O (Anti) Método de Ritmica de José Eduardo Gramani:
uma proposta para o equilibrio entre o sensorial ea racional
Luiz Henrique Fiaminghi
Universidade do Estado de Santa Catarina
Ihfiaminghi@yahoo.com.br
Resumo:
0 estudo de ritmica como uma disciplina isolada da Teoria Musical remonta ao inicio do séc.
XX, através da atuagio marcante nesta rea do pedagogo suico Jacques Dalcroze. No campo de en-
sino musical brasileiro, os dois trabalhos que José Eduardo Gramani publicou como professor de
ritmica da UNICAMP, onde atuou entre 1980 até 1998, sao considerados referéncias importantes,
tanto por seu cardter inovador quanto por suas propostas que vio além do ensino de ritmica como
uma mera ferramenta para aprimoramento da leitura musical. Esse artigo trata de trazer a tona ou
tras implicagées que os métodos de Gramani apresentam: sua origem fundamentada na ritmica as.
simétrica stravinskiana, tendo como modelo a Histéria do Soldado; sua vinculacao aos principios
dos Modos Ritmicos medievais, através de séries ritmicas aditivas; as aberturas aos preceitos
da ritmica nao-européia, partindo dos linhas ritmicas baseadas em ostinatos que aproxi-
mam-se mais apropriamente ao conceito de time line pattern (Kubik 1995); a divisao de
atencdo e a percep¢ao multidirecionada necessaria 4 execucao dos exercicios estruturados
por Gramani que induzem o estudante a estimular a lateralidade e a assimetria funcional
dos hemisférios cerebrais inerentes a percepcao musical e a “experienciar sensagdes pro-
venientes da ‘modulacao hemisferial’ do ouvir” (Oliveira 2005). Trata-se de considerar os
exercicios ritmicos de Gramani como um caminho de equilibrio entre o hemisfério direito
(HD) e esquerdo (HE) do cérebro, uma ponte entre o racional e o sensorial, o contar eo
sentir, um ponto de encontro entre razo e emogao, a escrita ¢ 0 fendmeno sonoro, Todas
essas questdes sao prementes no ensino de misica e na performance musical.
Palavras-chave:
Gramani, ritmica, cognigéo musical
Introdugio
O ensino de ritmica como uma das areas da Percep¢ao Musical é um fato consolidado
na pedagogia musical e dispée de um considerdvel corpus metodolégico acumnulado a0
longo das ultimas décadas. Os livros de ritmica escritos por José Eduardo Gramani— Rit-
mica (1988) e Ritmica viva: a consciéncia musical do ritmo (1996) — constituem impor-
Fiaminghi, Luiz Henrique. 2012. “O (Anti) Método de Ritmica de José Eduardo Gramani: uma pro-
posta para o equilibrio entre o sensorial ea racional.” In Anais do 8° Simpésio de Comunicagées
e Artes Musicais, editado por Mauricio Dottori, 104~112. Florianépolis: Universidade do Estado
de Santa Catarina
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tantes referéncias nessa 4rea, sobretudo por apresentarem uma visao inovadora sobre o fe-
némeno ritmico e oferecerem ferramentas para seu entendimento a partir de parametros
musicais e sensoriais em oposicao a sua utilizag4o como treinamento meramente de leitura
para a decodificacao da duracao temporal com seus problemas de notacio inerentes.
Os pontos de ligacio das idéias defendidas por Gramani com as rotas de ruptura com
o ensino tradicional de musica, inauguradas por Emile Jacques-Dalcroze no inicio do séc.
XX, so evidentes. Trata-se aqui nao apenas de buscar paralelos que possam esclarecer afi
liagdes estéticas/pedagégicas semelhantes em um ambito tao diverso quanto distante tem-
poralmente entre esses dois autores, mas de tracar relacdes entre os fundamentos
epistemolégicos que impulsionaram suas obras. No caso de Dalcroze, sua aderéncia aos
principios da New Education (Rothfarb 1993) e a ‘redescoberta do corpo’ (Képerkultur)
{cultura do corpo] (Bonfitto 2002). No caso de Gramani, sua miltipla atividade como mi-
sico que o levou a percorrer caminhos que, partindo da contemporaneidade, o levaram &
miisica antiga e a musica de tradicao oral brasileira, vinculando-o ao pensamento pos-mo-
derno.
Objetivos
A vinculagio do estudo de ritmica conforme proposto por Gramani com o principio
dalcrozeano da natureza fisiolégica do ritmo e do uso do corpo como instrumento musical
ja sao bastante conhecidos (Martins 1996, prefacio). No entanto, um olhar que ultrapasse
a superficie utilitaria do estudo de ritmica é ainda uma abordagem pouco explorada.
Mesmo aquele que se atribui uma visao fisio-musical do movimento, distanciando-se, por-
tanto, da viséo da ritmica como um mero treinamento de leitura musical, resume-se a con-
siderar a eficiéncia de tais métodos ritmicos apenas no ambito do treinamento do misico.
Consciente desta limitagao, Gramani emite alguns alertas em dire¢ao contraria: “Se os exer-
cicios deste livro forem encarados somente como exercicios técnicos de leitura ritmica des-
conhece-se qual é realmente o objetivo de alguém ao estudar mUisica” (Gramani 1996, 173)
Ou mais adiante, quando fala sobre o balango: “Nosso estudo de ritmo sempre nos ensinou
a contar, medir, e muito raramente passamos dai. Se vocé encarar estes exercicios como
desafios musicais e nao métricos, resultard em crescimento.” (Gramani 1996, 196).
Nota-se aqui uma clara preocupagao de Gramani em ressaltar o aspecto musical
da ritmica, e no que isso pode implicar em “crescimento” nao de técnica, mas de sensibi-
lidade musical. A maioria dos seus exercicios esta estruturada em formulas ritmicas assi-
métricas e polifénicas a duas ou trés vozes, onde uma voz, geralmente destinada a mao
esquerda, mantém um ostinato e a outra desenvolve uma série ritmica aditiva
Esse artigo trata de trazer a tona outras implicagées que os métodos de Gramani apre-
sentam: uma delas diz respeito a lateralidade e a assimetria funcional dos hemisférios ce-
rebrais inerentes & percepcao musical (Oliveira 2002). A divisdo de atencao e a percep¢ao
multidirecionada necessaria a execugao do exercicios estruturados por Gramani induz 0
estudante a “experienciar sensacdes provenientes da ‘modulacao hemisferial’ de ouvir; um
proceso consciente que [0] leve[a] a perceber as diferencas dos dois modos de audicao”
(Oliveira 2005, 96). Trata-se de considerar os exercicios ritmicos de Gramani como um ca-
minho de equilibrio entre o hemisfério direito (HD) e esquerdo (HE) do cérebro, entre 0106
racional ¢ o sensorial, 0 contar e o sentir, um ponto de encontro entre razao e emo¢ao, a
escrita e o fendmeno sonoro, duas questdes prementes no ensino de misica e na perfor-
mance musical,
(Anti) Método
No segundo livro de Gramani, Ritmica Viva, a consciéncia musical do ritmo, editado
em 1996 ¢ escrito como um desdobramento do primeiro livro, Ritmica (editado em 1988
mas que circulou em verso artesanal desde 1982), Gramani da alguns passos importantes
em direcdo a uma concep¢ao ritmica propria. Diferentemente do primeiro livro, cujos es-
critos limitavam-se a prescrever manciras de treinamento para seus exercicios ritmicos,
no segundo livro o autor apresenta alguns pensamentos sobre ritmica e musica, sempre
de forma bem humorada e de maneira quase informal, 0 que era uma de suas melhores
caracteristicas como professor e misico. Logo na introducao ele adverte, quase em tom de
desculpas: “Método — que remédio?” Nao obstante o carater aneddtico de seu titulo, este
preficio coloca alguns pontos essenciais para compreender a complexidade das tramas rit-
micas encontradas no decorrer das paginas de seus livros, que no fundo nao passam de
brincadeiras sutis que clamam por um compreensao intuitiva musical regrada por uma
cerrada légica que perpassa suas bem estruturadas frases musicais assimétricas e polirit-
micas. Esse cardter ambivalente que trata em uma mesma esfera 0 humor e o rigor trans-
parece na escrita limpida e precisa da notagao ritmica (toda grafada manualmente pelo
proprio Gramani), no exaustivo desenvolvimento de cada possibilidade de motivo ritmico
apresentado (séries ritmicas; ostinatos; leituras) e nos titulos bem-humorados de suas com-
posigdes ritmicas, muitos fazendo referéncia ao universo de Guimaraes Rosa: Fifrilim, Al-
garavia, Tambaleio, QCoisas, Pirilampsias e outros.
Alguns dos principios contidos nos métodos de Gramani estao diretamente ligados 4s
técnicas de fragmentacao ritmica extensivamente utilizadas por Stravinsky na Histéria do
Soldado, na forma de assimetrias métricas sobrepostos a ostinatos ritmicos independentes.
Luiz Martinez destaca como os gestos musicais participam de todos os campos da semiose
€ como sao astutamente explorados por Stravinsky:
nivel mais evidente da gestualidade dessa obra [a Histéria do Soldado] pode ser loca-
lizado na marcha inicial e nas diversas dancas compostas por Stravinsky... A Marcha do
Soldado, a primeira pega, cujos gestos essenciais tornam-se simbolo desse personagem
em diversas outras situagoes dramiticas da obra, Uma vez que o ouvinte, em suas cadeias
de interpretantes musicais, é ardilosamente conduzido por Stravinsky a pensar que esté
ouvindo uma marcha ordinaria, 0 compositor introduz com maestria suas técnicas de
fragmentacao ritmica, na forma de assimetrias métricas, com grupos de 3, 4 € 6 colcheias
alternados de maneira imprevisivel. (Martinez 2006, 30)
Areferéncia a Stravinsky em Gramani nio se exerceu apenas em um patamar conceitual,
mas, sobretudo, pratico. Como intérprete e habil violinista que era, revelou nesta obra ca-
nénica para o violino contemporaneo suas melhores qualidades como violinista. Gramani
atuou por uma década como concertino da Orquestra Sinfénica de Campinas e participou
como violino solista de uma montagem da Hist6ria do Soldado no ano de 1981-82. A ligacéo
da ritmica gramaniana aos pressupostos ritmicos explorados por Stravinsky estao clara-