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06.htm
O CONCEITO DE LITERATURA *
Gustavo Bernardo
O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
Isto não significa, de modo algum, que a literatura seja o apanágio dos
bem-pensantes, ficando todo o resto para os não-pensantes. Posso
encontrar, se o quiser, outros tantos exemplos de grandes cientistas e
pensadores que não gostavam de literatura. Como bem disse Jean-Paul
Sartre, filósofo e dramaturgo francês, o mundo pode viver muito bem
sem literatura (na verdade, pode viver melhor ainda sem o ser
humano). Entretanto, como o autor destas linhas vive da e para a
literatura, forçamente tende a seu elogio (o que pelo menos é melhor
do que passar a vida lamentando as opção que fez). Descontada esta
parcialidade, podemos retornar ao nosso argumento, historicizando
mais um pouco o conceito de literatura.
Para que o leitor possa lidar com o enigma que a literatura e, quiçá, a
vida, representam, há a necessidade, como Samuel Coleridge formulou,
da “suspensão voluntária da descrença” — the willing suspension of
disbelief —, movimento que todo leitor de poesia precisa fazer para se
permitir “embarcar” no poema que lê, de modo a poder de fato “curti-
lo” (nos sentidos arcaico e popular do termo). A suspensão da
descrença vale tanto para um poema quanto para um filme estilo 007,
em que o espectador se exige embarcar na narrativa como se fosse
verdade. Esta atitude do "como se" (derivada do se ® então que gera
os conceitos e o pensamento) é fundamental, porque, sem ela, o
espectador se sente enganado ao assistir a tanta "mentira". Na
verdade, um bom espectador e um bom leitor desejam ser enganados
— mundus vult decipi, decipiatur ergo —, para que, por sua vez, se
sintam existencialmente capazes de enganar, vale dizer, de iludir,
transformando-a, a própria realidade. Naturalmente, a suspensão da
descrença é uma espécie de exercício que se faz por certos momentos;
se suspendêssemos a descrença para sempre, entraríamos na tela do
filme (como o faz a personagem de The purple rose of Cairo, filme de
Woody Allen) para não sair nunca mais.
Mas esta segunda leitura (que não apenas relê um texto, como também
"lê" a primeira leitura) não basta, se quisermos compreender um pouco
mais o conceito de literatura. Parte da filosofia propõe algo bastante
parecido com a suspensão da descrença, formulada por Coleridge, e
com a "suspensão da suspensão da descrença", que formulamos nós.
Poderíamos chamar este algo, por comparação, de suspensão da
crença — suspensão da crença nos mapas, vale dizer, na teoria, na
filosofia, na ciência. O exercício de “suspensão da crença” é o principal
responsável pelo misto de fascinação e vertigem que continua
provocando a leitura dos livros e do mundo, mesmo no leitor que vai se
especializando. Tal qual acontece com a suspensão da descrença, trata-
se de um exercício que se faz por um momento; depois, precisamos
refazer, embora sob perspectiva renovada, a nossa crença nos mapas
do mundo: na teoria, na filosofia, na ciência.
referências bibliográficas