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PROBLEMATICAS I A ANGUSTIA J. Laplanche Tradugto Auvano Casta, Martins Fontes S60 Paulo 1998 “ds orignal PROMLENATIQUES 1 ANCOISE apg Pres Unsorted Proce 180 ‘Coin ivr ni oss "Ss Pa 0p cn oi. ass adi Revi dato “Wen Se Prati ies “crs Aer Co Darter Cd Psa CP) ‘Gann Baca LS Br) Tope bles: mii) Lae tas Aas Co-ed Sa0 Pa: Mani Proc 86 (Bi | Angin 3 Pci Tl HS Taz pr nt a |e Tenn Pola DISS Teo its pana gprs eserves 3 "rr Mone Portes tor Le Fa Coeli Ramall, 03) 107325000 San Pano SP Bra i 01) 239-5677 Ba (11) 308-8857 ‘nal infmartbomessom nino nartngoiescom q Indice ‘A “Angst” na_neurose — 18 de novembro de 1970 A objecio de principio a um ensino da psicandlise . . A psicanélise como saber constituido © recurso a Freud ......, 5 Historicidade especifica da descoberta © retorno sobre Freud Por um ensino psicanalitico da psicandlise Fungo essencial dos afetos negativos — 2 de dezembro de 1970 Primeira teoria da angistia: a propésito: das neuroses atuais 2... : a Da neurastenia. a neurose de angistia . ceeeeeeees A angistia futuante © sua fixagio 2... Origem sexual da angistia .... : ‘A angiistia: psicolégica ou fisiolégica? Insuficiéncia da teotia de W. Reich Aparecimento da “libido psiquica’” — 16 de dezembro de 1970 A nogio de elaboragio psfguica .. Diferentes niveis da “Tigacto” Neuroses atuais e psiconeuroses: uma classificago no- soldgica ..... Neuroses atuais © psiconeuroses: dade estrutural A somatizagao psicossomética uma complementari- 6 de janeiro de 1971 De uma teoria da angtstia @ outra Conferéncias Introdutdrias sobre Psicandlise . A Realangst ou “‘angistia-real” A angistia-real... nfo é realista . ‘A “Angst”: entre medo e angiistia © par angtstie-susto © susto, inibidor da elaboracéo psiquica ........... susto ¢ 0 transbordamento do ego susto da neurose traumética 20 de janeiro de 1971 par angistia-temor S . ‘A “Angst”: ao mesmo tempo medo e angistia . ‘A angiistia infantil: uma anélise freudiana essencial SituagGes fobogénicas : © protétipo do nascimento . A angistia-teal inexiste na crianga 17 de fevereiro de 1971 © mado std impregnado de angistas« angtstia Kase a0 medo 5 ‘A fobia desintegra 0 par afeto © representagéo O recalque € 0 afeto inconsciente A angéstia, “unidade de conta” A propésito do “pequeno Hans” Origem e destino da representagio Uma terapia muito centrada no sintoma Estabelecimento das vias associativas A visita a0 “professor” Freud, Hans ¢ “a estrutura” 34. 37 39 42 43 44 45 47 48 49 51 34 56 58 59 60 61 63 64 65 66 67 69 na n B 16 1 — 3 de margo de 1971 Medo do pai e? ou? medo pelo pai? Novas vias associativas Se 0 pai ndo é temfvel, faz8-lo parecer como tal . Pegar um sintoma, pegar uma crianca Wegen-Waigen, simples ponte verbal? Sobredeterminagéo e ambivaléncia implantadas na lin- guagem Origem e destino do afeto 17 de margo de 1971 Por que procurar além das representagées? A associacio sustentada pelo afeto .. © sintoma é 0 desfecho de uma circulacio orientada A angistia como destino da libido A angistia antes da fobia ce Sonho de angistia ¢ realizacdo de desejo sonho “minha mie querida” © sonho “o homem com o machado” 31 de margo de 1971 A angiistia “‘soldada”” Deslocamento ¢ transformagao do afeio .... Diferenga essencial entre sonho e sintoma . © ego na periferia do sonho © périplo histérico © nosogréfico das fobias Da obsessio. “psiquica’ pasando pela angtistia “neurética”. até a de angGstia, que nao substitui um medo por outro 21 de abril de 1971 1915: metapsicologia da histeria de angistia Uina primeira teoria do “sinal” Tentativa de aplicaglo ao caso “Hans” Dificuldades Nem pura angistia econémica, nem medo substituida Pressentimento do ataque interno . 80 80 86 88 89 ot 92 93 94 96 97 99 101 103 - 105 106 107 +. 109 . 110 - 110 m1 114 7 120 121 123, 125 . 127 — 5 de maio de 1971 Introdugo & leitura de Inibicdes, Sintomas e Ansie- dade Byebaous0 . 129 — 19 de maio de 1971 Genealogia das situagdes de angiistia ...........4.. 131 Motivos para uma revisio 2.0... eccccecseeeee 133 Recentralizagio na_castragéo. weve 135 «mas redugdes ameacadores cece 158 A angistia nfo € um meio de adestramento . 141 ‘mas 0 restante inconeilidvel do desejo .. 142 2. A angiistia na t6pica ..... 5 cece 143 — 14 de dezembro de 1971 Falar de andlise a “nfio-analistas” ..... 143 Estamos todos “em anélise” Babee . 144 Levar em conta a anélise. .. ot “contabilizé-la”? .... 145 Pulsdo, angistia, sociedade: onde situé-las? ....... 147 — 11 de janeiro de 1972 Primeiras transformacies da t6pica freudiana ...... 149 Modelo t6pico de A Interpretacio de Sonhos 154 156 ‘Uma construglo progressiva ... fob “Lugares”” heterogéneos cece - 158 ‘Um percurso em ziguezague 9900005 — 18 de janeiro de 1972 © que implica uma t6pica : 162 Niveis de realidade . 5 164 Tépicas reais do neurdtico ......66.-++ 165 Que corpo na t6pica? .. . 166 enrolamento do “‘tangue” : 2 168 169 Tangéncia de dois circuitos Além do Principio de Prazer. e seu modelo t6pico . — 8 de fevereiro de 1972 Significagéo econémica do limite: a consténcia 177 A dor, que néo desprazer 179 ‘A dor na t6pica . 180 . 171 172 A dor, pseudopulsio ‘Treumatismo © neurose traumética 22 de fevereiro de 1972 Susto, angistia e medo © traumatismo na t6pica © transbordamento A angéstia: mobilizasicimobilizagao. Comparagio dos dois modelos t6picos Niveis do modelo de Além do Principio de Prazer Complexidades de uma “‘derivagio” 14 de margo de 1972 Derivagéo metéforo-metonimica: movimento do ser Nem empitismo do significado, nem formalismo do significante Uma signifieago aquém da linguagem Situagio do traumatismo em relagdo a uma periferia Nociio do ego, a propésito das neuroses trauméticas 11 de abril de 1972 Duas t6picas e sua charneira: a vesicula ... ‘Tangéncia © encaixe .... Dor e traumatismo: efracio, mas de que invélucro? Concentracio do ego . Dilatacdo do ego Arteulagho do ego © do corpo no ponte de impacto la pulsio ; 25 de abril de 1972 A angistia na t6pica Desconhecimento por Freud, historiador, de su pri- meira teoria da angistis A angiistia; 0 menos 9 de maio de 1972 iquico” dos afetos Dois cixos da “primeira teoria” No caso de Hans: angtstia mantém-se irredutivel a qualquer medo, ainda que seja o da castragio 182 184 187 188 189 191 192 195 196 198 200 203 204 205 207 208 210 212 213 213 215 217 218 219 220 + 222 — 30 de maio de 1972 Toda tépica € do ego ........ 228 O ego, lugar da angistia » 224 Situagéo, em relac&o & barreira do secalque,, da angts- tia, da castraglio e do Edipo . . ween 226 oO toma, substituto do reealeante? » 228 Redistribuigéo das cartas na “nova teoria” . 229 A castragao: realidade ou estrutura a posteriori? 231 Edipo e castracfio nfio poderiam estar separados 233 Fobia de castraco e agorafobia: expor o ego & puni- sao ou & sexualidade? anes 234 As duas teorias: alternativa ou dialética?™ wee 235 3. A angistia moral . 237 — 14 de novembro de 1972 A metapsicologia: quem a reporé “em pé’ . 238 Banalidade da autopercepgao da t6pica . 239 A tépica, lugar do conflito e da angiistia 241 — 28 de novembro de 1972 Natureza ¢ cultura: uma reparticfo t6pica que pare- ce evidente : ee Id = naturezs, ego = cultura, ..: equagbes @ ques- tionar : : 246 Duas manciras de a natureza se fazer “representar” . 248, A anélise 86 se ocupa da sexualidede coos 250 — 12 de dezembro de 1972 © impacto t6pico das normas coves 252, superego: uma evidéncia... ¢ uma facilidade .... 254 Clinica da neurose obsessiva: as autocensuras 256 A evolucdo da sintomatologia ...... , 257 © Homem dos Ratos - 259 © crime do pensamento ceeeeeeee 259 Isolamento do contetido representative 260 © que esté em jogo numa discussio: 0 desejo incons- ciente : ceeeese es 262 © desejo: vniea “modalidade” do pensamento incons- ciente : 264 — 9 de janeiro de 1973 © testemunho da Tinguagem Nio ha inocéncia no inconsciente Surgimento do sadomasoguismo A divida: seu circuito no sintoma circuito do tratamento suito dos ratos Circuito familiar da divida A divida nfo se transmite diretamente. mas por sua desqualifieagdo em circuito dos ratos ° ° ° — 25 de janeiro de 1973 ‘A nogio de sadomasoquismo: para os sexélogos. € para Freud: da perversio, a0 destino pulsional Instauragdo da cena interior sadomasoquista D. Lagache ¢ 0 “‘conflito de demanda” G, Deleuze ataca os pontos fracos. .. ‘mas no quer ouvir falar de método analitico Verdade do sadomasoquismo: © neurético, maquinista e supliciado © homem dos ratos como rato Palavras © pensamentos: ratos excrementicios A “ei”: altemente simbélica e eltamente séptica — 15 de fevereiro de 1975 ‘A melancolia: introdugdo as instdncias ideais © que é 0 narcisismo originério? Nercisismo ¢ ideal : © superego: olho & voz Melancolia e campo de depressoes © luto no € um afeto simples © trabalho do luto A melancotia: no sentido préprio ‘Trabalho ligado a uma perda © vineulo nareisico Uma identificegao acusadore Debate com o objeto, debate com 0 ego Identificagdo e identificacao priméria . 265 . 267 - 267 268 270 . 270 an 213 273 274 276 277 278 279 280 281 282 ~ 283 286 287 288 - 289 290 291 293 294 - 295 297 298 299 300 301 302 icacdo narcisica ........... 304 narcisismo é a identi A escolha narcisica: totalitéria © frégil o 305 Ambivaléncia e desuniGo. pulsional weceees 307 Luto, luto patoldgico, melancolia: trés constelacies .. 308 ‘A sombra do objeto perdido: o mau introjetado .... 309 13 de margo de 1973 Quem persegue quem, na tépica depressiva? 312 O “self” correlative e alibi do “‘ego auténomo” .... 313 superego, herdeiro do Edipo: O Ego ¢ 0 Id 314 As identificacSes estruturantes do ego . 316 Ideal do ego e “‘identificagio priméria com o pai” .. 317 O Eedipo . co 320 8 de maio de 1973 10 do Edipo: rentincia © identificagdo . 322 Paradoxo fundamental da identificaco: nfo hé iden- tificago com o rival . 323 © Edipo bissexual . 325 © Edipo néo ¢ um condicionamento nem uma homo- tetia : . 327 Situagio ‘pica da assungio do sexo + 328 Ego ideal e ideal do ego feeeeee 329 22 de maio de 1973 sistema das instancias ideais: D. Lagache - 332 © superego, instincia contraditéria ........ - 335 Origens do superego: 0 problema t6pico 336 Melanie Klein questiona a concepeao freudiana exces- sivamente simples ....... 337 E a pulsto que alimenta a severidade do superego... 339 Cestrago e perda de amor : : + 40 Superego e “‘pulsio de morte” - 342 (© superego arcaico e feroz: um rato 344 Adverténcia Desde 1962 na Ecole Normale ¢ desde 1969 na UER* des Sciences Humaines Cliniques na Sorbonne (Université Paris VII), venho buscando ¢ expondo, num curso pilblico, um método inter pretativo e de levantamento de problemas, ao longo de cerios eixos principais da teoria psicanalitica. Sob o titulo geral de Probléma tiques (Probleméticas), 0s cursos a partir dos anos 70-71! estio aqui reunidos. O texto oral sojreu apenas as modificagées neces- sdrias & sua publicagiio em tivro, Os temas dos anos sucessivos encadeiam-se segundo uma I6- ica que nada tem de deliberada: 0 percurso rege-se ao mesmo tempo pelo contetido e por minha evolugéo pessoal. Sé depois descortinei a possibilidade de, sem excessivos artificios, reagrupar esses temas num certo niimero de volumes. © ciclo de um curso anual & iniciado, na maioria das vezes, por uma introducao metodoldgica mais ou menos extensa. Impres. sas em itdlico, essas introducées dispensam-me de retomar aqui suas idéias, Sao o relato de uma reflexio posterior sobre as moda- lidades de minha abordagem ¢ sobre a legitimidade de desenvol- véla “na universidade’ E evidente que 0 leitor, segundo suas disposicées e sua dis- ponibilidade, poderd reagir a esta publicagao de duas maneiras. © classicismo das wogdes upresentadas, o fregilente recurso ao comentario critico. os retornos ¢ as repeticées (exigidos pelo Unité d'Enseigment et Rech IN. do 7 1. Foram inicialmente publicados no Bulletin de psychologie, depois, « partir de 1974-1975, na revista Psvchanalyse & Universi Unidade de Ensino © Pesquisa jaro de me dirigir, a cada ano, a um auditério em grande parte novo) poderdo fazer com que estes textos sejam considerados ‘um exemplo da muito desacreditada “exegese freudiana’’. Ou entdio, creditando-me uma certa paciéncia e benevoléncia para acertar 0 asso comigo, talvez o leitor seja receptivo a certos aprofunda- ‘mentos ou a certas sondagens, na tentativa de abordar a propria teoria levando em conta o método analitico, de modo a fazer ranger determinadas articulagées e a derivar certos conceitos. Através deste modo de tornar problemética a doutrina, mas também a his- t6ria e a clinica, esboga-se a configuragdo de uma outra temitica. A “Angst” na neurose — 18 de novembro de 1970 Este curso toma seu lugar dentro da UER A OBIECAO des Sciences Humaines Clinigues, 0 que DE PRINCIPIO nao deixa de suscitar algumas questées, ‘A UM ENSINO até mesmo paradoxos, que eu gostaria de DA PSICANALISE examinar em primeiro lugar. AUER des SHC esié orientada para uma determinada meta de formacio. Procura tornar mais flexivel as Jronteiras entre ensino e formacdo ou ainda entre ensino, prética € pesyuisa, Disso é testemunho, por exemplo, a sua politica de estigios ¢ 0 Jato de que a quase tolalidade dos docentes so pessoas que exercem a clinica ou a pesquisa; ¢, no corrente ano, a fun- dagao de um “Instituio de Formagao” apés a maitrise. Em oposigao aparente a esse objetivo, sao propostos “grupos” de psicandlise, que sio seminérios tedricos (nao se fard neles and- lise “de grupo") e até mesmo um curso denominado “magistral” que é este. Aparentemente, estamos, pois, em psicandlise, na retaguarda em relacao a concepeao geral dessa UER ¢ as aspiragdes de muitos de vocés. Vocés nao ignoram a existéncia, fora do ambito université- rio, de uma formagio psicanalitica que, sejam quais forem as dife- rencas entre as escolas que a Jornecem, tem por pedra angular a 2 AANGUSTIA andlise individual e como método complementar os tratamentos controlados. Isso no se constituiv de um dia para o outro, mas, tateando, no decorrer da jd longa hisiéria da psicandlise, desde os anos 1900. Nao recapitularei essa histéria nem me estenderei sobre as diferentes interpretagbes dadas & chamada psicandlise “de forma- ¢io”. £ certo, em todo caso, que a andlise pessoal é 0 caminho real para se ter acesso a alguma parte da verdade psicanalitica, Freud retoma com fregiiéncia esta formula de Goethe: “Aquilo que her- daste, adquire-o para que 0 possuas.” Isso nao € uma {6rmula empirista, néo é a aquisicao de um savoir-faire. “A psicandlise nio se ensina, transmite-se”, diz-se com fregiiéncia. E mumerosos psica- nalistas insistem: “Mas ndo se transmite como uma receita.” Jd estd tudo af, cumpre apenas adquiri-lo, apropriar-se dese conhe- cimento. Jd estd tudo no préprio inconsciente de vocés, como jd estava no inconsciente de Freud. Mas esse inconsciente, intemporal, deve ser readquirido, reassumido no tempo. Visto do angulo da experiéncia do iratamento pessoal, o ensi- no tem mé reputagdo entre os psicanalistas. O ensino, diz-se com freqiténcia, s6 serve para aumentar a confuséo do chamado saber constituido. E essa critica entra no quadro daquela oposicio que valtou & moda, mas cujos termos conviria ponderar cuidadosamen- te quando seu uso for além do polémico: a oposigdo entre o scber € a verdade. O saber seria 0 que é depositado, constituldo, sistema tizado; precisamente aguilo que 0 individuo deve superar, por exemplo, em sua anélise, rumo a sua prépria verdade, para além desse pretenso saber sobre si mesmo. Tal como o individuo em sua andlise, também a propria psicandlise, em seu movimento, deveria poder ultrapassar sua doutrina constituida, Mas em que diregtio? Outra eritica: os psicanalistas pensam que, afinal, tecria e ensino da teoria psicanalitica apenas aumentam a confusio jé con: siderdvel das linguas, essa espécie de malabarismo de conceites que pode existir atualmente na literatura psicanalttica, e reforgam a defesa dos psicanalistas — ¢, simplesmente, dos homens contem- portneos — em relacao a seu préprio inconsciente. Essa fungao defensiva do saber e da teoria foi sempre assina- lada (desde o nascimento da psicandlise), principalmente peles ter- mos, bem conhecidos, intelectualizago e racionalizarao — intelec- tualizagao e racionalizagio sendo modos de recusa do afeto ow, A“ANGST" NA NEUROSE A ‘numa linguagem mais recente, do desefo. Contudo, Freud nto se absteve de ensinar, Foi professor em Viena durante longos anos e, embora tenhamos muito poucos relatos de seus cursos, conhecemos 40 menos um que é central: Conferéncias Introdutérias sobre Psi canélise, que constitui o relato de suas aulas de 1916-1917 ¢ é apenas um curso entre outros, visto que de 1900 a 1917 Freud ensinow psicandlise. Além disso, recorreu freqiientemente & forma didética para redigir alguns de seus artigos, como se, na verdade, @ forma de ensino como didlogo the parecesse especialmente inte- ressante. Um fato, talvez ainda mais caractertstico, € que nesse ano de 1917 ocorre em Budapeste a revoluedo bolchevique. Bela Kun toma o poder e, com ele, 0 principal discfpulo de Freud, Sandor Ferenczi, é imediatamente nomeado para o cargo de pro- fessor de psicandlise na Universidade de Budapeste, f nessas cir- cunsténcias que uma espécie de questiondrio serd enviado a um certo mimero de médicos e personalidades, a fim de indagar como concebem um ensino renovado de suas respectivas disciplinas, no seio dessa universidade “‘revoluciondria”. Freud responde, mum artigo intitulado “Devese ensinar psicandlise na Universidade?”, € sua resposta 6, no todo, extremamente positiva, Mas, objetar-sed, tudo isso era muito bonito num periodo em que o ensino da psica- ndlise ainda tinha um impacto de subversto; hoje, porém, ele esta- ria mais vinculado ao establishment. Nessa época, a psicandlise descobria ensinando-se 0 seu préprio caminho rumo & verdade, rumo i sua verdade, a qual, aliés, coincidia simplesmente com a verdade de Freud. Com efeito, a verdade do inconsciente € uma 86, e ela ali estava, descoberta na prdpria exploragto que Freud Jazia do sew inconsciente. Mas repetir a verdade de Freud serd ainda repetir a verdade? Assim, 0 préprio Freud passaria para 0 lado da defesa ou daquilo que se chama de “repressio”. A “repress”, como sabemos, pode adotar diferentes aspec- tos, sendo um dos mais evidentes nos nossos dias aquele a que se dé0 nome de difusto, vulgarizacéo, “‘recuperaciio”. Por esse lado, no que se refere & psicandlise, estamos — se me permitem dizer — muito bem servidos: neste século, a psicandlise esté por toda a parte, banhamo-nos nela. Ela ai esti, no piiblico, do qual ela molda amplamente certas reagdes, como um fendmeno de psicolo- gia social, Um livro, jd wm pouco antigo, La psychanalyse, son 4 AANGUSTIA image et son public, de Serge Moscovici, fez, num determinado momento, 0 balango dessa influéncia. Essa “imagem” implicita, vulgarizada, serd tao errénea quanto se poderia esperar? Néo estou certo disso. Mas a psicandlise também estd presente para o “leitor de cultura média”, vocés e eu, aquele que, por exemplo, iré “fazer uma demanda de andlise”. Escrevem-se ‘A PSICANALISE tratados de psicandlise; a psicardlise 6 COMO SABER até mesmo apresentada como ciéncia CONsTITUIDO constituida. Tratar-sed de uma ciéncia constituida no mesmo sentido en que esse termo & empregado com respeito as ciéncias “exatas”? Para demonstré-lo, seria necessério que ela jose cumulativa, ou seja, que os conhecimentos que proporciona se somassem a um certo fesouro acumulado e que, por outro lado, ela ultrapassasse suas hipoteses precedentes, incluindo-as. Pensemos no que aconteceu com a passagem da fisica newtoniana para a fisica einsteiniana: os\ fatos jd descobertos nao foram anulados, mas reiomades num sistema explicativo mais amplo. Enfim, seria necessdrio mdstrar que ela pode esquecerse de sua prépria histéria. Creio estar af 0 ponto mais importante: em que medida uma ciéncia esquece sua historia? Até que ponto ela pode se apresentar de imediato como tum sistema? O préprio Freud, afinal, escrevew tratados de psica- ndlise, “resumos”, em que tenta, precisamente, esquecer a hist6ria de sua propria descoberta. Que situagdo encontra nosso “leitor de cultura média” no campo do saber psicanalitico? — Em primeiro lugar, @ avalanche de publicagées, de que um compéndio conto The Index of Psychoanalytic Writings (O Indice de Escritos Psicanaliticos) nos dé uma idéia ainda incompleta. Nenhum tema de trabalho, proposto por um pesquisador, pode ter @ pretensio de avangar num terreno relativamente virgem. — Em seguida, 0 particularismo da linguagem, através das diferentes escolas, ou mesmo diferentes seitas, podendo chegar, em certos casos, ao esoterismo. 4, Paris, PUF, 1961, © 2 ed. intelraments refundide, 1976, [Edigfo brasileira: A Representactio Social da Psicandlite, Zahar Editores, 1978.) A “ANGST” NA NEUROSE 5 — Como conseqiiéncia dos dois pontos precedentes, a difi- culdade, para cada leitor, em ligar, em concatenar as coisas, em formular ele proprio a sua perspectiva. Aquele que entra na lite- ratura psicanalitica, no importa por que entrada desse imenso edificio, é levado, quase necessariamente, a jormar para si uma espécie de sistema de pontos de vista pessoal, jorcosamente fal- seado, onde esti lado a lado nocdes pertencentes a diversas esco- las e a diferentes épocas. Verd misturarem-se nogdes como, por exemplo, a de “ego autdnomo”, que veio da psicandlise americana; ade “traumatismo”, que, pelo contrdrio, esté ligada aos primérdios da psicanélise; ou ainda a de “objeto bom”, que foi proposta por uma escola muito particular: a escola inglesa de Melanie Klein — Outra caracteristica ainda é que 0 nosso “‘leitor de cultura média” perceberd imediatamente (e talvez se escandalize com isso) @ onipresenca de um personagem central. Quero dizer que, em psicandlise, incessantemente recorremos a © RECURSO Freud, aos textos freudianos, que se apre- ‘A FREUD sentam como uma sacrossanta biblia, Afinal, essa referéncia a um texto nao constitu algo original. Na Idade Média houve a referéncia a Aris- t6teles; em toda uma corrente do pensamento sécio-econémico con- temporineo hd a referéncia a Marx. Alids, seria interessante realizar um estudo comparado sobre as diversas maneiras de jazer referén- cia a um texto bésico, considerado o corpus que se cita e se discute. Talvez pudéssemos perceber, apesar dessa aparente semelhanca, que a escoldstica é muito diferente conforme os trés personagens em questao: Aristéieles, Marx e Freud. Em todo caso, em psicandlise, ainda que se faca referéncia a Freud, € certamente de um modo muito cauteloso. Nao se chega, no entanto, a invocar Freud como argumento de autoridade; 0 que ‘nos importa é, talvez, menos 0 recurso a Freud do que o retorno a Freud, Freud como iniciador da psicandlise, por si s6, jd constitui um problema, A necessidade de retornar as origens é suficiente para suscitar um problema epistemoldgico quanto ao estatuto dessa ciéncia, desse modo de conhecimento que a psicandlise pretende, ser. Para dar 0 exemplo da fisica, retorna-se a Galileu? Retorna-se a Newton? Retcrna-se até mesmo a Einstein? Certamente nao, salvo no caso do historiador da jisica, 0 que é uma especialidade muito | particular. O fisico utiliza as descobertas de um ou outro de seus 6 AANGUSTIA grandes precursores, mas sem retornar explicitamente a eles; dio hd uma volta constante a uma reflexto sobre 0 modo de surgi- mento da descoberta. Entdo, dirdo vocés, isso acontece porque a psicanélise ndo € uma ciéncia, e porque ela é apenas o tliimo avatar da filosofie. E vocés sabem que a filosofia tornou-se cada ver mais a histéria da filosofia. A filosofia é verdadeiramente inse- ardvel de uma reflexiio e de um retorno incessantes sobre si mes- ma e sobre os sistemas que descobriu, sobretudo depois de Hegel € ainda mais no momento atual. A histéria da filosofia é (disse Marx), ao mesmo tempo, a morte da filosofia. Mas a filosojia con- tinua muito saudével, fazendo sua prépria hist6ria. .. A psicandlise nao 6, porém, a historia da psicandlise; é uma ciéncia na acepeao ‘mais ampla ou, pelo menos, visa constantemente ser uma ciéncia; isso, precisamente, na medida em que visa formular verdades acerca de um objeto, que é 0 inconsciente, Mas a particularidade dessa ciéneia é, em sew préprio surgimento, estar vinculada & hist ria de seu proprio objeto. Quero dizer que a descoberta freudiana estd necessariamente ligada a descoberta, por Freud, do seu préprio inconsciente e de certas dimensées que se encontram 0 incons- ciente de todos e de cada um. A psicandlise tampouco & historia, pelo menos no sentido mais banal do termo, ou seja, ela ndo apresenta um desenvolvimento cronoldgico com um antes e um depois, de modo que se possa dizer simplesmente ¢ sem outra ressalva: antes de Freud, em Freud @ depois de Freud. Quero dizer que a cronologia, dimensio impor. tante na historia das idéias, talvez ndo HISTORICIDADE tenka na psicandlise exatamente 0 mesmo ESPECIFICA lugar que tem em outras partes. Mas DA DESCOBERTA neste ponto, entretanio, quero caminhar or alguns instantes no sentido ‘nverso do que estou afirmando. E certo que, para aguele que estava na hhistéria da descoberta analttica, quero dizer, para Freud, havia um problema de cronologia; cada uma de suas descobertas, pe- guenas ou grandes, ou até pseudodescobertas, eva assinalada, em seu inicio, por uma espécie de exclamacéio, por um “eureka!” “Descobri, e isso merece ser datado.” Para que voces percebam essa dimensio ¢ também essa iluséo cronoldgica de Freud, reme- to-0s & correspondéncia com Fliess. Nela, Freud escreve, tomado de entusiasmo (por vezes também de depressio): “Jd te revelei um A ANGST" NA NEUROSE 7 grande segredo como: a histeria é isto, a neurose obsessiva é aquilo...?” ou ainda esia passagem famosa: ‘‘Crés verdadeira- mente que um dia haverd sobre a porta de casa uma placa de mdrmore onde se poderd ler: Foi nesta casa que a 24 de julho de 1895 0 mistério do sonko foi revelado ao Dr. Sigmund Freud?” Em reveréncia a essa iluséio cronolégica, a placa foi efetivamente colocada mais tarde por seus discipulos. Mas 0 monumento escrito é mais complexo: permite pressentir 0 que é a “histéria” da psica- nilise, como se avanga, por certo, de descoberta em descoberta, mas, sobretudo, como as descobertas jamais so tao descobertas quanto se acredita, quanto o préprio Freud acreditava que fossem. As descobertas senipre sao identificadas posteriormente. No entanto, para Freud, "nessa espécie de movimento em espiral que the fez descobrir coisas que, no fundo, ele id tinka pensado, impoese a necessidade de, a cada espira, “marcar a data”, na acepetio mais Jorte que essa expressdo possa ter. Eis uma outra passagem onde © humor da apresentagao apenas acentua a violéncia da exigéncia: “Carissimo Wilhelm, isso aconteceu a 12 de novembro de 1897; © Sol encontravase no dngulo oriental, Merctirio e Venus estavam em conjungao. Nao, as participacoes de nascimento nfo so mais redigidas desse modo. Isso passow-se a 12 de novembro, um dia dominado por uma enxaqueca unilateral esquerda; depois do almo- 0, Martin instalowse para escrever um novo poema; a tardinha, Oli perdew seu segundo dente e, apds os terriveis tormentos destas tiltimas semanas, eu trouxe a luz mais algumas nodes. Na verdade, elas ndo sdo inteiramente novas, tendo jd aparecido e desaparecido sucessivas vezes, mas agora estabilizaram-se e viram a luz do dia.”® Ao mesmo tempo que “marca data”, Freud é obrigado a reco: nhecer 0 aspecto de retorno ciclico, ¢ a comparagio com 0 movi: ‘mento astral fem suas razdes profundas. A descoberta da psicandlise, e esta afirmacdo nada tem de ori ginal, é, nessas cartas a Fliess, a auto-andlise de Freud. O movimen- to da descoberta, em psicandlise, nao é cronoldgico; tudo pode ser questionado de novo e, inversamente, o assim chamado “ignorado” 0 que é “o sempre sabido”. Para situar as caracteristicas da 2. Em La naissance de la psychanalyse, Paris, PUR, 1973, p. 286. [ESB — em Bxiratos dos Docurtentos Dirigidos a Fliess; vol. 1.1 3. Ibid, pp. 205-204

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