subjetivação: mais uma vez, não é de modo
mas sim que é preciso levar em conta algum a constituição de um sujeito, mas a
relações de força que são essencialmente criação de novos modos de existência, o
desequilibradas, heterogêneas, instáveis que Nietzsche chamava a invenção de
e tensas. novas possibilidades de vida, e cuja origem
já encontrava nos gregos. Nietzsche via
Certamente, Foucault concebe uma
nessa invenção a última dimensão da
teoria do poder que efetivamente não está vontade de potência, o querer-artista
presente na letra nietzschiana, pois esta (DELEUZE, 1998, p. 145-6).
em nenhum momento trata do tipo de
vínculo que pode haver entre formas de Do triplo elo que Deleuze atribui a
conhecimento específicas (como as Foucault e Nietzsche – superação do
ciências humanas) e mecanismos políticos humanismo, relações de força produtivas
de dominação em determinada época. No e existência artística –, consideramos
entanto, a genealogia foucaultiana prioriza pertinente apenas as duas primeiras
a elaboração de um inst rumental formas de interseção. Quanto ao problema
conceitual específico para dar conta das da subjetiv idade, acreditamos que a
condições de possibil idade ext ra- confluência apontada por Deleuze não
discursivas das ciências humanas a partir corresponde ao que se v erif ica
do que Nietzsche afirmou em algumas efetivamente no discurso de cada um
passagens sobre a dinâmica bélica dos deles, apesar de se poder assinalar que
processos históricos e da produção de ambos convergem para uma apologia da
verdade. Em suma, o Nietzsche dos anos dimensão artística da vida. Antes de tudo,
70 é utilizado por Foucault no intuito de devemos ter em mente que tal afinidade
fundamentar metodologicamente um tipo obedece a necessidades intrínsecas ao
de pesquisa que tem por objet iv o pensamento deleuziano, mais exatamente
demonstrar como a equação saber = poder ao papel que ele atribui ao conhecimento
está presente em dispositivos de cunho em Nietzsche e a filosofia, já que nesse
disciplinar ou confessional. texto o ato de conhecer é censurado “por
sua pretensão a se opor à vida, a medir e
a julgar a vida, a considerar-se como um
A ADOÇÃO DE TESES ANTI- f im ”, o que o lev a a def ender “um
NIETZSCHIANAS pensamento que afirme a vida. (...) Pensar
significaria descobrir, inventar novas
Em mais de uma ocasião, ao se referir possibilidades de vida” (DELEUZE, 1976,
ao teor nietzschiano das investigações p. 82-3). Ora, os filósofos que Deleuze
foucaultianas, Deleuze identifica “três privilegia invariavelmente trilham essa via
grandes pontos de encontro” entre eles: inventiva de sentir e pensar.
Mas será que tal confluência com
O primeiro é a concepção de força. O Nietzsche pode ser ef et iv amente
poder, segundo Foucault, como a potência assinalada nos dois volumes – O uso dos
para Nietzsche, não se reduz à violência, prazeres e O cuidado de si – que tratam

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da “genealogia da ética”? Até que ponto a prazeres. Naquela que interessa à presente
argumentação int erna da pesquisa discussão, Foucault atribui a Nietzsche o
genealógica de Foucault, ao remontar a mérito de lhe ter propiciado os fundamentos
gregos, romanos e cristãos, recorre de fato de cada uma das três etapas de sua obra,
a elementos de cunho nietzschiano? ou seja, da “arqueologia do saber”, da
Num primeiro momento, verificamos “genealogia do poder” e da “genealogia da
algumas pistas que reforçam a afinidade ética”:
entre Foucault e Nietzsche do ponto de
vista ético. É o que nos induzem a concluir Como as experiências individuais ou
as declarações feitas na década de 80. coletivas resultam de formas singulares de
Senão vejamos. Março de 1982: Foucault pensamento, isto é, do que constitui o
reconhece que através da leitura de sujeito em suas relações com o verdadeiro,
com a regra e consigo mesmo? Adivinha-
Nietzsche elaborou a base de uma história
se como a leitura de Nietzsche, no início
da racionalidade que não está ancorada dos anos cinqüenta, pôde dar acesso a
num “ato fundador e primeiro do sujeito esses tipos de questões, rompendo com a
racionalista” (FOUCAULT, 1994i, p. 436). dupla tradição da fenomenologia e do
Junho de 1982: essa leitura também foi marxismo (FOUCAULT, 1994k, p. 581).
diretamente responsáv el por sua
motiv ação de “realizar um trabalho Nas div ersas passagens que
pessoal” (FOUCAULT, 1994j, p. 529). selecionamos acima constatamos o
Out ubro de 1982: consi dera que quanto Nietzsche é integrado à última fase
“Nietzsche foi uma revelação” e que está do pensamento foucaultiano. No entanto,
vinculado a rupturas de cunho pessoal, os indícios apresentados se mostram
acadêmico e profissional (FOUCAULT, bastante genéricos, tendo em vista que
1994p, p. 780). Abril de 1983: declara que estabelecem filiações que não podem ser
“pouco [se] importa com aqueles que demonstradas a partir da argumentação
dizem: “você retirou idéias de Nietzsche” interna das análises histórico-filosóficas de
(FOUCAULT, 1994l, p. 585). Ou ainda, na Foucault. É o que veremos adiante.
mesma época: indagado se a antinomia Do ponto de vista da tecnologia do poder
entre “estética da existência” e moral em jogo, a primeira parte da história
universal não estaria afinada com o foucaultiana da sexualidade, surgida em
existencialismo sartriano, responde: “meu meados dos anos 70, não é levada à frente
ponto de vista é mais próximo de Nietzsche por sua continuação na década de 80.
do que de Sartre” (FOUCAULT, 1994m, p. Foucault deixa de lado a idéia inicial de
618). Julho de 1984: questionado sobre até mostrar o porquê de ter havido uma
que ponto a problematização da loucura, “incitação política, econômica, técnica, a
da delinqüência e, até mesmo da falar do sexo” (FOUCAULT, 1975, p. 33)
sexualidade, representaria uma nova para investigar como “os indivíduos foram
genealogia da moral, declara: “Se não levados a exercer sobre eles mesmos, e
tivesse a solenidade do título e a marca sobre os outros, uma hermenêutica do
grandiosa que Nietzsche lhe impôs, diria desejo” (FOUCAULT, 1984a, p. 12). Seu
que sim” (FOUCAULT, 1994o, p. 731). interesse se desloca de uma região
Há também um registro ainda mais caracterizada pela arte de governar os
significativo. Num ensaio que serviria outros, que diz respeito a um “campo
originalmente de introdução à continuação múltiplo e móvel de relações de força no
da História da sexualidade, algumas qual se produzem efeitos globais, porém
passagens são retiradas antes de o jamais totalmente estáveis, de dominação”
mesmo ser transformado definitivamente (FOUCAULT, 1976, p. 135), para uma
no capítulo de abertura de O uso dos outra, anexa e complementar, onde

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prevalece o imperativo de governar a si A ética foucaultiana, por sua vez,


mesmo, o que nos remete à li v re remonta à problematização sexual no
problematização da conduta individual. mundo greco-romano para mostrar que
Aplicado à noção de sexualidade, o tipo de postura leva ao desenvolvimento
conceito de genealogia serve, inicialmente, de uma “estética da existência”. É nesse
de ferramenta teórica para dar conta da sentido que O uso dos prazeres e O
matriz política das ciências humanas. Nos cuidado de si se detêm nas
anos 80, Foucault permanece inserido
numa perspectiva genealógica. Como práticas reflexivas e voluntárias pelas quais
podemos ler na Introdução de O uso dos os homens não somente se fixam regras
prazeres, que, na prática, apresenta os de conduta mas procuram se transformar
novos pressupostos metodológicos tanto a si próprios, se modificar em seu ser
singular e fazer de sua vida uma obra que
para o livro em questão quanto para os que
sustenta certos valores estéticos e
o sucederão (O cuidado de si e o inédito responde a certos critérios de estilo
As confissões da carne), a pesquisa em (FOUCAULT, 1984a, p. 16-17).
andamento pretende implementar, “a
propósito do desejo e do sujeito desejante, Além disso, as “tecnologias de si”
um trabalho histórico e crítico”, ou seja, empregadas para se obter um
uma “genealogia” (FOUCAULT, 1984a, p. embelezamento existencial dizem respeito
12). Além disso, Foucault também ressalta a um “fenômeno que só concerne a grupos
que a atual história da sexualidade não se sociais muito limitados em número”
constitui de forma independente em (FOUCAULT, 1984b, p. 63). O interesse
relação ao que foi dito sobre o saber e o de Foucault resi de j ustam ente na
poder, tendo em v ista que esta “se possibilidade de promover a atualização
encontra no ponto de cruzamento de uma desse modelo estético adotado por uns
arqueologia das problematizações e de poucos, tendo em vista que, para ele, a
uma genealogia das práticas de si” única coisa que vale a pena durante a vida
(FOUCAULT, 1984a, p. 21). é “fazer de seu ser uma obra de arte”
Ora, à exceção de breves indicações (FOUCAULT, 1994h, p. 258).
de que ainda adota um ponto de vista Apesar da aparente af inidade
genealógico, não dispomos de outras programática entre Foucault e Nietzsche
indicações de que o nietzschianismo de no campo ético, ao nos determos nas
Foucault se mantém intacto. Mas não é só hipóteses históricas e teóricas de cada um,
essa economia de palavras que deve ser verificamos um nítido descompasso em
ressaltada. Ao nos v oltamos para a relação aos fatores que favorecem ou
questão ética em Nietzsche, notadamente impedem o trabalho de embelezamento da
na análise sistemática de Genealogia da existência. Enquanto Nietzsche toma
moral, verificamos que ele defende que só como referência imutável a relação entre
há dois modelos de conduta perante a vida: cultura judaico-cristã e desvalorização da
o dos “senhores” que a af irmam vida, a genealogia foucaultiana revela
integralmente e o dos “escravos”, que se sucessivas problematizações éticas entre
ressentem dela, de suas injustiças e de gregos, romanos e cristãos que permitem
sua imperfeição. Essa divisão entre um elaborar, na modernidade, um modelo de
tipo ativo e um tipo reativo, para empregar conduta calcado em valores artísticos.
uma terminologia deleuziana, se faz notar Deste modo, a chave-mestra a partir da
desde a aurora do mundo ocidental, qual Nietzsche desvenda o modo de ser
permanecendo inalterada até os tempos do homem ocidental – o niilismo – não se
modernos. revela válida para Foucault. O que nos
surpreende, na v erdade, é a certa

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indiferença com que esse antagonismo foi conceitualmente como se deu a


abordado. problematização sexual na antiguidade
greco-romana, detectamos uma terceira
forma de Foucault lidar com o legado
CONCLUSÃO nietzschiano, ou ainda, como defendemos,
um terceiro uso instrumental. Se por um
Para que possamos definir o estatuto lado, se coloca em consonância com ele
de Nietzsche nas análises histórico- ao mostrar que o homem não é um
filosóficas de Foucault, é preciso levar em elemento inv ariante na história do
conta as diferentes posturas assumidas conhecimento, daí sua própria sexualidade
por este ao longo de sua obra. No período ser uma invenção recente, f ruto da
arqueol ógico, Foucault se rem ete combinação de temores e preocupações
diretamente às noções nietzschianas de ancestrais que culminam na exigência dos
tragédia e “super-homem” no intuito de indivíduos decifrarem meticulosamente o
julgar como se deu a formação de um conteúdo sexual de cada ato, contato ou
saber sobre o indivíduo na modernidade. pensamento, voluntário ou não; por outro
No tribunal arqueológico, e essa imagem lado, essa abordagem que se apresenta
é importante, pois a arqueologia não se como crítica, no sentido de desmantelar
confunde com uma pesquisa meramente ev i dências e prom ov er um
descritiva, a referência a Nietzsche se dá descentramento antropológico, vai de
no sentido de adotar um parâmetro que encontro a um dos postulados mais
permita avaliar as ciências do homem fundamentais de Nietzsche: a afirmação
numa perspectiva não-antropológica. incondicional da Vida foi drasticamente
A incorporação dos conceitos de abafada pelo manto negro e pesado do
genealogia e vontade, por sua vez, no niilismo.
início da década de 70, nos dá a impressão A genealogia f oucault iana da
de que Nietzsche passa a ocupar uma sexualidade recorre ao arquivo composto
posição secundária, tendo em vista a pelo que disseram médicos, moralistas e
forma original como Foucault descreve os filósofos para mostrar justamente que não
mecanismos que envolvem formas de houve esse abandono dos valores vitais,
saber e relações de poder. Mas se é e que no “trabalho sobre si” reside a
pertinente af irmar que a f ilosof ia verdadeira possibilidade de transformar a
nietzschiana só se refere ao humanismo existência numa obra de arte. Em última
para diagnost icar um estado de análise, a dicotomia entre moral dos
decadência da cultura ocidental, pouco se senhores e moral dos escravos não passa
importando com a dinâmica interna dos de uma ficção. Foucault, paradoxalmente,
discursos produzidos por ela, também não tanto se mantém fiel a Nietzsche, do ponto
se pode dissociar a análise foucaultiana de vista de um projeto anti-humanista, no
das origens extra-epistemológicas, ou qual a exist ência se j usti f ica por
seja, políticas, de um saber sobre o parâmetros artísticos e não pela realização
homem daquilo que Nietzsche formulou de uma natureza humana, como
insistentemente a respeito do que vem a definitivamente o perde de vista, ao
ser a história, a verdade e o sujeito – os enveredar por caminhos que dissipam a
três alicerces que dão sustentação à idéia de uma moral niilista que tenha se
pesquisa genealógica de Foucault sobre mantido inalterada desde a Grécia Antiga
a disciplina e confissão. e que revelaria o traço mais fundamental
Por fim, ao realizar uma “genealogia da no homem ocidental – a aversão pela
ética” que tem por objetivo reconstituir Vida...

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