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A ABOBADA (ANO DE 1401) CAPITULO I O CEGO O dia 6 de Janeiro do ano da Redengio 1401 tinha amanhecido puro e sem nuvens, Os campos, cobertos aqui de relva, acolé de searas, que cresciam a colhos vistos com o calor benéfico do Sol, verdejavam ao longe, ricos de futuro para o pegureiro © para o lavrador. Era um destes formosissimos dias de Inverno mais gratos que os do Estio, porque sfio de esperanga, e a esperanca vale mais do que a realidade; destes dias, que Deus sé concedeu aos paises do Ocidente, em que os raios do Sol, que comega a subir na ecliptica, estirando. se vividos ¢ trémulos por cima da terra enegrecida pela humidade, ¢ errando por entre os troncos pardos dos arvoredos despidos pelas geadas, se assemelham a um bando de criancas, no primeiro vico da vida, a festejar ea rolar-se por cima da campa, sobre a qual ha muito sussurrou o tltimo ai da saudade, ¢ que invadiram os musgos ¢ abrolhos do esquecimento. Era um destes dias antipaticos aos poetas o} sidnico-regelo-nevoentos, que querem fazer-nos aceitar como coisa muito poética Esses gelos do Norte, esses brilhantes Caramelos dos topes das montanhas; sem se lembrarem de que Do sol do Meio-Dia aos raios vividos, Parvas! — se lhes derretem: a brancura Perdem coa nitideg, ¢ se convertem De licides cristais em deua chilre; destes dias, enfim, em que a Natureza sorri como a furto, rasgando o denso véu da estagio das tempestades. No adro do Mosteiro de Santa Maria da Vitéria, vulgarmente chamado da Batalha, fervia 0 povo, entrando para a nova igreja, que de muito pouco tempo servia para as solenidades religiosas. Os frades dominicanos, a quem el- rei D. Joao I tinha doado esse magnifico mosteiro, cantavam a missa do dia debaixo daquelas altas abdbadas, onde repercutiam os sons do drgio € os ecos das vozes do celebrante, que entoava os quiries. Mas nfo era para ouvir a missa conventual que 0 povo se escoava pelo profundo portal do templo para dentro do recinto sonoro daquela maravilhosa fabrica; era para assistir ao auto da adoracio dos reis, que com grande pompa se havia de celebrar nessa tarde dentro da igreja e diante do rico presépio que os frades tinham levantado junto do arco da Capela do Fundador, ento apenas comesada. A concorréncia era grande, porque os habitantes da Canoeira, de Aljubarrota, de Porto de Més ¢ dos mais lugares inhos, desejosos de ver tao curioso espetaculo, tinham deixado desertas as povoacées para vir povoar por algumas horas 0 ermo do mosteiro. Aprazivel coisa cra 0 ver, descendo dos outciros para o vale pot sendas torcidas, aquclas multidé vestidas de cores alegres e semelhantes, no seu complexo, a serpentes imensas, que, transpondo as assomadas, se rolassem pelas encostas abaixo, refletindo ao longe as cores variegadas da pele luzidia ¢ hibrica. Atravessando a pequena planicie onde avultava © mosteiro, passava 0 rio Lena, cuja corrente tinham tornado caudal as chuvas da primeira metade da estacio invernosa. No campo contiguo ao edificio, aqui ¢ acolé, levantavam-se casarias irregulares, algumas fechadas com as suas portas, outras apenas cobertas de madeira ¢ abertas para todos os lados, 4 maneira de simples telheiros. As casas fechadas ¢ reparadas contra as injtirias do tempo eram as moradas dos mestres ¢ attifices que trabalhavam no edificio: debaixo dos telheiros viam-se nuns pedras s6 desbastadas, noutros algumas onde se comecavam a divisar lavores, noutros, enfim, pedagos de cantaria, em que os mais habeis escultores entalhadores jé tinham estampado os primores dos seus delicados cinzéis. Mas © que punha espanto era a inumerivel porcio de pedras, lavradas, polidas ¢ prontas para serem colocadas nos seus lugares, que jaziam espalhadas pelo terreiro que, ao redor do edificio, se alargava por todos os lados: mainéis rendados, pecas dos fustes, capitéis gdticos, lacarias de bandeiras, cordées de arcadas, af yorras ou ainda no chao, stavam tombados sobre gro: endurecido pelo continuo perpassar de trabalhadores, oficiais ¢ mais obreiros desta maravilhosa fabrica. Quem de longe olhasse para aquele extenso campo, alastrado de tantos primores de cscultura, julgara ver o sento de uma cidade antiquissima, arrasada pela mio dos homens ou dos século: cm pé um monumento, o mostciro. E todavia, esses que pareciam restos de uma antiga Balbek nfo eram senfio algumas pedras que faltavam para o acabamento de um convento de frades dominicanos, 0 Convento de Santa Maria da Vitoria, vulgarmente chamado a Batalha! Um quadrante de pedra, sentado num canto do adto, apontava meio-dia. A igreja tinha sorvido dentro do seu seio desmesurado os habitantes das proximas povoacées, ¢ de todo o ruido e algazarra que poucas horas antes soava por aqueles contornos, apenas traspassavam pelas frestas € portas do templo os sons do érgio, soltando a espacos as suas melodias, que sussurravam e morriam ao longe, suaves como pensamento do Cé Nio stava, porém, inteiramente emo o terreito da frontaria do edificio. Assentado sobre um troco de faste, com os pés a0 sol € © resto do corpo resguardado dos seus ardentes raios pela sombra de um telheiro, a qual se comecava a prolongar para o lado do oriente, via-se um velho, veneravel de aspeto, que parecia embrenhado em profundas meditagées. Pendia-lhe sobre © peito uma comprida barba branca: tinha na cabeca uma touca foteada, um gibZo escuro vestido, € sobre ele uma capa curta ao modo antigo. A luz dos olhos tinha-lha de todo apagado a velhice; mas as suas feigdes revelavam que dentro daqueles membros trémulos ¢ enrugados morava um nimo rico de alto imaginar. As faces do velho eram fundas, as mags do rosto elevadas, a ‘inha a testa cara espacosa € curva ¢ 0 perfil do rosto quase perpendicular. " cenrugada, como quem vivera vida de continuo pensar, e, correndo com a mio os lavores da pedra sobre que estava sentado, ora carregando o sobrolho, ora deslizando as rugas da cara, repreendia ou aprovaya com eloquéncia muda os primores ou as imperfeicées do artifice que copiara 4 ponta de cinzel aquela pagina do imenso livro de pedra a que os espiritos vulgares chamam simplesmente o Mosteiro da Batalha. Enquanto 0 velho pensava sozinho e palpava 0 canto, subtilmente lavrado, sobre que repousava os membros entorpecidos, a portaria do mosteiro, que perto dali ficava, outras figuras e outra cena se viam. Dois frades estavam em pé no limiar da porta ¢ altercavam em voz alta: de vez em quando, pondo-se nos bicos dos pés ¢ estendendo os pescogos, parecia quererem descobrir no horizonte, que as cumeadas dos montes fechavam, algum objeto; depois de assim olharem um pedago, encolhiam os pescogos e, voltando-se um para o outro, travavam de novo renhida disputa, que levava seus visos de no acabar. — Oh homem! — dizia um dos dois frades, a quem a tez macilenta ¢ as barbas ¢ cabelos grisalhos davam certo ar de autoridade sobre o outro, que mostrava nas faces coradas € cheias € na cor negra da barba povoada e revolta mais vigor de juventude. — JA disse a vossa reveréncia que el-rei me escreveu, do seu préprio punho, que vitia assistir ao auto da adoracéo dos reis e, de caminho, veria a Casa do Capitulo, a que ontem mestre Ouguet mandou tirar os simples que sustentavam a abébada. — E nego cu isso? — replicou © outro frade. — O que digo é que me parece impossfvel que el-rei venha, de facto, conforme a vossa paternidade prometeu na sua carta. Ha muito que lé vai o meio-dia: daqui a pouco tocaré a vésperas, ¢ as duas por trés é noite. Nao vedes, padre-mestre, a que horas vir a acabar 0 auto? E este povo, este devoto povo que ai esté, que af vem, ha de ir com 0 escuro por esses descampados e serras, com mulheres, com raparigas ‘T4, t4 — interrompeu o prior. — ‘Temos luar agora, € vio de consum. O caso nao é esse, padre-procurador, 0 caso é se esté tudo aviado para agasalharmos el-rei ¢ os da sua companha. — Oh 14, quanto a isso, nada falta. Desde ontem que tenho tido tanto descanso como hoste ou cavalgada de castelhanos diante das langas do Condestavel; o pior € que, segundo me parece, ¢ dizei o que quiserdes, opus et oleum perdidi(* [(*) «Perdi o azgite ¢ 0 trabalho», expressaa proverbial, — Nao falta quem tarda: el-tei nfo quebrari a palavra ao seu antigo confessor. O que quero € que todos os novigos e coristas que tém de fazer suas representagdes no auto estejam a ponto ¢ vestides, para cle comegar logo que a sua senhoria chegue. — Nada receeis, que tudo esta preparado; do que duvido é de que comecemos, se por el-rei houvermos de esperar. O frade mais velho fez, a estas palavras, um gesto de impaciéncia e, sem dar resposta ao seu pirrénico interlocutor, estendeu outra vez © gasnate para o lado da estrada, fazendo com a extremidade do habito uma espécie de sobrecéu para resguardar os olhos dos raios do Sol, que, J muito inclinado para o ocidente, batia de chapa no portal onde os dois reverendos estavam altercando. Porém, meio descorogoado, 0 dominicano logo abaixou os olhos: nem 0 minimo vulto se enxergava no horizonte; ¢ neste abaixar de olhos viu 0 cego, que estava ainda sentado sobre o fuste da coluna, Para escapar, talvez, as reflexdes do seu confrade, o reverendo bradou ao velho: — Oh li, mestre Afonso Domingues, bem aproveitais 0 soalheiro! Nao vos quero eu mal por isso; que um bom sol de Inverno vale, na idade grave, mais que todos os remédios de longa vida que nos seus alforges trazem por af os fisicos. Dizendo ¢ fazendo, o reverendo desccu os degraus do portal ¢ encaminhou-se para o cego. — Quem é que me fala? — perguntou este, alcando a cabeca. — Frei Lourengo Lampreia, vosso amigo e servidor, honrado mestre Afonso, ‘Tio esquecida anda j4 minha voz nas vossas orelhas, que me nao conheceis pela toada? — Perdosi-me, muito devoto padre-prior — atalhou o velho, tenteando com os pés o chio para erguer-se, no momento em que Frei Lourengo Lampreia chegava junto dele, seguido do seu confrade Frei Joane, procurador do mosteito. — Perdoai-me! Foi-se o ver, vai-se o ouvir. Em distancia, j4 nao acerto a distinguir as falas. — Estai quicto; estai quicto, mestre Afonso — disse Frei Lourenco, segurando o cego pelo braco. — O indigno prior do Mosteiro da Vitéria nio consentiré que 0 muito sabedor arquiteto € imaginador Afonso Domingues, 0 criador da oitava maravilha do Mundo, o que tragou este edificio, doado pelo virtuoso de grandes virtudes rei D. Jodo a nossa Ordem, se levante para estar em pé diante do pobre frade. — Mas esse religioso — interrompeu o cego — é 0 mais abalizado tedlogo de Portugal, o amigo do muito excelente doutor Joio das Regras ¢ do grande Nuno Alvares, ¢ privado ¢ confessor de cl-rei; Afonso Domingues é apenas uma sombra de homem, um trogo de capitel partido ¢ abandonado no pé das encruzilhadas, um velho tonto, de quem j4 ninguém faz caso. se a vossa caridade ¢ humildosa condi¢io vos movem a doer-vos de mim e a lembrar- vos de que fui vivo, ndo achareis nisso muitos da vossa igualha. De merencério humor estais hoje — disse o prior, sorrindo. — Nao sé eu vos amo € venero: cl-rei me fala sempre de vés nas suas cartas. Nao sois cavaleiro da sua casa? Ea avultada tenga que vos concedeu em paga da obra que tracastes e dirigistes, enquanto Deus vos concedeu vista, no prova que no foi ingrato? Cavaleirol? — bradou o velho. — Com sangue comprei essa honral Comigo trago a escritura. — Aqui, mestre Afonso, puxando com a trémula as atacas do gibi, abriu-o ¢ mostrou duas largas cicatrizes no peito. — Em Aljubarrota foi escrito © documento a ponta de langa por mio castelhana: a essa mao devo meu foro, que nao ao Mestre de Avis . Ja vio quinze anos! Entio ainda estes olhos viam claro, ¢ ainda para este braco a acha de armas era brinco. El-rei nao foi ingrato, dizeis v6s, veneravel prior, porque me concedeu uma tengal? Que a guarde no seu tesouro; porque ainda as portas dos mosteiros € dos castelos dos nobres se reparte pio por cegos € por aleijados. Proferindo estas palavras, 0 velho nfo péde continuar: a voz tinha-Ihe ficado presa na garganta, e dos olhos embaciados cafam-lhe pelas faces encovadas duas légrimas como punhos. A Frei Lourengo também se arrasaram os olhos de agua. Frei Joane, esse olhou fito para o cego durante algum tempo, com o olhar vago de quem no o compreendia. Depois, a ideia da tardanga de el-rei ¢ da tardanga do auto, que, entrando pelas horas de cear dormir, iria fazer uma brecha horrorosa na disciplina monéstica, velo desperté-lo como espinho pungente. Comecou a bufar ¢ a bater 0 pé, semelhante ao corredor brioso do Livro de Job e da Eneida. Entretanto, o arquiteto havia-se posto em pé: um pensamento profundamente doloroso parecia reverberar-lhe pela cara nobre ¢ turbada, ¢ houve um momento de siléncio. Por fim, segurando com forca a manga do habito de Frei Lourengo, disse-Ihe: — Sois letrado, reverendo padre: deveis ter visto algum traslado da Divina Comeédia do florentino Dante. Li jé © mais de uma vez — respondew o prior. — B obra-prima, daquelas a que os Gregos chamavam epos, id est, enarratio et actio, segundo Aristételes; ¢ se nfo houvesse nessa escritura algumas ousadias contra o papa... — Pois sabei, reverendo padre — prosseguiu o arquiteto, atalhando o impeto erudito do prior —, que este mosteiro que se ergue diante de nés era a minha Divina Comédia, 0 cintico da minha alma: concebi-o cu; viveu comigo argos anos, em sonhos e em vigilia: cada coluna, cada mainel, cada fresta, cada arco, era uma pagina de cangio imensa; mas canco que cumpria se escrevesse em marmore, porque sé © mérmore era digno dela. Os milhares de favores que tracei no meu desenho eram milhares de versos; ¢ porque ceguei arrancaram-me das mios o livro, ¢ nas paginas em branco mandaram escrever um estrangeiro! Loucos! Se os olhos corporais estavam mortos, nao o estavam 0 do espirito. O estranho a quem deram meu cargo nfio me entendia, ¢ ainda hoje estes dedos descobriram nessa pedra que o meu alento nao a bafejara. Que dircito tinha o Mestre de Avis para sulcar com um golpe do seu montante a face de um arcanjo que eu criara? Que direito tinha para me spremer 0 coracio debaixo dos scus sapatos de ferro? Dava lho 0 ouro que tem despendido? O ouro!... Nao! O Mestre de Avis sabe que o ouro é vil; s6 é nobre ¢ puro o génio do homem. Enganaram no: vassalos houve em Portugal que enganaram seu rei! Este edificio era meu; porque © gerei; porque o alimentei com a substincia da minha alma; porque necessitava de me converter todo nestas pedras, pouco a pouco, e de deixar, morrendo, o meu nome a sussurrar perpetuamente por essas colunas e por baixo dessas arcarias. E roubaram me o filho da minha imaginac&o, dando me uma tencal... Com uma tenca paga se a gloria a imortalidade? Agradeco vos, senhor rei, a mercél... Sois em verdade generoso... mas o nome de mestre Ouguet enredar se 4 no meu ou, talvez, sumira este no brilho da sua fama mentida. © cego tremia de todos os membros: a veeméncia com que falara exaurira Ihe as forcas: os joclhos vergaram lhe, ¢ sentou sc outra vez em cima do fuste. Os dois frades estavam em pé diante dele. — Estais muito perturbado pela paixio, mestre Afonso — disse Frei Lourenco, depois de larga pausa —, por isso menoscabais mestre Ouguet, que cra, talvez, 0 tinico homem que af havia capaz de vos substituir. Quanto a vés, pensaram os do conselho de el rei que deviam propor Ihe vos desse repouso ¢ honrado sustentamento para os cansados dias. Ninguém teve cm mente ofender o mais sabedor ¢ experto arquiteto de Portugal, cuja meméria sera eterna ¢ nunca ofuscada. Obrigado — atalhou o velho — aos conselheiros de el rei pelos bons desejos que no meu prol tém. Sio politicos, almas de lodo, que io compreendem senfio proveitos materiais. Dio me 0 repouso do corpo e assassinam me o da alma! Acerca de mestre Ouguet, nfo serei eu quem negue suas boas manhas € ciéncia de edificar: mas que ponha ele por obra suas tracas, ¢ deixem me a mim dar vulto as minhas. E mais: para entender o pensamento do Mosteiro de Santa Maria da Vitéria, cumpre ser portugués; cumpre ter vivido com a revolugdo que pds no trono o Mestre de Avis ter tumultuado com o povo em frente dos pacos da adiiltera (D. Leonor Teles, mulher de el rei D. Fernando); ter lutado nos muros de Lisboa; ter vencido em Aljubarrota. Nao é este edificio obra de reis, ainda que por um rei me fosse encomendado seu desenho ¢ edificagio, mas nacional, mas popular, mas da gente portuguesa, que disse: nao seremos servos do estrangeiro ¢ que provou seu dito. Mestre Ouguct, escolar na sociedade dos irmios obrciros¢, trabalhou nas de Inglaterra, de Franca e de Alemanha, ¢ ai subiu ao grau de mestre; mas a sua alma nao é aquecida a luz do amor da patria; nem, que 0 fosse, é para ele patria esta terra portuguesa, (C4) Arguitetos sarracenos que se espalbaram pela Grécia, Itiia, Sicilia ¢ outros patves, durante certo tempo: um aviltado mimero de arifices critans, principalmente gregas,juntaram-se com eles ¢ formarant todos uma corporagio, que tina as suas lise estatutos seertos, e cujos membros se reconbeciam por sina. Essa foi a origem da Masonaria,} Por engenho e mios de portugueses devia ser concebido e executado, até seu final remate, o monumento da gléria dos nossos; ¢ eis ai que ele chamou de longes terras oficiais estranhos, ¢ os naturais lé foram mandados adornar de primorosos lavores a igreja de Guimarie Sei que nio seriam nem eles nem eu quem pusesse esse remate; mas n6s deixarfamos sucessores que conservassem puras as tradigées da arte. Perder se 4 tudo; ¢, porventura, tempo virt em que, nesta obra dos séculos, nao haja maos vigorosas que prossigam os lavores que m&os cansadas no puderam levar a cabo. Entio 0 livro de pedra, 0 meu cantico de vit6ria, ficara trancado. Mas Afonso Domingues tem uma pensao de el rei Em uma das casas que ficavam mais proximas, daquelas de que fizemos mengio no principio deste capitulo, ergueu se a adufa de uma jancla no momento cm que o cego proferia as tiltimas palavras, ¢ uma velha, em cuja cabeca alvejava uma toalha muito branca, gritou da janela: — Mestre Afonso, quereis recolher-vos? Est pronta a ceia, e comega a cait a orvalhada, que a tarde vai nevoenta. ‘Vamos lé, vamos lé, Ana Margarida; vinde guiar-me. E Ana Margarida, ama de mestre Afonso Domingues, saiu da porta com a roca ainda na cinta, ¢ o fuso espetado entre o linho € © ourelo que o apertava Chegando ao pé do velho, tocou-lhe com o braco, em que ele se firmou, tomando a erguer-se. — Boas tardes, padre-prior — disse a ama, fazendo sua mesura, seguida de um lamber de dedos ¢ de dois puxdes nas barbas da estriga quase fiada. — Vé na graca do Senhor, filha — respondeu Frei Lourenco, € acrescentou, dirigindo-se ao cego: — Meu irméo, Deus aceita sé ao homem, em desconto da grande divida, a dor calada e sofrida. Resignai-vos na sua divina vontade, —Na dele estou eu resignado ha muito: na dos homens é que nunca me resignarei. E Ana Margarida, que tinha a ceia ainda no lume, foi puxando o cego para a porta de casa — Ai, Afonso Domingues, Afonso Domingues! Vai-se-te apés a vista 0 siso. Aborrecida coisa é a velhice. Nao vos parece, Frei Joane? Isto dizia o prior, voltando-se para o outro frade, que supunha estaria atras dele; mas Frei Joane tinha desaparecido dali manso e manso, Alongando os olhos ao redor de si, Frei Lourengo viu-o em pé sobre uma pedra a alguma distancia. O prior ia a perguntar-lIhe o que fazia ali, quando o reverendo procurador saltou a cosrer, bradando: — Ganhastes, padre-prior; ganhastes!... Bis el-rei que chega. E, com efeito, Frei Lourengo, volvendo os olhos para o cimo de um outeiro, viu uma lustrosa companhia de cavaleiros, que, com grande agodamento, descia para o vale do mosteiro. CAPITULO IL MESTRE OUGUET Uma das inumeraveis questdes que, no nosso entender, eternamente ficario por decidir, é a que versa sobre qual dos dois ditados Voz do povo é vor de Deus ou Voz do povo é voz do Diabo seja o que exprima a verdade. E indubitavel que 0 povo tem uma espécie de presciéncia inata, de instinto divinatétio. Quantas vezes, sem que se saiba como ou porqué, corre voz entre © povo que tal navio saido do porto, tio rico de mercadorias como de esperancas, se perdeu em tal dia ea tal hora em praias estranhas. Passa o tempo, ¢ a voz popular realiza-se com exagio espantosa, Assim de batalhas; assim de mil factos. Quem da es s noticias? Quem as trouxe? Como se derramaram? Mistério é esse que ainda ninguém soube explicar. Foi um anjo? Foi um demé6nio? Foi algum feiticeiro? Mistério. Nao ha, nem havers, talvez, nunca, filsofo que o explique; salvo se tal fenémeno é uma das maravilhas do magnetismo animal. Esse meio ininteligivel de dar solucao a tudo o que se no entende é acaso a tinica via de resolver a diivida. Se o €, os sabios explicarao o que nesse momento ocorria na Ipreja de Santa Maria da Vit6ria. Foi 0 caso: quando a cavalgada de que fizemos mengio no fim do antecedente capitulo vinha descendo a encosta sobranccira a planicie do mosteito, entre o povo que estava dentro da igreja, impaciente ja pela demora do auto, comesou-se a espalhar um sussurro, que cada vez crescia mais. O motivo dele, nao era facil sabé-lo: nenhuma novidade ocorrera; ninguém tinha entrado ou saido. De repente, toda aquela multidao se agitou, remoinhou pela igreja e comecou a borbulhar pelo portal fora, como por bico de funil o Iiquido deitado de alto. Tinham sabido que cl-rei chegava, ¢ todos queriam vé- lo descavalgar, porque D. Joao I, plebeu por heranga materna, nobre por ser filho de D. Pedro, rei eleito por uma revolugio ¢ confirmado por cinquenta vit6rias, era o mais popular, o mais amado e 0 mais acatado de todos os reis da Europa. Vinha montado numa possante mula, , assim mesmo, em outras 08 fidalgos e cavaleiros da sua casa. Trazia vestida sobre o brial uma jérmea de veludo carmesim, monteira preta, ¢ nebri em punho, em maneira de cagada. Chegando & porta do mosteiro, onde 0 esperava jé Frei Lourengo com parte ¢ de um salto ¢, com rosto risonho e a mio no da comunidade, apeou. barrete, agradeceu sua cortesia e aquelas mostras de amor aos populares, que gritavam, apinhados 4 roda dele: «Viva D. Jodo I de Portugal; morram os Castelhanos!y, grito absurdo, mas semelhante aos vivas de todos os tempos; porque 0 povo, bem como o tigre, mistura sempre com o rugido de amor 0 bramido que revela a sua indole sanguinsria. Por baixo daquelas soberbas arcadas desapareceu brevemente el-rei da vista da multidao, que voltou a sumir-se no templo para ver 0 auto, que nao podia tardar. honrasse — Muito reccoso estava de que a vossa real senhoria nos nosso auto; porque o Sol nao tarda a sumir-se no poente — dizia Frei Lourengo a el-rei, a cujo lado ia para o guiar ao seu aposento, Bofé, muito devoto padre-prior, que, por pouco, estive a ponto de ter que levar aos vossos pés mais uma mentira, com os outros pecados, que me nio falecem, se amanhi me quisesse confessar a0 meu antigo confessor — disse-Ihe el-rei, sorrindo-se — E certo estou de que, entre todos os pecados de que terieis de vos acusar, este ndo fora o menos grave, ¢ de que eu a muito custo absolveria vossa mereé — retrucou o prior, que tinha aprendido ainda mais depressa as manhas cortesis no paco, do que a teologia no noviciado da sua Ordem. — Mas, para onde me guiais, reverend simo prior? — disse el-rei, parando antes de subir uma escada, para a qual Frei Lourengo o encaminhava. Ao vosso aposento, real senhor; porque tomeis alguma refeigdo e repouseis um pouco do trabalho do caminho. — Nao foi grande o feito, para tomar repouso — acudiu el-rei —, que de Santarém aqui é uma corrida de cavalo; muito mais para quem, em vez de cota de malha, arnés ¢ bracais, traz vestidos de seda. Despi-los-ei bem depressa, jf que el-rei de Castela quer jogar mais langadas, ¢ no vieram a conclusio de tréguas o Mestre de Santiago com 0 Condestével. Mas vamos, meu doutissimo padre; mostrai-me a Casa do Capitulo, a que mestre Ouguet acabou de pér seu fecho e remate, Onde esta ele? Quero agradecer-Ihe a boa diligéncia. — Beijo-vos as mos pela mercé — disse mestre Ouguet, que, sabendo da chegada de el-rei, e certo de que ele desejaria ver aquela grande obra, tinha corrido ao mosteito, ¢ estava entre os da comitiva. — Se quereis ver a Casa do Capitulo, vamos para o lado da crasta. Dizendo isto, sem ceriménia tomou a dianteira ¢ encaminhou-se ao longo de um dos cobertos do claustro. David Ouguet era um irlandé: , homem mediano em quase tudo; em idade, em estatura, em capacidade e em gordura, salvo na barriga, cujos tegumentos tinham sofrido grande distenséo em consequéncia da dura vida que a tirania do filho de Erin Ihe fazia padecer havia bem vinte anos. Desde muito novo que comecara a produzir grande impressio no seu espirito a invetiva do apéstolo contra os escravos do préprio ventre, ¢, para evitar essa condendvel fraqueza, resolvera trazé-lo sempre sopeado. Nao Ihe dava tréguas; se em Inglaterra o fizera muitos anos vergar sob 0 peso de dez atmosferas de cerveja, em Portugal submetia-o ao mais fadigoso trabalho de canjirio permanente. Mortificava-o assim, para que nfo lhe acudissem soberbas ¢ veleidades de senhorio ¢ dominacao. De resto, David Ouguct cra bom homem, excelente homem: nao fazia aos seus semelhantes senio o mal absolutamente indispensavel a0 proprio interesse; nunca matara ninguém, ¢ pagava com pontualidade exemplar ao alfaiate ¢ 20 merccciro. Prudente, positivo, e pritico do mundo, no o havia mais: seria capaz de se empoleirar sobre © cadaver do seu pai para tocar a meta de qualquer designio ambicioso. Com trés licdes de frases ocas, dava pano para se engenharem dele dois grandes homens de estado. Tendo vindo a Portugal como um dos cavaleiros do duque de Lencastre, procurou obter e alcangou a protegio da rainha D. Filipa, que, havendo Afonso Domingues cegado, o fez nomear mestre das obras do Mosteiro da Batalha, mostrando ele por documentos auténticos ter lade secteta dos obteiros na sua juventude subido ao grau de mestre na soci edificadores. Esta é, em breve resumo, a histéria de David Ouguet, tirada de uma velha crénica, que, em tempos antigos, esteve em Alcobaga encadernada num volume juntamente com os traslados auténticos das Cortes de Lamego, do Juramento de Afonso Henriques sobre a aparigio de Cristo, da Carta de feudo raval, das Histérias de Laimundo e Beroso, e mais alguns papéis de igual veracidade € importincia que, por pirraga As nossas glérias, provavelmente os Castelhanos nos levaram durante a dominacao dos Filipes. O lango da crasta, em frente ao coberto por onde ia el-tei, estava ainda por acabar. Apenas D. Joo I entrou naquele magnifico recinto, olhou para lé e, voltando-se para mestre Ouguet, disse: — Parcce-me que no vao tio aprimorados os lavores daquelas arcarias como os destas. Que me dizeis, mestre Ouguet? Seguiu-se a risca nesta parte — disse o arquiteto — o desenho geral do edificio, feito por mestre Afonso Domingues; porque seria grave erro destruir a harmonia desta pega: mas se a vossa mercé mo permite, antes de entrardes no Capitulo tenho alguma coisa que vos dizer acerca do que ides presenciar. — Falai desassombradamente — respondeu el-rei —, que eu vos escuto. — Tomei a ousadia — prosseguiu mestre Ouguet — de seguir outro desenho no fechar da imensa abébada que cobre o Capitulo. O que achei na planta geral contrastava as regras da arte que aprendi com os melhores mestres de pedraria. Era, até, impossfvel que se fizesse uma abdbada achatada, como na primitiva traca se delineou: eu, pelo menos, assim o julgo. consultastes o arquiteto Afonso Domingues, antes de fazer essa mudanga no que ele havia tracado? — interrompeu el-rei Por escusado o tive — replicon David Ouguet. — Cego, e por isso inabilitado para levar a cabo a edificacio, porfiaria que 0 seu desenho se pode executar, visto que hoje ninguém o obtiga a prova-lo por obras. Sobra-the corgulho: orgulho de imaginador engenhoso, Mas que vale isso sem a ciéncia, como dizia o veneravel mestre Vilhelmo de Wykeham? Menos engenho e mais estudo, eis do que precisamos. Dizendo isto, 0 arquiteto metera ambas as mios no cinto, estendera a perna direita excessivamente empertigada e, com a cara ereta, volvera os olhos solene ¢ lentamente para os homens presentes. Mestre Ouguet — acudiu el-rei, com aspeto severo —, lembrai-vos de que Afonso Domingues ¢ 0 maior arquiteto portugués. Nao entendo das vossas distingdes de ciéncia e de engenho: sei sé que o desenho de Santa Maria da Vitéria causa assombro aos vossos préprios naturais, que se gabam de ter no seu pais os mais afamados edificios do Mundo: ¢ esse mestre Afonso, de quem v falais com pouco respeito, foi o primeiro arquiteto da obra que ao vosso cargo esta hoje. — Vossa mercé me perdoe — disse 0 mestre Ouguet, adocicando o tom orgulhoso com que falara, — Longe de mim menoscabar mestre Domingues: ninguém o venera mais do que eu; mas queria dar a raz 10 do que fiz, seguindo as regras do muito excelente mestre Vilhelmo de Wykeham, a quem devo o pouco que sei, ¢ cuja obra da Catedral de Winchestria tamanho rufdo tem feito no Mundo. Com este didlogo chegou aquela comitiva ao portal que dava para a Casa do Capitulo, Frei Lourengo Lampreia, como dono da casa, correu o ferrolho com certo ar de autoridade, ¢ encostado ao umbral cortejou a cl-rei no momento de entrar e aos mais fidalgos ¢ cavaleitos que o acompanhavam. Mestre Ouguet, como pessoa também principalissima naquele lugar, colocou-se junto do umbral frontciro, repetindo com aspeto sobrancciro-risonho as mesuras do muito devoto padre-prior. Quando el-rei entrou dentro daquela espantosa casa, apenas através da grande janela que a ilumina entrava uma luz frouxa, porque © Sol estava no fim da sua carreira, ¢ 0 teto profundo mal se divisava sem se afirmar muito a vista, Mestre Ouguet ficara & porta, mas Frei Lourengo tinha entrado. —Rer endo prior — disse el-rei, voltando-se pata Frei Lourenco —, vim tarde para gozar desta maravilhosa vista: vamos a0 auto da adoragio, ¢ amanhi voltaremos aqui a horas de sol. E seguiu para o lada da sacristia, cuja porta lhe foi abrir o prior. Mestre Ouguet entrou na Casa do Capitulo, quando j4 os tltimos cavaleiros do séquito real iam saindo pelo lado oposto, caminho da igreja. Com as mos metidas no cinto de couro preto que trazia, e o passo mesurado, o arquiteto caminhou até o meio daquela desconforme quadra. O som dos passos dos cavaleiros tinha-se desvanecido, ¢ mestre Ouguet dizia consigo, olhando para a porta por onde cles tinham passado: — Pobres ignorantes! Que setia o vosso Portugal sem estrangeiros, senfio um pafs séfaro ¢ inculto? Sois vés, homens brigosos, capazes dos primores das artes ou, sequer, de entendé-los2... LA vao, IA vio os frades celebrar um auto! N: 10 serei cu que assista a cle: eu que vi os mistérios de Covéntria ¢ de Widkirk! Miseraveis selvagens, antes de tentardes representar mistérios, fora s de melhor que mandisscis vir alguns irmaos da Sociedade dos Escriva Pardquia de Londres(*), que vos ensinassem os yerdadeitos mornos, ademanes ¢ trejeitos usados em semelhantes autos. {(*) Pelas erénicas de Stow vé-se que, no principio do século XV, os mistrios eram representades em Londres pelos esrivies da paréquia, incorporadas na sociedade por Henrique III, em 1409.) Mestre Ouguet estava embebido neste mudo soliléquio em louvor da nagio que The dava de comer, ¢, o que deveria pesar-the ainda mais na consciéncia, da naco que Ihe dava de beber, quando, erguendo casualmente os olhos para a macica abbada que sobre ele se arqueava, fez um gesto de indizivel horror e, como doido, correu a bom correr pela crasta solitaria, apertando a cabeca entre as mios, ¢ gritando a espagos: — Oh, mal-aventurado de mim! CAPITULO III O AUTO Junto a uma das colunas da Igreja de Santa Maria da Vitoria estava levantado um estrado, sobre o qual se via uma grande e macica cadeira de espaldas, feita de castanho € lavrada de curiosos bestides ¢ lavores. Era este 0 lugar onde el-rei devia assistir ao auto da adoracio dos reis. No mesmo estrado havia varios sentos rasos, para neles se sentarem os fidalgos ¢ cavaleiros que o acompanhavam. em frente do estrado e colocado ao pé do arco da Capela do Fundador, corria para um e outro lado da parede um devoto presépio, meio erguido do cho ¢ representando serranias agrestes, a0 sopé das quais obre a tradicional estava armada uma espécie de choca, onde, manjedoura, se via reclinado o Menino Jesus e, de joelhos junto dele, a Virgem e S. José, acompanhados de varios anjos, em acto de adoracio. Diante da cabana € no mesmo nivel, corria um largo € grosseiro cadafalso de muitas tabuas, pata o qual, por um dos lados, davam serventia duas grossas compridas pranchas de pinho, por onde deviam subir as personagens do auto. Tanto que el-rei saiu da porta do cruzeiro que dé para a sactistia, encaminhou-se pela igreja abaixo ¢ veio sentar-se na cadeira de espaldas, conduzido por Frei Lourengo, que, com todos os modos de homem cortesio, ofereceu os sentos rasos aos restantes cavaleiros ¢ fidalgos. Pela mesma porta da sacristia sairam logo as primeiras figuras do auto, quais, descendo ao longo da nave, subiram ao cadafalso pelas pranchas de que fizemos mengio. Estas primeiras figuras eram seis, formando uma espécie de prélogo 20 auto. Trés que vinham adiante representavam a Fé, a Esperanga ¢ a Caridade; apés elas, vinham a Idolatria, o Diabo e a Soberba; todas com as suas insignias muito expressivas € a ponto; mas o que enlevava os olhos da grande multidio dos espectadores era © Diabo, vestido de peles de cabra, com um rabo que Ihe arrastava pelo tablado ¢ o seu forcado na mao, muito vistoso ¢ bem-posto. Feitas as vénias a cl-rei, a Idolatria comegou seu arrazoado contra a F queixando-se de que ela a pretendia esbulhar da antiga po: receber cultos de todo o género humano, ao que a Fé acudia com dizer que, ab initio, estava apontado o dia em que o império dos {dolos devia acabar, € que cla Fé nao era culpada de ter chegado tio asinha esse dia. Entio 0 Diabo vinha, lamentando- e de que a Esperanca comecasse de entrar nos coracées dos homens; que ele Diabo tinha jus antiquissimo de desesperar toda a gente; que se dava ao demo por ver as perrarias que a Esperanga lhe fazia; e, com isto, careteava, com tais momos e ttejeitos, que o povo fia a rebentar, 0 mais devotamente que era possfvel. Ainda que o Diabo fizesse de truao da festa, nem por isso a sua contendora, a Esperanea, dava descargo de si com menos compostura do que a tio honrada virtude cumpria, dizendo que cla obedecia ao Senhor de todas as coisas, e que este, vendo e considerando os grandes desvairos que pelo mundo iam, ¢ como os homens se arremessavam desacordadamente no Inferno, a mandara para lhes apontat o direito caminho do Céu; por aqui seguia com razdes muito devotas ¢ discretas, que moveriam a devotissimas légrimas os ouvintes, se a devoto riso os nao movesse 0 Diabo com os scus trejeitos ¢ esgares, como, com bastante agudeza, reflete o autor da antiga crénica de que fielmente vamos transcrevendo esta veridica histéria. A Soberba, que estava impando, ouvidas as razdes da Esperanga, travou dela muito rijo ¢, com voz torvada € rosto aceso, comegou de bradar que esta dona cra sandia, porque entendera enganar ‘os homens com vaidades de incertos futuros ¢ sustenté-los com fumo; que pretendia, contra toda a ordem de boa razio, que a gente vil tivesse igual quinhao no Céu com os senhores ¢ cavaleiros, o que era descomunal ousadia ¢ fora da geral opiniao ¢ direito, indo por aqui discursando com remoques muito orgulhosos, como a Soberba que era. Nao sofreu, porém, o animo da Caridade tio descomposto razoar da sua figadal inimiga, ¢ Iho atalhou com tomar a mio naquele ponto ¢ notar que os filhos de Adio eram todos uns aos olhos do Todo-Poderoso; que a Soberba inventara as vas distingdes entre os homens, € que & vida eternal mais amorosamente eram os pequenos ¢€ humildosos chamados, do que os potentes, 0 que provou claramente & sua contraria com bastos textos das santas escrituras, de que a Soberba ficou muito corrida, por nao ter contra tio grande autoridade resposta cabal. E acabado o dizer da Caridade, um anjo subiu ao cadafalso, pata dar sua sentenea, que foi mandar recolher ao abismo a Idolatria, o Diabo ¢ a Soberba, e anunciar as trés virtudes que as ia elevar ao Céu, onde reinariam em gloria perduravel. Bi 40 0 Diabo, fazendo horribilissimos biocos, pegou pela mao As suas companheiras ¢ fugiu pela igreja fora, com grandes apupos ¢ doestos dos espectadores, Guiando as trés virtudes, 0 anjo (por uma daquclas liberdades cénicas que ainda hoje se admitem, quando, nas vistas de marinha, o ator que vem embarcado desce dois ou trés degraus das ondas de papelio para a terra de soalho), em vez de subir ao Céu, como anunciara, desceu pelas pranchas que davam para o pavimento da igrcja, c, caminhando ao longo da nave, se recolheu a sacristia, acompanhado da Fé, Esperanga e Caridade, tio vitoriadas pelos espectadores, como apupados tinham sido o Diabo e as suas infernais companheiras. Ainda bem nao cram recolhidas estas figuras, quando, pela mesma porta do cruzeito, sairam os trés reis mage s, ricamente vestidos ao antigo, com roupas talares de fina tela, mantos reais, ¢ coroas na cabeca. Adiante vinha Baltasar, homem jé velho, mas bem-disposto da sua pessoa, com aspeto grave € autorizado ¢ com umas barbas, posto que brancas, bem povoadas; logo apés cle, vinha o rei Belchior, ¢ a este seguia-se Gaspar. Traziam todos suas bocetas, em que eram guardados os preciosos dons que ao tecém-nascido vinham de longes terras ofertar. Subindo ao cadafalso, disseram como uma cstrela os guiara até Jerusalém © como desta cidade, depois de muito trabalhado ¢ duvidoso caminho, tinham acertado em vir a Belém e, com grande alegria, cncontravam af 0 presepe, para fazer scu ofertério, 0 que, em verdade, era coisa muito piedosa de ouvir. O rei Baltasar, como mais velho e sisudo, foi o primeiro que ajoclhou junto do presepe ¢, com voz muito entoada ¢ depondo diante © Menino os seus presentes, disse: Santo filbo de David, Divinal Salvador da triste raga Humanal, Que descestes lé do sento Celestial, Vis da gloria imperador Eternal, Aucitai este ofertorio Nao real, Pobre si. TF. quanto posso: Nao hei al O que fora compridoira De auto tal Bem o sei. Andei mas vias, pelo meu mal; Que deg dias chorei tendas De arraial Nas soidies fundas de Arabia: muito fatal. Os meus camelos ha tisnado Sol mortal; E um, de vento do desert, Vendaval. O presente que af vedes Pouco val; E somente algum incenso Oriental; Que 0 tesonro que en trazia, muito cabal Soterrou-mo a tempestade No areal. E com isto, o vencravel rei Baltasar, depois de fazer sua oragio em voz baixa, ergueu-se, ¢ o rei Belchior, ajoelhando e depondo a urna que trazia nas mios perante o presepe, disse: Vindo son lé do Cataio A adorar-vos, alto infante, Redentor: Nao me pis na alma desmaio Ser de terra tio distante Rei, senbor! E bem torva a minha face Minhas méos tingidas sio De negrura; Mas na terra onde 0 Sol nasce Mais se cobre 0 coragio De tristura; Porque 0 torpe Mafamede A sua crenga nmito sandia ‘Mandon la, E nao ha quem dela arrede Essa gente, que aperfia Em ser mé. Real tronco de Jessé, muito fermoso, se en pudera, Vos kevara, E, convosco, a vossa fé Os incréus en convertera, E os salvara. Ora quero ver se peito Sao José, que € vosso padre Um sussurro, que comecara no momento em que o rei preto ajoelhou e que mal deixara ouvir a precedente loa (obra muito prima de certo leigo, afamado jogral daquele tempo), cresceu neste momento a tal ponto, que o corista que fazia o papel de Belchior nao péde continuar, com grande dissabor do poeta, que via murchar a coroa de louros que neste auto esperava obter. O povo agitava-se, ¢ do meio dele safam gritos descompostos, que aumentavam o tumulto. El-tei tinha-se erguido, ¢ juntamente os restantes cavaleiros e fidalgos: todos indagavam a origem do motim; mas nfo havia acertar com cla. Enfim, um homem, rompendo por entre a multidio, sem touca na cabeca, cabelos desgrenhados, boca torcida e coberta de escuma, olhos esgazeados, saltou para dentro da teia, que fazia um claro em roda do tablado. Apenas se viu dentro daquele recinto, ficou imével, com os bracos estendidos para o tcto, as palmas das mios voltadas para cima, ¢ a cabega encolhida entre os ombros, como quem, cheio de horror, via sobre si desabar aquelas altissimas macigas arcarias. Mestre Ouguet! — exclamou el-rei espantado. Mestre Ouguet! — gritou Frei Lourengo, com todos os sinais de assombro. — Mestre Ouguet! — repetiram os cavaleiros ¢ fidalgos, para também. dizerem alguma coisa. — Quem fala aqui no meu nome? — rosnou David Ouguet, com voz comprimida e sepulcral. Malvados! Querem assassinar-me?! Querem arrojar sobre mim esse montio de pedras, como se eu fora um cio judeu, que merecesse ser apedrejado?! Oh meu Deus, salvai a minha alma! — E depois de breve siléncio, em que pareceu tomar folego: — Nao vos chegueis bradou ele, — Nao vedes essas fendas, profundas como o caminho do Inferno? Sao escuras: mas, através delas, Id enxergo eu o luar! Vés nfo, porque vossos olhos estiio cegos... porque 0 vosso bom nome niio se escoa por Cegos? Nao vésl... mas ele! Ele é que se ri na sua orgulhosa soberbal Vede como escancara aqucla boca hedionda; como revolve, debaixo das pilpebras cobertas de vermelhidao, aqueles olhos embaciados!... Maldito velho, foge diante de mim!... Maldito, maldito!... Curvada ja no centro... senti-a escaligar € ranger... Estavas tu sentado em cima dela? Feiticeirol... Anda, que eu bem Nao! ougo as tuas gargalhadas!... Nao ha um raio que te confunda?, Dizendo isto, mestre Ouguet cobriu a cara com as mios ¢ ficou outra vez imével. El-sci, os cavaleiros, os padres mais dignos que estavam de roda do estrado real, os reis magos, os populares, todos olhavam pasmados para o arquiteto, que assim interrompera a solenidade do auto. Siléncio profundo sucedera a0 vairado excitata. Milhares de olhos ruido que a aparicio daquele homem de estavam fitos nesse vulto, que semelhava uma larva de condenado saida das profundezas para turbar a festa religiosa. Por mais de um cérebro passou este pensamento; em mais de uma cabeca os cabelos se ericaram de horror; mas, dos que conheciam mestre Ouguet, nenhum duvidou de que fosse cle em corpo ¢ alma, Que proveito tiraria o deménio de tomar a figura do arquiteto para fazer uma das suas irreverentes diabruras? S6 uma suposi¢ao havia que nio era inteiramente desatrazoada: David Ouguet podia estar possesso, em ¢ omitido na tiv consequéncia de algum grave pecado; pecado que, talve, iltima confissio, que fizera na véspera de Natal. Isto era possivel ¢, até, natural; que nfo vivia ele a mais justificada vida. Supor que endoidecera parecia grande despropésito; porque nenhum motivo havia para tal Ihe acontecer, quando merecera os gabos de cl-rei ¢ de todos, por ter levado a cabo a grandiosa obra que Ihe estava encomendada. Estes ¢ outros raciocinios, hoje ridiculos, mas, segundo as ideias daquela época, bem fundados ¢ correntes, fazia o reverendo padre-procurador Frei Joane, que tinha vindo assistir a0 auto ¢ estava em pé atras do estrado, perto de Frei Lourengo Lampreia. Revolvendo tais pensamentos, no meio daquele siléncio ansioso em que todos estavam, nao péde ter-se que, pé ante pé, se nfo chegasse ao prior € Ihos comunicasse em voz baixa, a0 ouvido. — Nao vou fora disso — respondeu o prior, que, enquanto 0 outro frade Ihe falara, estivera dando a cabeca, em sinal de aprovacio. — O olhar espantado, 0 escumar, 0 estorcer os membros e o falar nao sei de que feiticeiro, tudo me induz a crer que 0 deménio se chantou naquele miserével corpo, como vés aventais. Se assim é, pouco juizo mostrou desta vez 0 diabo em vir com os seus atalhar 0 muito devoto auto da adoracio, Examinemos se assim é, ¢ eu vos darei bem castigado. Dizendo isto, Frei Lourenco chegou-se a el-rei ¢ disse-the que quer que fosse. Ele escutou-o atentamente ¢, tanto que o prior acabou, sentou-se outra ve z na sua cadeira de espaldas e fez sinal com a mio aos fidalgos ¢ cavaleitos pata que também se sentassem. Frei Lourenco, acompanhado mais alguns frades, subiu pela igreja acima e entrou na sactistia. Todos ficaram esperando, silenciosos ¢ iméveis como mestre Ouguet, o desfecho desta cena, que se encaixava no meio das cenas do auto. Tinham passado obra de trés credos, quando, saindo outra vez da porta da sacristia, Frei Lourengo voltou pela igreja abaixo, revestido com as vestes sacerdotais, chegou A teia, abriu-a ¢ encaminhou-se para mestre Ouguet. Depois, olhando de roda e fazendo um aceno de autotidade, disse: — Ajoelhai, cristios, e orai ao Padre Eterno por este nosso itmio, tomado de espirito imundo. A estas palavras, rei, cavaleiros, frades, povo, tudo se pds de joelhos. E ouvia-se ao longo das naves o sussurro das oracées. $6 mestre Ouguet ficou sem se bulit, com o rosto metido entre as maos. O prior langou a estola & roda do pescoco do possesso € queria atar os trés nds do ritual; mas o paciente deu um estremecio ¢, tirando as mios da cara, fez um gesto de horror e gritou: — Frade abominavel, também tu és conluiado com o cego? Jo ha dividal — disse por entre os dentes o prior. — Mestre Ouguet esta endemoninhado. Tirando entio da manga um pergaminho, em que estavam escritas varias coisas de doutrina, pé-lo sobre a cabega do mestre, fazendo sobre cle trés ‘so sinal-da-cruz. David Ouguct soltou entio uma destas risadas nervosas que horrorizam ¢ que tao frequentes so, quando o padecimento moral sobrepuja as forcas da natureza. Cio tinhoso — bradou Frei Lourengo —, espitito das trevas, enganador, maldito, luxurioso, insipiente, ébrio, serpe, vibora, vil ¢ refece deménio; enfim, castelhano(®). Em nome do Criador ¢ senhor de todas as coisas, te mando que repitas o credo ou saias deste miseravel corpo. [(*) O inguisidor Sprenger, no livro inttulado Malleus Mallfcarum, recomenda aos exorcistas gue, antes de tudo, descomponham e injuriem quanto puderem as passessos, advertinda que na so propriamente estes que recebem as afrontas, mas sim o Diabo que tim no corpo. A conveniéncia de tais doestos é que para 0 Deminio, pai da Soberba, née pode haver maior pirraga do que ser descompesto na sua card, sem que ele se possa desagravar. Veja-se lira citado,edigio de Lido de 1604 — Tomo 2.0, prdg. 83. Assim, o prior devia guardar para o fiom daguele rl de injtrias a que, no ardor do fanatismo politico da época, se reputava «2 méecima afronta.} Mestre Ouguet ficou imével € calado. — Nio cedes?! — prosseguiu o prior. — Recorrerei ao sétimo, ao mais terrivel exorcismo. Veremos se poderis ao teu salvo escarnecer das criaturas feitas 4 imagem e semelhanga de Deus Depois de varias ceriménias ¢ oracées, Frei Lourengo chegou-se ao pobre irlandés e comecou a repetir o conjuro, fazendo-Ihe uma cruz sobre a testa, a cada uma das seguintes palavras, que proferia lentamente: Hel Heloym Heloa Sabaoth Helyon Esereheye Adonay — Iehova — Ya — ‘Thetagrammaton — Saday — Messias — Hagios — Ischiros — Otheos — Athanatos — Sother — Emanuel — Agla... — Jesus! — bradou a uma voz toda a gente que estava na igreja. — Diabo! — gritou mestre Ouguet; € caiu no chio como morto. E houve um momento de angiistia ¢ terror, em que todos os coracées deixaram de bater, ¢ em que todos os olhos, bracos ¢ pernas ficaram fixos, como se fossem de bronze. Um ruido, semelhante ao de cem bombardas que se tivessem disparado dentro do mosteiro ¢ que soara do lado da sacristia, tinha arrancado aquele grito de mil bocas e convertido em estatuas essa multidao de povo. Hi siruacées tao violentas que, se durassem, a morte se hes seguiria em breve; mas a providente Natureza parece restaurar com dobrada energia o vigor fisico ¢ espiritual do homem depois destes abalos espantosos. Entio, melhor que nunca, ele sente em si que, posto que despenhado, nao perdeu a sublimidade da sua origem divina. A reagio segue a acio; e quanto mais timido o individuo se mostrou, mais viva é a consciéncia da propria forca, que, depois disso, renasce com o destemor ¢ ousadia. Foi 0 que sucedeu a D. Joao I, aos cavaleiros do seu séquito e a0 povo que estava na Tgreja de Santa Maria, passado aquele instante de sobrenatural pavor. A terribilidade da ceriménia que Frei Lourengo executava, 0 ruido inesperado que rompera o exorcismo, o grito blasfemo do arquiteto, no momento de cair por terra, o lugar, a hora, eram coisas que, reunidas, fariam pedir confissio a uma grande manada de enciclopedistas e que, por isso, nao € de admirar fizessem impressio vivissima em homens de um século, nfo sé crente, mas também supersticioso. Todavia, 0 animo indomivel do Mestre de Avis brevemente fez cobrar alento a todos os que af estavam. — F, em verdade, descomunal maravilha o que temos visto e ouvido — disse ele com voz firme, voltando-se para os que 0 rodeavam —; mas cumpre indagar donde procede o ruido que veio interromper 0 muito devoto padre- prior no exercicio do seu ministério tremendo. Soou esse medonho estampido do lado do claustro; vamos examinar o que seja: se diabélico, estamos na casa de Deus, ea Cruz € nosso amparo; se natural, que haveré no mundo capaz de por espanto em cavaleiros portugueses? Dizendo isto, cl-rei desceu do estrado ¢ encaminhou-se para a sactistia. Os cavaleiros da comitiva, os frades, os trés reis magos (que ainda estavam em pé sobre o tablado) ¢ grande parte do povo tomaram o mesmo caminho El-tei ia adiante, © o prior cra 0 que mais de perto o seguia. Cruzaram 0 arco gético que dava comunicacio para a sacristia: af tudo estava em siléncio; uma limpada que pendia do teto dava luz frouxa ¢ morti¢a, ¢, a esta luz incerta e baga, encaminharam-se para a porta do Capitulo. Ao chegar a ela, todos recuaram de espanto, ¢ um segundo grito soou ¢ veio morrer sussurrando pelas naves da igreja quase deserta: — Jesus! As portas tinham estoirado nos seus grossissimos gonzos, ¢ muito cimento solto e pedras quebradas tinham rolado pelo portal fora, entulhando-the quase um tergo da altura. Olhando para o interior daquela imensa quadra, nio se viam senfio enormes fragmentos de cantos lavrados, de lacarias, de cornijas, de voltas ¢ de relevos: a Lua, que passava tranquila nos céus, refletia o seu claro pilido sobre este montio de ruinas, semelhantes aos monumentos irregulares de um cemitério cristo; ¢, por cima daquele temeroso siléncio, passava o frio leste da noite ¢ vinha bater nas faces turbadas dos que, apinhados na sacristia, contemplavam este lastimoso espeticulo. Dos olhos de el-rei ¢ de Frei Lourengo cairam algumas lagrimas, que eles debalde tentavam reprimir. A abébada do Capitulo, acabada havia vinte ¢ quatro horas, tinha desabado em terra! CAPITULO IV UM REI CAVALEIRO Em uma quadra das que serviam de aposentos reais no Mosteiro da Batalha, a roda de um bufete de carvalho de lavor antigo, cujos pés, torneados em linha espiral, eram travados por uma espécie de banco, que pelos topos se embebia neles, estavam sentadas varias personagens daquelas com quem o leitor j& tratou nos antecedentes capitulos. Eram estas D. Joao I, Frei Lourengo Lampreia € 0 procurador Frei Joane, El-rei estava 4 cabeceira da mesa, € no topo fronteiro o prior, tendo & sua esquerda Frei Joane. Além destes, outros individuos ai estavam, que as pessoas lidas nas crdnicas deste reino também conheceto: tais eram os doutores Joao das Regras ¢ Martim de Océm, do conselho de el-rei, cavaleiros muito graves ¢ autorizados, ¢, afora eles, mais alguns fidalgos que D. Joao I particularmente estimavam. Atrés da cadeira de cl-rei, um pajem esperava, em pé, as ordens do seu real senhor. O quadrante do terrado contiguo apontava meio-dia. Em cima do bufete estava estendido um grande rolo de pergaminho, no qual todos os olhos dos homens presentes se fitavam: era a traga ou desenho do mosteiro que delineara mestre Afonso Domingues, onde, além dos prospetos gerais do edificio, iluminados primorosamente, se viam todos os cortes e algados de cada uma das partes dessa complicada ¢ maravilhosa fabrica. El-rei tinha a mo estendida ¢ os dedos sobre o risco da casa capitular, a0 passo que falava com o prior: — Parece impossivel isso; porque natural desejo ¢ de todos os homens alcancarem repouso € pio na velhice, € nfo vejo raz3o para mestre Afonso se doer da mercé que Ihe fiz. — Pois a conversa que vos relatci, tive-a com cle ainda ontem, pouco antes da vos a mercé aqui chegar. — E como vai David Ouguet? — perguntou el-rei. — Com grande melhoria — respondeu o prior. — Dormiu bom espaco ¢ acordou no seu juizo. Contou-me que, entrando ontem apés nés na Casa do Capitulo ¢ afirmando a vista na abébada, conhecera que tinha gemido ¢ estava a ponto de desabar; que sentira apertar-se-lhe 0 coragio ¢ que, com a sua aflicio, correra pela crasta fora, como doido; que no céu se Ihe afigurava um relampaguear incessante e medonho; que via... nem ele sabe o que via, o pobre homem. Depois disso, diz que perdera o tino, € de nada mais se recorda. — Nem dos exorcismos? — perguntou em meia voz Martim de Océm, com um sorriso malicioso. — Nem dos ex ‘orcismos — retrucou Frei Lourenco no mesmo tom, mas subindo-Ihe ao rosto a vermelhidao da célera. — A propésito, doutor. Dizem- me que Ancquim() esta morto, ¢ que cl-rci proveu o cargo num dos do scu conselho. Seria verdadeira esta mercé singular? ((*)Anequim era 0 bobo do paco no tempo de D. Fernando, a quem sobrevives E 0 frade media o letrado de alto a baixo, com os olhos itritados. Este preparava-se para vibrar ao prior uma nova injliria indireta, naquele jogo de alusdes que era as delicias do tempo, quando el-rei acenou ao pajem, dizendo- Ihe: — Alvaro Vaz de Almada, ide depressa 8 morada de Afonso Domingues, zei isso com tento: dizei-lhe que eu quero falar-Ihe guiai-o para aqui, lembrai-vos de que ele é um antigo cavaleiro, que militou com 0 vosso muito esforcado pai O pajem saiu a cumprir o mandado de el-rei. — Dizeis ve de Océm — que talvez Afonso Domingues se enganasse em supor que era aque cle tragou para 0 possivel fazer uma abébada tio pouco erguida, como mais Capitulo. Nao creio eu que tio entendido arquiteto assim se enganas inclinado estou a persuadir-me de que o lastimoso sucesso de ontem a noite procedesse da grave falta cometida por mestre Ouguet nesta edificacio. — E que falta foi essa, se a vossa mercé apraz dizer-mo? — replicou Joao das Regras. — A de nio seguir de todo 0 ponto o desenho de mestre Afonso — disse el-rei E se a execugao da sua traga fosse impossivel? — acudiu o doutor. — Impossivel?! — atalhou el-rei. — E nao contava ele com leva-la a efeito, se Deus 0 nao tolhesse dos olhos? — E é disso que mais se déi mestre Afonso — interrompeu o prior. — A sua grande canseira é que ninguém sabera continuar a edificagio do mosteiro ou, como ele diz, prosseguir a escritura do seu livro de pedra, porque ninguém € capaz de entender 0 pensamento que o dirigiu na concecio dele. — Roncatias ¢ feros sio esses préprios de quem foi homem de armas de Nuno Alvares — disse o chanceler Joio das Regras. — Todos os da sua bandeira sio como ele. Porque sabem jogar boas lancadas, tém-se em conta de principes dos discretos; ¢ 0 cego no se esqueceu ainda de que comeu da caldeira do Condestavel Joao das Regras, émulo de Nuno Alvares, ndo perdeu esta oportunidade de Ihe por pecha; mas D. Jodo 1, que conhecia serem dois homens as pedras angulares do seu trono, escutava-os sempre com respeito, salvo quando falavam um do outro; posto que o Condestavel, homem mais de obras que de palavras, raras vezes menoscabava os méritos do chanccler, contentando-se com langar na balanca em que Joo das Regras mostrava 0 grande peso da sua pena o montante com que ele Nuno Alvares tinha, em cem combates, salvado a patria do dominio estranho ¢ a cabeca do chanceler das mios do carrasco, de que nio o livratiam nem os graus de doutor de Bolonha, nem os textos das leis romanas — Deixai li o Condestavel, que nao vem ao intento — disse el-rei — 0 que me importa € ouvir mestre Afonso sobre este caso. Quisera antes perder um recontro com castelhanos do que pensar que o Capitulo de Santa Maria da Vitdria ficard em ruinas. Mestre Ouguet com a sua arte deixou-lhe vir ao chio a abébada: se Afonso Domingues for capaz de a tornar a erguer € deixé-la firme, concluirei daf que vale mais 0 cego que o limpo de vista: € digo-vos que © restituirei ao antigo cargo, ainda que esteja, além de cego, coxo € moueo. Neste momento entrava o velho arquiteto, agarrado ao brago de Alvaro Vaz de Almada, que © veio guiando para o topo da desmesurada banca de carvalho, a oda da qual se travara o didlogo que acima transcrevemos — Dom donzel, onde € que esta el-rei? — dizia Afonso Domingues ao pajem, caminhando com passos incertos ao longo do vasto aposento. D. Joao I, que ouvira a pergunta, respondeu em vez do pajem: — Agora nenhum rei esta aqui, mas sim o Mestre de Avis, 0 vosso antigo capitio, nobre cavaleiro de Aljubarrota. — Beijo-vos as mio’ nhor rei, por vos lembrardes ainda de um velho homem de armas que para nada presta hoje. Vede o que de mim mandais; porque, da vossa ordem, aqui me trouxe este bom donzel. Queria ver-vos € falar-vos; que do coragio vos estimo, honrado ¢ sabedor atquiteto do Mosteito de Santa Mari: — Arquiteto do Mosteiro de Santa Maria, j4 0 nfo sou: vossa mercé me tirou ess encargo; sabedor, nunca o fui, pelo menos muitos assim 0 creem, ¢ alguns o dizem, Dos titulos que me dais sé me cabe hoje o de honrado; que esse, mercé de Deus, é meu, ¢ fora infimia roubé-lo a quem jé nfo pode pegar em montante para defendé-lo. — Sei, meu bom cavaleiro, que estais muito torvado comigo por dar a outrem o cargo de mestre das obras do mosteiro: nisso cria eu fazer-vos assinalada mercé. Mas, venhamos ao ponto: sabeis que a abébada do Capitulo desabou ontem 4 noite? — Sabia-o, senhor, antes do caso suceder. — Como é isso possivel? — Porque todos os dias perguntava a alguns desses poucos obreiros snho dela portugueses que af restam como ia a feitura da casa capitular. No d pusera eu todo o cabedal do meu fraco engenho, e este aposento era a obra- prima da minha imaginacio. Por eles soube que a traga primitiva fora alterada © que a juntura das pedras cra feita por modo diverso do que cu tinha apontado. Profetizei-Ihes entio o que havia de acontecer. E — acrescentou 0 yelho, com um sorriso amargo — muito fez. jé © meu sucessor em por tal arte Ihe pér o remate que nao desabasse antes das vinte ¢ quatro horas. — E tinheis vés por certo que, se a vossa traca se houvera seguido, essa desmesurada abébada nao viria a terra? Se estes olhos nio tive em feito com que eu fosse posto de lado como uma carta de testamento antiga, que se atira, por inttil, para o fundo de uma arca, a pedra de fecho dessa abébada nio teria de vir esmigalhar-se no pavimento antes de sobre cla pesarem muito séculos; mas os do vosso conselho julgaram que um cego para nada podia prestar. — Pois, se ousais levar a cabo voss » desenho, eu ordeno que o facais desde ja vos nomeio de novo mestre das obras do mosteiro, e David Ouguet vos obedecer. — Senhor rei — disse o cego, erguendo a cara, que até ali tivera curvada — , vs tendes um cetro ¢ uma espada; tendes cavaleiros ¢ besteiros; tendes ouro e poder: Portugal é vosso, e tudo quanto ele contém, salvo a liberdade dos vossos vassalos: nesta nada mandais. aol... vos digo eu: nao serei quem torne a erguer essa derrocada abdbadal Os vossos conselheiros julgaram-me incapaz disso: agora cles que a alevantem ‘As faces de D. Joao I tingiram-se do rubor do despeito. — Lembrai-vos, cavaleiro — disse-Ihe —, de que falais com D. Joao 1. — Cuja coroa — acudiu o cego — lhe foi posta na cabeca por lancas, entre as quais reluzia o ferro da que eu brandia. D. Joao I é assaz nobre e generoso, para nfo se esquecer de que nessas langas estava escrito: os vassalos portugueses sio livres. sobedecem aos mandados — Mas — disse cl-rei — os vassalos que d daquele em cuja casa tém acostamento, podem ser privados da sua moradia, ¢ dizeis isso pela que me destes, tirai-ma; que nao vo-la pedi cu. Nao morrerei de fome; que um velho soldado de Aljubarrota acharé sempre quem Ihe esmole uma mealha; ¢ quando haja de morrer 4 mingua de todo humano socorro, bem pouco importa isso a quem vé arrancarem-lhe, nas bordas da sepultura, aquilo porque trabalhou toda a vida: um nome hontado e glorioso. Dizendo isto, velho levou a manga do gibao aos olhos bagos ¢ embebeu nela uma légrima mal sustida. El-rei sentiu a piedade coar-lhe no coragio comprimido de despeito ¢ dilatar-lho suavemente. Umas das dores de alma que, em vez de a lacerar, a consolam, é sem duivida a compaixio. — Vamos, bom cavaleito — disse el-rei pondo-se em pé —, no haja entre nés doestos. O arquiteto do Mosteito de Santa Maria vale bem o seu fundador! Houve um dia em que nés ambos fomos guerreiros: eu tornei célebre © meu nome, a consciéncia mo diz, entre os principes do Mundo, porque segui avante por campos de batalha; ela vos dir, também, que a vossa fama sera perpétua, havendo trocado a espada pela pena com que tracastes 0 desenho do grande monumento da independéncia e da gloria desta terra. Rei dos homens do aceso imaginar, no desprezeis o rei dos melhores cavaleiros, os cavaleiros portugueses! Também vés fostes um deles; e negar-vos-ei a prosseguir na edificacio desta meméria, desta tradiciio de marmore, que ha de recordar aos vindouros a histéria dos nossos feitos? Mestre Afonso Domingues, escutai os ossos de tantos valentes que vos acusam de trairdes a boa ¢ antiga amizade. Vem de todos os vales ¢ montanhas de Portugal 0 soido desse queixume de mortos; porque, nas contendas da liberdade, por toda a parte se verteu sangue ¢ foram semeados cadaveres de cavaleiros! Kis, pois: se nao perdoais a D. Joao I uma suposta afronta, perdoai-a ao Mestre de Avis, a0 vosso antigo capitio, que, em nome da gente portuguesa, vos cita para o tribunal da posteridade, se refusais consagrar outra vez a patria vosso maravilhoso engenho, e que vos abraga, como antigo irmao nos combates, porque, certo, cré que ndo querereis perder na vossa velhice o nome de bom € honrado portugués. El-rei parecia grandemente comovido, talvez involuntariamente, lancou um braco ao redor do pes ogo do cego, que solugava e tremia sem soltar uma s6 palavra. Houve uma longa pausa. Todos se tinham posto em pé quando el-rei se erguera ¢ esperavam ansiosos 0 que ditia o velho. Finalmente este rompeu © siléncio. — Vencestes, senhor rei, vencestes!... A abébada da casa capitular nfo ficaré por terra, Oh meu Mosteiro da Batalha, sonho querido de quinze anos de vida entregues a pensamentos, a mais formosa das tuas imagens sera realizada, ser duradoura, como a pedra em que vou estampé-lal Senhor rei, as as tinicas palavras harmoniosas ¢ inteiramente suaves que tenho ouvido ha muitos anos, sio as que vos sairam da boca: s6 D. Joio I compreende Afonso Domingues; porque sé ele compreende a valia A destas duas palavras formosissimas, palavras de anjos: patria e gléria. passada injiria, aos vossos consclhciros a atribui sempre, que 10a v6s, posto que de vs , que éreis rei, me queixasse; varré-la-ei da meméria, como o entalhador varre as lascas € a pedra mofda pelo cinzel de cima do vulto que entalhou em gargula de cimalha rendada. Que me restituam os meus oficiais € obreiros portugueses; que portugués sou eu, portuguesa a minha obral De hoje a quatro meses podeis voltar aqui, senhor rei, e ou eu morrerei ou a casa capitular da Batalha estard firme, como é firme a minha crenga na imortalidade ena gloria. El-rei apertou entio entre os bragos o bom do cego, que procurava ajoclhar sublime aos seus pés. Era a atracio de duas almas , que voavam uma para a outra, Por fim, D. Joao I fez um sinal ao pajem, que se aproximou: Alvaro Vaz, acompanhai este nobre cavaleito a sua pousada. E vés, mestre muito sabedor, ide repousar: dentro de quinze dias vossos antigos oficiais terio voltado de Guimaries para cumpritem o que mandardes. muito devoto padre-prior — continuou clei, voltando-se para Frei Lourengo —, entendei que de ora avante Afonso Domingues, cavaleito da minha casa, torna a ser mestre das obras do Mosteiro de S: nta Maria da Vitéria, enquanto assim Ihe aprouver. O prior fez uma profunda reveréncia. A alegria tinha tolhido a voz do arquiteto: diante de toda a corte el-rei o safrontado, ¢ jé, sem desdouro, podia accitar 0 encargo de que o tinham despojado. Com passos incertos, ¢ seguro ao brago do pajem, saiu do aposento, feita vénia a el-rei. Este deu imediatamente ordem para a partida, Quando todos iam saindo, o prior chegou-se ao velho chanceler ¢ disse-Ihe em tom submisso: —Doutor Johannes a Regulis, espero que narrcis fielmente a rainha o que sucedeu ¢ a certifiqueis de quanto me custa ver titada a régua magistral a mestre Ouguet. Foi — disse o politico discipulo de Bartolo — mais uma faganha de D. Joao I: comegou por brigar com um louco, € acabou abracando-o, por Ihe ver derramar uma légrima, Bem trabalho por fazer do Mestre de Avis um rei; mas sai-me sempre cavaleiro andante. Nao Ihe sucedera isto, se, em vez de passar a juventude em batalhas, a tivesse passado a estudar em Bolonha. ‘Tenho-lhe dito mil vezes que € preciso lisonjear os ingleses porque carecemos deles: tudo me responde com dizer que, com Deus e 0 préprio montante, tem em nada Castela; todavia a gente inglesa ufanava-se de scr David Ouguct 0 mestre desta edificagio. E. que importava que ela fosse mais ou menos primorosa, a troco de contentarmos os que connosco estio liados? Quanto a vés, reverendo prior, ficai descansado; tudo fia a rainha da vossa prudéncia, que é muita, posto que nio vistes Bolonha, Vamos, reverendissimo. ‘A Corte ja tinha saido: os dois velhos seguiram-na ao longo daquelas arcadas, conversando um com o outro em voz baixa. CAPITULO V O VOTO FATAL Rica de galas, a Primavera tinha vestido os campos da Estremadura do vigo das suas flores: a madressilva, a rosa agreste, o rosmaninho e toda a casta de boninas teciam um tapete odorifero ¢ imenso, por charnecas, cémoros € sapais e pelo chao das matas ¢ florestas, que agitavam as caras sonolentas com a brisa de manha purissima, mostrando aos olhos um baloigar de verdura compassado com o das searas rasteiras, que, mais longe, pelas veigas outeiros, ondeavam suavemente. Eram 7 de Maio da era de 1439 ou, como os letrados diziam, do ano da Redencio 1401, Quatro meses certos se contavam nesse dia, depois daquele em que, numa das quadras do aposento real no Mosteiro da Batalha, se passara a cena que no antecedente capitulo narramos e que extraimos do famoso manuscrito mencionado no capitulo I, com aquela pontualidade ¢ verdade com que © grande cronista Frei Bernardo de Brito citava sé documentos inegaveis € autores certissimos, e com aquela imparcialidade ¢ exacio com que o filsofo de Ferney referia e avaliava os factos em que podia interessar a religiao crista, Assistiu o leitor & promessa que mestre Afonso Domingues fez a D. Joao I de que dentro de quatro meses Ihe daria posto o remate na abébada da casa capitular de Santa Maria da Vitéria, e lembrado estara de como el-tei lhe prometera, também, mandar ir de Guimariics todos os oficiais portugueses que, despedidos da Batalha por mestre Ouguet, como menos habilidosos que os estrangeiros, tinham sido mandados para a obra, posto que grandiosa, menos importante, de Santa Maria da Oliveira, hoje desaportuguesada e caiada ¢ dourada ¢ mutilada pelo mais bérbaro abuso da riqueza ¢ da ignorancia clerical. A palavra do Mestre de Avis nao voltara atrés, nao por ser palavra de rei, mas por ser palavra de cavaleiro daqueles tempos, em que tio nobres afetos ¢ instintos havia nos coracdes dos nossos avés que de bom grado lhes devemos perdoar a rudeza. Tendo partido de Alcobaca para Guimaraes, onde nesse ano se juntavam cortes, apenas af chegara tinha mandado partir para Santa Maria da Vit6ria os oficiais e obreiros mais entendidos, que vieram apresentar-se a mestre Afonso. Este, resolvido, também, a cumprir 0 prometido, metera mos 4 obra. O Capitulo foi de ntulhado: aproveitaram-se as pedras da primeira edificagio que era possivel aproveitar, lavraram-se outras de novo, armaram-se os simples ¢, muito antes do dia aprazado, o fecho ou remate da abébada repousava no scu lugar. Durante estes quatro meses os sucessos politicos tinham trazido D. Jodo 1a antarém, onde se fizera prestes com bom mimero de lancas, besteiras e pedes pata ir juntar-se com o Condestavel, e entrarem ambos por Castela, cuja guerra tinha recomecado, por se terem acabado as tréguas. Para esta entrada se aparelhara el-rei com uma lustrosa companhia dos seus cavaleiros ¢, caminhando pela margem ditcita do ‘Tejo, acampara junto a Tancos, onde se havia de construir uma ponte de barcas, para passar o exército e seguir avante até o Crato, que era lugar aprazado com o Condestavel, para juntos irem dar sobre Alcantara. Em Vale de ‘Tancos estava sentado o arraial da hoste de el-rei: os petintais que tinham vindo de Lisboa trabalhavam na ponte de barcas que se devia langar sobre 0 Tejo; os besteiros limpavam as suas bestas ¢ alegravam-se em lutas € jogos; os cavaleiros corriam pontas, atiravam ao tavolado, monteavam ‘ou matavam © tempo em banquetes ¢ beberronias. Tinham chegado aquele sitio a 5 de Maio, e no dia seguinte el-rei partira aferradamente para a Batalha, porque nfo se esquecera de que os quatro meses que pedira Afonso Domingues para levantar a abébada eram passados, ¢ fora avisado por Frei Lourenco de que a obra estava acabada, mas que o arquiteto nao quisera tirar Antes de partir de Lisboa, D. Joio I mandara sair dos carceres em que jaziam bom niimero de criminosos ¢ de cativos castelhanos, que, com grande pasmo dos povos, € rodeados por uma grossa manga de besteiros, tomaram © caminho da Batalha, sem que ninguém aventasse o motivo disto. Todavia, cle era dbvio: el-rei pensou que, assim como a abébada do Capitulo desabara, da primeira vez, passadas vinte ¢ quatro horas depois de desamparada, assim podia agora derrocar-se em cima dos obreiros, no momento de lhe tirarem os prumos ¢ traveses sobre que fora edificada. Solicito pela vida dos seus

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