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MARIA HELENA ROLIM CAPELATO O NAZISMO EA PRODUCAO DA GUERRA Coyperre ene Mr eat timos anos tem apresentado mudangas significativas, ainda irreete ree rence Teens das em toda a sua diens? A globalizagao das 1 mentagdesde producao. ticas de cunho neoliberal.o res- surgimento dos conflitos locais ANC TComTe ery S dos movimentos extremistas, xenGfobos, nosdistanciam me een rercr ron om retterr Ne: poca a Europa, liberta dosnacionalismosbelicistas, fas- tenn) NU Rmeen Soul cee i Cone regulamentagao da economia, comaestruturagdiodos Estados Sociais.queimplementarampo- Ifticassociaisde relativosucesso em Neres te PANU ee enn Cenee od anos 80, como a destruigao do. murode Berlime areunificagao OWA In RARE eres COTonErCa CAROLS Serene n ont eaee blocos de poder, foram sauda- doscomo vitériasda liberdade Mas uma outra face da historia logomostrou que osproblemas artificialmente resolvidos, de: Creer inne Reaper Tren Tres Pear UEeZerne rey enn Ten ene passadoquese buscouesquecer. Peed er eateeo ener o fantasma do nacionalismo CGI en Morn CAPELATO, @ professora do nner Pee aatentc ena teary Ree w ata NIAC rasa Prva cnn te aaa Et eey Urns RCO W CTE CaN aN Pura artN UME 1 ie Cénan et Jean Mare Genin, tara Ea Varo Repair n Joma Taco (aa Revise UBxpess 277 Ss 2 FrangoisFuretOPassadoce ‘mm isdn Fo ae & Pause, casera “Mas 16 os 34 belicistae ameaga a paze ao equilibrio euro- peu. Os crimes af cometidos contra a huma- nidade, as cenas de horror estampadas pela midia, provocaram, na Europa, um grande medo seguido de indagagdes sobre um possf- vel recomegar dos nacionalismos, fascismos, exterminios, guerra geral. Osurgimentodemovimentosradicaisextre- mistas, neonazistas, provocaram 0 receio de retorno do nazismo. As comemoragées do cinglientendrio do armisticio de 1945 deram ensejoa uma salutar reflexdo sobre o signifi- cado da guerra e af se inseriu uma questéo pertinente: “neonazismo - perigo real ou imaginério?” Nessetipode debate, asreferénciashist6- ricasproliferam, Osamadoresdeparalelismos hist6ricos insistem na volta da grande amea- ga; 0s chavdes de miiltiplo uso sao praticos (ria, ossimples fatos desmentem a tese do remeke, como lembram os autores doartigo “Historia. Ela Vaise Repetir?” (1). A hist6riandose repete, continua! Justa- mente porissoé preciso estudé-la,interpreta- Ia e reinterpreté-la sempre que o presente coloque novas indagagdes sobre algum mo- mento especffico do passado. ‘Asincertezas domomentoeasperturba- es provocadas por movimentos radicais e guerras com violagdes extremadas dos direi- tos humanos oferecem uma oportunidade parase revisitar onazismo,momentoespeci- al da histéria da humanidade pelo nivel de violéncia e atrocidades cometidas em nome de um ideal. As andlises sobre esse fendmeno, pro- duzidas a partir dos anos 50, tenderam a integr4-lono conjunto de fascismos ou to- talitarismos: construfram conceitos gené- ricos e grandes sinteses te6ricas paraexpli- carexperiénciasconsideradasdamesmana- tureza. A tend@nciahhistoriogréficaatualea- minha noutra diregdo, destacando as cespecificidades. Desconfiando dascertezas das interpretagdes generalizantes que de- finiam o(s) fascismo(s) como produto da chamada “crise do capitalismo mono- polista” e “crise do Estado liberal” decor- rentes da conjuntura européia do entre- guerras, 0s historiadores atuais preferem debrugar-se sobre as especificidades que permitem uma compreenséo mais aprofundada de cada fenémeno. Optei por uma discussaosobre onazis- ‘mo por considerar que essa experiéncia REVISTA USP, SHO PAULO (26) ainda constitui um desafioAcompreensao do historiador. Quando analisamos a profunda crise da Alemanha no pés-Primeira Guerra Mundi- al, tendemosaelegé-la como fator primordi- al de explicago para o advento do nazismo. Masa depressio atingiu a Europa toda; em muitos pafses surgiram Iideres fascistas e as ideologias de direita proliferaram por toda parte, mas em nenhum pafs foi elaborado e implementado um projetocomoode Hitler. ‘Alembrangadoshorrorespraticadospelo regime hitleristanos faz vir amenteapergun- ta, nunca respondida satisfatoriamente: por que um povo culto e pessoas sensatas apoia- ram um plano paranéico de destruiga0,com requintes, sem precedentes? Ha uma conjugacdo de fatores historicos que explicam 0 advento do nazismo, Eles nunca mais se repetirdo de forma a permitir a reprodugéo dessa histéria, mas a potencialidade de sermos apreendidos por mensagens daquele tipo e de identificagdo com um ideal exaltado persiste. Os micronazismos esto entre nds e esta constatagao por si s6 justfica a evocagio da frase de Brech:“E agora que vocés viram no que a coisa deu, jamais esquegam como foi que tudo comegou”. E com este propésito ‘que me disponho a revisitar onazismo, recu- perando as imagens de violéncia e guerra af produzidas. NaosepodenegarqueaPrimeira Guerra ‘Mundial ajudou a produzir nazismo, bem como os demais regimes definidos como fas- cistas ou totalitérios desse perfodo: eles nas- ceram de um mesmo solo - a guerra - € sio filhos da mesma hist6ria, mas esse cho co- mumnfoajudaacompreenderasuaorigina- lidade, como sugeriu Frangois Furet, em sua anélise sobre ocomunismonoséculo XX (2). Se o nazismo foi um produto da guerra (mas nao s6 dela, como pretendo mostrar) foitambémprodutordeoutraguerra,gestada nos primérdios do movimento hitlerista. Amemériadessaoutraguerra,construida pelos vitoriosos de 1945, reduz o episédio, ‘como sempre fazem os grupos vitoriosos, a uma lutado bem contra omal;esta polariza- ‘¢&o simplista no contribui em nada para a compreensio de um fendmeno tao comple- xo como o nazismo. Nesse regime, que contou com © apoio ativo da maioria da populagio, foram viola- das as regras bésicas da convivéncia social e 82-93, JUNO /AGOSTO 1995 invertidososvaloresestabelecidosereconhe- cidos como uma espécie de bem comum da humanidade. Renato Mezan refere-se a um mundo de ponta cabega, posto as avessas. Nele, fantasias psicéticas foram postas em pratica,o“bem” tornou-seo“mal” eos valo- res positivos foram considerados negativos. O nazismo apresentou um projeto de embelezamento do mundo através da exradicagao do feio, sujo, maléfico, im- puro. Beleza, pureza ¢ harmonia repre- sentam ideais da nossa cultura, mas em nomedelesse impos aestetizacao do ddio, REVISTA USP. SHO PAULO (26) davioléncia, da destruigaoe da morte (3). As anilises de cunho psicanalitico pro- curam explicar porque as pessoas “normais” entraram numa relagdo de amor com um chefe psicopata, Wilhelm Reich procurou responder, com recurso & psicologia coletiva ddas massas, por que houve apoio téo grande a.um sistema patol6gico. ‘A interpretagiohistérica vainoutradire- ‘20. O historiador de hoje reconhece:a im- porténcia das contribuigdes da psicandlise e se vale delas, mas o seu caminho é o da reconstituigao histérica. Nessa perspectiva, 82-93, 1UNHO/AGOSTO 1995 OS PILARES DA Socimbase, OLeO si GROSZ, 1926 {3 RenatoMezen pss sobre ‘ ceeumentaa Arquetra i Desde, Masou Laser Sogate 145. as 4 Dominique Plssy, Lo Signe Naz 86 a, Fayard,1989 procurarei desvendar o significado das ima- ‘gens,simbolos emitos que esclarecem arela- do do nazismo com a guerra. A compreensio da légica de dominagéo proposta pelonazismo passa pela andlise dos signosedasua recepga0. Dominique Pélassy fezuma viagempelouniverso simbéliconazi, explicitando o significado dos simbolos, ges- tos, ritos (tragos, cores, ritmos, slogans) que desenham a paisagem alema da época. Sali- centa a originalidade desse modelo por um olhar comparativo que permite mostrar as diferengase destaca aimporténcia da heran- ‘ca cultural alem na explicacdo do fenéme- no. Hitler nao é um ator solitario nessa hist6- ria, Emite mensagensques6ganhamsentido porque ecoam no piblico, Oregime dialoga, permanentemente, com os seus parceiros: a cultura alemé e 0 individuo. ‘Narelagio lider-massas, osignosecoloca ‘como instrumento de mobilizagao. Por um. jogo de identificagoes, ele encadeia os indivi- duos ao her6i, catalisa a violéncia e permite descarregé-la sobre os “bodes expiatérios” domomento, Untvocona aparénciaostenta redes deidentidade,queconciliamoscontra- rios e materializam a comunidade alema li- gando o presente ao passado. O signo, difundido pela propaganda, pe- netra em toda parte (cantinas, lojas, escolas, lares, lazer). Nao se permite o reftigio ou iso- lamento na vida privada. A cena pilblica se impde sobre todos (4). Numa sociedade cheia de descontenta- mentos, o nazismo oferece um ideal revolu- ciondrioquetemporbaseacomunidaderacial germanica. Num mundo incerto, ele busca certezas no passado. A revolugdo promete a criagdio do Homem Novo - ariano - contra seus corruptores: judeus e outros. A pulsdo de morte esté no cerne das re- presentagdes nazistas: na roupa preta da SS, na caveira desenhada nos quepes dos mili- tantes,nolemadasSA (“tdodistantedomedo etdo préximo da morte, saudacdo ati, SA”), em inscrigdo no frontao de uma casa da ju- ventude hitlerista (“nascemos para morrer pela Alemanha”). O nazismo formou uma geragao voltada paraa morte. A violéncia, aluta, osangue, a {guerra so elementos constitutivosdoimagi- nériosocialalimentadopelapropaganda. Mas 0s imagindrios sociais, como diz Bronislaw Bazsco, s6 proliferam onde encontram chao REVISTA USP, SHO Paulo (269 propicio. Essechdosemostrouextremamente fértilnaconjunturadoentre-guerras, mas foi preparado ao longo dahist6ria alema, fazen- do parte da sua cultura. Muito se insiste no fato de que omazismo fo} produto da derrota da Alemanha na Pri- meira Guerra Mundial: 0 Tratado de Versalhes estaria no coragao do nazismo. Hitler, de fato, soube explorar bem os senti- mentos de humilhagdo, impoténcia, insegu- ranga do pés-guerra. Conquistou as massase © poder porque foi sensfvel aos anseios do povo. Propés, nesse momento de crise agu- da, um projeto de domfnio do mundo pela raga ariana. Por um mecanismo de compensagdo de recalques, o projeto veio a calhar nesse mo- mentode agudas frustragSes,mass6 ganhou adeptos porque a idéia de superioridade do povo germinico fazia parte da tradicao cul- turalalema:umacultura nacionalistaeracis- ta, construida ao longo de séculos. Os nazis- tas souberam_ valer-se dela no momento adequado. Hitler era o lider que os alemaes espera- vam, Joseph Goebbels, em 4/7/1924 escre- veu em seu dirio: “a Alemanha anseia pelo homem, assim como a terra sob o sol anseia por chuva... senhor, mostre um milagre a0 povo alemao! Um milagre! Um homem!” Omilagre alemao ¢ fruto da histéria ale- ‘m&. O projeto de conquista do mundo foi escrito a partir dessa historia e conseguiu sucesso por ter sido plantado no solo fertilissimo da sociedade alema do entre- guerras. A RECUPERAGAO DO PASSADO O nazismo consagrou um estilo politico que foise configurando ao longo doséc. XIX ara expressar a unidade do coletive através demitos e simbolos da nagao. Noiniciodesse século, desenvolveu-se uma liturgia que per- mitia a participagio do povo em cada cultoe por esse caminho se deu a transformagio da “multido castica” em movimento de massa onganizado. O“novoestilopolitico”, segundo George Moose, surgiu conectado com o nacionalis- mo,com o movimento ¢ politica de massas do inicio do séc. XIX, que se opuseram & cultura liberal, democratica, de representa- go parlamentar. O autor acompanha 0 seu desenvolvimento na Alemanha, des- 42-93, JUNHO/AGOSTO 1995 de o periodo que antecede a Unificagao. nacionalismo firmou-se baseado na Volk, vistacomo uma entidade unidasusten- tada por mitos e simbolos hist6ricos; através dos mitos que jé indicavam a superioridade da raga germfinica, buscava-se-criar a totali- dade do mundo e restaurar um sentido de comunidade na fragmentada nagio. Os mi- {0s tornaram-se operacionais através do uso de simbolos visiveis que estimulavam a par- ticipagao popular nos espetdculos puiblicos (comemoragdes patri6ticas, festivais). impulso através dos simbolos tfpicos do romantismo alemAo, juntamente com os mitos populares davam ao povo o sentido de sua identidade. Essenciais no cristianismo, os simbolos tomaram forma secularizada no culto nacio- nal germnico. Dentre os varios tipos de liturgia, destacavam-se os jogos violentose a gindstica, pilares dos festivais piblicos. Oenvolvimento diretocom as massas fez com que a politica se tornasse um drama ori- entado por um ideal predeterminado de be- leza: “atosde devogao devem acontecer num belo contexto”. O culto nacional, distante dos sistemas l6gicos, racionais, se baseou numa estrutura teol6gica onde osritos liturgiassdo centrais parte integrante da politica. O nacionalis- ‘mocorstituiu-secomo movimentodemassa, orientadopor fervorosacrenga quese tornou a forga maior do movimento (5). Esse estilo politico, gestado no infcio do s6¢. XIX, atingiu seu climax no nazismo que conquistou popularidade porquese valeude ‘uma tradi¢go consagrada. O nacional-socia- lismo aperfeigoou esse estilo, valendo-se das técnicas sofisticadas de comunicagao de massas da 6poca. Onazismo valeu-se, também, de um ou- {ro trago importante da cultura alema. Ao longo da hist6ria da Alemanha, foram se desenvolvendo intimeras associagdes. Lionel Richard refere-se a essa tendéncia & organizagio e vivencia em grupo jé relatada por viajantes no séc. XIX que se referiam a0 “nstinto” gregério do povo alemdo. ‘Os movimentos de juventude nazista fo- ramherdeirosdemovimentoscongéneresdo séc. XIX que se caracterizavam pelo naturismo. Pregando retomno & natureza 28 forcas primitivas, os jovens propunham ba- nir os botdes, chapéus e gravatas. Cotn saco- las nas costas, camisas abertas e botinas, se REVISTA USP, SKO PAULO (26) embrenhavam pelas florestas, dormindo ao arlivre,reunindo-se, 4noite,emoltadeuma fogueira, entoando cénticos ao som de bandolins e violoes. O tradicional movimento dos “péssaros migradores” (criadopor Karl Fisherem 1897) se destacou pelo protesto contra a autorida- de dos adultos, contra os males da industria- lizago, contra o cigarro, contra o dlcool. A regra bésica era emancipar-se de tudo: esco- la, pais, h4bitos urbanos. A integragao dos jovens nesse tipodemovimentose explicano contexto de uma sociedade repressora onde a disciplina e o autoritarismo do lar se com- pletavam na escola. Acscola imperial tinha um sistema opres- sivobemilustrado pelascaricaturasqueretra- tam oprofessor no papel dealgoz. Seusinstru- mentos de trabalho eram a vareta € 0 bastao. Em1921,um professor apresentouaopiiblico ‘obalango de sua carreira através de ntimeros ‘que atestavam suaseveridade. Emtrinta anos de profisso administrou aos seus alunos 911.500 bengaladas, 130.000 reguadas na pal- ma da mo, 10.200 socos na orelha, 223.700 bofetadaseconcluiu,comsatistacdo: “Kassim que se forma a juventude” A reforma de ensino proposta pela Re- piiblica de Weimar nao conseguiu alterar a situago. Além de contar com a reagdo dos conservadores, religiosos, sobretudo, a gra- ve crise econémica impediu a realizagéio de mudangas significativas. O movimento de jovens, que se iniciara com propésitos de protesto contra a educa- do opressora, acabou se integrando na con- cepeéo autoritéria predominante na socie~ dade. Além dos agrupamentos politicos ou religiosos, as organizagies de jovens eam intimeras e foram presas féceis do Nacional Socialismo porque da contestacao a opres- so passou-se a exaltaco da camaradagem viril e culto ao chete, guia incontestavel. Os nazistas recolheram, em proveito pr6prio, cesses impulsos dos jovens para a natureza, comunidade e culto ao chef. Pouco a pouco, as organizagies nazistas mais dindmicas atrafram para si os diversos movimentos de extrema direita como 0 dos “Lobisomens” e 0 dos “Capacetes de Ago”. ‘Uma parcela significativa da juventude tam- bém se incorporou ao nazismo. Osmovimentos associativos proliferaram nesse interim. Em 1927 havia cerca de 40,000 associagdesde diferentestipos. Na Alemanha 82-93, JUNHO/AGOSTO 1995 Throught the Third Reich Now York, Howard For, 87 NA OUTRA PAGINA, Cantar cLAssico Be'ADOLFMiTLen, De ANTES DA GUERRA, QUANDO ONACIONAL” Soctatismo ena um WOVIMENTO. Pouirico eM FRANCA ASCENSKO 6 Lonel Richard, A Replica io Wolmar (cap. “Associ (hespara Todo". So Pau {e, Companhia das Los, ‘ee 88 da época, escapar a um grupo, organizacio, partido, era excepcional. Muitos desses gru- pos tinham carter paramilitar. Em 1918, os soldados desmobilizados formaramcorposde voluntérios. Essas associagbes secretas para- militares, com fachada de movimentos patri6- ticos de ex-combatentes, praticavam atos de terrorismo e se preparavam para uma futura guerra de revanche. Elas se destacavam pela agressividade. Seus integrantes, em grande niimero, faziam treinamento intensivo de gi- néstica e praticavam ages violentas (6). O Partido Nacional Socialista, organizado de acordo com 0 modelo militar, tinha uma segio deesporteegindstica que preparavaum corpo de elite. © grupo de assalto - SA - de- sempenhou um papel ofensivo de extrema violéncia na sociedade: invadia os teatros, ci- nemas, cabarés, espancando as pessoas. Os militantes nazistas nao eram numeri- camente significativos na Repiiblica de ‘Weimar masseimpuserampelaagressividade intimidadora. Naoaceitavamodito"olho por olho, dente por dente” e afirmavam “aquem nos tira um olho, arrancamos a cabeca”. Aviolénciatambém podeseridentificada como um tragodaculturanazista. A épocade Bismarck se caracterizoupor umapoliticade unidade nacional feita pelo alto a “ferro e sangue”. Valores como autoridade, hierar- quia, orgulho da raga, culto ao exército, espf- Tito de sacrificio, chauvinismo, se firmaram nese momento. A partir de 1870, desenvolveu-se osonho deuma Alemanha forte,submetendoao seu jugo povos “inferiores” como os eslavos, Guilherme II decantou os altos valores da cultura alemd e a superioridade da raca. NaPrimeira Guerra Mundial os jovensapoi- aramsua politica belicista ese prontificaram amorrer pela patria. A educagio e os movimentos de jovens doséculoXIX exaltaramo vigor fisico, asai- de ea formacao moral que exigia fidelidade, obediéncia, patriotismo eautodisciplina Esse programa era seguido nas escolas. Em 1842, foiintroduzida a ginéstica nas escolas secun- dérias e, em 1862, nas primérias. A imensa literatura de guerra pregava 0 herofsmo. Alémdissoseestimulavamasagées violentas. Em 1914, os professores recebe- ram instrugdes para fazer com que os alunos se interessassem pela guerra. Essa educago patriética, de caréter militarista, explica a formagdo dos batalhées de estudantes vo- REVISTA USP, ShO PAULO (26) luntérios na Primeira Guerra Mundial. O ataque dos jovens despreparados fracassou, mas criou-se a imagem de uma juventude corajosa, obediente as ordens e dedicada & pitria, sacrificando por ela a propria vida, Em 1922, o Partido Nacional Socialista ctiouomovimentojuvenil parareunir segui- dores que ainda nao tivessem completado a idade para integrar-se nas fileirasda SA.Em 1926 recebeu o nome de Hitler Jugend (Ju- ventude Hitlerista). A partir de 1936 a incor- Pporacdo dos jovens entre dez e dezoito anos ‘a0 movimento passou a ser obrigat6ria, A formagao dos jovens se direcionava para oestimulo & luta e sacrificio da propria vida pela patria e ideal nazista. A organiza- do da Juventude Hitlerista buscara inspira- ‘go no pedagogo Jahr, fundador das “socie- dades de ginéstica” apésaderrotadaPrissia em enae aentrada de Napoledona Alema- ha. A constituig&o dessas associagdes pa- triGticas se destinava ao enfrentamento do invasor. Jahr ensinava educagio fisica com vistas a preparacao militar. O ideal de constituigao de uma raga vigorosa e pura orientava o seu trabalho. Apés 1815, tornou-se arauto do ‘germanismo e anti-semitismo, Pregou o ra- cismo, pela selecdo de uma raga vigorosa e pura, culto do corpo e virilidade; opés-se a0 uso de Ifnguas estrangeiras e seu ensino nas. ‘escolas; Iutou contra 0 liberalismo e idéias republicanas. Em 1817, jovensestudantes que haviam incorporado esse idedrio promoveram, em frente aocastelo de Warterburgue, préximo a Tena, uma queima de papéis simbolizando obras de escritores adversdrios. Posterior- ‘mente, os.jovens nazistas participaram da queima de obras “degeneradas”. O regime nazista reverenciou Jahr e a Juventude Hitlerista 0 elegeu seu patrono. ‘A pedagogia navista preparavaosjovens paraamorte. Ojuramentofeitoriosrituaisde assagem selava 0 compromisso de sacrifi- vida pela causa. Com inicio da guerra, s esforgos educacionais se voltaram para a formagdodo futuro soldado. Nasescolaseram realizados trabalhospréticosemcontatocom a natureza; estudava-sea quimica dos explo- sivos, a geografia aplicada & estratégia de combate e exercicios de orientagéo no terre- no; ahist6ria focalizavaos feitosde arma os her6is guerreiros. Fazia parte do material de escola, livros sobre Esparta ou estérias de 82-93, JUNHO /AGOSTO 1995 homens nérdicos em combate, Os manuais escolares exaltavam a vit6ria pelo sacrificio. A REPUBLICA DE WEIMAR EA “PREPARAGAO PARA A MORTE” A Primeira Guerra Mundial e 0 Tratado de Versalhesrepresentamopontodepartida da politica de Hitler. Reavivando tragos da culturaalema,numcontextoaltamente favo- ravel A pregaco nacionalista, o nazismo se fortaleceu tirando proveito da situagao do pés-guerra. O impacto da Primeira Guerra Mundial fezsurgir,na Europa,novasondas de riticas aos valores das Luzes, descrengana domina- @oracionaldomundoevirtudescivilizadoras daciéncia. A reabilitagao da violénciae valo- rizagao dos instintos, jé presente no pensa- mentodeautoresdoséculoXIX, foireavivada no cen4rio do pés-guerra. A vitéria do bolchevismoproduziunovosmedose provo- coua transformagio de movimentos de criti- ca ao capitalismo em movimentos contra- revolucionérios. Aoanticapitalismoseacres- centa o antimarxismo na composigao das doutrinas fascistas. Nasituagdo decrise provocadapelaguer- rae pelo temor da revolugao comunista, se- tores das elites tradicionaise da classe média passaram a ver a politica fascista como alter- nativa para os problemas da sociedade (7). Nese contexto, asituagéoda Alemanhaé particular. A Conferénciade Pazrealizadaem Paris,em 1919, produziu um documento, que ‘osalemaesdenominaram diktat,ondeos vito- riosos exigiam, além da entrega de territ6rios coloniaiseregiGesalemas dentreelasa Alsécia a Lorena, conquistadas dos franceses em 1871), adesmilitarizagdo do pais,além da fixa- «lo de pesadas somas em dinheiro e matéria- prima a titulo de reparacdo de guerra. ‘A modificagio de fronteiras, a carga fi- nanceira das reparagdes, a situagao de misé- ria decorrente da crise econdmica, o desem- prego, que em 1932atingiu 44% da popula- G40, a inflacio galopante explicam, perfeitae mente,oclima deangéstia,medo,inseguran- ae revolta contra o adversério vencedor da guerra, Nesses anos cruéis da Repiblica de Weimar, Berlim tornou-se a cidade simbolo daculturae da miséria. Por um lado, asitua- ‘0 de crise estimulou uma produgdo artisti- ‘ca muito significativa, por outro, fez prolife- REVISTA USP sho PauLo (26) raramisériamais violenta:conta-seque,nes- sa época, um quilo de po valia milhées de marcos e um jovem, um mago de cigarros. Essasituagiofavoreceu osradicalismose allutasocial entre movimentosdeesquerdae direita, provocando um quadro de violéncias quea Reptblicade Weimar se mostrouinca- paz de controlar. Nessa luta, todas as armas foram usadas: abatalhacomarmasdefogosecomplementa com a batalha de simbolos e até mesmo as artesse envolveram nessa guerra. A artesem compromisso social tornou-se praticamente impossivel. Daartecriticadosexpressionistas a arte engajada da esquerda miltante, todos se manifestaram perante a crise. SegunciooartistaGeorgGrose,aarteque nao servisse de arma na luta politica perdia, para ele, qualquer sentido naquele momen- to. Suapintura Os Esteios da Sociedadereve- la um painel critico da politica: imprensa, justiga, forcas armadas, igreja constituem ‘elementos pict6ricos de sua dentincia & Re- piiblica de Weimar. A figura do “homem de cabega oca”, presente em varios quadros, se presta tanto a representagio do professor de gindstica dando urras, como do adepto do nacional-socialismo. Em outrasobras,retra- taocaose ocrime que imperam nas ruas das cidades. Os miiltiplos efeitos da guerra so expressos por seu traco caricatural, de forte contetido critico. Oexpressionista Otto Dix traduz, napin- tura, sua experiéncia de combatente da Pri- meira Guerra Mundial, Além da visio trégi- cadoconflito, suaobraretrataadesvastagao, miséria e corrupgdo que assolam a Alema- nha. Através das imagens de prostitutas, mendigos, operdrios, militares, burgueses, exprime a presenga da violencia e da morte rondando a sociedade. Apsicose de guerra, queseespalhoupela Europa a partir de 1914, atingiu o 4pice na Alemanha derrotada. As lembrangas do conflito provocavam horror e a derrota esti- mulava desejos de desforra. Na frégil Repi- blica de Weimar, 0 nazismo se fortaleceu, acenando com um projeto de libertagao do passado e purificagao. Acultura nazista se organizoucom vistas a “preparago para a morte, redentora”. A exaltagdo da violencia e exterminio dos fra- cos se juntava a énfase na necessidade de aprender a matar. Em 1929, Hitler declarou: “Quem no tem forga para fincar sua arma 82-93, JUNHO/AGOSTO 1995 nocoragao do adversério ndomerece condu- zir um povo no combate: por seu destino”. A Ginica lei a orientar o percurso era ada forca, luta sangrenta e morte (8). Alendacriadaem tornodoputschde1923, conta a hist6ria do porta-estandarte mortal- mente ferido,cujosanguegloriososeespalha pelo estandarte, miraculosamente conserva- do. Essa relfquia era usada no batismo de novatos da SA ou SS. A morte simbolizava sactificio a gloria da nova humanidade. O ariano, esse ser mitico, inventado ou reinventado pelos navistas, representava a afirmagao da superioridade pela pratica da violencia, Os seres inferiores precisavam ser exterminados porque traziam em siogerme dadecadéncia cultural. A novacivilizagaose imporia pela morte. ‘Albert Speer, 0 arguiteto do Reich, em seu livro de memérias, comparou Hitler a0 reiMidas:"“Tudooque ele tocava se transfor- mava em corrupgdo e morte”. Mas a violencia nazista nfo se reduz. a ‘essa imagem perversa de Hitler. Muitosindi- viduos cultivados, como o préprio Speer, colaboraram na “producao da morte”; isso levaaconcluir quea aquisicaoda culturanao fasta da consciéncia humana a tentagao de barbarie, Como disse George Steiner: “De- pois do nazismo nao podemos mais ser ino- centes a respeito da literatura, linguagem, educagaoporquenioignoramosquese pode ler Goethe, Rilke, ouvir Bach, Schubert eno seguinte construir campos de concentra- fo”. Esta reflexdo é vlida também para a atuagdodosmédicosalemies (50% delesper- tenceu ao Partido Nazista) frente ao progra- madeeutanésia. O juramentode Hipécrates se anulava perante o juramento de obedién- cia as ordens do Fuhrer. A GUERRA CONTRA AS “VIDAS ‘QUE NAO MERECEM SER VIVIDAS” Durante a Repiiblica de Weimar, Hitler arquitetouo projetodeconquistadomundo pelosarianos. A guerra jé fazia parte deseus célculosantesdaascensiioao poder.O Reich, que sob preponderdncia dos alemaes deve- ria realizar a escravizago do restante da terra, s6 poderia operar por meio da violén- cia e terror. Para Hitler, a verdadeira decisao da vit6- ria final dos superiores sobre os inferiores, Revista use, Sho PAULO (26): 82-93 dos fortes sobre os fracos, nao se daria sem derramamento de sangue, Os acordos nao eram para se levar a sério porque no custa- vam sangue. Osimbolo da éguia sobre o globo terres- tre, contrufdo em 1939, representa o projeto nazista de dominio do mundo. A guia, ani- mal sagaz, que, do alto paira sobre tudo e todos, simboliza a superioridade alemé so- bre o mundo. A guerra, na representagao nazista, sig- nifica um banho de sangue purificador. Estas e outras imagens, como a da cruz gamada (que sugere a idéia de movimento, agdo) ou da SS (que representa a serpente furtiva, rapida, com capacidade de dissimula- Go, para melhor realizar a destruigdo do ini- ‘migo), foram mobilizadas intensamente pela propaganda que visavaconquistar asconscién- cias e “preparé-las para a guerra e a morte”. Chegando ao poder, Hitler proclamou ‘umalutaimpiedosa contraosinimigoseinfe- riores. A depuragdo envolveu judeus,comu- as, pacifisas, liberais, adversérios que manifestavam suas idéias através da impren- sa, da universidade, da literatura, do teatro, do cinema e das artes plésticas. Em 1939, programou,com acolaboracao de médicos do Partido, o assassinato buro- craticamente organizado dos seres conside- rados inferiores. © programa de eutandsia propunha a “destrui¢go das vidas que no valiam a pena ser vividas”. Valendo-se de iiimeros que calculavam 0 custo para a so- ciedade da manutengio de velhos, doentes incurdveis, deficientes fisicos e mentais, 0 programa propunha a eliminago desses se- res em nome da pureza da raga. O proceso de exterminio de judeus, eslavos, ciganos, comunistas, homossexuais, etc., nos campos de concentragao, foi muito divulgado apés o término da guerra. Mas 0 programa de eutandsia & pouco conhecidoe discutido, tantona Alemanha,comonoresto do mundo. O psiquiatra alemao Michael Von Cranach apresentou um textomuitoimpres- sionante sobre o tema (9). Valendo-se de obras jé publicadas sobre o assunto e dados coletados na Instituigo onde exerce suas atividades (Hospital Regional de Kaufbeuren), o autor expde 0s procedimen- tosdo plano de eutandsia nosseus diferentes momentos. Em fungio das pressdes internas e inter- suNwo/aGosto 1995 © Lonel Rita, Le Naima atin Calter, o Eattans Complore, 1868 9 Menao! ven Cranseh, The lquaten otmenta patent ‘tkaxcsbeuronteoabotneer 1299 ang 948, Goteborg, “paper apaseniaco na Er onto da Swedian Pay ‘hate Assen, 1000 ot oLinetFiharop et» 15, 11 René Grad LeVine tle ‘Stors, Pans, Grasexs972 92 nacionais, o programa foi modificado, em 1941, passando do assassinato por incinera- do para o plano de morte por desnutricao, queconsistianadiminuigoeempobrecimen- to da dieta alimentar. Na primeira fase foram mortos, aproxi- madamente, 60 mil pacientes. Ao completar 10 mil incineragées, houve celebragio. Até hoje, parentes das vitimas se perguntam o que ocorreu com seus familiares quedesapa- receram dos hospitais sem conhecimento da familia. Algumas cartas mencionadas pelo autor relatam 0 desespero dos pais cujos fi- thos desapareceram da instituigao ondeesta- vaminternados, apretextodanecessidadede transferéncia de hospital; nunca maisse sou- be do paradeiro dessas pessoas. O autor relata, também, o testemunho de padres, enfermeiras e funciondrios dos hospitais,queajudaareconstituir osprocedi- mentos do crime: os pacientes eram, em ge- ral, retirados no meio da noite do hospital, conduzidos a um patio interno e transporta- dos por um vefculo para local ignorado. Findooprogramadeeutandsiaporincine- ragdo, iniciou-se operfododachamada“‘euta- nésiaselvagem”.Emnovembrode 1942, dire- toresdehospitaisda Baviera receberammen- sagem secreta comunicando um encontro a set realizado no Ministério do Interior, De- partamento de Satide,em Munique, declara- do como segredo de Estado. O programa de eutandsia por desnutrigdo, que daf resultou, consistia na administrago de uma dieta ma- gra que levava os pacientes A morte em trés meses. O autor descreve aprolongadaagonia dos pacientes submetidos a “dieta E”, Apés impressionante descrigao do coti- diano dessas préticas, o autor conclui com a pergunta: como se explica que pessoas inte- ligentes, talentosas descritascomomédicos devotados, puderam fazer semelhante coi- sa? Manifesta, também, sua perplexidade diante dosilénciodasgeragdesde psiquiatras do pés-guerra sobre esses crimes. Recorre a Hannah Arendt para concluir que o sistema totalitério isentavaas pessoas de responsabi- lidade moral sobreseus atos; quanto omis- so dos psiquiatras sobre esse passado, acre- dita que isso se deve A persisténcia de aspec- tostotalitérios nas instituigdes psiquidtricas. As dentincias do médico alemao reve- lam os requintes de violéncia e crueldade de um plano racionalmente arquitetado para exterminar as “vidas que ndo valiam a pena REVISTA USP, SHO PAULO (26) ser vividas”. Esse plano fazia parte do proje- tode “preparagdoparaamorte” donazismo, Aescalada de violéncia comegou na Re- piiblica de Weimar, que se mostrou impo- tente para controlé-la. O poder judiciério que, nas sociedades modernas, tem a fungao de controlar a violéncia, s6 é eficaz quando associado a um poder politico forte. O regime nazista constituiu um poder fortequedeixou delado osistemajudiciério, recorrendo a préticas sacrificiais Para entender a politica de exterminios do nazismo, reporto-me a interpretagdes so- bre as praticas sacrificiais das sociedades reli- giosas,ondeaimolagaodecertas vitimasesco- lhidas para satisfazer o apetite da violencia da sociedade servia de alimento para todos. A violéncia interna, oriunda de rivalida- des de varios tipos, leva & prética de sa- crificios com a pretensdo. de eliminar os confltos, restaurando a harmonia da comu- nidade e reforgando a unidade social. Osacrificio dos “impuros” na Alemanha de Hitler visava unir os coragées arianos, estabelecendo a ordem. Por um processo de transferéncia coleti- va, as vitimas carregam as tensées internas, rancores, rivalidades. Polariza-se sobre elas, 8 germes da dissensio, Num clima de tran- qililidade e seguranca o sangue nfo aparece. Ele se torna visivel com odesencadeamento davioléncia,como ocorreu a partir da Repi- blica de Weimar. O cAntico dos militantes cexpressa bem o nivel de violencia: “Afiai vvossas longas facas na calgadal/ Temperai-as nagordura dos corposjudeus!/Osanguedeve correr em espessos jorras ..” (10), ‘Osangue que jorra descontrolado é con- sideradoimpuro; ele contamina. Mas osacri: ficio das vitimas, os inimigos da raga ariana, Tepresentava, para os nazistas, a purificago dasociedade. Oregime organiza programa de extermfnio para “salvar a raga ariana”. O nazismo canalizou a violéncia des- controlada para as vitimas imoladas, A convergenciade ddios,rancores, divergen- cias, frustragdes para os “bodes expiat6rios” significava uma tentativa de apaziguamento da sociedade. Comosan- gue das vitimas, o regime pretendia liber- tarasociedade da autodestruigao. Prinef- piodedesordem, a violencia foijustificada como fator de ordem (11). O exterminio de milhares de seres nao era alardeado pela propaganda, ao contré- 82-93, JUNHO /AGOSTO 1995 rio, procurava-se ocultar essa face violenta do regime. J4 em torno da guerra, muita propaganda foi feita no sentido de mobilizar a populagio para ela. A GUERRA COMO ESPETACULO ‘A guerra planejada por Hitler, desde a ctiagao domovimentonazista, foi decantada pelos meios de comunicago, nas obras lite- rarias, nos discursos politicos, nas escolas. Goebbels promoveu a realizacao de varios filmes que idealizaram o conflito. Eles mos- travam a Alemanha se defendendo das po- téncias demonfacas que a atacavam; a posi- 0 agressiva aparecia como defensiva. ‘Nocinema, a Alemanha nao perdeu ne- nhuma batalha. Asmortes perdas materi- aiss6aconteciam dolado doinimigo.Nofront alemao, aparecem 0s soldados corajosos ¢ a camaradagem militar. Em algumas peliculas, a guerra se tor- nauma festa: em Stukas (Karl Ritter, 1941), ela €representada em forma de opereta;a proeza técnica dos pilotos, o rufdo das es- quadrilhas o som da explosdo de bom- bas se alternam com refroes wagnerianos. ‘Aagressaoalemacontraa URSSseapre- sentava como conquista legitima do “espago vital”, caro a velha teoria pangermanista do infcio do século; alguns filmes mostravam a subjugagéo do mundo eslavo “subumano”, degenerado,em proveitoda‘super-humani- dade” germanicaealutaparaaliquidagao do comunismo. ‘Apés a euforia das primeiras vit6rias, os alemaes perderam, no final de1942,ainiciativa das operagies, € se colocaram na defensiva. Diante das derrotas, a propaganda cessou de prometer vitGria certa, deslocandovas atenges para a dentincia da barbie comunista, Karl Ritter,em Guepeau (1942), denunciou atos ter- roristas dos servigos secretos soviéticas; seus agentes erampersonagenssanguindrios,detipo mongol, cabega raspada, vidos de sangue. Em fevereirode1943, diantedeumagran- de manifestago no Palécio dos Esportesem Berlim, Goebbels conclamou o povo a uma guerra total e a resistr até a morte (12). Enquanto as cidades eram destrufdas, a populacdo assistia a filmes de amenidades. No final de 1944, quando a derrota jé era evi- dente, Goebbels encomendou um filme no qual se empenhou particularmente. Trata- va-se de um drama hist6rico sobre a herdica PEVISTA USP, SKO PAULO (76) resisténcia dos alemes, numericamente in- feriores, frente aos exércitos de Napoledo. Ficou téo entusiasmado com o espeticulo, quedesviou200.000soldadosdalinhadefren- te para atuarem como figurantes, Conside- ravamaisimportante que atuassem no filme do que na guerra, j4 praticamente perdida. ‘A Alemanhafoiderrotadacompletamen- tema primaverade 1945. O Reich milenar de Hitler, cujo estilo arquitetural monumental deveria assegurar a perenidade doseu pode- rio, tornou-se um campo de ruinas, O suic diodo Fuhersignificouum finalcoerentecom. 0 seu projeto. plano arquitetonico de Berlim, que deveria ser conclufdoem!950, fazia partedo plano onipotente de conquista do mundo, para seu embelezamento e harmonia. Sem. conflito sangrento ele seria invidvel A vit6- tia representaria a vit6ria dos arianos e seu. dominionomundo. Masahist6riacaminhou noutra direcdo ea propria guerrase encarre- gou de destruir os sonhos de Hitler. Oprojetohitlerianopressupunhadestrui- $40 dos inferiores, mas acabaram sendo destrufdos aqueles que deveriam ser os ven- cedores. Pela légica do delirio nazista, quem supera é vencedor: ele € 0 mais forte, o me- thor, o superior. A derrota nao tem lugar nessa visio triunfalista, Hitler confessou a Speer: ““Seperdermos aguerra,tambémopovo estard perdido. Naoé precisose preocu- par com as bases materiaisnecessérias & sobrevivéncia mais primitiva. Pelo con- trério, é melhor destruir as coisas pois 0 povoalemaose mostrouo mais fracoeo futuropertence exclusivamente aopovo oriental, omaisforte. Dequalquermodo, que resta depois desta luta so os infe- riores: os bons tombaram!”. Aqui, comenta Elias Canetti (13), a vitoria 6 expressamente declarada a instancia supre- ma. A derrota ansforma o povo superior em inferior. Se, nessa luta, os “bons tombaram”, osquerestaram, inclusive Hitler, sfoinferiores, J4é.queopovo,impelido por Hitler paraaguer- ra,semostrouomaisfraco,também oque dele restandodeve sobreviver,acomecar pelolider. No ato de sua autodestruigao, Hitler se identifica com a massa dos que mandara ex- terminar como inferiores. Um ato coerente com o seu projeto destruidor. 82-93, 1UNHO/AGOSTO 1995 12 Adolin Guyot ot Patrick Rectal arnaz ron ations Compan, 1987 18 Elias Cant Hier, por ‘Spear,nA Conscindae Paiewas SSoPso, Compe: ‘is Lets, 1000 23

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