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an /melia =} ort Sed ine ete oneness Perea tmcort Roemer Oem) erie Hoje, a primeira questao que nos See cone ya ec Souceree au cane sbi ey sua forma. Como entender esas Pantie ane ee ana ae rn ee ee Se ieee ee eee cidas dentro de espacos de controle fercantis que acabam pa ecompor o vinculo social, a pritica artistica aparece como um campo fértil de experimentacées sociais. Bourriaud investiga a sensibilidade coletiva em que se inserevem essas novas formas da arte. E detém-se na verlente convivial ¢ interativa dessa revolugdo, procurando saber por que os artistas passaram a produzir mo- delos de socialidade a se situar dentro da esfera inter-humana, Extaica relacional traz a0 leitor essas novas formas de atividade artistica, indo de Maurizio Cattelan, com ratos alimentados com queijo, passando por Bel Paese, até chegar a Noritoshi Hirakawa e seu pequeno classificado & procura de uma jovem que quisesse participar de sua exposido. Sa0 as realizacdes do cotidiano humano, por meio da pratica artis tica e da tentativa da arte em abrir algumas passagens, que efetuam algumas ligagdes e colocam em con= tato diferentes niveis de realidade, NICOLAS BOURRIAUD ESTETICA RELACIONAL DENISE BOTTMANN martins Martins Fontes ae (© Les presses du rel, Dijon, 1598, Livan Ltd, So Paul, para a pesente edict to. 103 B ai TEES reese acess eee 3f on ZAlinsy 4 os nmin Canlaon Pubic) Wowrasd Naas Enc elon Nica ucaud; ade Denise tan SioPeslo: Mastin 203. (Colg'Tasn Anes ial ceigna Fatigue felon BEN Siete al Aso soitade 2 Ace mdr Sut: .Ciuneaghoem arts L Tule See Tadices para cilogosistomitice Wate Baia leona Todos os direitos desta ego para o Brasil reservados & Martins Edina Livearia Leda Av: Dr. Arnaldo, 2076 91255.000 San Paulo $P Brast Tel, (11) 316.0500 Info martssediora.com be ows martnsmartinsfontes.com br SUMARIO Introdugio A forma relacional . As priticas artistas contemporineas ¢ seu projeto cultural : A obra de arte como intersticio social A estética relacional e 0 materialismo aleatério A forma e 0 olhar do outro .. A arte dos anos 1990 articipagto e transitividade Tipologta ‘Conexées e pontos de encontro Convivio ¢ encontros casts. Colaboragdes e contratos Relagdes profissionais: clientelas Como ceupar uma galeria? ‘Os espacos-tempos da troca .. As obras ¢as trocas 15 16 19 25 29 35 35 40 40 2 46 49 52 57 57 Otema da obra Espagos-tempos na arte dos anos 1990 Co-presenga e disponibilidade: a heranca tebrica de Felix Gonzalez-Torres ‘A homossexualidade como paradigma de coabitagao, Formas contemporaneas do monumento CO ctitério de coexisténcia (as obras e 08 individuos) ‘A.aura das obras de arte deslocou-se para seu péblico, A beleza como solugéo? Relagies-tela “Aart fe je Svs dls keno Aaate 60s equipamentos Aleide deslocalizagio ‘A tecnologia como modelo ieoldgico (do rag 20 pro rama) Atmore a exp A exposigdo-cenério Os figarantes ‘Aart depois do aideo Rewindplaytast forward ktumo a democratizago dos pontos de vista? Para uma politica das formas Coabitagbes * Notes sobre algumas extensies possiveis de uma estética relacional Sistemas visuals Aimagem é um momento (© que mostram os artisias cn 31 92 2 96 100 100 103 105 107 m am m am 112 112 (Os limites da subjetividade individual... A engenharia da intersubjetividade Uma arte sem efeito? © futuro politico das formas Reabilitar a experimentacao Estética relacional e situacées construidas paratigna estético Félix Guattari ea arte) A subjedvidade conduzida e produzida Desnaturalizar a subjetividade Fstatuto e funcionamenta da subjetividade As unidades de subjetivagéo O paradigm esttico A critica do paradigma cientificista Orreftdo, o sintoma ea obra A obra de arte como objeto parcial Para uma praxis artistico-ecosética ‘A ordem comportamental da arte atual Glossatio 13 14 114 116 us 118 120 122 122 125 129 133 133 135 138 42 144 ua? INTRODUGAO ‘A que se devem os mal-entendidos que cercam a ar- te dos anos 1990, sendo a uma falha do discurso tedrico? Criticose filésofos, em suaimensa maioria, néo gostam de abordar as préticas contempordneas: assim, elas se man- \ém essencialmente ilegiveis, pois nao é possivel perceber .ua originalidade e sua importéncia analisando-as a par- Lirde problemas resolvidos ou deixados em suspenso pelas ages anteriores. F preciso aceitar o doloroso fato de que ertas questdes nao sao mals pertinentes ~¢, por extensao, demarcar quais delas so assim consideradas atualmente polos artistas: quais s4o os verdadeiros interesses da arte contemporanea, suas relagdes com a sociedade, a histéria, 1 cultura? A primeira tarefa do crftico consiste em recons~ Lituir o complexo jogo dos problemas levantados numa de: lerminada época e em examinar as diversas respostas que lives sao dadas. Muitas vezes, a critica contenta-se em in- ventariar as preocupagées do passado apenas para poder 10 NICOLAS BOURRIAUD lamentar a auséncia de respostas. Ora, a primeira pergunta em relagao as novas abordagens refere-se, evidentemente, 8 forma material das obras. Como entender essas produ- «Ges aparentemente inapreensiveis, quer sejam processuais, ou comportamentais - em todo caso, “estilhacadas” se- gundo os padrées tradicionais -, sem se abrigar na histéria da arte dos anos 1960? Citemos alguns exemplos dessas atividades: Rirkrit Tiravanija organiza um jantat na casa de um colecionador e deixa-Ihe 0 material necessério para o preparo de uma sopa tailandesa. Philippe Parreno convida pessoas para ptaticar seus hobbies favoritos no Primeiro de Maio, nu- ma linha de montagem industrial, Vanessa Beecroft ves te cerca de vinte mulheres, que 0 visitante s6 enxerga pelo vio da entrada, com roupas iguais e perucas ruivas. Mauri- zio Cattelan alimenta ratos com queijo Bel Paese ¢ os ven- de como miltiplos, ou expoe coftes recém-a:rombados Numa praga de Copenhague, Jes Brinch e Henrik Plenge Jacobsen instalam um énibus capotada que, por emula~ ‘do, provoca um tumulto na cidade. Christine Hill empre- ga-se como caixa de supermercado e mantém uma sala de gindstica semanal numa galeria, Carsten Héller recria a formula quimica das moléculas secretadas pelo cérebro humano em estado amoroso, monta um veleico de plés- ‘ico inflével ou cria tentilhées para thes ensinar um novo canto. Noritoshi Hirakawa publica um pequeno classifica~ do num jomal, & procura de uma jovem que aceite partici- | STETICA RELACIONAL i par de sua exposigdo. Pierre Huyghe chama pessoas para 1 montagem de um elenco, coloca uma televisio a dispo- 10 do publico, expae a foto de operdrios trabalhando a suns metros do canteiro de obras... Muitos outros no- ines e trabalhos se somam a lista: em todos esses casos, a artidamais animadamente disputada no tabuleiro da arte se desenvolve em fuungdo de nogées interativas, conviviais e tolacionais, Hoje, @ comunicagao encerta os contatos humanos dentro de espagos de controle que decompiem o vinculo social em elementos distintos. A atividade artistica, por sua vez, tenta efetuar ligagdes modestas, abrir algumas passa- ens obstruidas, pér em contato niveis de realidade apar- lados. As famosas “auto-estradas de comunicagdo”, com seus pedagios e espagos de lazer, ameagam se impor como 10s nicos trajetos possiveis de um lugar a outro no mundo. humano. Se por um lado a auto-estrada realmente permi- le uma viagem mais rdpida e eficiente, por outro ela tem 0 slefeito de transformar seus usudrios em consumidores de uilometros e seus derivados. Perante as midias eletréni- «as, 08 parques recreativos, os espagos de canvivio, a pro- lileraga0 dos moldes adequados de socialidade, vemo-nos pobres e sem recursos, como 0 rato de laboratério conde- nado a um percurso invariavel em sua gaiola, com peda- (wos de queijo espathados aqui e ali. Assim, o sujelto ideal da sociedade dos figurantes estaria reduzido a condigao de ‘consumidor de tempo e de espaco, pois 0 que nao pode ser 12 NICOLAS BOURRIAUD comercializado esté fadado a desaparecer. Em breve, as re- ages humanas nao conseguitso se manter fora desses es- pagos metcantis: somos intimados a conversarem volta de uma bebida e seus respectivos impostos, forma simbéli- ca do convivio contemporaneo. Vocés querem bem-estar e aconchego a dois? Entéio provem nosso café... Assim, 0 € aco das relagdes habituais é 0 que se encontra mais dura- mente atingido pela reificagio geral. Se quiser eseapar ao dominio do previsivel, a relagao humana ~simbolizada ou substitufda por mercadorias, sinalizada por logomarcas ~ precisa assumir formas extremas ou clandestinas, uma vez que o vineulo social se tornou um produto padronizado. Num mundo regulado pela divisao do trabalho e pela superespecializacao, pela mecanizagéo humana ¢ pela lei do lucto, aos governos importa tanto que as relagdes hu- ‘manas sejam canalizadas para vias de safda projetadas pa- ra essa finalidade quanto que elas se processem segundo alguns prineipios simples, controlaveis e repetiveis. A “se- paragio” suprema, a que afeta os canais relacionais, cons titui a dltima etapa da transformagao rumo a “sociedade do espetéculo” descrita por Guy Debord. Sociedade em que as relagdes humanas ndo so mais “diretamente vivi- das”, mas se afastam em sua representacao “espetacular” E aqui que se situa a problemética mais candente da arte atual: seré ainda possivel gerar relagdes no mando, num campo pritico ~a historia de arte ~ tradicionalmente des- ti sava Debord, para quem o mundo da arte nao passava de ado A “tepresentacao” delas? Ao contrério do que pen- FSTETICA RELACIONAL, 13 um depésito de exemplos do que seria preciso “realizar” concretamente na vida cotidiana, hoje a pratica artistica es sociais, aparece como um campo féttil de experimenta como um espaco parcialmente poupado a uniformizagao dos comportamentos, As obras que serao aqui tratadas es- bogam virias utopias de proximidade, (Os textos a seguir foram publicados em revistas, prin: cipalmente Documents sur Art, ou em catélogos de expo- sigGes', ¢ passaram por alteragies e reelaboraydes. Outros sao inéditos. Além disso, ao final desta coletnea de en- saios ha um glossdrio que o leitor pode consultar quando aparecer alguma nogao problemética. Para facilitar a com- preensio da obra, sugerimos que cle consulte desde jé a definigdo da palavra “Arte” 1. "Ls paraigme esthéique (Flix Gutta ot Lar) foi publieado pela r= vista Chindves (903), "Relation cera’ foi publicdo no estslogeda bienal dear te castemparanes de Lyon (1935), A FORMA RELACIONAL A.atividade artistica constitui nao uma esséncia imuté- vel, mas um jogo cujas formas, modalidades efuncdes evo- em conforme as épocas eos contextos sociais. A tarefa do critico consiste em estudé-la no presente. Um certo aspec- to do programa da modernidade jé esté totalmente enc ado (mas nao o espirito que o animava ~insistamos nesse jponto em nossos tempos pequeno-burgueses), Esse esgo- lamento esvaziou o conterido dos critérios de julgamento bostético que nos foram legados, mas continuamos a apli- civlos &s praticas artisticas atuais. O novo no é mais um critério, a nao ser entre os detratores ultrapassados da ar- le moderna que retém do detestado presente apenas aqui- Jo que sua cultura tradicionalista Ihes ensinow a abominar na arte do passado, Para criar ferramentas mais eficazes e pontos de vista mais adequados, é importante aprender 1s transformagSes atualmente em curso no campo social, captar 0 que jé mudou e © que continua a mudar. Como 16 NICOLAS BOURRIALD entender 08 comportamentos artisticos manifestados nas exposigSes dos anos 1990, ¢ sous respectivos modos de pensar, a ndo ser partindo da mesma situagdo dos artistas? As priticas artisticas contempordneas e seu projeto cultural A modernidade politica, nascida com a filosofia das Luzes, baseava-se na vontade de emancipacao dos indivi duos e dos povos: 0 progresso das técnicas e das liberde- des, 0 recuo da ignorancia e a melhoria nas condigdes de trabalho deveriam liberar a humanidade e permitir a ins- tauragio de uma sociedade melhor. Existem, porém, vérias versdes da modernidade. Assim, 0 século xx foi palco de uma luta entre trés visbes de mundo: uma concepgio ra- cionalista-modernista cerivada do século xvi, uma filoso: fia da espontaneidade e da liberagao através do irracional Gadafsmo, surrealismo, situacionismo) eambas se opondo as forcas autoritérias ov utilitaristas que pretendiam mol- dar as relagdes humanas e submeter os individuos, Em vez de levar a desejada emancipacao, o progresso das técnicas e da “Razo" permite, através de uma racionalizacao geral do proceso de produgio, a explora¢ao do hemisfério sul, a substituigdo cega do trabalho humano pelas maquinas, além do recurso a téenicas de sujeigao cada vez mais sofis- Hicadas. Assim, o projeto emancipador modemo foi substi- tuido por intimeras formas de melancolia As vanguardas do século xx, do dadafsmo a interna cional situacionista, inscreviam-se na linhagem desse pro- | SRETICA RELACIONAL 7 jeto moderno (transformar a cultura, as mentalidades, as condigdes de vida individual e social), mas ndo esquegamos que ele era anterior as vanguardas e delas se distinguia sob muitos aspectos, Pois a modernidade nao se reduz a uma \cleologia racionalista nem a um messianismo politico, Ha de se denegrir a vontade de melhorar as condigdes de vida de trabalho s6 porque malograram suas tentativas con- cretas de realizagao, repletas de «le visbes histéricas ingénuas? O que se chamava vanguar- «la certamente foi desenvolvido a partir do “banho” ideol6- jhico oferecido pelo racionalismo moderno, mas, posto isso, leologias totalitirias ou seus pressupostos filos6ficos, culturais e sociais so total- mente diversos, E claro que a arte de hoje prossegue nessa luta, propondo modelos perceptivos, experimentais, erfti- 0s € participativos, seguindo 0 rumo indicado pelos fil volos das Luzes, por Proudhon, Marx, pelos dadaistas ou por Mondrian. Se a opinio puiblica tem dificuldade em re- conhecer a legitimidade ou o interesse dessas experiéncias, © porque elas nao se apresentam mais como preniincios de uma inexaravel evolugao historica: pelo contrario, elas se isoladas, sem uma viséo global do mundo que possa lhes conferir © peso de uma ideologia. Nao foi a modernidade que morreu, e sim sua versio \dealista e teleoldgica © combate da modernidade ocorre nos mesmos ter- mos do passado, exceto pelo fato de que a manguarda dei- ostram fragmentérias xou de ir a frente como batedora, ¢ a tropa imobilizou-se, temerosa, num bivaque de certezas, A arte devia preparar 18 NICOLAS BOURRIALD ou anunciar um mundo futuro: hoje ela apresenta modelos de universos possiveis Os artistas que inscrevem sua pratica na esteira da modernidade histérica ndo pretendem repetir suas formas rem seus postulados, tampouco atribuir arte as mesmas fungSes que elaatribuia, Sua tarefa ésemelhantea que Jean- Frangois Lyotard conferia & arquitetura pés-moderna, a qual “se vé condenada a gerar uma série de pequenas mo dificagdes num espago herdado da modernidade ¢ a aban- donar uma reconstrusdo global do espago habitado pela humanidade”', Alids, Lyotard parece indiretamente la- meniar esse estado de coisas: ele define a situagiio de ma- neita negativa, usando © termo “condenada’, E se, pelo contiério, essa “condlenagao” constituisse a oportunidade histérica a partir da qual, nos tiltimos dez anos, vem sur- gindo a maioria dos mundos artisticos que conhecemos? Essa “oportunidade” cabe em poucas palavras: aprender a Ahabitar methor 0 mundo, em vex de tentar construs-lo a par tir de uma idéia preconcebida da evelucdo histérica. Em outros termos, as obras jd ndo perseguem a meta de for- mar realidades imaginarias ou utdpicas, mas procuram constituir modos de existéncia ou modelos de agao dentra da realidade existente, qualquer que seja a escala escolhi- da pelo artista. Althusser dizia que sempre se toma a trem do mundo em movimento; Deleuze, que “a grama pressio na no meio’, e nao por cima nem por baixo: o artista habi- Jean-Francois Lyotard, Le pos au ents, Pais, Ga lg, Poche: Bibi, 985, p10 | STETICA RELACIONAL 9 ta as circunstancias dadas pelo presente para transformar » contexto de sua vida (sua relagio com o mundo sensivel ou conceitual) num universo duradouro, Ele toma o mun- oem andamento: é um locatério da cultura, para retomar a expresséo de Michel de Certeau’, Hoje, a modernidade pro- longa-se em priticas de bricolagem e reciclagem do dado cultural, na invengdo do cotidiano e na ordenacdo do tem- po vivide, abjetos tao dignos do atengo e estudo quan lo as utopias messiénicas ou as “novidades” formais que 4 caracterizavam no pasado, Nada mais absurco do que afirmar que a arte contempornea ndo apresenta nenhum projeto cultural ou politico, e que seus aspectos subversi- vos no se enrafzam em nenhum solo teérico. No entanto, .cu projeto, referente as condigGes de trabalho e de produ- io dos objetos culturais, bem como as formas variaveis da vida em sociedade, parecerd insipido aos espitites forma- los nos moldes do darwinisme cultural ou aos amantes lo “centralismo democratico” intelectual. E chegado, como «lly Maurizio Cattelan, 0 tempo da “dolce utopia”. A obra de arte como intersticio social A possibilidade de uma arte relacional (uma arte que oma como horizante teérico a esfera das interagées hu Inanas € seu contexto social mais do que a afirmagéo de lum espago simb6lico auténome e privada) atesta uma in- es Galinard. 1 Mishel de Certeny, Manires eft, Pa 20 NICOLAS BOURRIAUD versio radical dos objetivos estéticos, culturais e politicos postulados pela arte moderna. Em termos sociolépicos ge- rais, essa evolugio deriva sobretudo donascimento de uma cultura urbana mundial e da aplicaso desse modelo cita- dino a praticamente todos os fendmenos culturais. A ur banizagdo generalizada que se desenvelveu apés o final da Segunda Guerra Mundial permitiu um aumento extraor- dinério dos intercdmbios sociais e uma maior mobilidade dos indi rio e das telecomunicagées e & progressiva abertura dos lo- cais isolados, simultaneamente a uma maior abertura das mentalidades). Devido s estreitas dimensdes dos espagos habitaveis nesse universo urbano, assiste-se, paralelamen- ‘duos (gragas ao desenvolvimento rodoferrovid~ te, a uma redugio na escala dos méveis ¢ dos objetos, que se orienta para uma maior facilidade de manejo: se, por muito tempo, a obra de arte péde ostentar um ar de luxo senhorial nesse contexto citadino (0 tamanho da obra, bern comoo tamanho do apartamento, servia para distinguir do joao-ninguém seu proprietirio), a mudanga da fungao e do modo de apresentagtio das obras mostra uma urbanizagio crescente da experiéncia artistica. O que esté desaparecen- do sod nossos olhos ¢ apenas essa concepeao falsamen- te aristocratica da disposicao das obras de arte, ligada a0 sentimento de adquitir um territério, 8m outros termos, jd nao se pode considerar a obra contempordnea como um espagp a ser percorrido (@ “volta pela casa” do propriet rio é semelhante do colecionador), Agora ela se apresenta como uma duragio a ser experimentada, como uma aber- | SUETICA RELACTONAL 21 Jura para a discussao ilimitada, A cidade permitiu e ge- neralizou a experiéncia da proximidade: ela é 0 simbolo angivel e 0 quadro histérico do estado de sociedade, es- ne “estado de encontro fortuito imposto aos homens”, na expressiio de Althusser’, em oposigéio aquela selva den «1 ¢ “sem histéria” do estado de natureza na concepsao de Jean-Jacques Rousseau, selva que impedia qualquer en- contra fortuito mais duradouro, Esse regime de encontro casual intensivo, elevado a poténcia de uma regra abso- lula de civilizagao, acabou criando praticas artisticas cor- espondentes, isto & uma forma de arte cujo substrato & dado pela intersubjet lar juntos, 0 Yencontro” entre observador e quadro, a ela~ 1 a historicidade desse fenémeno:a arte lace © tem como tema central 0 es- io coletiva do sentido. Deisomos de lado o problema smpre foi relacio- nal em diferentes graus, ou seja, fator de socialidade e fun- daclora de didlogo, Uma das potencialidades da imagem & wu poder de reliance [sentimento de ligacao], reiomando o termo de Michel Maffesoli: bandeiras, siglas, fcones, si- ais criam empatia e compartilhamento, geram vinculo: \ arte (as praticas derivadas da pintura e da escultura que « manifestam sob a forma de exp cularmente propicia A expresso dessa civilizagao da pro- ximidade, pois ela estreita o espaco das relagdes, a0 contrério. io) mostra-se parti- Ss. Leais auzusser, Kents phlosoph 4. Miche} Maffesoli, La contemplation du monde, Pels, Grasset, 1998 le. 0 do mundo, tad: Francleo Setines, Porto Alegre, Atos fe se poltigues Pais, stock INIEC, 22 NICOLAS BOURRIALD da televisio ou da literatura, que remetem a seus respec- tivos espagos de consumo privado; ao contrério também. do teatro e do cinema, que retinem pequenas coletividades diante de imagens univocas: com efeito, nessas salas nao se comenta diretamente o que se vé (a discussio fica para depois do espetéculo). Inversamente, durante uma exposi- so, mesmo que de formas inertes, estabelece-se a possi- bilidade de uma discussdo imediata nos dois sentidos do terme: percebo, comento, desloco-me num mesmo espa- go-tempo. A arte é 0 lugar de producao de uma socialida- de espec conjunto dos “estados de encontro fortuito” propostos pe- a Cidade, Como uma arte concentrada na producao de tais iodlos de convivio € capaz de relangar e completar o proje- to emancipador moderno? Como ela permite o desenvolvi- ‘mento de novos enfoques culturais e politicos? ica: resta ver qual € 0 estatuto desse espaco no Antes de passar pata exemplos concretos, 6 importante reconsiderar'o lugar das obras no sistema global da econo- mia, simbélica ou material, que rege a sociedade contem- porainea: para nds, allém de seu cardter comercial ou de seu valor semantico, a obra de arte representa um intersticio social. O termo inttersticio foi usado por Karl Marx para de- signar comunidades de troca que escapavam 20 quadro da economia capitalista, pois ndo obedeciam lei do lucro: es- cambo, vendas com prejuizo, produg6es autarquicas etc, 0 intersticio é um espaco de relagdes humanas que, mesmo inserido de maneita mais ou menos aberta e harmonio sa no sistema global, sugere outras possibilidades de troca STETICA RELACIONAL 23 além das vigentes nesse sistema, E exatamente esta a na- tureza da exposigéio de arte contempordinea no campo do comércio das representagdes: ela cria espagos livres, gera duragdes com um ritmo contrério ao das duragdes que or- denam a vida cotidiana, favorece um intercdmbio humano diferente das “zonas de comunicagao” que nos sao impos- tas. O contexto social atual restringe as possibilidades de relagdes humanas ¢, ao mesmo tempo, eria espagos para tal fim. Os banheitos piiblicos foram criados para que as ruas ficassem limpas: é com esse mesmo espfrito que se desen- volvem as ferramentas de comunicagdo, enquanto as ruas das cidades ficam limpas de qualquer esc6ria relacional & as relagdes de vizinhanca se empobrecem, A mecenizacao etal das fungbes sociais reduz progressivamente 0 espa- go relacional. Aié alguns anos atrés, o servigo de desperta~ dor pelo telefone era executado por pessoas: agora é uma voz sintética que se encarrega de nos acordar.. O guiché automético tornou-se o modelo para cumprir as fungdes. sociais mais clementares, e 0 comportamento dos profis- sionais segue os moldes de eficiencia das maquinas que vom a substituélos, executando tarefas que, antes, ofere- ciam ocasides de contato, de prazer ou de conflite. A arte contempordnea realmente desenvolve um projeto politico quando se empenha em investir e problematizar a esfera das relagdes. Quando Gabriel Orozco coloea uma laranja na ban- cade um mercado brasileiro vazio (Crazy Tourist, 1991) ow 24 NICOLAS ROURRIAUD instala uma rede no jardim do Museu de Arte Moderna de Nova York (Hamoc en el MoMA, 1993), ele est operando no centro do “infrafino social”, esse mini culo espaco de ges- tos cotidianos determinado pela superestrutura constitut- da pelas “grandes” trocas, Sem legendas, as fotografias de Orozco documentam infimas revolugdes no cotidiano bano ou semi-urbano (um saco de dormir em cima da gra- ma, uma caixa de sapatos vazia etc): elas mostram essa vida silenciosa (still Ife, natureza morta) hoje formada pe- las relagdes com 0 outro, Quando Jens Haaning transmite histérias engracadas em turco, por alto-falante, numa pra- ga de Copenhague (Turkish Jokes, 1994), cria instantanea- mente uma microcomunidade - a dos imigrantes unidos por um riso coletivo que subverte sua condigao de enilaslos ~ formada na obra e em relagdo & obra. A exposigio é 0 lo- al privilegiado onde surgem essas coletividades instanta- neas, regidas por outros principios: uma exposigio criaré, segundo o grau de patticipagdo que o artista exige do es- pectador, a natureza das obras, 0s modelos de socialida- de propostos ou representados, um “dominio de trocas” particular. E esse “dominio de trocas” deve ser julgado de acardo com critérios estéticos, isto é, analisando-se primei- 10 a coeréncia de sua forma e depois o valor simbélico do “mundo” que ele nos propée, da imagem das relagdes hu- manas que ele reflete, No interior desse interst io social, 0 attista deve assumir os modelos simbolicos que expée: to- dda representagio (masa arte contemporinea cria modelos, e nao propriamente representagoes; ela se insere no tecido ISTETICA RELACIONAL 25 social sem propriamente se inspirar nele) remete a valores ransferiveis para a sociedade. Atividade humana baseada no comércio, a arte é ao mesmo tempo objeto € sujeito de uma ética, tanto mais que, ao contrario de outras ativida «les, sta tinica fungao & se expor a esse comeércio. Aarte é um estado de encontro fortuito. Acstética relacional e 0 materialismo aleatério ‘A estética relacional inscreve-se numa tradigio mate- tialista, Ser “materialista” nao significa se ater & banalida- «le dos fatos, tampouco supde aquela forma de estreiteza mental que consiste em ler as obras em termos puramen- te econdmicos. A tradicao filosética que sustenta essa tética relacional foi admiravelmente definida por Louis Althusser, num de seus diltimos textos, como um “mate- rialismo do encontro fortuito” ou materialismo aleatério. Esse materialismo tem como ponto de partida a contin- yéncia do mundo, que néo tem origem nem sentido pree- xistente, nem Razdo que possa Ihe atribuir uma finalidade, Assim, a esséncia da humanidade é puramente transindi- vidual, formada pelos lagos que unem os individuos em formas sociais sempre histéricas (Marx: a esséncia huma- Vio ha “firm da hist6- na é 0 conjunto das relagées sociais). ria” nem “fim da arte” possiveis, porque a partida sempre & retomada em fungao do contexte, isto é, em fungao dos jo- adores e do sistema que eles constroem ou criticam. Hu= bert Damisch considerava as teorias sobre o “fim da arte” 2 #0 NICOLAS FOURRIALD, como resultado de uma lamentével confusio entre 0 “fim do jogo” (game) e o “fim da partida” (play): quando 0 con- texto social muda radicalmente, 0 que se anuncia é uma ova partida, sem que seja colocado em questo o senti- do do jogo em si®. Mas esse jogo inter-humano que consti- tui nosso objeto (Duchamp: “A arte é um jogo entre todos ‘05 homens de todas as épocas”) ultrapassa o quadro da- quilo que, por comodidade, é chamado de “arte”: assim, as “situagdes construidas” preconizadas pela Internacional si- tuacionista pertencem inteiramente a esse “jogo”, mesmo que Guy Debord Ihes negasse, em tiltima instancia, qual- quer cardter artistico, vendo nelas, pelo contrétio, a “supe ago da arte” por meio de uma revolugae da vida cotidiana, A eestética relacional constitui néo uma teoria da arte, que suporia 0 enunciado de uma origem e de um destino, e sim uma teoria da forma, © que chamamos de fornia? Uma unidade coerente, uma estrutura (entidade autonoma de dependéncias internas) que apresenta as caracterfsticas de um mundo: a obra de arte nao detém © monopdlio da forma; ela é apenas um subconjunto na totalidade das formas existentes. Na tra- digao filoséfica materialista inaugurada por Epicuro ¢ Lu- crécio, os dtomos caem paralelamente no vazio, seguindo umaleve inclinagao, Seum desses étomos se desvia do cur- 80, ele “provoca wma colisio [encontro fortuito] com o éto- 5 Huber Damisch, Fendi jaune cadmium, Paris Edu Seui, 1984 STETICN RELACICA 27 mo vizinho ¢ de colisdo em colisio um engavetamento ¢ 0 nascimento de um mundo”... Assim nascem as formas: do desvio e do encontro aleatério entre dois elementos até en- to paralelos. Para criar um mundo, esse encontro fortuito tem de se tornar duravfouro: os elementos que o constituem devem se unificar numa forma, isto é, “os elementos tém dle dar liga (assim como dizemos que alguma coisa ‘dew 0”)". “A forma pode ser definida como um encontro for- tuito duradouro.” Assim podem ser descritas as linhas e ‘as cores que se inscrevem na superficie de um quadro de Delacroix, os refugos que enchem os “quadros Merz” de Schwitters, as performances de Chris Burden: além do ti- po de disposicao na pagina ou no espago, eles se mostram duradouros a partir do momento em que seus componen- es formam um conjunto cujo sentido “vem” do momento de seu nascimento, suscitando novas “possibilidades de vi- da”, Assim, toda obra é modelo de um mundo viavel. Toda. obra, até 0 projeto mais critico e demolidar, passa por esse estado de mundo vidvel, porque ela permite o encontro for tito de elementos separados: por exemplo, a morte eas dias em Andy Warhol. € o que diziam Deleuze ¢ Guattari quando definiam a obra de arte como umn “bloco de afetos, © perceptos": a arte mantém juntos momentos de subjetivi- dade ligados a experiéncias singulares, sejam as magas de Cézanne ou as estruturas listradas de Buren. A composi- Gio desse aglutinante, por meio do qual étomos colidindo chegam a constituir um mundo, naturalmente depende do contexto histérico: 0 que o piiblico informado atual enten- 28 NICOLAS BOURRIALD de por “manter juntos” nao é 0 mesmo que se imaginava no século pasado, Hoje a “cola” é menos visivel, pois nos- 8a experiéncia visual se tornou mais complexa, enriquecida por um século de imagens fotograficas e depois cinemato- gralicas (introducao do plano-seqiiéncia como nova uni- dade dindmica), a ponto de podermos reconhecer como uum “mundo” uma colego de elementos esparsos (a ins- talacao, por exemplo) que nao esto ligados por nenhuma matéria unificadora, nenhum bronze. Outras tecnologias talvez venham a permitir que o espirito humano reconhe- sa tipos de “formas-mundos” ainda desconhecidos: por ‘exemplo, a informatica privilegia a nogao de programa, que altera a cancepgao de certos artistas sobre seus trabalhos, Assim, a obra dle um artista assume a condigao de um con- junto de unidades que podem ser reativadas por um obser- vador-manipulador, Aqui insisto, ¢ certamente de maneira bastante enfatica, sobre a instabilidade e a diversidade do conceito de “forma’, cuja abrangéncia pode ser vista na fa- mosa exortacao do pai da sociologia, Emile Durkheim, a Considerar 08 “fatos sociais” como “coisa: Pois a “coi- 8a” artistica as vezes se apresenta como um “fato” ou um conjunto de fatos que surgem no tempo ou no espaco, sem que sua unidade (geradora de uma forma, um mundo) se- ja questionada, O quadro amplia-se; além do objeto isola- do, ele agora pode abarcar a cena inteira: a forma da obra de Gordon Matta-Clark ou de Dan Graham nio se reduz a forma das “coisas” que esses dois artistas “produzem’: ela nao 6 0 simples efeito secundério de uma composi, co- ESTETICA RFLACIONAL 29 mo suporia uma estética formalista, e sim 0 principio ativo desenrola através de signos, ob- de uma trajetdria que s D jetos, formas, gestos. A forma da obra contemporanea vai além de sua forma material: ela é um elemento de ligacao, um prinefpio de aglutinagdo dinamica, Uma obra de arte é um ponto sobre uma linha. A,forma eo olhar do outro Se, como esereve Serge Daney, “toda forma é um ros- to que nos olha”, o que se torna uma forma quando esta mergulhada na dimensio do didlogo? O que é uma forma essencialmente relacional? Patece-nos interessante discutir essa questio tomando a definido de Daney como ponto de referéncia, justamente por causa de sua ambivaléncia: ja ‘que as formas nos olham, como devemos olhé-las? Geralmente, a forma 6 definida como um contor- rno que se opde a um contetido, Mas a estética modernis~ ta fala em “beleza formal” referindo-se a uma espécie de (con)fusao entre forma e fundo, a uma adequacio inven- tiva da primeira ao segundo. Uma obra é jlgada por sta forma plastica: a critica mais usual As novas praticas artis- ticas consiste em thes negar qualquer “eficdcia formal” ow em apontar suas falhas na “resolucao formal”. Observan- do as praticas artisticas contempordneas, deveriamos falar mais em “formagées” do que em “formas": ao contrario de um objeto fechado em si mesmo gracas a um estiloe auma assinatura, a arte atual mostra que $6 existe forma no en- 2, NICOLAS BOLRRIALD contro fortuito, na relagéo dindmica de uma proposigéo ar- tistica com outras formagées, artisticas ou nio. Nao existem formas na natureza, no estado selvagern, porque € nosso olhar que as cria, recortando-as na espes- sura do visivel. As formas desemvolvemt-se umas a partir das outras. O que ontem seria considerado informe ou “infor- mal" jé nao 0 € mais. Quando a discussao estética evolui, 0 estatuto da forma evolui com ela ¢ através dela, Nos romances de Witold Gombrowicz, vemos como cada individuo gera sua prépria forma altavés de seu com- Portamento, sua maneira de se apreseniar e se dirigir aos outros. Ela nasce nessa zona de contato em que o individuo se debate com 0 Outro para Ihe impor aquilo que julga ser © seu “ser”, Assim, para Gombrowicz, e retomando uma terminologia sartreans, nossa “forma” é apenas uma pro- Priedade relacional que nos liga aos que nos reificam pe- lo olhar. O individuo, quando acredita que se esta olhando objetivamente, no final das contas est contemplando ape- nas © resultado de intermindveis transagbes com a subjeti- vidade dos outros. Para alguns, a forma artistica escaparia a essa fata- lidade por ser intermediada por uma obra. Nés, pelo con- trério, julgamos que a forma s6 assume sua consisténcia (@ adquire uma existéncia real) quando coloca em jogo in- teragses humanas; a forma de uma obra de arte nasce de uma negociacao com o inteligivel que nos coube, Através dela, o artista inicia um didlogo. A esséncia da prética ar- tistica residivia, a 1m, na invengdo de relagdes entre sujei- 31 J SIETICA RELACONAL tos; cada obra de arte particular seria a proposta de habitar uum mundo em comum, enquants o trabalho de cada artis- ta comporia um feixe de relagdes com 0 mundo, que gera- tia outras relagSes, e assim por diante, até o infinito, ‘Aqui estamos nos antipodas da versio autoritaria da iarte que se encontza nos ensaios de Thierry de Duvet, para quem toda obra nao passa de uma “soma de juizos” histé- Ficus € estéticos, enuunciados pelo artista no ato da realiza~ io, Pintar seria se inscrever na histéria através deescolhas plisticas, Estamos na presenga de uma estética de tribunal, segundo a qual o artista se coloca perante a historia da arte nna autarquia de suas convicgées, uma estética que rebaixa a pritica artistica ao nivel de uma critica histériea proces- im emitidlo, perempt6tio € sual: 0 “Julgamento” pratico at irrecorrivel, éa negacao do diélogo, tinico a conferir a for- ma um estatuto produtivo, o de um “encontro fortuito”. No quadro de uma teoria “relacionista” da arte, a intersubjeti- vidade nao representa apenas o quadro social da recepgaio da arte, que constitui seu ‘meio’, seu “campo” (Bourdieu), mas se torna a propria esséncia da pritica artistica em virtude dessa invengao de relagdes que a forma se converte em “rosto”, como sugeria Daney. Essa formula, sem diivida, lembra um conceito fundamental do pensa- mento de Emmanuel Lévinas, para quem 0 rosto é 0 signo da proibigio ética. O rosto, afirma ele, 6 “o que me ordena Paris fd de La Dithérence, 8 ‘EThiery de Dave, Essie dats, 32 NICOLAS BOURRIAUD servir a outrem”, “o que nos profbe matar”?. Toda “relagio intersubjetiva” passa pela forma do rosto, que simboliza a Tesponsabilidade que nos cabe em relagao ao outro: “o vin- culo com o outro s6 se dé como responsabilidade”, escreve Lévinas, Mas nao haveria um outro horizonte para a éti- caalém desse humanismo que reduz aintersubjetividade a ‘uma espécie de interservilismo? A imagem ~ metéfora do rosto, segundo Daney ~ s6 seria capaz de criar proibigées através do fardo da “responsabilidade”? Quando explica que “toda forma é um rosto que nos olha’, ele ndo quer di- zer apenas que somos responsaveis por ela. Para entender isso, basta voltar ao significado profundo da imagem em Daney: para o critico, a imagem é “imoral” quando nos co- loca “onde nao estévamos”s, quando “toma o lugar de uma outra”, Nao se trata apenas de uma referéncia a estética Ba- zin-Rossellini ao postular o “realismo ontolégico” da arte cinematografica, a qual, embora esteja na origem do pen- samento de Daney, nio 0 esgota. Segundo ele, a forma nu- ma imagem 6 apenas a representagdo do desejo: produzir uma forma é criar as condiges de uma troca, como devol- ver um saque numa partida de ténis. Se estendermos um pouco mais 0 raciocinio de Daney, a forma é 0 desejo que {foi delegado a imagem. Aquela 6 0 horizonte a partir do qual esta pode ter um sentido, designando um mundo deseja- do que 0 espectador enti considera passivel de discus- so, e a partir do qual seu proprio desejo pode ricochetear. 3. Emmanuel Lévinas, Biju et infin, Panis, Pyar, 1982p. 9, 8 Senge Daney,Perseodeance, Paris Ed, POL, 129% p38, ESTETICA RELACIONAL 33 isa troca se resume a um bindmio: alguém mostra algo a alguém que The devolve & sua maneira. A obra procura captar meu olhar, como o recém-nascico “pede” o olhar da mae: Tzvetan Todorov mostrou, em La Vie comma [A vi- da ent comuml, que a esséncia da socialidade consiste muito ‘mais na necessidade de reconhecimento do que na compe- tigdo ou na violencia’, Quando um artista nos mostra al- guma coisa, ele expde uma ética transitiva que situa sua obra entre 0 “olhe-me” e o “olhe isso”, Os iiltimos textos de Daney lamentam o fim da dupla “Mostrariver", que re- presentava a esséncia de uma democracia da imagem, em favor de uma outra dupla, televisiva e autoritiria, “Promo- verlreceber”, que marca o advento do “visual”, Na concep- ao de Daney, “toda forma é um rosto que me olha” porque cla me chama para dialogar. A forma é uma dinamica que se inscreve no tempo e/ou no espaco. Ela s6 podenascer de uum encontro fortuito entre dois planos de realidade: pois a homogeneidade ndo produz imagens, e sim o visual, isto é, “a informagao em circuito fechado”. a 3 Tctan Todorov, La vie commune, Paris, Ed. du Seu, lta em cont, tds Denise Bttmann © Eleonora Bottmann, fs 1906 ‘A ARTE DOS ANOS 1990 Participacao ¢ transitividade Sobre uma estante de metal hé um fogGozinho ace- so que mantém em ebuligo uma panela de agua. Em volta da estante, espalham-se materiais de acampamento, sem nenhuma composicéo, Junto & parede ha caixas de pape- 10, na maioria abertas, contendo pacotes de sopas chine~ sas desidratadas que o visitante pode consumir a vontade, acrescentanco a dgua fervente que esta & sua disposigao. Essa pega de Rirkrit Tiravanija, realizada no Aperto 93 da Bienal de Veneza, escapa a qualquer definigao. Escultu- 1a? Instalacdo? Performance? Ativismo social? Ultimamen- te esse tipo de peca tem se multiplicado. Nas exposicdes internacionais, vemos uma quantidade crescente de estan- des que oferecem varios servigos, obras que propdem a0 observador um contrato especifico, modelos de socialida- de mais ou menos concretos. A “participagio” do espec- 36 [NICOLAS BOURRIALD tader, teorizada pelos happenings e pelas performances Fluxus, tornou-se uma constante na prética artistica. © es paga de reflexdo aberto pelo “coeficiente de arte” de Mar cel Duchamp, que tenta delimitar exatamente 0 campo de intervengao do receptor na obra de arte, hoje consiste mu ma cultura interativa que apresenta a transitividade do ‘objeto cultural como fato consumedo. Com isso, esses ele: ‘mentos apenas corroboram uma evolucéo que ultrapassa largamente o dominio exclusivo da arte: & no conjunto dos vetores de comunicagéo que o grau de interatividade é am: pliado. Por outro lado, o surgimento de novas técnicas, co- moa internet a multimidia, indica um desejo coletivo de criar novos espagos de convivio ¢ de inaugurar novos tipos de contato com o objeto cultural: assim, a “sociedade do espeticulo” se seguiria a sociedade dos figurantes, na qual cada um encontraria, em canais de comunicagao mais ou menos truncados, a ilusdo de uma democracia interativa. Atransitividade, to antiga quanto o mundo, constitui ‘uma propriedade concreta da obra de arte. Sem ela, a obra seria apenas um objeto morto, esmagado pela contempla- ‘ao. Delacroix 4 escrevia em seu didrio que um quadro bom “condensava” momentaneamente uma emogao que 0 olhar do espectador deveria reviver e prolongar. Essa no- 80 de transitividade introduz no dominio estético a de: sordem formal inerente ao didlogo; ela nega a existéncia de um “lugar da arte” especifico em favor de uma sividade sempre inacabada e de um desejo jamais saciado cur ESTETICA RELACIONAL, 37 de disseminagio, Jean-Luc Godard, alids, insurgia-se con- tra esca concepsio fechada da pratica artistica, explicanda que une imagem precisa de dois. Se essa proposigao pare- ce retomar Duchamp ao dizer que sdo 0 espectadores que _ftzem os quedros, ela vai além ao postular o didlogo como a propria origem do proceso de constituigio da imagem: desde seu ponto de partida jé é preciso negaciar, pressupor 0 Outro... Assim, toda obra de arte pode ser definida como uum objeto relacional, como o lugar geométrico de uma ne- gociaco com intimeros correspondentes & destinatérios Cremos ser possivel explicar ¢ especificidade da arte atual com 0 auxilio da idéia de produgao de relagdes externas ao campo da arte (em oposigao as relagSes internas, que Ihe oferecem substrato socloeconOmico): relagdes entre indi viduos ou grupos, entre o artista e © mundo e, por tran- sitividade, relagdes entre 0 espectadar ¢ o mundo, Pierre Bourdieu considera 0 mundo da arte como um “espago de relagies objetivas entre posigies’, isto é, um microcosmo definido por relagdes de forga e embates com que os pro- dutores tentam “conservé-lo ou transforma-1o”'. O mundo da arte, como qualquer outro campo social, é relacional por esséncia na medida em que apresenta um “sistema de po- sigGes diferenciais” que permite sua leitura. As derivagdes dessa leitura “relacional” so multiplas: no émbito de seus trabalhos sobre as redes, o Cercle Ramo Nash (artistas da colegdo Devautour) sustenta que “a arte é um sistema alta- 4. Pierre Bourdieu, Raisons pratigurs, Paris, Ed. du Seuil, 1994, p. 68 (Ed. teas: Rostis pris, tad: M, Corda, Campinas, Papirus, 1996) 38 NICOLAS BOURRIALD mente cooperativo: a densa rede de interconexdes entre os membros implica que tudo o que ocorrer nela acabara sen- do uma fungao de todos os membros", o que Ihe permite afirmar que “6 a arte que faz a arte, nfo os artistas”, Assim, estes seriam simples instrumentos inconscientes ao servigo de leis que 0s ultrapassam, como Napoledo ou Alexandre, © Grande, na teoria da Histéria de Tolstdi... Nao partilho dessa posicao ciberdeterminista, pois se a estrutura inter- na domundo da arte realmente estabelece um jogo limita do de “possiveis", essa estrutura, por sua vez, depende de uma segunda ordem de relagies, estas externas, que pro- duzem e legitimam a ordem das relagdes internas. Em su- ma, a rede “Arte” € porosa, e so as relagdes dessa rede com ¢ conjunto dos campos de produgao que determinam sua evolugio, Al da arte como a histéria dessa produgdo de relagées com 0 ‘mundo, levantando ingenuamente a questéo da natureza das relagoes externas "inventadas” pelas obras. Para esbocar um quadro histérico geral, digamos que estas se situavam, de inicio, num mundo transcendente, is, seria possivel escrever uma histéria onde a arte tinha como abjetivo estabelecer modos de co- municagio com a divindade: ela desempeahava o papel de ‘uma interface entre a sociedade humana e as forgas invisi- veis que regiam seus movimentos, ao lado de uma natureza representante da ordem exemplar que, compreendida, ex- pressatia os desfgnios divinos. Aos poucos, a arte abando nou tal pretensao, passando a explorar as relagdes existentes entre 0 Homem e © mundo, Essa nova ordem relacional, FSTETICA RELACIONAL 39 dialética, se desenvolveu a partir do Renascimento ~ que privilegiava a posi¢ao fisica do ser humano em seu univer- so, embora ainda fosse dominado pela figura divina ~ com. © auxilio de novos recursos visuais, como a perspectiva de Alberti, o realismo anatémico ou o sfumato de Leonardo. Essa finalidade da obra de arte 36 velo a ser radicalmente guestionada pelo cubismo, que tentava analisar nossas re- Jagdes visuais com o mundo através dos elementos mais tri- viais da vida cotidiana (a ponta de uma mesa, cachimbos, violdes), a partir de um realismo mental que reconstituia os mecanismos méveis de nossa apreensao do objeto, ‘Ocampo relacional aberto pelo Renascimento italiano passou, entio, a ser aplicado a objetos cada vez mais res- tritos: a pergunta “qual é nossa relagao com 0 mundo fis! 02” a principio abrangia toda a realidade e depois passou a se referir a segmentos limitados dessa mesma realidade. Essa progressdo, evidentemente, ndo foi linear: coexistem. pintores como Seurat, analisia rigoroso de nossos modos de percep¢ao visual, e Odilon Redon, que tentatrazer a luz rnossas relagdes com o invisivel. Mas, de modo geral, a his- toria da arte pode ser lida como a hist6ria dos sucessivos, campos relacionais externos, que mudam de acordo com. prdticas determinadas por sua propria evolugdo interna: é a historia da produgao das relagdes com o mundo, interme- diadas por uma classe de objetos e préticas especificas. Essa histéria, hoje, parece ter tomado um novo ru- mo: depois do campo das relagbes entre Humanidade e divindade, a seguir entre Humanidade e objeto, a prética 40 NICOLAS BOURRIAUD attistica agora se concentra na esfera das relagbes inter-hu- manas, coma provam as experiéncias em curso desde 0 co- mego dos anos 1990, © artista concentra-se cada vez mais decididamente nas relagSes que seu trabalho ird criar em seu piblico ou na invengao de modelos de socialidade. Es- sa produg&o especifica determina nao sé um campo ideo- logic e prético, mas também novos dominios formais. Em outras palavras, além do carter relacional intrinseco da obra de arte, as figuras de referéncia da esfera das relagdes humanas agora se tornaram “formas” integralmente artis- ticas: assim, as teunides, os encontros, as manifestacdes, 08 diferentes tipos de colaboragao entre as pessoas, 05 jo- £808, as festas, 0s locais de conviv ), em suma, todos os mo- dos de contato e de invengao de relagbes representam hoje objetos estéticos passiveis de andlise enquanto tais, A pin- tura e a escultura séio aqui consideradas apenas casos par- ticulares de uma produgo de formas que visa a algo muito diferente de um simples consumo estético. ‘Tipologia Conexdese pontos de encontro Um quadro ou uma escultura caracteriza-se, a prio- 1, por sua disponibilidade simbdlica: excluindo-se as im- possibilidades fisicas evidentes (horario de funcionamento dos museus, distancia geogrdfica), uma obra de arte pode ser observada a qualquer momento; ela esté a vista, ofere- ISTETICA RELACIONAL at condo-se & curiosidade de um puiblico teoricamente uni- versal. Ora, a arte contempotinea muitas vezes opera sob © sign da néo-disponibilidade, apresentando-se num. momento determinado, A performance é 0 exemplo mais cléssico: uma vez realizada, resta apenas uma documen- taco sobre ela, Esse tipo de pratica pressupde um contra to com 0 cbservador, uma “combinagio” cujas cléusulas tendem a se diversificar desde os anos 1960: a obra de ar~ tendo 6 mais aberta a um puiblico universal nem ofere- cida ao consumo numa temporalidade “monumental”; ela se desenrola no tempo do acontecimento para um pabli- co chantado pelo artista. Em suma, a obra suscita encontros ccasuiais e fornece pontos de encontro, gerando sua propria temporalidade, Nao se trata necessariamente de encontros com um piblico: Marcel Duchamp, por exemplo, inventou os “Rendez-vous dart” (Encontros de arte], determinan- do arbitratiamente que, numa certa hora do dia, o primei- 10 objeto que estivesse ao alcance seria transformado em ready-made. Outros chamavam o piiblico para constatar um fendmeno localizado, como Robert Barry ao anunciar que, em “um certo momento da mana de 5 de marco de 1969, meio metro etibico de hélio foi solto na atmosfera” por sua iniciativa. Assim, 0 espectador vai ao local para constatar um trabalho, que existe como obra de arte apenas em vir~ tude desse constatacao. Em janeiro de 1970, Christian Bol- tanski enviou a alguns conhecidos um pedido de socorro em forma de carta, com um contetido tao vago que parecia uma carta-padrao, a exemplo dos telegramas de On Ka- 42 NICOLAS BOURRIALD wara informando aos destinatérios que continuava “ainda vivo", Hoje, a forma do cartao de visitas (usado por Domi- nique Gonzalez-Foerster, Liam Gillick, Jeremy Deller) ow da agenda de enderecos (alguns desenhos ce Karen Kilim- nik), a importancia crescente do vernissage no dispositive da exposigio (Parreno, Joseph, Tiravanija, Huyghe), além dos esforcos de originalidade na contecgio dos convites (residuo da mail-art), indicam a importancia dessa “fun ao de ponto de encontro” que constitui o campo artistico © funda sua dimensao relacional Convivio e encontros casuais Uma obra pode funcionar como dispositive relacio- nal com certo grau de aleatoriedade, maquina de provocar © gerarencontros casuais, individuais ou coletivos. Para cl- taralgumas figuras dos tiltimos vinte anos, é 0 caso da série dos Casual passer-by de Braco Dimitrijevic, que celebravam com o maximo exagero onome e o rosto de um transeunte andnimo num outdoor ou ao lado do busto de algum per- sonagem famoso. Stephen Willats, no comego dos anos 1970, registrou minuciosamente as relagdes existentes entre 98 moradores de um mesmo prédio. E boa parte do traba- Tho de Sophie Calle consiste em apresentar seus encontros com desconhecidos: quer esteja seguindo um passante, re- vistanclo quartos de hotel depois de conseguir emprego co- mo camareira ou pedindoa cegos que definam a beleza, ela formaliza a posteriori uma experiéncia biogrétfica que a le- ISTETICA RELACIONAL 43, va a “colaborar” com as pessoas com quem se deparou. Ci- temos ainda a série I met, de On Kawara, 0 restaurante que Gordon Matta-Clark abriu em 1971 (Food), 0s jantares or- ganizados por Daniel Spoerti ou a loja de brinquedos La céiille qui sourit, que George Brecht e Robert Filliou monta~ ram em Villefranche: a formagao de relagdes de convivio é ‘uma constante histérica desde os anos 1960. A gerasao dos anos 1990 retoma essa problemética, mas sem o problema da dofinigao de arte, central pata as décadas de 1960 1970. ‘A questo nao & mais ampliar os limites da arte, e sim tes- tar sua capacidade de resisténcia dentro do campo social global, Assim, a partir de um mesmo conjunto de praticas, ‘vemos surgir duas probleméticas totalmente diversas: on- tom, a insisténcia sobre as relagGes internas do mundo ar- tistico, numa cultura modernista que privilegiava 0 “novo” e convidava a subversao pela linguagem; hoje, a énfase so- bre as relagdes externas numa cultura eclética, na qual a bia de arts resiste ao rolo compressor da “sociedade do peticulo”. As utopias sociais e a esperanca revolucionéria dleram lugar a microutopias eotidianas e a estratégias mi- miéticas: qualquer posicao critica “direta” conta a socieda- de 6 initil, se baseada na ilusdo de uma marginalidade hoje impossivel, até mesmo reaciondria, HA quase trinta anos, Félix Guattari jé saudava esas estratégias de proximidade que fundam as préticas artisticas atuais: 3. Ch ostexton de Ly Lippand, como Dematerilizstion ofthe artwork (Lon tes, Stadio Vista, 1972), oud Rosalind Krauss, “Sculpturein te expanded fil’ eSciaber re 5 (Cambridge, Mastochusatts, 1979) [Aesculure no campo ampla Go, Revista Gina 91 Ro defaneto] ec 44 NICOLAS BOURRIAUD Assim como penso que ¢ ilusério apostar numa trans- formagao gradual da sociedade, da mesma forma creio que as tentativas microseépicas, tipo comunidades, comités de bairro, organizagao de uma creche na fa- culdade ote, desempenham um papel absolutamente fundamental A filosofia critica tradicional (a Escola de Frankfurt, em particular) nao alimenta mais a arte, a nao ser como folclore arcaico, espléndida ninharia sem eficécia alguma: a fungio critica e subversiva da arte contemporanea ago- Ta se cumpre na invengao de linhas de fuga individuais ou coltivas, nessas construgdes provisérias e némades com que o artista modela e difunde situagdes perturba- doras, Por isso a atual febre dos espacos de convivio revi- fados, cacinhos onde se elaboram modos heterogéneos de socialidade. Para sua exposigao no CCC, Angela Bullo- ch instala um café em que as cadeiras, depois de acolher um certo ntimero de visitantes, acionam um trecho de mti- sica do Kraftwerk (1993)... Georgina Stars, para a exposi- a0 Restaurant em Paris, em outubro de 1993, descreve sua angiistia de “jantar sozinha” e monta um texto para ser distribuido aos clientes solitérios do restaurante, Ben Kin- ‘mont, por sua vez, oferece-se para lavar a louga de pessoas escolhidas ao acaso ¢ mantém uma rede de informagdes 3. Fl Gusta arn maa, ari Rec 2 bn: A rests moka ats Sab Balha RooR ae Pra Be siliense, 1987}. me ESTETICA RELACIONAL 45 sobre seus trabalhos. Lincoln Tobier varias vezes montou uma estacao de radio em galerias de arte, convidando o ptblico para uma discussao transmitida ao vivo. ‘A forma de festa teve particular interesse para Philippe Parteno, cujo projeto de exposigdo no Consortium de Dijon (janeiro de 1995) consistia em “ocupar duas horas de tem- po em vez de metros quadrados de espago”, com a organi- zagao de una festa cujos componentes levavam a produgio de formas relacionais: aglomeragbes de pessoas em volta de objetos artisticos em situagdo... Rirkrit Tiravanija, por ou tro lado, explorou o aspecto socioprofissional do convivio, propondo, durante Surfaces de réparation (Dijon, 1994), um ‘espaco de descanso ~ que inclufa uma mesa de pebolim e uma geladeira cheia ~ para os artistas da exposicdo... Para concluir os exemplos de desenvolvimento desses convivios no émbito de uma cultura da “amizade”, citemos o bar cria~ do por Heimo Zobernig pataa exposigio Unité, ou os Pas tticke de Franz West. Outros artistas, no entanto, irrompem. no tecido telacional de maneita mais agressiva, O traba- Iho de Douglas Gordon, por exemplo, explora a dimensio “selvagem” dessa interacao, intervindo ~ de modo parasi- tério ou paradoxal ~ no espago social: chamou ao telefone os clientes de um café, enviow miiltiplas “instrucdes" a de- terminadas pessoas. Mas o melhor exemplo de comunica- cio intempestiva, perturbadora das redes de comunicacao, certamente € uma pega de Angus Fairhurst: com 0 auxt- lio de materiais de pirataria, ele colocava duas galerias de arte em contato telefénico, cada qual achando que a outra 46 NICOLAS BOURRIAUD, gue havia ligado, e a discussio terminava numa confuséo indescritivel... Criagdes ou exploragdes de esquemas rela- cionais, essas obras constituem microterrit6rios relacionais intermediados por superficies-objetos (os boards de Liam Gillick, 0s cartazes de tua de Pierre Huyghe, as videocon- feréncias de Eric Duyckaerts) ou oferecidos & experiéncia imediata (as visitas de Andrea Fraser a exposiges). Colaboracées ¢ contratos Esses artistas que propem como obras de arte: a, momentos de socialidade e b. objetos produtores de socialidade as vezes também utilizam um quadro relacional pro- viamente definido para extrair prinefpios de produgao. A exploragao das relagdes existentes, por exemplo, entre 0 ar- tista e sou galerista pode determinar formas e projeto. Do- minique Gonzalez-Foerster, cujo trabalho trata das relagdes que urem a existéncia vivida a seus suportes, imagens, es- acos ou objetos, declicon varias exposigdes a biografia de seus galeristas: Bienvenue d ce que vous croyez voir (1988) Feunia uma documentacdo fotogréfica sobre Gabrielle Maubrie, ¢ The daughter of a Taoist (1992) mesclava, nu- ‘ma apresentacao de feitio intimista, as lembrangas infantis de Esther Schipper e objetos organizados formalmente se- gundo seu potencial alusivo e cromético (equi, um predo- minio do vermelho). Assim, Gonzalez-Foerster explora 0 contrato tacito que liga ofa galerista a “seu” artista, um ins- FSTETICA RFLACIONAL 47 crevendo-se reciprocamente na historia pessoal do outro. Suas biografias aos pedacos, cujos principais elementos aparecem como “indices” por cliente, sem divida evocam a tradigao do retrato, quando a encomenda constitufa 0 vinculo social fundador da representagao artistica. Mau~ rizio Cattelen também trabalhou diretamente sobre a pes soa fisica de seus galeristas: 20 desenhar para Emmanuel Perrotin uma fantasia de coelho félico, que devia ser usada durante toda a exposig&o, ou ao dedicar a Stefano Basilico uma roupa que dava a impressdo de que ele estava com @ galerista lleana Sonnabend sobre os ombros... am Samo- re, de modo mais indireto, pede aos galeristas que tirem fotos para, depois, escolhé-las ¢ colocd-las em molduras. Mas esse bindmio artista/curador, inscrito na instituicéo, 6 apenas a primeira etapa das telagées humanas capazes de determinar uma produsao artistica; os artistas vao além, colaborando com personalidades do mundo do espetéculo: por exemplo, 0 trabalho da mesma Dominique Gonzalez Foerster com a atriz Maria d2 Medeiros (1990), ou a série de intervens: no para o imitador Yves Lecoq, com as quais ele pretendia remodelar a imagem de um homem da televiséo (Un hom me public, Marselha, Dijon, Gand, 1994-95). Noritoshi Hirakawa, por sua vez, cria formas a partir de encontros provocados: assim, para sua exposigao na ga- leria Pierre Huber, em Genebra (1994), ele publicou um pe ‘5 publicas organizadas por Philippe Parre- queno andincio para contratar uma moga que aceitasse ir com ele até a Grécia, numa estada que constituiria o ma- 48 NICOLAS BOURRIALD terial da exposigdo. As imagens que ele expoe so sempre realizadas apés um contrato especifico com sua mode- lo, que nem sempre aparece nos clichés. Outras vezes, Hi- rakawa recorre a algum offcio, como quando pediu a varios videntes que previssem seu futuro, gravou as previsies ¢ colocou num walkman, ao lado de fotos e dispositives que evocayam o universo da vidéneia, Alix Lambert, para uma série chamada Wedding piece (1992), abordou os lacos con- tratuais do casamento: casando-se em seis meses com qua- {10 pessoas diferentes e divorciando-se em tempo recorde, Lambert entrou nesse “jogo de papéis para adultos” que € a instituigao matrimonial, usina de reificagao das relagSes humanas, Ela expe 0s objetos produzidos por esse univer- so contratual: certiddes fotos oficiais e outras lembrangas. Aqui, artista ingressa em universos produtores de formas (visita a vidente, oficializagdio de uma ligagao ete) preexis- tentes, materiais disponiveis a todos. Certas maniestacées artisticas, cujo melhor exemplo continua a ser Unité (Fir- ‘miny, junho de 1993), permitiram que os artistas trabalhas- sem com um modelo relacional amorfo, como no caso da populagéo de um grande conjunto habitacional. Diversos participantes trabalharam diretamente para modificar ou objetivar as relagbes sociais, como o gruzo Premiata Dit- ta, que interrogou metodicamente os moradores do imével onde se realizava a exposicdo para extrair dados estatisti- cos, Ou ainda Fareed Armaly, cuja instalagdo baseada em documentos sonoros inclufa entrevistas com os inquilinos que podiam ser ouvidasmum fone de ouvido, Clegg & Gutt- STETICA RELACIONAL 49 man apresentaram no centro de seu dispositivo uma espé- cle de mével-biblioteca, com um formato que lembrava a arquitetura de Le Corbusier, para guardar as fitas cassete com os trechos musicais favoritos de cada morador. Os hé- bitos culturais dos moradores eram, assim, objetivados por uma estrutura arquitetdnica e depois reagrupados em fitas, para chegar a compilagdes que todos podiam consultar du- rante a exposigao... Forma alimentada e produzida pela in- toragdo coletiva, a Discothique de prét de Clegg & Guttman, cujo principio foi retomado no mesmo ano para a exposigao Backstage no Kunstverein de Hemburgo, encarna plenamen- te esse regime contratual da obra de arte contemparanea. Relagées profissionais: clientelas Essas diversas priticas de exploragao dos vinculos so- ciais, como vimos, se referem a tipos preexistentes de rela~ 20, em que o artista se insere para extrair formas. Outras praticas recriam modelos socioprofissionais e aplicam mé- todos de produgao: o artista, aqui, atua no campo real da produgao de servigos e mercadorias e pretende introduzir no espago de sua prética uma certa ambigiiidade entre a fungio utilitéria € a fungao estética dos objetos apresen- tados. E essa oscilagio entre # contemplagao e 0 uso que tentei identificar com 0 nome de realismo operatério!, no Sata et noc dla nos Queue line open 1 fut ont fevea (CC Toar onto 1998 cate) "Trois dep toppers uno in Apert eal de Venera, 195, cade 50 NICOLAS BOURRIALD caso de artistas tao diferentes quanto Peter Fend, Mark Dion, Dan Peterman e Niek Van de Steeg, au ainda de “empresas” mais ou menos parédicas, como Ingold Airli- nes ¢ Premiata Ditta, (Poderfamos aplicar 0 mesmo termo a pioneiros como Panamarenko ou ao “Artist's placement group” de John Latham). © ponto em comum entre es- ses artistas é a modelizagdo de uma atividade profissional, com 0 correspondente universo relacional enquanto dis- positiva de produgdo artistica. Essas ficges que imitam a economia getal, como no caso de Ingold Airlines, Servaas Inc. ou “o atelié” de Mark Kostabi, se cantentam em cons- truir réplicas de uma companhia aérea, de um pesqueiro ou de um atelié de produgao sem extrair delas as conse- jando-se, assim, a uma dimensdo parddica da arte. O caso da agéncia Les ready- ‘mades appartiennent @ fout te monde, ditigida pelo saudoso Philispe Thomas, ¢ um pouco diferente. Faltou-lhe tempo para passar para uma segunda etapa, ¢ sou projeto de atri- buigio de assinaturas ficou um pouco afetado apés a ex- posicéo Feux pales (1990) no CAPC de Bordeaux. Mas 0 sistema de Philippe Thomas, em que as pecas produzidas qiiéncias ideologicas ¢ préticas, lim eram assinadas pelo comprador, revelou a obscura orclem relacional que subjaz as relagdes entre artista e coleciona- dor, Um narcisismo mais discreto esté na origem das pecas apresentadas por Dominique Gonzalez-Foerster no ARC e no CAPC de Bordeaus’, os “Eseritéri 3 biogrificos” onde 5. Exposigbes Uhiver de Vemour e Tra, ESTETICA RELACIONAL 51 6 visitante que marcasse hora poderia apresentar os epis6- dios importantes de sua vida para que a artista formalizas- se sua biogratia. Com a prestagao de pequenos servigos, 0 artista preen- che as falhas do vinculo social: a forma realmente se tor- na esse “rosto que me olha”, Tal é a modesta ambigao de Christine Hill, que executa as tarefas mais subalternas (fa- Zor massagens, engraxar sapates, ser caixa num supermer- cado, animarreunides de grupo etc.) movida pela angtistia gerada pelo sentimento de inutilidade. Assim, com pe- quenos gestos, a arte converte-se num programa virtuo- so, conjunto de tarefas realizadas ao lado ou sob o sistema econdmico real para recosturar pacientemente 0 tecido das relagdes, Carsten Holler aplica sua formagao cientifica de alto nivel para inventar situagdes ou objetos que lidam. com 0 comportamento humano: uma droga que desenca- deia 0 sentimento amoroso, cenografias barrocas ou expe- rigncias paracientificas. Outros, como Henry Bond e Liam Gillick no projeto Documents, iniciado em 1990, adaptam sua fungdo a um campo bem definido: tendo noticia das Informagdes no momento em que elas “cafam” no telex das agéncias de imprensa, Bond e Gillick iam aoslocais do. acontecimento na mesma hora em que 03 “colegas” e ob- tinham uma imagem totalmente defasada em relagao aos critérios habituais da profissdo. Em todo caso, eles aplica- ‘vam estritamente os métodos de produgao da grande im~ prensa, assim como Peter Fend, com sua sociedade OECD, ou Niek Van de Steeg reprocuzem as condigdes de trabalho 52 NICOLAS BOURRIAUD, do arquiteto. Comportando-se no mundo da arte segundo 08 pardimettos de “mundos” heterogéneos, esses artistas introduzem universos relacionais regidos pelas idéias de cliente, encomenda e projeto. Quando Fabrice Hybert ex- pée no museu de arte moderna de Paris, em fevereiro de 11995, 0 conjunto dos produtos industriais contidos real ou ‘metaforicamente em sua obra, tal como foram diretamen- te enviados pelos fabricantes e destinades & venda ao con sumidor por intermédio de sua sociedade UR (Unlimited responsability), ele coloca 0 espectador numa posicao in- cémoda, Longe do ilusionismo de Guillaume Bij e da re- produ mimética das trocas mercantis, esse projeto se vincula a dimenséo desejante da economia: através de sua atividade de importagio e exportagao do cadeiras com 0 Magreb ou da transformagio do museu de arte moderna de Paris em supermercado, Hybert define a arte como uma fungio social entre outras, permanente “digestdo de da- dos” cujo objetivo seria reencontrar os "desejos iniciais que comandaram a fabricagio dos objetos”. Como ocupar uma galeria? As trocas que acorrem entre as pessoas, na galeria ow no museu, também podem servir como material bruto pa- ra um trabalho artistico, O vernissage muitas vezes faz par- te integrante do dispositive da exposi¢ao, modelo de uma circulagao ideal do piiblico: 0 vernissage de Lexposition du vide de Yves Klein, em abril de 1958, é um protétipo. Da STETICA RELACIONAL 3 presenga dos guardas republicanos na entrada da galeria Iris Clort até o coquetel azul oferecido aos visitantes, Klein tentou abranger todos os aspectos do protocolo usual do vernissage, dando-Ihes uma fungao poética que cercava seu objeto: 0 vazio, Assim, para citar uma obra similar, o tra- balho de Julia Scher (Security by Julia) consiste em colocar dispositivos de vigilancia nos locais de exposig&o: agora ¢ © fluxo humano dos visitantes ¢ sua possivel regulagéo que se tornam matéria-prima e tema da pega. Logo, atotalida- de do proceso expositivo serd “ocupada” pelo artista. Em 1962, Ben mora e dorme na galeria One, em Lon- dies, durante quinze dias, munido apenas de alguns aces- s6rios indispensaveis. Em Nice, em agosto de 1990, Pierre Joseph, Philippe Parreno Philippe Perrin também vaio “morat” na galeria Air de Paris, em sentido proprio ¢ fi gurado, com a exposigao Les ateliers du Paradise: & primeira vista, pode parecer um remake da performance de Ben, mas ‘0s dois projetos se referem a universos relacionais radical- mente diferentes, com fundamentos ideolégicos e estéticos tao divergentes quanto suas respectivas épocas. Quando Ben mora na galeria, ele quer dizer que 0 dominio da arte std em expansdo, chegando a incluir 0 perfodo desono eo calé-da-manha do artista. Por outro lado, quando Joseph, Parteno e Perrin ocupam a galeria, 6 para converté-la num atelié de produgo, um “espago fotogénico” em co-gestéo com 0 abservedor, segunda papéis muito precisos. No ver- nnissage de Les Ateliers du Paradise, em que todos usavam ‘uma camiseta personalizada ("O medo’, “O gético” ete), 54 NICOLAS BOURRIAUD as selagies que se estabeleciam entre os visitantes eram transformadas num roteito, escrito ao vivo pela cineasta Marion Vernoux no computador da galeria: o jogo das re- lagdes humanas era materializado segundo os prinefpios de um jogo de video interativo, “filme em tempo real” vi- vido e produzido pelos trés artistas. Assim, vérias pessoas de fora contribufam para construir um espago de relagdes: nao s6 outros artistas, mas também psicanalistas, bailari- ros, amigos ete. Esse tipo de trabalho “em tempo real", no qual criagdo e exposigdo tendem a se fundir, foi retomado pela exposigdo Work, Work in progress. Work na galeria An- drea Rosen (1992), com Felix Gonzalez-Tortes, Matthew McCaslin e Liz Larner, e depois por This és the show and the show is many things em Gand, em outubro de 1994, antes de encontrar uma forma mais teérica com minha exposi- iio Traffic. Nos dois casos, cada artista podia intervir du- rante toda a exposico para modificar sua pega, substituf-la ou propor performances e acontecimentos. A cada modifi- cago, evoluindo 0 contexto geral, a exposiggo desempe- nha © papel de uma matéria déctil, que ganha forma pelo trabalho do artista. © visitante ocupa um lugar preponde~ rante, pois sua interagdo com as obras ajuda a definir a es- trutura da exposigio, Ble se v8 diante de dispositivos que requerem dele uma decisdo: nos Stacks ou montes de bom- bons de Gonzalez-Torres, por exemplo, pode pegar qual- quer coisa na pega (um bombom, uma folha de papel), que vai pura e simplesmente desaparecer caso cada um exerca esse dircito: o artista apela a seu senso de responsabilide- FSTETICA RELACIONAL 55. de, pois o visitante deve entender que seu gesto contribui para a dissolugio da obra. Qual a posi¢go a adotar diante de uma obra que distribui seus componentes e ao mesmo tempo quer salvaguardar sua estrutura? A mesma ambi- gilidade se apresenta ao espectador de seu Go-go dancer (1991), um rapaz de sunga que se agita numa base mintis- cula, ou dos Personnages vivants & réactiver, que Pierre Jo- seph coloca nas exposigéies durante os vernissages; diante de La niendiante agitando sua matraca (exposigao No man’s time, Villa Arson, 1991) s6 podemos desviar o olhar, en- trincheirado em seus enfoques estéticos, que reificam ines- crupulosamente um ser humano ao equipari-lo as obras que 0 cercam, Vanessa Beecroft opera num registro pare- cido, mantendo 0 observador a distancia: em sua primeira exposigao individual, na galeria Esther Schipper em Col6~ ria, em novembro de 1994, a artista tirava fotos, citculando entre uma dezena de mocas de toupas idénticas ~com uma cacharrel, calgas e perucas louras -, enquanto uma barreira que interditava 0 ingresso na galeria permitia que apenas dois ou trés visitantes por vez enxergassem a cena de lon- ge. Esttanha populagao sob o olhar curioso de um espec- tador-voyeur: personagens de Pierre Joseph saidos de um imagindrio fantastico popular; duas irmas gémeas expos- tas sob dois quadros de Damien Hirst (Art cologne, 1992); uma stripper executando seu show (Dike Blair); um pedes- tre andando numa esteira rolante, num caminhao de pai- néis transparentes que segue percurso de um parisiense escolhido ao acaso (Pierre Huyghe, 1993); um saltimbanco 56 NICOLAS ROURRIAUD tocando realejo com um mico na coleira (Meyer Vaisman, galeria Jablonka, 1990); ratos alimentacos com Bel Paese de Maurizio Cattelan; aves que Carsten Haller embebeda com pedagos de pio mergulhados em uisque (video cole- tivo Unplugged, 1993); borboletas atrafdas por telas mono- crométicas revestidas de cola (Damien Hirst, In and out of ove, 1992) — animais e pessoas cruzam-se em galerias que funcionam como tubos de ensaio para experiéncias com 0 comportamento individual ou social. Quando Joseph Beuys passava alguns dias fechado com um coiote (like America and America likes ine), ele estava se entregando a uma de- monstragio de seus poderes e indicando uma possivel re- conciliagdo entre © homem e © mundo “selvagem”, Aqui, pelo contrario, na maioria das pegas citadas, 0 autor néo tem uma idéia prévie do que vai ocorrer: a arte se faz na galeria, tal como Tristan Tzara dizia que “o pensamento se fazna boca”, OS ESPAGOS-TEMPOS DATROCA As obras e as trocas ‘Aare, por ser da mesma matéria de que sao feitos 08 contatos sociais, ocupa um lugar singular na produgéo co- letiva, Uma obra de arte possui uma qualidade que a dife~ rencia dos outros produtos das atividades humanas: essa qualidade é sua (relativa) transparéncia social, Uma boa obra de arte sempre pretende mais do que sua mera pre- ssenga no espaco: ela se abre ao diélogo, & discussio, a essa forma de negociacdo inter-humana que Marcel Duchamp. chamava de “o coeficiente de arte” ~ e que é um proceso temporal, que se da aqui e agora. Essa negociagio se rea- liza numa “transparéncia” que caracteriza a obra de arte como produto do trabalho humano: de fato ela mostra (ou sugere) seu processo de fabricagao e producio, sua posi- o no jogo das trocas, o lugar — ou a fungdo ~ que atribui ao espectador, ¢, por fim, 0 comportamento criador do ar- 58 NICOLAS BOURRIAUD lista (isto 6, a sucessio de atitudes e gestos que compdem seu trabalho e que cada obra individual reproduz, como se fosse uma amostra ou ponto de referéncia). Assim, ca- datela de Jackson Pollock liga tao estreitamente a tinta en- torada a um comportamento artistico que uma aparece como imagem do outro, como seu “produto necessario”, nas palavras de Hubert Damisch’. No inicio da arte esté o comportamento adotado pelo artista, esse conjunto de dis- posigdes e atos que conferem a obra sua pertenca ao pre- sente. A obra de arte é “transparente” porque os gestos que @ caracterizam e Ihe dao forma, sendo livremente escolhi- dos ou inventados, fezem parte de seu fema, Por exemplo, 9 sentido da Marilyn de Andy Warhol, para além do ico- ado provesso industrial de produgdo adotado pelo artista, re- gido por uma indiferenga mecdnica em relagdo aos temas escolhidos. Essa “transparéncia” do trabalho artistico se opse ao sagrado e aos idedlogos que procuram na arte os meios de renovar a imagem do religioso. Essa transparén- ia relativa, forma apriorfstica da troca artistica, ¢ insupor- tavel para o carola, Sabe-se que qualquer produgéo; depois de ingressar no circuito das trocas, assume uma forma so- ne popular que é a imagem de Marilyn Monroe, deri cial que no guarda mais nenhuma relagéo com sua uti- lidade original: ela acquite um valor de troca que recobre © oculta parcialmente sua primeira “natureza’. Ora, ume obra de arte nao tem fungao titil@ priori ~ nao que seja so- 1. Hubert Damisch, Fendi jaunecadmiun, Paris, Ed du Seu, 198, p. 76. FSTETICA RELACIONAL 59 yel, “de tendéncia cialmente inttil, mas disponivel, flexi infinita’: ou seja, ela se entrega ao mundo da troca e da co- municagio, do “comércio" nos dois sentidos do termo, To~ das as mercadorias tém um valor, isto é uma substincia comum que permite sua troca; essa substncia, segundo Marx, é a “quantidade de trabalho abstrato” utilizada para produzir tal mercadoria. Ela é representada por una quan- tia de dinheizo, que é 0 “equivalente geral abstrato” de to- das as mercadorias entre si. Quanto a arte, ¢ Marx foi 0 primeiro a dizé-o, ela representava a “mercadoria absolu- ta", visto que era a propria imagem do valor, Mas do que se fala exatamente? Do objeto de arte, no de sua pratica; da obra tal como 6 tomada pela economia geral, nao de sua economia propria, Ora, a arte represen ta uma atividade de troca que nao pode ser regulada por nenhuma moeda, nenhuma “substancia comum’:ela é dis- tribuigdo de sentido em estado selvagem — uma troca cuja forma é determinada pela forma do proprio objeto, € nao pelas determinag6es que Ihe sao exteriores. A pratica do ar- lista, seu comportamento enquanto produtor, determina a relagdo que seré estabelecida com sua obra: em outros ter~ ‘mos, o que ele produz, em primeito lugar, so relagGes entre as pessoas ¢ 0 mundo por intermédio dos objetos estéticos. O tema da obra Todos os artistas cujo trabalho deriva da estética rela- cional possuem um universo de formas, uma problematica 60 NICOLAS BOURRIALD © uma trajetsria que Ihes so préprias: nenhum estilo, te- ma ow iconografia os une, © que eles compartilham é mui- to mais importante, a saber, o fato de operar num mesmo horizonte pratico e teérico: a esfera das relagdes humanas. Suas obras lidam com os modos de intercmbio social, a interago com o espectador dentro da experiéncia estética Proposta, os processos de comunicagao enquanto instru- mentos concretos para interligar pessoas e grupos. Todos, portanto, atuam num campo que pode ser cha: mado de esfera relacional, que é para a arte de hoje aqui lo que a produgéo em massa foi para a pop art ¢ a arte minimalista. Todos fundam sua pratica artistica numa proximida- de que, sem depreciat a visualidade, relativiza seu lugar no protocolo da exposigdo: a obra de arte dos anos 1990 trans- forma o observador em vizinho, em interlocutor direto. E justamente a atitude dessa geragao diante da comunicagao que permite defini-la em relacéo as anteriores: se a maioria dos artistas que apareceram na década de 1980, de Richard Prince a Jeff Koons, passando por Jenny Holzer, valariza- ‘va oaspecto visual das midias, seus sucessores privilegiam © contato © @ qualidade tatil Eles privilegiam o imediatis- ‘mo em sua escrita plastica. Esse fendmeno pode ser expli- cadosociologicamente, ao saber que a década recém-finda, mareada pela crise econémica, era poucopropicia as inicia- livas espetaculares e visionérias. Razées puramente esté- ticas também: nos anos 1980, o ponteiro tinha parado nos movimentos dos anos 1960, principalmente a pop art, cuja UESTETICA RELACIONAL, 61 cficécia visual sustenta a maioria das formas propostas pe- Jo simulacionismo, Bem ou mal, nossa época identifica-se ~até em seu “clima” de crise ~com a arte “pobre” e expe- rimental dos anos 1970, Esse efeito de moda, por superfi- cial que seja, permitiu reavaliar as obras de artistas como Gordon Matta-Clark ou Robert Smithson, enquanto 0 su- cesso de Mike Kelley favoreceu recentemente a releitura da junkart californiana de Paul Thek ou de Tetsumi Kudo. As sim, a moda ctia microclimas estéticos com efeitos inclusi- ‘ve em nossa leitura da historia recente: em outrostermos, a rede organiza suas malhas de outra maneira e “deixa pas- sar” outros tipos de trabathos ~ que, por sua vez, influen- ciam o preseate. Dito isso, 0s artistas relacionais constituem um grupo que, pela primeira vez.desde o surgimento daarte conceitual, nos meados dos anos 1960, nao se apéia absolutamente na reinterpretagio de tal ou tal movimento estético do passa- do; a arte relacional nao 6 0 revival de nenhum movimento, © retorno a nenhum estilo; ela nasce da observacio do pre- sente e de uma reflexdo sobre o destino da atividade artis tica, Seu postulado basico ~a esfera das relagdes humanas como lugar da obra de arte — ndo tem precedentes na hist6- ria da arte, mesmo que, « posteriori, apateca como eviden- te pano de fundo de qualquer pratica estética e como tema ‘modernista por exceléncia: basta reler a conferéncia apre- sentada por Marcel Duchamp em 1954, “O processo cria- tivo", para se convencer de que a interatividade nao é uma idéia nova... A novidade estd em outro lugar, Ela reside no 62 NICOLAS BOLRRIAUD fato de que essa geragdo de artistas nao considera a inter- subjetividade e a interagao como artificios teéricos em vo Ba, nem como coadjuvantes (pretextos) para uma pritica tradicional da arte: els as considera como ponto de partida e de chegada, em suma, como os principais elementos a dar forma a sua atividade. O espago em que se apresentam suas obras é 0 da interagao, o da abertura queinaugura (Georges Bataille diria: “dilacera”) todo © qualquer dislogo. © que elas produzem sio espacos-tempos relacionais, experién clas inter-humanas que tentam se libectar das restrigdes ideolégicas da comunicagio de massa; de certa manei- 1a, Sio lugares onde se elaboram socialidades alternativas, modelos eriticos, momentos de convivio construido, Sabe- se, porém, que o tempo do Homem novo, dos manifestos futurizantes, dos apelos a um mundo melhor com as chaves na mao, jé passou: vive-se hoje a utopia no cotidiano sub- jetivo, no tempo real das experimentagdes concretas e de- liberadamente fragmentérias, A obra de arte apresenta-se como um intersticio social no qual sao possiveis essas expe- riéncias e essas novas “possibilicdades de vida’: parece mais urgente inventar relagées possfveis com os vizinhos de hoje do que entoar loas ao amanha. £ sé, mas é muito. E em to- do caso isso representauma alternativa desejavel ao pensa- mento depressivo, autoritério e reaciondrio que, pelo menos na Franga, se apresenta como teoria da arte sob a forma de uma recobrada “sensatez”: mas a modernidade nao morreu, se identificamos como moderna o gosto pela experiéncia estética e pelo pensamento capaz de se aventurat, opondo- se aos conformismos timidos defendidos por nossos fil6- ESTETICA RFLACIONAL 63 sofos bitolados, os neotradicionalistas (a “Beleza”, segundo © inqualificavel Dave Hickey) ou os passadistas militantes ao estilo de Jean Clair. Mesmo que desagrade a esses inte- gralistas do bon goftt de ontem, a arte atual assume e re- toma plenamente a heranga das vanguardas do século xx, mas recusando seu dogmatismo e sua teleologia, Notem bem, esta iltima frase foi pensada por muito tempo: agora 6 hora de escrevé-la. Pois o modemismo se banhava num “imaginario de oposigdo”, retomando os termos de Gilbert Durand, que procedia por separagbes e oposigées, amitide desqualificando 0 passado em favor do futuro; baseava-se no conflito, enquanto o imaginatio de nossa época se preo~ cupa com negociagdes, vinculos, coexisténcias. Hoje nao se procura mais avangar por meio de posigées conflitantes, € sim com a invengdo de novas montagens, de relagdes pos- siveis entre unidades distintas, de construgdes de aliangas ‘entre diferentes parceiros. Os contratos estéticos, tal como 08 contratos sociais, so tomados pelo que sao: ninguém mais pretende instaurar a idade de ouro na terra, e ficare~ ‘mos contentes em criar modi vivendi que permitam relagdes sociais mais justas, modos de vida mais densos, combina- ‘goes de existéncia miiltiplas e fecundas. Da mesma forma, a arte no tenta mais imaginar utopias, e sim construir es- pagos concretos. Espagos-tempos na arte dos anos 1990 Esses procedimentos “relacionais” (convites, distri- buigdo de papéis, encontros casuais, espagos de convivio, 64 "OLAS BOURRIALD pontos de encontro etc) séo apenas um repertério de for- ‘mes comuns, vefculos por meio dos quais se desenvolvem Pensamentos singulares e relagdes pessoais com 6 mun- do. A forma posterior que cada artista daré a essa produgio relacional tampouco ¢ imutdvel: esses artistas apreendem seus trabalhos de um ponto de vista triplo, ao mesmo tem- Po estético (como “traduzi-los” materialmente?), histori- co (como se inscrever num jogo de referéncias artisticas?) € social (como encontrar uma posi¢ao coerente no estado atual da produgao e das relagies saciais?), Se essas prati- cas certamente tém suas referéncias formais ¢ tedricas na arte conceitual, no Fluxus ou no minimalismo, por outro lado utilizam-nas apenas como um vocabulério, um su- porte lexical. Jasper Johns, Robert Rauschenberg ¢ os No- ‘os realistas basearam-se no ready-made para desenvalver suaretérica do objetoe seus discursos sociolégicos. Quan- do a arte relacional se refere a situagdes e métodos concei- tuais ou de inspirago Fluxus, ou a Gordon Matta-Clark, Robert Smithson, Dan Graham, € para articular modos de Pensamento que no tém nada a ver com eles. A verdade 1a questao seria a seguinte: quais so es modos de expo- sigdo justos em relacdo ao contexto cultural ¢ om relagio & historia da arte, tal como se atualiza no presente? O video, or exemplo, hoje se torna um suporte dominante: mas, se Peter Land, Gillian Wearing ou Henry Bond, para citar apenas alguns, privilegiam 0 registro em video, nem por isso sda “video-artistas”. Esse meio simplesmente se mos- tra omais adequado para a formalizagio de certos projetos ESTETICA RELACIONAL 65 © ages, Outros artistas produzem uma documentacao sis- temitica de seus trabalhos, extraindo ligdes da arte concei tual, mas em bases estéticas radicalmente diversas: longe da racionalidade administrativa que funda a arte conceitual (@ forma do contrato de cartério, ubiqua na arte dos anos 1960), a arte telacional inspira-se mais em processos ma- leaveis que regem a vida comum. Pode-se falar em comu nicagdo, mas aqui também os artistas atuais se situam no pélo oposto dos artistas da déceda anterior que utilizavam. as midias: estes abordavam a forma visual da comunicacao de massa e os cones da cultura popular, ao passo que Liam Gillick, Miltos Manetas ou Jorge Pardo trabalham sobre ‘modelos reduzidos de situagdes comunicacionais. Pode-se interpretar como uma mudanca na sensibilidade coletiva: agora, joga-se 0 grupo contra a massa, a vizinhanga con- tra a propaganda, o low tech contra o high tech, 0 tatil contra © visual. E, sobretudo, hoje o cotidiano se apresenta como terreno muito mais fecundo do que a “cultura popular” ~ forma que sé existe em relagao e oposigao a “alta cultura’, Para eliminar qualquer diivida sobre um suposto retor- ho a uma arte “conceitual’, lembremos que esses trabalhos no celebrama imaterialidade: nenhum desses artistas pri- vilegia as performances ou 0 conceito, termos que, aqui, j4 no significan muita coisa. Em suma, nao hd mais o pri- mado do processo de trabalho sobre os modos de mate- tializagio desse trabalho (ao contrério da pracess art e da arte conceitual, que, elas sim, tendiam a fetichizar o pro- 66 NICOLAS BOURRALD cesso mental em detrimento do objeto). Nos mundos cons truldos por esses artistas, os objetos, pelo contrétio, fazem parte integrante da linguagem, ambos considerados como vetores de relagdes miituas: de certa maneira, um objeto é {Go imaterial quanto um telefonema, e uma obra que con- siste numa sopa de jantar é to material quanto uma est’- tua. Questiona-se essa divi 0 arbitraria entre o gest e as formas por ele produzidas na medida em que ela é a pré- pria imagem da alienagao contemporanea: a ilusdo sabia~ mente mantida, até nas instituigdes artisticas, de que os Objetos justificam os métodos e o finn da arte justifica a pe- quenez. dos meios intelectuais tituigdes, o emprego do tempo e as obras so, ao mesmo tempo, resultado das relagdes humanas— pois coneretizam © trabalho social ~ e produtores de relagdes ~ pois organi- zam modos de socialidade regulam os encontros huma- © 6ticos, Os objetos e as ins- nos. A arte de hoje nos leva a enxergar as relagdes entre 0 espago co tempo de uma outra maneira: alids, sua princi pal originalidade deriva essencialmentedo tratamento que cla da a essa questo. De fato, 0 que artistas como Liam Gillick, Dominique Gonzalez-Foerster ou Vanessa Bee- croft produzent concretamente? © que, em tiltima instancia, constitui o objeto de seus trabalhos? Para apresentar al- guns elementos de comparacéo, temos de dar inicio a uma histéria do valor de uso da arte: quando um colecionador comprava uma obra de Jackson Pollock ou de Yves Klein, ele estava comprando, para além de seu interesse estéti €o, um marco de uma historia em andamento, Ele adquiria ESTEICA RELACIONAL 67 uma situagao histérica, Ontem, quando se comprava um inha em primeiro lugar era a hiper-rea~ Jeff Koons, 0 que lidade do valor artfstico. O que se compra quando se ad- quite uma obra de Tiravanija oa de Douglas Gordon, sendo um nexo com o mundo coneretizado por um objeto, que determina, por si s6, as relagdes que vém a se estabelecer com tal nexo: a relagdo com uma relagao? CO-PRESENGA E DISPONIBILIDADE: A HERANGA TEORICA DE FELIX GONZALEZ-TORRES E um cubo de papel de dimensdes reduzidas, sem lar- gura suficiente para dar uma iluséio de monumentalidade, despojado demais para fazer esquecer que nao passa de ‘uma pilha de cartazes iguais, O cartaz 6 azul-coleste com um largo debrum branco. Na borda, 0 azul fica mais forte devido 20 empilhamento do papel. A legenda: Felix Gon- zalez-Torres, Untitled (Blue Mirror), 1990. Offset print on paper, endless copies. A pessoa pode pegat e levar um dos cartazes, Mas 0 que acontecerd se muita gente pegar as fo- Ihas oferecicas a um puiblico abstrato? Como a pega ira se modificar ¢ depois desaparecer? Pois ndo 6 uma perfor- mance nem uma distribuigdo de cartazes, e sim uma obra dotada de forma definida e com uma certa densidade, uma obra que nao expe seu processo de construgao (ou de des- montagem), mas a form de sue presenga entee um priblice. Essa problemética da oferenda no convivio, da disponibi- lidade da obra de arte, tal como é posta pot Gonzalez-Tor- 70 NICOLAS BOURNIAUD res, hoje se mostra fundadora de sentido: esta no centro da estética contempornea, mas vai muito além, até a essén- cla de nossas relagdes com as coisas. E por isso que a obra do artista cubano, apés sua morte em janeiro de 1996, de- manda um exame critico capaz de restitui-la ao contexto atual, para o qual contribuiu generosamente. A homossexualidade como paradigma de coabitagito Seria muito facil reduzir 0 trabalho de Felix Gonza- lez-Torres, como hoje hé uma tendéncia a se fazer, a um Problema neoformalista ou ao desenho de uma militan- cla homossexual. Sua forga consiste em sua habilidade pa- ra instrumentalizar formas e om sua capacidade de escapar 4s idenlificagSes comunitérias para chegar ao cerne da ex- petigncia humana. Assim, a homossexwalidade, para ele, € menos um tema discursivo do que uma dimensao emo- cional, uma forma de vida criadora de formas de arte. Fe- lix Gonzalez-Torres 6, sem divi. a, 0 primeiro a colocar de maneita convincente as bases de uma estética hamossen- sual, nosentido a que Michel Foucault recorria para fundar uma étiea criativa das relagées amorosas, Nos dois casos, ‘rata-se de um impulso pera o universal, e ndo de uma rei- Vindicagio de uma categoria social. A homossexualidade em Gonzalez-Torres nao se fecha numa afirmagao comu- nitaria; pelo contrétio, apresenta-se como modelo de vida que pode ser compartilhado por todos, e com 0 qual todos podem se identifica. LACONAL a ESTETICA ‘Ademais, ela gera em sua obra um campo de formas, especifico, que se caracteriza principalmente por uma dua~ idade sem oposigdes. O ntimero “dois” estd sempre pre- sente, mas munca é uma oposigdo bindtia. Assim, vemos dois reldgios parados na mesma hora (ntitled (Perfect Lo- ‘1er3), 1991], dois travesseiros numa cama amarfanhada, ainda com a marca de um compo (24 cartazes, 1991), duas lampadas nuas presas & patede com os fios enlagados [Linti- Hed (March 5°) # 2, 1991], dois espelhos lado a lado (Un fitled (March 54) # 7, 1991}: a unidade basica da estética de Gonzalez-Torres & dupla. O sentimento de solid’o nunca { por isso que € dado pelo “1’, ¢ sim pela auséncia do "2". sua obra marca um momento importante na tepresenta~ do do casal, figura classica da histéria da arte: jé nao se trata da soma de duas realidades fatalmente heterogéneas, gue se completam num jogo sutil de oposicGes ¢ desse~ melhangas, movidas pela ambivaléncia dos movimentos de atracao e repulsao (pensemos no “Casal Amolfini” de Van Eyck ouno simbolismo duchampiano de “o rei e a rai- nha”), © casal de Gonzalez-Torres, pelo contréio, carac- teriza-se como uma unidade dupla e serena, como uma elipse [Untitled (Double Portrait, 1991], A estrutura formal de sua obra consiste nessa paridade harmoniosa, nessa in- clusao infinitamente desdobrada do outro em si, que sem ditvida é seu principal paradigma, Seria tentador definir seu trabalho como autobiogré- fico, dadas as iniimeras alusdes do artista a sua vida (a to- nalidade extremamente pessoal dos puzzfes, 0 surgimento 2 NICOLAS BOURRIAUD, das candy pieces, quando morte seu namorada Ross), mas ssa idéia seria insuficiente: Gonzalez-Torres conta do co- mego ao fim a historia néo de um individuo, e sim de um casal, de uma coabitacao, Alm disso, a obta divide-se em figuras que guardam uma estreita relagdo com a coabita- so amorosa, © encontro e a unio {todos os “pares”); 0 conhecimento do outro (os “retratos”); a vida em comum, apresentada como uma coroa de momentos felizes (as lam= Padas e as figuras da viagem); a separacao, incluindo todas as imagens de auséncias onipresentes na obra; a doenga [o resultado da exame cle Untitled (Bloodworks), 1989; as péro- las brancas e rubras de Untitled (Blood), 1992]; e por fim o Jamento da morte (a tumba de Stein e ‘Toklas em Paris; as faixas negras nos cartazes brancos). © trabalho de Gonzalez-Torres articula-se global- mente com um projeto autobiogréfico, mas é uma autobio~ grafia bicéfala, compartilhada, Assim, desde a metade dos anos 1980, época de suas primeiras exposigdes, o artista cubano prefigura um espazo baseado na intersubjetivida- de, que é precisamente o que serd explorado pelos artistas mais interessantes da década seguinte. Para citar apenas alguns cuja obra hoje atinge sua maturidade, Rirkrit Ti- ravanija, Dominique Gonzalez-Foerster, Douglas Gordon, Jorge Pardo, Liam Gillick, Philippe Parreno, cada qual de- senvolvendo problematicas pessoais, ocupam um terreno comum na prioridade que conferem ao espaco das relagdes humanas na concepgio e difusdo de seus trabalhos (que articulam modos de produgao e relagGes inier-humanas). STETICA RELACONAL B Dominique Gonzalez-Foerster e Jorge Pardo sio, talvez, ‘os que apresentam mais pontos em comum com Gonza- lez‘Tortes, A primeira, por sua exploragao da intimidade doméstica como interface dos movimentos do imagind- rio piiblico, 20 transformar as lembrangas mais pessoais @ mais complexes em formas claras ¢ despojadas. O se- gundo, pelo aspecto minimalista, evanescente e sutil de seu repert6rio formal, pela sua capacidade de resolver pro- blomas espdcio-temporais por meio da geomettizacdo dos objetos funcionais. Pardo e Gonzalez-Foerster colocam a cor no centro de suas preocupagées: freqiientemente reco- nhecemos o “estilo” de Gonzelez-Torres em sua suavidade cromética (presenga constante do azul-celeste e do branco: o vermelho aparece apenas para indicar o sangue, nova fi- gura da motte) A nogao de inclusta do outro ndo é somente um tema, Ela é absolutamente essencial para a compreensao formal do trabalho. se insistiu muito sobre a “recarge” que Gon- zalez-Tortesteria dado a formas antigas, historicizacas, so~ bre a retomada do repertério estético da arte minimalista (os cubos de papel, os diagramas, que parece desenhos de Sol Lewitt), da antiforma e da process art (as pilhas de bombons lembram o Richard Serta do final dos anos 1960) ‘ou da arte conceitual (0s cartazes-retratos, braneo sobre preto, fazem lembrar Kosuth). Mas aqui também se trate de uma questo de casal e coabitago. A pergunta lanci- nante de Gonzalez-Torres pode se resumir a: “como posso 74 NICOLAS BOURRIAUD habitar tua realidade?” ou “como um encontro entre duas realidades pode modificé-las bilateralmente?”., A inseredo do universo intimista do artista nas estruturas d. anos 1960 cria situagdes inéditas e retroativamente orienta ‘nossa leitura dessa arte para uma reflexdo menos formalis- ta.emais psicologizante. £ verdade que tal reciclagem tam- bém constitui uma opgio estética: de um lado, ela mostra que asestruturas artisticas nunca se restringem a um sim- ples jogo de significagoes; de outro, a simplicidade das for- mas utilizadas pelo artista contrasta vigorosamente com seu contetido trégico ou militante, Mas o essencial conti- nua a ser esse horizonte de uma fusdo almejada por Gon- zalez-Torres, essa exigéncia de harmonia e coabitag abrange inclusive sua telagdo com a histéria da arte la arte dos 20 que Formas contempordnens do monumento © ponto comum entre todos os objetos que classifi- camos como “obra de arte” reside em sua faculdade de produzir o sentido da existéncia humana {de indicar tra- jel6rias possiveis) dentro desse caos que 6 a realidade. £ em nome dessa definigéo que a arte contemporanea —em bloco - € hoje desacreditads, geralmente por aquoles que véem no conceito de “sentido” uma nogdo preexistente A acéo humana, Uma pilha de papel, para eles, nio poderia entrar na categoria das obras de arte, porque consideram © sentido como uma entidade preestabelecida que ultra- Passa 0s contatos sociais © as construgdes coletivas. Flos STETICA RELACONAL B indo quetem enxergar que o universo é apenas um ca0s a0 qual os Homens contrapéem verbo ¢ formas. Eles querem um sentido jé pronto (e sua moral transcendente), uma ori gem capazde garantir esse sentido (ama ordema ser reen- contrada) ¢ regras codificadas (depressa, a pintural), O mercado de arte esta plenamente de acorclo com eles, salvo algumas excgGes: a inacionalidade da economia capita lista tom a necessidade estrutural de se fundar nas certe zas da fé ~ ndo 6 3 toa que o délar ostenta sua orgulhosa divisa, in god we trust -, e o investimento ae ce ¢0 geralmente se destina aos valores ratificados pelo sen. srocessos ou situagdes. Lamenta-se 0 aspecto “conceitual tlemaig” de seus trabalhos(ransferindo assim, como snal dle um instinto infalivel em meio & preguiga, a ncompre- ensdo das formas ao uso de um termo cujo sentido igno- rom) Mas esa reltiva materia da ate dos anos 1990 (que, aliés, é um sinal da ee auc eses artistas at em ao tempo em detzimento do espago, ¢ nao uma von: tae Treditie abjetes) nfo é motivada por uma militancia estética, nem por uma recusa maneitista 8 cria~ ‘cio de objetos. Eles expdem ¢ exploram o processo que le- va a0s objelos e ao sentido. O objeto & apenas um happy end do processo de exposicao, como explica Pailippe Par- reno: ele nao é a conclusio iégica do trabalho, © sim um acontecimento, Uma exposigio de Tiravanija, por exemplo, nao se furta & materializacdo, mas desconstréi os mods 7 NICOLAS BOURRIAUD. de constituigéo do objeto de arte numa série de aconteci- mentos, devolvendo-lhe uma duracdo prépria, que nao é Obrigatoriamente a duragio convencional do quadro olha- do. Nao devemos ceder nesse ponto: a arte atual nao tem nada a invejar no “monumento” cléssico, no tocante aos efeitos de longa duracéo, A obra contemporanea, mais do que nunca, € essa “demonstragao, para todos os homens futuros, da possibilidade de criar a significacao habitando a beira co abismo”s, nas palavras de Comélius Castoriadis: uma resolugéo formal que roca a eternidadejustamente por ser pontual e temportria Felix Gonzalez-Torres parece-me um exemplo des- sa ambigio: tendo morrido de aids, ele fundou seu traba- Tho numa aguda consciéneia da duracao, da sobrevivéncia das maisintangiveis emogdes; atento aos modos de produ- Ao, ele concentrou sua pratica sobre uma teoria da troca e 2 partilha; militante, promoveu formas novas de engaja mento attistico; homossexual, conseguiu transmular sett modo de vida em valores éticos e estéticos, Maisprecisamente, ele lovanta o problema dos proce 505 de mater rializagao na arte e da recepgao contemporanea dessas novas formas de materializagao, Para a maioria das Pessoas - apesar da evolugio tecnolégica que ridiculariza esse tipo de preconceito ~, a duragao de uma informagao © capacidade ce uma obra artistica de enfrentar o tem- Po estio ligadas & solidez. dos materiais escolhidos e, por- sooe, 1 CPtnlus Castriats, La mode de Mnsignionce, Pais, Ea da Stl ESTETICA RELACIONAL 7 tanto, de forma jmplicita, 8 tradigao. Ao enfrentar e tocar a morte enquanto individuo, Gonzalez-Torres corajosamen- te decide colocar a problematica da inscricdo no centro de seu trabalho. Fle chega inclusive a abordé-la em sua vertente mais delicada, isto é, segundo os diferentes aspectos do monu- mental: a comemoracio dos acontecimentos, a perenida- de da lembranca, a materializacao do impalpavel. Assim, ‘ surgimento das guirlandas de lampadas elétricas esta li- gado a uma visio furtiva que ocorreu em Paris em 1985: “Olhei para cima ¢ imediatamente tirei uma foto, porque era uma viséo feliz”: A parte mais monumental do tra~ balho de Gonzalez-Torres é reservada aos retratos que ele realiza a pattir das conversas com os clientes: 0s retratos feitos com a técnica do desenho mural (wall-draving) so frisos em que se sucedem, geralmente em ordem cronol6- gica, lembrangas intimas e acontecimentos histéricos. Eles preenchem uma fungdo essencial do monumento: a con- jungéo de um individuo e sua época no interior de uma {inica forma, ‘Mas essa estilizagto das formas sociais se manifesta com maior clareza no permanente contraste que o artista estabelece entre a importancia, a complexidade, a gravida- de dos acontecimentos evocados e © carater minimalista das formas empregadas nessa evocagao. Assim, por exem~ plo, um visitante desinformado poderia ver Untitled (21 snotty tok pote because sappy sigh (a= 1) 2: iboked wp télogo do Muse Guggenbein, 199 8 NICOLAS BOURRIALD, Days of Bloodwork — stendy Decline) como um conjunto de desenhos minimalistas; fino quadriculado e a vinica linha abliqua que atravessa 0 espaco nao remetem diretamente 9 queda dos glébulos brancos no sangue de um soropositi- vo. Uma vez efetuada a conexio entre essas duas realidades @ discrigao do desenho, a doenca), a forga alusiva da obra assume uma terrivel amplitude que nos remete de volta & Rossa constante vontade de nifo ver aquilo, de negar incons- clentemente a possibilidade e o avanco da doenca. Nada 6 demorstrativo ou explicto na estratégia monumental, pol tica, escolhica pelo artista. Segundo ele, “dois rel6gios lado a lado sio mais ameagadores para o poder do que a imagem de doiscaras chupando 0 pau, porque ele nio pode me usar como referéncia em sua luta para apagar a significagao"s Gonzalez-Torres néo manda mensagens: ele inscre- ve 0s fatos nas formas, como mensagens ciftadas, garrafas 20 mar. Aqui, a memdrla passa por um proceso de abs- tragdo andlogo aos processos que atingem os corpos hu manos: “E uma abstragao total; mas 6 0 compo. E tua vida”, dizia ele a seu amigo Ross, diante do resultado de um exa-_ me de sangue. Com Untitled (Alice B. Tokles and Gertrude Stein's grave, Paris), uma fotografia de 1992 que representa as flores plantadas no ttimulo das duas amigas, Gonzalez~ Torres corrobora um fato; ele coloca a homossexualidade feminina como uma opsio inquestionsvel, capaz de impor tespeito ao mais retrégrado senador republicano, Ali ele 3 Catlogo Mu eu Guggenheim. op. ct p73 9 ESTETICA RELACIONAL. reencontra, com 0 auxilio de uma simples natureza mor~ ta fotografica, a esséncia do monumental: em outras pa- lavras, a procugao de uma emogao moral. Essa capacidade de desencadear tal emogao a despeito dos procedimentos tradicionais (uma foto emoldurada) e cla moral burguesa (um casal de lésbieas) ndo é 0 aspecto menos importante dessa obra profundamente, deliberadamente discreta. O critério de coexisténcia (as obras e os individuos) Assim, a obra de Gonzalez-Torres reserva um lugar central para « negociagao, parao desenvolvimento de uma coabitagao. Ela também contém uma ética do observador. Nisso, ela se inscreve numa histéria espectfica: adas obras que levam o espectador a tomar consciéncia do contexto em que se encontra (os happenings, os environnements dos anos 1960, as instalagies int sity), Durante uma exposigio de Gonzalez-Torres, vi al- guns visitantes pegar todos os bombons que cabiam na mao e no bolso: 1d estavam mostrando seu comporta~ mento social, seu fetichismo, sua concepgao acumulativa ddo mundo... enquanto outros nfo ousavam ou esperavam 6 vizinho surrupiar um bombom para ento imité-o. As candy pieces, assim, apresentam um problema ético sob uma forma aparentemente anédina: nossa relagio com a autoridade ea maneira como os guardas de museu usam seu poder; nosso senso de medida e da natureza de nossas relagdes coma obra de arte 8 0 NICOLAS ROURRIALD __ Como @ obra de arte € uma ocasido para uma expe- Hiencia sensivel baseada na troca, ela deve se submeter a critérios andlogos aos que fundam nossa avaliagéo de qualquer realidade social construfda. Hoje, 0 que estabe: lece a experiéncia artistica & a co-p seniga dos espectadores dante da obra, quer seja efetiva ou simbélica, As primeiras perguntas a ser feitas diante de uma obra de arte so as se- Buintes: Esta obra me dé a possibilidade de existir perante ela ou, pelo contrario, me nega enquanto sujeito, recusan: do-se a considerar 0 Outro em sua estrutura? © espaco- tempo sugerido ou descrito por esta obra, com as leis que a regem, corresponde a minhas aspiragdes na vida real? Ela eritica 0 que julgo criticavel2 Eu poderia viver num espaco- tempo que Ihe correspendesse na realidade? Essas perguntas levamnaoa uma visio descabidamen- te antropomérfica da arte, e sim a uma visdo simplesmente Jhnamana; a0 que eu saiba, um artista destina seus trabalhos a seus contemporaneos, a menos que se considere um mor- to em suspensio ou que adote uma versa fascista-inte- gralisia da His téria (0 tempo fechado em seu sentido, em sua otigem). Pelo contrério, as obras de arte que me pare- com hoje dignas de interesse so as que funcionam como inttersticios, como espagos-tempos tegidos por uma ordem que vei além das regras vigentes para a gestéo dos piibli- C08, O que nos chama a atengéo no trabalho dessa geracdo de artistas &, em primeiro lugar, a preocupacao democriti- @4 que 0 anima, Pois a arte nao transcende as preocupa- ses do cotidiano: ela nos pde diante da ralidade através ESTETICA RLAGONAL 81 de uma relagio singular com o mundo, através de uma fi: gio. A quem se quer convencer que uma arte auloritaria em relaggo a seus observadores pode remeter a um outro real que néo seja uma sociedade intolerante, imagindria ou concreta? Inversamente, as situages de exposigao que nos apresentam artistas como Gonzalez-Torres, ¢ hoje Angela Bulloch, Carsten Héller, Gabriel Orozco ou Pierre Huyghe, sio regidas pelo cuidado de “deixar a sorte” a cada um, Is- so ocorre por meio das formas que nao estabelecem ne- nhuma precedéncia a priori do produtor sobre o cbservador (nenhuma autoridade de direito divino), mas negociam com ele relagies abertas, ndo resolvidas de antemao. O es pectador, entao, oscila entre o papel de consumicor passivo © 0 de testemunha, associado, cliente, conviclado, co-pro- dutor, protagonista. Atengao, pois: sabe-se que as atitu- dees se tornam formas; agora, deve-se levar em conta que as formas induzem modelos de socialidade, Ea socialidade das exposigbes nao escapa a essas pre- caugées: a proliferagio dos cabinets amateur a que assis timos ha algum tempo, assim como as atitudes elitistas de certos atores do meio artistico, mostram um profun- do horror ao espago piiblico ¢ & experimentagio estética ‘compartilhada, com a preferdncia a saletas reservadas pa~ ra especialistas. A disponibilizagio das coisas néo acar~ reta automaticamente a banelizagdo delas: assim como, numa pilha de bombons de Gonzalez-Torres, pode existir um equilibrio ideal entre a forma e seu desaparecimento programado, entre a beleza visual e a modéstia dos ges~ a2 NICOLAS BOURRIALD tos, entre o maravilhamento infantil diante da imagem ea complexidade de seus niveis de leitura, Aura das obras de arte deslocou-se para seu piblico A arte de hoje — penso nos artistas acima citados ¢ também em Lincoln Tobier, Ben Kinmont, Andrea Zittel © muitos outros ~ leva em conta, em seu proceso de tra: balko, a presenga da microcomunidade que ira acolhé-la. Assim, uma obra cria uma coletividade instantanea de es- pectadores-participantes, seja em seu modo de producdo ou ne momento de sua exposigae. Durante uma exposigdo no Magasin de Grenoble, Gonzalez-Tortes havia modificado a cafeteria do mu: seu, pintando-a de azul, dispondo buqués de violetas nas mesas ¢ colocando a disposico dos visitantes uma do- cumentacao sobre baleias. Em sua expotigio individual ne galeria Jennifer Flay em 1993, Untitled (Arena), ele montou um quadrilétero delimitado por lampadas acesas e dispo- nibilizou aos visitantes um par de walkmans, para que pu- dessem dangar sob as guirlandas de luz, em siléncio, no ‘meio da galeria. Nos dois casos, 0 artista leva 0 “observa- dor” a participar de um dispositivo, a the dar vida, a com- pletar a obra e a participar da elaboragéo de seu sentido. Nao se trata de um artificio barato: esse tipo de obra (er- roneamente chamada de “interativa”) tem sua origem na arte minimalista, cujo funda fenomenolégico especula- va sobre a presenga do observador como parte integran- te da obra. E essa “participagdo” ocular que Michael Fried FESTETICA RELACIONAL, 83 denuncia sob a designagéo genérica de “teatralidade’: “A experincia da arte literal [o minimalismo] é a de um obje~ to em situagie, a qual, praticamente por definigao, inclui o observador”',Se, em sua época, o minimalismo fornecia as ferramentas necessérias para uma andlise critica de nossas condigdes de percepcao, ¢ facil notar que uma obra como Untitled (Arena) jd nao deriva da simples percepséo ocular: © que o espectador traz é todo 0 seu corpo, sua histéria ¢ seu comportamento, e nao mais uma simples presenga fi- sica abstrata, O espaco da arte minimalista eta construido na distancia entre o olhar e a obra; 0 espaco definido pelas ‘obras de Gonzalez-Torres, com o recurso a meios formais parecidos, 6 elaborado na intersubjetividade, na respos- ta emocional, comportamental ¢ histérica que o especta- dor dé & experiéncia proposta. O encontro com a obra gera uma duragaio mais do que um espago (como no caso da ar te minimalista). Tempo de manipulagao, de compreensio, de tomada de decisdes, que ultrapassa 0 ato de “comple- tar" a obra com o olhar. A arte moderna acompanhou, discutiu e precipitou, em larga medida, o fendmeno do desaparecimento da au- va da obra artistica, comentado de maneira brilhante por Walter Benjamin em 1935, A era da “reprodutibilidade me- c&nica ilimitada” de fato prejudicou esse efeito pararreli- Miche! Fed. "Art &e Objesthood” in era autoiogy, Kova York, Dutton, 1968p. 17, Ted ra" The experience of littlist art so ‘one whieh virtslyby definition, ctados the beholder rpory Rattock. Minbeal ans foe gto do stor m abject ina situation, 84 NICOLAS BOURRIALD gloso que Benjamin definia como “a aparigéo nica de um distante’, propriedade tradicionalmente vinculada 4 ar- te. Paralelamente a isso, no quadro de um movimento ge- ral de emancipacao, a modermidade dedicou-se a criticar © predominio da comunidade sabre 0 individuo, a conde- nar sistematicamente as formas de alienacio coletiva. Ora, © que temos hoje? A sacralidade retorma por toda parte; ha uma espiracdo diftsa 20 retorno da aura tradicional: nao 1d palavras suficientes para criticar 0 individualismo con- temporineo. Uma fase do projeto modemo encerrow-se Hoje, depois de dos séculos de futa pela singularidade ¢ contra as pulsdes coletivas, & nece ria uma nova sinte- Se capaz de nos preservar do fantasma regressivo, que atua um poco por toda parte, Retomar a idéia de pluralidade, Para a cultura contempordnea nascida da modernidade, significa inventar mados de estar-juntos, formas de inte- ages que ullrapassem a fatalidade das familias, dos gue- tos do tecnoconvivio e das instituigSes coletivas que nos Sao oferecidas. Nao podemos dar prosseguimento @ mo- dlemidade a nao ser superando as lutas que ela nos legou: em nossas sociedades pés-industriais, 0 mais urgente nio € mais a emancipacdo dos indivicuos, e sim a da comuni- cacao inter-humana, a emancipagio da dimensao relacio- nal da existéncia, Existe uma certa desconfianga diante dos instrumen- tos de mediagao, dos objetos transicionais em geral. E por extensio, portanto, uma certa desconfianca diante da obra de arte considerada como meio pelo qual um individuo ex- BLACIONAL be esremea| prime sua visto de mundo a um piiblico, As relagdes entre os artistas e suas produgoes, assim, rumatm para a zona do feedback: h alguns anos vém se multiplicando os projetos attisticos conviviais, festivos, coletivos ou patticipativos, que exploram miiltiplas potencialidades da telagao com 0 utzo, © pubblico vé-se cada vez mais levaco em conta. Co- mo se agora essa “aparigao Gnica de um distante”, que é a aura artistica, fosse abastecida por esse publico: como se a microcomunidade que se retine na frente da imagem se tornasse a prépria fonte da aura, o “distante” aparecendo pontualmente para aureolar a obra, a qual Ihe delega seus poderes, A aura da arte no se encontra mais no mundo representado pela obra, sequer na forma, mas esti dian- te dela mesma, na forma coletiva temporal que produz a0 ser exposta. E nesse sentido que podemos falar num efeito comu- nitério na arte contemporinea: nao se trata daqueles cor- porativismos que tantas vezes servem para disfarcar os mais consumados conservadorismos (hoje em dia, 0 fe- minismo, 0 anti-racismo e 0 ecclogismo freqtientemente funcionam como lobbies que fazem a jogo do poder, a0 per- itir que ele nunca seja estruturalmente questionado). As- sim, a arte contempordnea opera um deslocamento radical em relagao a arte moderna, no sentido de que nao nega a aura da obra de arte, mas desloce sua origem e seu efit. Jéera este o sentido da obra-prima Towards an audience vo- cabulary (1977), do grupo General Idea, que saltava a eta- pa do objeto dearte para falar diretamente ao pablico e lhe 86 NICOLAS BOURRAUD, propor modos de comportamento. Aqui a aura se recens- titui por associagdes livres. No entanto, é preciso no mis- lificar a idéia de pablico: a nogdo de uma “massa” unitéria fem mais a ver com uma estética fascista do que com essas experiéncias momentaneas, em que cada qual deve con- servar sua identidade®. So entrelacamentos determinados de antemao e limitados a um contrato, e nao uma cola so- cial que se endureceria a0 redor de totens identitarios, A aura da arte contempordnea 6 uma associagao livre. Abeleza como solucito? Entre as tentagdes reaciondrias que hoje agitam o ‘campo cultural, encontra-se em primeiro lugar um projeto slereabilitagao do eonceito de Beleza, Esse conceito pode se ccultar sob varios nomes. Atribuim sa Dave Hickey, ocrf- tico de arte que hojese arvora em paladino desse retorno a ‘norma, © mérito de chamar as coisas pelos nomes. Em seu ensaio “Invisible dregon, Four essays on beauty” [Dragéo invisivel. Quatro ensaios sobre a belezal’, Hickey mantém- se bastante vago sobre 0 contetico desse conceito, A defini- $0 mais precisa é a seguinte: “o arranjo que causa prazer visual no espectador; todas as teorias da imagem que nao se radicam no prazer do espectador fazem desconfiar de sua eficdcia e se condenam & insignificéncia’, - sBiSube ee tema, fs trahalhon do Miche! Mattei em cop. La conten uv monde (Pais, Grasot, 1993) [Ed bras. A conte isco Franke Setineri, Pert Alagre, Artes & Olcis 6 Dave Hickey, The si dragon, Four esas cnet, Los Angeles At Fests Pres, 2995, 1. 87 ESTETICA RELACIONAL Aqui podemos indicar duasnoges fundamentais: efi- cdcia © prazer, ; Se eu tirar as conclusdes necessérias dessa proposicio, uma obra de atte, se no for eficaz e nao se mostrar itl (sto 6 proporcionar uma certa quantidade de prazer) aos espe tadores, seré insignificante. Por mais que eu me esforce em evitar comparasies desagradaveis, sou obrigado a consta- tar que esse tipo de estética constitui um exemplo de moral reagan-thatcheriana aplicada & arte. Hickey ndo questiona em lugar algum a natureza desse “arranjo” que propoicio- na prazer: serd que ele considera naturais as nogdes de si- metria, harmonia, sobriedade, equilibria, ou seja, 0s pilates do tradicionalismo estético, que fundam tanto as obras-pri mas do Renascimento quanto a arte nazista? Hickey, porém, apresenta alguns elementos: entende~ mos melhor a que ele se refere quando afirma que ‘a be- leza vende”, Aarte, acrescenta ele, nfo se confunde com a idolatria nem com a publicidade, mas “os objetos de culto [idolatry] e a pablicidade certamente sao arte, ¢ as maiores obras de arte sempre tm inevitavelmente um pouco das: duas coisas”, Como nao gosto de nenhuma das duas, dei- x0 a0 autor a responsabilidade por seus escritos. Voltando a questo da beleza na arte, as posigées “ins- titucionalistas’ de Arthur Danto (para quem existe Arte quando a instituigao “reconhece” uma obra) parecem-me, em comparagao aquele surto de irracionalismo fetichista, T Dave Hickey: opel, 1 88 NICOLAS BOURRIAUD mais adequadas ao que julgo ser a faculdade de pensar. A“natureza” real do arranjo que Hickey chama de Beleza € extremamente relativa, visto que as regras que regem 0 gosto sio elaboradas, geracao aps geracao, pela negocia- so, pelo didlogo, pelo atrito cultural, pela troca de pontos de vista. A descoberta da arte afticana, por exemplo, mo- dificou profundamente nossos cénones estéticos, por meio de varias mediagdes e discussdes. Lembremos que, no fi- nal do século xIx, El Greco s6 prestava para os antiqutios © que, entre a Antigtiidade grega e Donatello, nio existiu “verdadeira” escultura, Mas o “critétio institucional” caro a Dento também me parece um pouco sestritivo: nessa ue ta incessante para definir o dominio da arte, creio que ha Muitos outros atores, desde as praticas “selvagens” dos at- tistas até as ideologias reinantes, Mas em Felix Gonzalez-Torres ha uma aspiracao a0 que Hickey chama de beleza: uma busca permanente da simplicidade, da harmonia formal. Digamos: uma imensa delicadeza, virtucle ao mesmo tempo visual e moral. Jamais se encontza exagero ou insisténcia num efeito: sua obra nao agrice os olhos nem 0s sentimentos. Tudo esté impli- Cito, discreto e Nuido, 20 contrario de qualquer concepeao cosmética e forcada do “impacto visual”, Ele lida constan- temente com clichés, mas estes recuperam vida em suas iios: a vista de um céu nublado ou a foto de uma praia de areia impressa em papel acetinado, tudo causa impres- so, embora 0 observador possa se irritar com tanto kitsch, ‘STETICA RELACIONAL 89. Gonealez-Torres debruga-se sobre emogées inconscientes: assim, sou tomado por um maravilhamento infantil dante a colorida rilhante e reluzente das pilhas de bombons. A austeridade dos stacks 6 contrabalangada por sua fragilida- ee «c6es féceis, que, desde Boltanski, nao existe nada mais tri- vial do que essas estéticas que logo se penoumany a chantagem emocional. Mas o que importa é 0 que se faz com esse tipo de emogbes: que direcao Ihes dé o artista, como e com que intengao ele as organiza entre si, RELAGOES-TELA ‘A arte de hoje e seus modelos tecnolégicos ‘A teoria modernista da arte postulava que a arte e os moins téenicos eram coetaneos. Segundo essa tese, existi- riam laos indissoliiveis entre a arclem social e a oxlem es- tética Hoje podemos ser mais comedidos e cizcunspectos sobre a natureza desses lacos: constatando, por exemplo, que a tecnologia e as praticas artisticas nem sempre andam juntas e que essa defasagem nao causa incémodo a nenhu- ma das duas, De um lado 0 mundo se “ampliou” sob nossas vistas: seria um incrivel etnacentrismo ignorar que o avan- G0 tecnolégico esta longe de ser universal, e que o hemis- {ério sul do planeta, “em desenvolvimento", nao pertence 4 mesma realidade tecnolégica do Vale do Silicio ~ embora ‘ambos fagam parte de um universo cada vez mais estreito. Por outro lado, nosso otimismo em relagao ao poder eman- cipador da tecnologia em larga medida dissolveu-se: ago- ra sabemos que a informatica, a tecnologia da imagem ou a 2 NICOLAS ROURRIALD energia atémica, além de teazer melhorias avi ‘ida cotidiana, Tepresentam ameag: as e instramentos de sujeicdo, Assim, asrelagdes entre arte e técnica so bem mais complexas do que Nos anos 1960. Lembremos que a fotografia, em sua €poca, nao transformou as telagdes do artista com sett ma: terial: somente as condigées ideol6gi sicas da pratica rica foram afetadas, i ee foram afetadas, como constatamos com o impressionisino, Sesd possivel tracar um paralelo entre osurgimento da foto- Sralia © a atual protiferacao de telas nas exposigdes contom- Pordneas? Pois nossa época realmente é a épaca da tela Alids, 6 curioso que a mesma palavra se aplique a uma superfi a be icie que detém a luz (no cinema) ¢ a uma interface Sobre a qual se inscrevem informagdes, Essa convergéncia de significados prova que transformacées epistemolégicas (Ge novas estruturas da percepeio), resultantes do surgi- mento de tecnologias tao diferentes como o cinema, formatica e 0 video, : tela, ain. Tetinem-se em torno de uma forma (a © terminal) que sintetiza suas propriedades e poten clalidades. Se nao refletirmos sobre essa concordancia no interior de nosso instrumental mental para chegar a novas aneiras de ver, estaremos condenadosa uma andlise me- canicista da histéria da arte recente, A arte e 05 equipamentos A lei de destocalizagao ‘Os historiadores da arte estdo entre dois escolhos, De ‘um lado estd o idealismo, que consiste em conceber a arte -ESTETICA RELACIONAL 93, ‘como dominio auténomo, regida exclusivamente por suas prdprias leis. Em outros termos, segundo a expresso de ‘Althusser, a arte 6 como um trem do qual jé se conhecem de antemao a origem, 0 destinoe as etapas. Do outro lado, inversamente, estaria uma concepgao mecanicista da his~ toria, que deduz sistematicamente de cada inovagao tee- nolégica um certo niimero de modificagdes nos modos de pensar. £ fdcil ver que a relagio entre arte ¢ téenica & muito ‘menos sistemstica. O surgimento de uma invengio impor- tante, a fotografia, por exemplo, evidentemente modifica a relacdo dos artistas com o mundo e (com) o conjunto dos modos de representacao. Algumas coisas se mostram int- teis, ao passo que outras finalmente se tornam possiveis: no caso da fotografia, é a Fungio da representagio realis- ta que se revela cada vez mais ultrapassada, enquanto novos angulos de visio passam a ser legitimados (os en- quadramentes de Degas) e 0 modo de funcionamento da ituigo do real pelo impacto maquina fotogrdfica — a res luminoso ~ funda a prética pictérica dos impressionistas. Num segundo momento, a pintura moderna iré concen trar sua problematica naquilo que é irredutivel ao regis- tro mecénico (a matéria, o gesto, o que dard lugar a arte abstrata). Depois, num terceito momento, os artistas ane- xarGo a fotografia como técnica de producao de imagens. Eseas trés atitudes sucessivas, no que tange a fotogratia, hoje podem aparecer simultaneamente ou alternadas, gra- gas a aceleracdo dos contatos. Cada inovagio técnica apés a Segunda Guerra Mundial gerou entre os artistas reagbes 94 NICOLAS BOURRIALD extremamente diversas, que variam da adogo dos modos de proclugao dominantes (a mec-art dos anos 1960) 3, ma- Tutengao a todo custo da tradisao pictorica (o formalismo “purista” defendido por Clement Greenberg). No entan- ‘0, as reflexes mais fecundas foram feitas por artistas que, sem abdicar de sua consciéncia critica, trabalharam a par- lir das possibilidades oferecidas pelos novos instrumen- tos, mas sem representé-los como téenicas. Assim, Degas @ Monet produzem um pensamento do fotognifico que ul- trapassa em muito as concepgdes da época. Longe de nés @ idéia de afirmar qualquer superioridade da pintura em telacéo as outras midias: pode-se, pelo contrario, afirmar que aarte permite tomar consciéncia dos modos de produ Gao € das relagées humanas produzidas pelas técnicas da €poce, ¢ que, ao desloci-las, a arte as tona mais visiveis, permitindo que enxerguemos suas conseqiiéncias na vida Cotidiana, A tecnologia s6 tem interesse para o artista na ‘medida em que ele confere uma perspectiva a seus efeitos, sem aceitd-Ia como instrumento ideolégica, F isso que podemos chamat de fei de deslocalizagao: @ arte exerce sou dever eritico diante fa técnica somente quando desloca seus contetidos; assim, os principais efei- tos da revolugao da informética hoje so visiveis em ar- fistas que no usam computador. Pelo contrétio, os que produzem imagens ditas “infograficas”, com manipulagao de fractais ou imagens digitais, geralmente caem na at- madilha da ilustragao: seus trabalhos, na melhor das hi- POteses, nao passam de sintomas ou engenhocas, ou, pior 95 ESTETICA RELACIONAL ‘ainda, so a meia representagao de uma alienagao simbé- lica diante do meio informético ¢ de sua prépria aliena~ «io perante modos de produgao impostos. Assim, a fungao de representagto se exerce nos comportamentos: hoje nao & mais 0 caso de descrever exterramente as condicbes de produgao, e sim de incluir a gestuatidade, de decedificar as relagies socisis criadas por tais condig6es. Quando poe quinhentos teceldes trabalhando em Peshawar, no Pa- quistéo, Alighiero Boetti esta re-presentando 0 processo de trabalho das empresas multinacionais, ¢ € muito mais eficaz do que seria caso se contentasse em figuré-las ou em descrever seu funcionamento. Dessa manera, arelagéo arte/téenica mostra-se especialmente favoravel a esse ren- lism operatério que cstrutura muitas priticas contempors- reas, e que pode ser definido como a oscilagao da obra de arte entre sua fungao tradicional de objeto a ser contem- plado e stia insercao mais ou menos virtual no campo s0- cioecondmico'. Esse tipo de prética revela, quando menos, © paradoxo fundamental que liga a arte ¢ a tecnologia: se a técnica 6, por definicao, aperfeicodvel, a obra de arte nao 06, Toda a dificuldade encontrada pelos artistas que que- rem expor 0 estado da técnica ~ desculpando-me pela ex- pressao banal - consiste em fabricar 0 duradouro a partir das condigdes gerais de produgao da existéncia, mutéveis, por esséncia. Esse é 0 desafio da modernidade: “extrair 0 “7, Nicolas Bourriaud: "Qu‘estce que le salisme opératif? in 1 faut cons true Hacienda (CCC Tors, janeiro 1982, calilogo, "Produie des ports a monde" in Apert (Benal de Veneza, 19%, cso) 96 NICOLAS ROLRRIAUD eterno do transitério’, sem divida, mas também e sobre- tudo inventar um comportamento de trabalho justo ¢ coeten- te com os modos de produgao de sua época A tecnologia como modelo ideolégico (do traco ao programa) A tecnologia, enquanto produtora de equipamentos, exprime 0 estado das relagdes de produgao: a fotografia cortespondia a uma determinada fase de desenvolvimen- to da economia ocidental (caracterizada pela expansio co onial e pela racionalizagio do processe de trabalho), fase esta que, de certa maneira, requeria sue inveng&o, O con. trole da populagio (urgimento das carteiras de identi dade, das fichas antropométricas), a gestio das riquezas de ultramar (a etnofotografia), a necessidade de contro- lar a distancia o instrumental industrial e de documentar 0s lecais a serem explorados conferiram a méquina foto- grafica um papel inclispensavel no processo de industria- lizagio, A Fungo da arte, perante tal fendmeno, consiste em apropriar-se dos habitos perceptivos e comportamen- tais criados pelo complexo tecnoindusttial e transforma- los em possibilidades de vida, na expresso de Nietzsche Em outros termos, consiste em subverter a autoridade da ‘Scnica e tornd-la capaz de criar maneiras de pensar, ver ¢ viver. A tecnologia que domina a cultura de nossa épo- ca 6, sem diivida, a informatica, que pode ser dividida em dois aspectos: de um lado, 0 computador em si ¢ as mo- ESTETICA RELACIONAL 7 dificagdes que ele acarreta em nosso modo de apreender ¢ tratar a informagao. De outro lado, 0 répido avango das tecnologias de convivio, do celular & internet, passando pelas telas tates e videogames interativos. © primeiro as- pecto, que afeta a relagdo do Homem com as imagens que produz, contribui imensamente para a transformagao das mentalidades: de fato, com a infografia, agora € possivel produzir imagens resultantes do cdlculo, € ndo mais do _gesto humano. Todas as imagens que conhecemos resul- tam de uma acdo fisica, da mao que traga sinais até 0 ma- nuseio de uma camera: jé as digitais, para existir, nao tém nenhuma necessidade de uma telacdo analégica com seu tema, Pois “a foto o registro trabalhado de um impacto fisico", av passo que “a imagem digital resulta nio do mo. vimento de um corpo, ¢ sim de um célculo"®. A imagem visivel ndo é mais o trago de quem quer que seja, esim um. encadeamento de mimeros; sua forma nao € mais o fermi- nal de uma presenga humana: ¢s imagens “agora funcio- nam sozinhas" (Serge Daney), a exemplo dos Gremlins de Joe Dante que se reproduzem por pura contaminagio vi- sual, A imagem contemporanea caracteriza-se justamente por seu poder gerador: nao é mais trago (retroativo), mas programa fativo). Alids, é sobretudo esta propriedade da imagem digital que da forma & arte contempordnea: ja pa~ ra grande parte da vanguarda dos anos 1960, a obra era menos uma realidade autonoma do que um programa a b 98 NICOLAS BOURRIALD ser executado, um modelo a ser repraduzido (por exem- lo, 0s jogos inventados por Brecht e Filliou), um convite & criagdo de si mesmo (Beuys) ou a agdo (Franz Erhard Wal- ter). Na arte dos anos 1990, quando as tecnologias inte- rativas se desenvolvem a uma velocidade exponencial, os attistas exploram 0s arcanos da socialidade e da interagao. Ohorizonte tedrico e prético da arte dessa década funda- se, em grande parte, na esfera das relades inter-humanas. Assim, as exposig6es de Rirkrit Tiravanija, Philippe Parre- no, Carsten Holler, Henry Bond, Douglas Gordon ou Pier- te Huyghe constroem modelos de socialidades capazes de produzir relagdes humanas, tal como uma arquitetu- ra “produz” literalmente os itinerarios de seus ocupantes. Mas no sao trabalhos sobre a “escultura social”, no sen- tido de Beuys: se esses artistas certamente dao continui- dade a idéia de vanguarda, descartada junto com a agua do banho (insistamos nesse ponto, mesmo que o termo este- ja demasiado carregedo de conotagdes), eles nao tém a in- genuidade ou o cinismo de “fazer de conta” que a utopia radical universalista ainda esta na ordem do dia. Pode riamos falar em microutopias, em intersticios abertos no cotpo social Esses intersticios funcionam como programas relacio- nais! ordens de mundo nas quais as relagdes de trabalho e lazer se invertem (exposi¢ao Made on the 1 of May de Par. reno, Coldnia, maio de 1995), em que as pessoas podem entrar em contato entre si (Douglas Gordon), reaprendem © convivio e a partilha (as cantinas némades de Tiravani- DSi ar 99) ESTETICA RELACIONAL, ja), em que as relacdes profissionais sao objeto de comemo- racdo festiva (Hétel occidental, video de Henry Bond, 1993) @ nas quais as pessoas esto em contato constante com a imagem de seu trabalho (Huyghe). A obra, pottanto, pro- poe um modelo funcional, nao uma maquete: isto é aqui nao cabe a nogao de dimensfo, exatamente como na ima- gem digital, cujas propargdes podem variat conforme 0 tamanho da tela. Esta ~ ao contrério do quadro ~ nao en- certa as obras num formato preestabelecido, mas materia liza virtualidades em x dimensdes. Os projetos dos artistas atuais possuem a mesma ambivaléncia das técnicas em que indiretamente se inspiram: embora escritos m9 ¢ com 0 real como as obras filmicas, eles nao pretendem ser a rea lidacle, Por outeo lado, eles formam programas ~a exem- plo das imagens digitais sem garantir, contudo, a mesma aplicabilidade, tampouco a eventual transcodificagdo para outros formatos afora o préprio formato para o qual foram concebidos. Em outras palavras, a influéncia da tecnologia sobre a arte que Ihe é contempordnea exerce-se nes lianites que ela circunscreve entre o real eo insagineério, © compatador e a cémera de video delimitam posst- bilidades de produgao, as quais dependem das condigdes getais da producao social, das relagdes concretas existen- tes entre os Homens: a partir dai, 0s artistas inventam modos de vida ou tornam consciente um determinado momento M da linha de montagem dos comportamen: permitindo-nos imaginar um ouito estado de tos sociais, nossa civilizacao. 100 NICOLAS BOURRIAUD A camera e a exposicao Aeexposigéo-cenério Como vemos, a arte atual é profandamente afetada elas maneiras de ver e pensar possibilitadas, por um lado, pela informatica e, por outro, pela cémera de video, Para captarmos melhor 0 contetido das relagées entre esse bi némio filme/programa e a arte contemporanea, ie a evolugio do estatuto da exposigdo de arte em telagdo aos abjetos expostos. Nessa hipétese & de que a exposigto tornou a unidade de base a pattir da quel é possivel pensar as relagdes entre a arte e a ideologia gerada pelas técnict emdetimenta da obra individual Foi o modelo cinemato- Btélico, ndo como tema, mas como esquema de agao, que Petmitiu a evolugao da forma-exposigdo nos anos 1960: 2 prética de Marcel Broodthaers, por exemplo, mostra essa passagem da exposicio-vitrine (que agrupava objetos que Podiam ser apreciados em separado) para a exposi ie rio aapresentaio ula dosebjts, En 187, ood thaers apresentou sua sala verde, time versio do Jardim de inverno mostrado no ano anterior, como “o esbogo da idéia de CENARIO que pode se caractetizar pela idéia do objeto restituido a uma fungi real, isto 6, aqui o objeto nao € considerado em si como obra de arte (ver sibs sala rosa ¢ sala azul)” Fssa “restituigio” do obje ae co a9 dominio funcional Hanes inversdo que permitiu a Brood- 3 Mace Broouthaers in Lang Ci le Dawe (1 catalogs) louise [ovens sucess] 3407.T14/4 45 4A aol ESTETICA RELACIONAL thaers se opor i “tautologia da reificagao" que, paraele, era a obra de arte ~ antecipa genialmente as préticas artisti cas dos anos 1990 e a ambigitidade da obra de arte entre o 0 valor de uso, ambigitidade esta que valor de exposicéo aparece em quase todos os artistas dessa geracao (de Fabri- ce Hybert a Mark Dion, de Felix Gonzalez-Torres a Jason Rhoades), A eeposicao Ozone (concebida em 1988 por Do- minique Gonzalez-Foerster, Bernard Joisten, Pierte Joseph ¢ Philippe Parreno, e realizada em 1989 na APAC de Ne~ vers e no FRAC corso), que abriu perspectivas de trabalho cruciais para nossa época, apresentava-se como um “espa~ go fotogénico" isto é, segundo um modelo cinematogratico, uma cimera escura virtual onde os espectadores circular. como uma cmera, convidados a fazer seu proprio enqua- dramento visual, a recortar Angulos de visio e segmentos de sentido. Para além do “eendrio” de Broodthaers, que es- caparia & fatalidade da reificagéo devido a funcionalidade de seus componentes, Ozone trazia a possibilidade de uma o permanente de seus elementos e sua adapta- manipulag! g40 8 existéncia de um eventual compradar. Concebida co~ ituagdes (além ‘mo um “programa” gerador de formas € de um “Saco” que permitia ao colecionador arrumar sua prépria bagagem, havia acessétios de convivio, como ca- deiras e documentos para consulta a disposicao do visitan- te), Ozone funcionava como um “campo iconogréfico", um “conjunto de camadas de informasées” (© que a aproxima do modelo broodthaersiano), sempre insistindo em valo- res de convivio e produtividade que descortinavam novos 102 NICOLAS BOLRRIALD horizontes para a critica social do artista belga, entre eles © de uma arte baseada na interatividade ¢ na produgao de relagdes com 0 Outro. Essa definigdo da exposigao como “espaco fotogénico” foi aprofundada posteriormente com Horw we gonna behave (Joisten, Joseph & Parreno, na galeria Max Hetzler, Colénie, 1991), na qual havia maquinas foto- graficas na entrada da galeria para que o visitante pudesse criar seu proprio catélago visual. Em 1990, tentei defini essas praticas falando de uma “arte de diretores’, que convertia o local de exposigao (jo gando com 0 sentido fotogréfico do termo) num filme sem camera, num “curta-metragem imével’: “A obra ndo se fapresenta] como totalidade espacial a ser percorrida pelo olhat, mas como uma duragao a ser atravessada, seqtiéncia porseqiiéncia, como um curta-metragem imével em que o proprio espectador deve se locomaver”*, Portanto, 0 desti- no do cinema (ou da informética) enquanto técnica utili- zével nas outras artes ndo guarda nenhuma relago com a forma do filme, ao contrério do que diza legido dos opor- tunistas que transpéem para a pelicula (ou para o compu- tactot) modos de pensamento saidos do século xix, Assim, ha muito mais cinema numa exposi¢éo de Allen Rupper- sberd ou de Carsten Héller do que em muitos “filmes de artistas” forcosamente vagos, e muito mais reflexio info- grafica nos rizomas do Cercle Ramo Nash ou nas agdes de Douglas Gordon do que nos amontoadas de imagens digi- tais em que se debate o artesanato tido como o mais retra- 4 Nicolas Boariaed, “Us art de réalastous" Art Pres, n° 147, malo 1990, A expnsgio Courtsométagesimooites se deu ne Binal de Veneza 1950, ea et ae a es et 103 ESTETICA RELACIONAL grado do momento. Como o filme realmente confere forma 4 arte? Com seu tratamento da duracdo, com as “imagens- movimentos” (Deleuze) que ele gerai assim, como escre- ‘yeu Philippe Patreno, a arte forma “um espaco em que os objetos, as imagens e as exposigées sio instantes, cendrios, que podem ser reapresentados” Os figurantes Sea exposigao se torna um palco, quem vem encenar? Como 08 atores ¢ figurantes o ocupam? Em meio a que ti- po de cenério? Um dia seria interessante escrever a his~ ‘ria da arte por meio das populagées que a atravessam € das estruturas simbélicas/préticas que permitem acolhé- las, Qual energie humana, regulada segundo quais moda- lidades, entra nas formas artisticas? Como o video, tltimo avatar do registro visual, modifica essa entrada de ener gia? A forma classica da presenga na tela é a convocagio, 0 engajamento de um ou varios atores levados a ocupar um cendtio; assim, 08 habitantes da factory warholiana foram convocados a se postar diante da camera. Um filme geral- mente se baseia em atores, esses proletdrios que alugam sua imagem enquanto forga de trabalho, “A filmagem em estiidio’, escreve Walter Benjamin, “tem essa caracteristi- ca de substituir 0 puiblico pela méquina’®, e permite que a z exposition sans camé Philippe Parena, “Une eapostion seraelle une exp 1a? Liberation 27 de ma‘o de 198. fh Waller Benjamin, Essais 1 Pris, Deno Gonthies, 1985 9.108 104 NICOLAS ROURRIAUD linha de montagem das imagens subutilize 0 corpo do in- \étprete, Com o video, a diferenga entre o ator e 0 passante tende a diminuir. Sua evolugao quanto a camera de cine- ‘ma tem a mesma importancia da invengio do tubo de tinta para a getacdo impressionista: instrumento leve e manejé vel ele permite a tomada ao ar livre, além de uma desen- voltura diante do material filmado antes impossivel com 65 pesados equipamentos cinematogréticos. Assim, a for- ma dominante do povoamento videografico é a sondage, meigulho aleatério na multidao que caracteriza a era tele visiva: a cdmera faz perguntas, registra passagens, fica na altura das pessoas. O humanéide comum habita a video arte: Henry Bond escolhe momentos de socialidade, Pier- re Huyghe monta elencos, Millos Manetas organiza uma discussiio numa mesa de café. A camera de video toma-se um instrumento de interpelagdo das pessoas: Gillian Wea- ring pede aos transeuntes que assobiem numa garrafa de Coca-Cola, depois monta as seqiiéncias para produzir um som continuo, alegoria da sondagem e pesquisa de opi- nido. Além disso, a camera de video desempenha o mesmo papel heuristico do esbogo no século xix: ela acompanha os artistas, como Sean Landers, que filma do carro; Angela Bulloch, que documenta sua viagem de Londres a Genova, onde vai fazer uma exposigdo; ou Tiravanija, que filma um trajeto imagindrio entre Guadalajara e Madi, E é também Informagdo sobre © proceso de trabalho, como no caso de Cheryl Donegan, que filma a si mesma enquanto produz suas pinturas. Mas a praticidade no manuseio da came- ESTETICA RELACIONAL 105 leo também leva a converté-la num substituto rei- assim, a insialagio do grupo italiano ficado da presen: Premiata Ditta, que coloca numa mesa de conversa ume televistio com a imagem de um homem comende, indife- rente ao que se passa ao seu tedor, evora aquelas imagens de video de sucesso que mostram uma lareira, um aquaria ou um globo espelhado, As uvasde Zéuxis continuam ver- des para os passarinhos pés-modernos. ‘A arte depois do video Rewindlplaylfast forward ‘A praticidade da imagem em video penetra no domi- nio da manipilagdo das imagens e formas artisticas: as, operagdes bésicas num aparelho de video (voltar, dar pau- sa numa imagem etc.) agora fazem parte da bateria de de- cisdes estéticas de todo artista. Tal é 0 caso, por exemplo, do zapping: como os filmes, as exposigdes se tornam, se- gundo Serge Daney, “pequenas grades de programas dis- pares e zappaveis’, nas quais o visitante pode compor seu proprio percurso, Mas a mudanga incontestavelmente mais profunda consiste nas novas abordagens do tempo, criadas pela presenca do video doméstico: a obra de arte, como vi- ‘mos, no se apresenta mais como 0 trago de uma ago pas- sada, e sim como 0 antincio de um acontecimento futuro (‘efeito-aniincio") ou a proposta de uma agao virtual. Em ene) n Fh Art, 1983, 7 Nicolas Bourriaud, “The trailer effet” leit 106 NICOLAS ROURRIALD todos 08 casos, ela se apresenta como uma dierago mate. rial que cada ocorténcia expositiva se ercarrega de reatua- Jizar ou reviver: a imagem se torna uma imagem fixa, um momento congelado que, no entanto, nao apagao fluxo de gestos e formas do qual provém. Essa iiltima categoria &, de longe, a mais numerosa: para citar apenas artistas re- centes, os Personnages vivants @ réactiver de Pierre Joseph, a Arbre diamniversaire de Philippe Parteno, os quadros vivos de Vanessa Beecroft e as Peintures homéopathiques de Fa- brice Hybert se apresentam como duragbes unitérias e es pectficas possi is de serem reencenadas. Nelas, & possivel incrustar outros elementos ou imprimir um ritmo diferen- te (fast forward), como os videos em que tantas vezes re~ sultam, Pois hoje parece normal que uma pega, uma agao ‘ou uma performance resulte numa comunicagao em fita de video: a fita constitui 0 concentrado da obra, que pode ser diluido em diferentes contextos de exposicao, O video, co mo se constata também no dominio judicidtio (com o ca- so Rodney King, filmado por um “amador” que estava para ser espancado pela policia de Los Angeles, ou com as po- lémicas resultantes do caso Khaled Kelkal), fnciona como uma prova. Na arte, ele significa e comprova a realidade, a concretude de uma pratica as vezes cifusa e fragmen- tada demais para ser apreendida diretamente (penso em Beecroft, Peter Land, Carsten Héller, Lothar Hempel), Mas essa utiliza jo artistica da imagem em video naa cai do céu: a estética da arte conceitual ja era uma estética cons- tatadora, fatual, da ordem da prova, e as préticas recentes FESTETICA RELACIONAL 107 apenas continuam a apontar 0 “mundo inteiramente ad- ministrado” (Adorno) em que vivemos, com o modo literal e desenvolto que é 0 video em vez do modo analitico e des: construtivo da arte conceitual Rumo i democratizagdo dos pontos de vista? © equipamento de video participa da democratizagao do processo de produgao de imagens (dando continuidade légica a fotografia); todavia, ele também matca nossa vida cotidiana coma generalizacdo da televigilancia, contrapon- toda seguranca publica as sessies de video familiares. Mas 0 video nao tem nada a ver com a vigilancia? Nao fazem ambos parte de um mundo acuado pelas objetivas, colada nos procedimentos com os quais observa a si mesmo, re ciclando sempre as formas que produz ¢ redistribuindo-as sob formas diferentes? Pois a arte depois do video torna as formas némades ¢ fluidas, permite a reconstrugio analé- ica dos objetos estéticas do passado, a “recarga” de for- mas historicizadas. Nisso, ela justifica a profecia de Serge Daney sobre o cinema: “s6 sera guardado 0 que puder ser refeito”s... Assim Mike Kelley e Paul McCarthy “reence~ naram” performances de Vito Acconci usando manequins em cenérios de folhetim (Fresh Acconci, 1995); assim Pierre Huyghe filmou um remake, cena a cena, da fanel2 indiscre- ta de Alfred Hitchcock num HLM parisiense. Se 0 video, Seige Dane, Touma de an ps ssi ner 1H c- tito) 108 NICOLAS BOLRRIAUD contudo, permite que (praticamente) qualquer um faga um filme, ele também facilita a tomada de nossa imagem por (praticamente) qualquer um: nossos percursos pela cidade estio sob vigilancia, nossas préprias produgdes culturais estdo submetidas a uma releitura/reciclagem que compro: va a ubiqiiidade dos instrumentos éticas e seu atual pre: dominio sobre qualquer outro instrumento de produgio. © programa Security hy Julia, iniciativa de video vigilincia artistica “dirigida” por Julia Sher, explora a dimenséo po- licial e de seguranca puiblica da cdmera de video. Ao lidar com a iconografia da seguranea (grades, éteas de estacio- namento, telas de controle), Julia Sher converte a exposigao rum espago a que a pessoa vai para ser vista e para conferir sua visibilidade, Numa exposigéo coletiva, o dinamarqués Jens Haaning instalou um mecanismo de fechamento au- tomitico que encerrava o visitante numa sala vazia, exceto pela presenga de um video-espiio: capturado como um in- seto, 0 observador transforma-se em tema do olhar do ar~ tista, representado pela cdmera, Para além dos evidentes problemas éticos suscitados por esse tipo de intervencao. (as relagdes entre o artista e © piiblico tornam-se rapida- mente sadomasoquistas), somos obrigados a constatar que, apds Present continuous past(s) ~a extraordindtia instalagao de Dan Graham (1974) que difundia a imagem de todos Os que entravam, mas apés um pequeno intervalo de tem- po — 0 visitante filmado passou de “personagem” teatral numa ideologia da representacdo para pedestre submetido, a uma ideologia repressora da circulacéo urbana. O tema FSTETICA RELACONAL, 109 do video contemporaneo raramente é livre; ele colabora para o grande recenseamento visual, individual, sexual & 6tnico a que se dedicam atualmente todas as instancias de poder de nossa sociedade. as tratardo esse problema A maneira como os art definird o futuro da arte enquanto instrumento de eman- cipagdo, enquanto ferramenta politica pata a liberagao das subjetividades. Nenluma técnica é tema para a arte: a0 si- tuar a tecnologia em seu contexto produtivo, ao analisar suas relagdes com a superestrutura eo conjunto de com- portamentos obrigatorios que fundamentam seui uso, tor~ rna-se possivel produzir modelos de relagao com o mundo {que seguem no sentido da modernidade. Do contratio, a arte se tornaré um elemento de decoragao high-tech numa sociedade cada vez mais inquietante, PARA UMA POLITICA DAS FORMAS. Coabitagées Notas sobre algumas extensées possiveis de una estética relacional Sistemas visuais Antes tinhamos de levantar 03 olhos para o cone que materializava a ptesenga divine sob a forma de uma imagem, No Rerascimento, a invengao da perspectiva mono- cular central transformou o observador abstrato em indiv duo concreto; o hugar que lhe atribuia o dispositive pict6rico também o isolava dos outros. Evidentemente, cada um po- de olhar 08 afrescos de Piero ou de Uccello a partir de va- rios pontos de vista. No entanto, a perspectiva atribui um. lugar simbélico ao olhar e confere ao observador seu lugar numa socialidade simbélica. 112 NICOLAS BOURRIAUD A arte moderna modificou essa relagao, ao permitir muiltiplos olhares multineos no quadro ~ mas nao seria 0 caso de falarmos em importagao, visto que esse modo de lei tura existia, sob formas diferentes, na Africa e no Oriente? Rothko e Pollock inscreveram em suas obras a neces- sidade de um “envelope” visual, cabendo ao quadro en- glober, ou melhor, submergir 0 espectador num ambiente cromiético. Jé foi bastante apontada a semelhanca entre 0 eleito “envolvente” do expressionismo abstrato ¢ 0 efeito buscedo pelos pintores de fcones: nos dois casos, o que se tem é uma humanidade abstrata, jogada no espago picté- rico. A propésito desse espago que envelve o espectador num meio ou ambiente construido, Erie Troncy fala num efelto all around, em oposicao ao all over, que se aplica so- mente as superficies planas. A iimagem & um momento Uma representacao é apenas um momento M do real; toda imagem é um momento, assim como qualquer pon to no espago 6 a lembranca de um tempo x, bem como © reflexo de um espaco y. Essa temporalidade 6 parada? Ou, pelo contratio, produz potencialidades? O que é uma ima- gem que no contém nenhum futuro, nenhuma “possibili- dade de vida’, senfo uma imagem morta? O que mostron os artistas A tealidade € aquilo que eu posso comentar com ou- trem. Ela se define apenas como um produto de nego- ESTETICA RELACIONAL 113 ciagio. Sair da realidade & “louco’: fulano vé um coelho alaranjado em meu ombro, eu nfo vejo; af a conversa se fragiliza e se retrai, Para encontrar um espaco de negocia- «0, devo fazer de conta que vejo esse coelho alaranjado em ‘meu ombro; a imaginacao aparece como uma protese que se fixa no reel para criar mais intercambio entre os inter locutores. A arte tem por finalidade reduzir a parte meca- rica em nés: ela almeja destruir todo acordo aprioristico sobre o percebido. ‘Da mesma maneira, 0 sentido € 0 produto de uma in~ teragio entre o artista e 0 espectador, e nao um ato auto- ritério. Ora, na arte atual, eu, enquanto espectador, devo trabalhar para produzir sentido a partir de objetos cada vez mais leves, mais voléteis e intangiveis. Antes, 0 decoro do quadro fornecia formato moldura; hoje muitas vezes te- mos de nos contentar com fragmentos, Nao sentir nada é nao ter trabalhado o suficiente. Os limites da subjetividade individual ‘© que hd de apaixonante em Guattari é suia vontade de produzir méquinas de subjetivacao, de singularizar todas {as situagdes pata lutar contra “a usinagem mass-mediatica’, aparato de nivelamento a que estamos submetidos. ‘A ideologia dominante quer que o artista seja sozinho, sonha com o artista solitario eindémito: “36 se escreve so- zinho’, “é preciso se afastar do mundo’, blablablé... Essas imagens de Epinal confundem duas idéias distintas; a re- cusa das regras comunitirias vigentes ¢ a tecusa do co- m4 NICOLAS BOURRIAUD letivo, Se for 0 caso de rejeltar qualquer comunitarismo imposto, é precisamente para substitutlo por redes rela- cionais inventadas. Segundo Cooper, a loucura ndo esté “na” pessoa, e sim no sistema de relagdes do qual ela participa, Nao se fi- ca “louco” sozinho, porque nunca se pensa sozinho, exce- to para postular que o mundo possui um centro (Bataille) Ninguém escreve, pinta ou cria sozinho, Mas é preciso fa: zer de conta. A engenharia da intersubjetividade Os anos 1990 viram © surgimento das inteligéncias coletivas e do modo “rede” no manejo das produgdes artis- ticas: a popularizagao da rede da internet, as praticas cole- tivistas vigentes no meio da mtisica tecno e, de modo mais geral, a crescente industrializagao do lazer cultural produ ziram uma abordagem relacional da exposicao. Os artis- tas procuram interlocutores: visto que o piblico continua a ser uma entidade bastante irreal, eles inciem esse intezlo- cutor no proprio processo de produgao. O sentido da obra nasce do movimento que liga os signos emitidos pelo artis. ta, mas também da colaboragdo dos individuos no espago expositivo, (Afinal, a realidade é apenas o resultado transi- trio daquilo que fazemos juntos, como escrevia Marx) nia arte seme efeito? Essas praticas artisticas relacionais tém sido objeto de uma critica constante: como elas se limitam ao espago das FSTETICA RELACONAL 15 golerias e dos centros de arte, estariam contradizendo esse desejo de socialidade que funda o sentido delas. Assim sao criticadas por negar os conflitos sociais, as diferengas, aim- possibilidade de comunicagao num espago social alienado, por favorecer uma modelizagio iluséria e elitists das for- ‘mas de socialidade, limitada ao meio artistico, Mas a pop art deixa de ser interessante por reproduzir os cédigos de alienagdo visual? Deve-se criticar a arte conceitual por ter ‘uma visio vittuosa do sentido? As coisas nao sao tao sim- ples assim, A principal queixa contra a arte relacional é que ela tepresentaria uma forma edulcorada de eritice social. © que esses ctiticos esquecem & que 0 contetido des- sas proposigées artisticas deve ser julgado formalmente: ‘em relagéo & histéria da arte ¢ Jevanclo em conta 0 valor politico das formas (o que chamo de “critério de coexistén- cia”), a saber, a transposi¢éo dos espacos construidos ou representados pelo artista pars a experiéneia vivida, a pro- jecao do simbélico no real, Seria absurdo julgar 0 conteti- do social ou politico de uma obra “relacional” descartando pura e simplesmente seu valor estético, como querem os que enxergam numa exposicdo de Tiravanija ou de Carsten Holler apenas uma pantomima falsamente ut6pica, ¢ como ontem queriam os defensores de uma arte “engajada’, is- to é de propaganda. ois essas iniciativas nao provém de uma “arte social” ‘ow socioldgica: elas visam & canstrugao formal de espagos- tempos que nao representariam a alienacio, nio franspo- 116 NICOLAS BOURRIALD rriam a divisio do trabelho para as formas. A exposigao 6 um intersticio que se define contra a alienacao reinante em todos os outros lugares. Por vezes ela reproduz ou deslo- ca as formas dessa alienagdo — como na exposicao de Phi lippe Parreno, Made on the 1+ of May (1995), cujo centro era uma linha de montagem de atividades de lazer. A exposi So, portanto, nao nega as relagdes sociais vigentes, mas ela as distorce e projeta num espaco-tempo codificado po lo sistema da arte e pelo préprio artista. Pode-se perceber numa exposicao de Tiravanija, por exemplo, uma forma de animacao ingénua, ¢ deplorar a fragilidade e a artificialida- de do momento de convivio proposto: a meu ver, isso seria ‘um equivoco quanto ao objeto da pratica, Pois sua finali- dade nfo é © convivio, ¢ sim o produto desse convivio, ou seja, uma forma complexa que alia uma estrutura formal, objetos colocados a disposicao do visitantee a imagem efé- ‘mera nascida do compottamento coletivo, De alguma ma- neira, 0 valor de uso do convivio mescla-se a seu valor de exposigio dentro de um projeto plistico, Nao se trata de representar mundos virtuosos, mas de produzir as condi- Ges para tanto, futuro politico das formas Nio falta um projeto politico & nossa época, mas ela aguarda formas capazes de encarné-lo. Pois a forma pro- duz ou modela o sentido, orienta-o, leva-o a repercutir na vida cotidiana, A cultura revoluciondtia criow ou popula- rizou varios tipos de socialidade; a assembléia (sovietes, ESTETICA RELACIONAL 17 Agoras), o sit-it, a manifestagdo e seus cortejos, a greve € suas derivagées visuais (bandeirolas, panfletos, organiza- gio do espago etc). Nossa cultura explora 0 dominio da estase: paralisa~ des, como ade dezembro de 1995, em que o tempo é or~ ganizado de outra maneita; free parties que se prolongam pot varios dias, ampliando, assim, a nogio de sono e vigi lia; exposigties que pociem ser vistas durante o dia inteiro & so desmontadas apés vernissage; virus informéticos que bloqueiam mithares de programas ao mesmo tempo... E no congelamento das miquinas, na pausa sobre a imagem, que nossa época encontra sua eficacia politica, © inimigo que primeiro devemos combater se encarna numa forma social: a generalizagao das relacdes fornece- doricliente em todos os nfveis da vida humana, do traba- Iho A moradia, passando pelo conjunto de contratos tacitos que determinam nossa existéncia privada, A sociedade francesa é tanto mais afetada por sofrer de um duple bloqueio: as instituigdes nacfonais opresen. tam um déficit democratico, e a economia mundial tenta Ihe impor modos de reificagdo que afetam todos os aspec- tos da existéncia Pode-se ver 0 relativo fracasso de maio de 1968 na Franca por meio do baixo indice de institucionalizagao da liberdade. © fracasso global da modernidade evidencia-se na transformacio das relagdes inter-humanas em produtos, 118 NICOLAS BOURRIALD na pobreza de alternativas politicas e na desvalorizagao do trabalho enquanto valor r jo econdmico, & qual ndo corres- ponde nenhuma valorizagao do tempo ie A ideologia glorifica a solidio do criador e zomba de qualquer comunidade. Sua eficdcia consiste em promover o isolamento dos autores, revestindo-os com um produto de segunda mao © louvando sua “originalidade”, mas a ieologia € invist- vel: sua forma ¢ nao ter forma. A falsa multiplicidade é sua astiicia suprema: diariamente, reduz-se 0 leque dos pos- siveis, enquanto proliferam os nomes que recobrem essa realidade empobrecida. Reabilitar a experimentacao ‘A quem se pretende enganar com a idéia de que seria bom e ittil voltar a valores estéticos baseados na tradicao, no dominio das técnicas, no respeito as convengdes his- toricas? Se hd um campo onde nao existe o acaso, é 0 da criagdo artistica’: quando se quer matar a democracia, co- mega'se arquivando a experimentagao e termina-se acu: sando a liberdade de hidrofobia, Estétioa relacional e situagdes construfdas ‘O conceito situacionista de “situagio construida” pre- tende substituir a representagdo artistica pela realizagao 7B mw Eines oa oe ug tn vn ot gosu ate shuren o mond etags ea pane on FSTETICA RELACIONAL 19 experimental da energia artistica nos ambientes do coti- diano, Se 0 diagnéstico de Guy Debord sobre 0 proceso. de producio espetacular nos parece implacével, a teoria si- tuacionista negligencia 0 fato de que o espeticulo, ao ata~ car prioritariamente as formas das telagdes humanas (ele 6 “uma relacao social entre pessoas intermediada por ima- gens”), s6 poderd ser pensado e combatido por meio da produgao de novos mods de relagdes entre as pessoas. amente Ora, a nogio de situacdo nao implica obrigato ‘uma coexisténcia com meus semelhantes: pode-se imagi- nar “situagdes construicas” para uso pessoal, com exclu- sio deliberada dos outros. A nogdo de “situagao” reconduz, a unidade de tempo, lugar e agio para um teatro que nao supoe necessarlamente uma relaggo com 0 Outio. Ora, a pratica artistica é sempre a relaco com 0 Outro, ao mesmo tempo em que constitui uma relagio com o mundo. A sifua- fo construida nao corresponde forgosamente a um mundo relacional, que se elabora a partir de uma figura da troca, Serd por acaso que Debord divide o tempo espetacular em dois, 0 “tempo intercambiavel” do trabalho Cacumulagio infinita de intervalos equivalentes”) 0 “tempo de consu- mo” das férias, que imita os ciclos da natureza, mas nao passa de um espetaculo “a um graut mais elevado”? A no- Gao de “tempo intercambidvel” mostra-se aqui puramente nogativa: o elemento negativo nao € o intercdmbio em si, que é fator de vida e socialidade; sao as formas capitalistas da troca que Debord identifica, talvez indevidamente, com 1 intereémbio humano, Essas formas de troca nascem do 120 NICOLAS BOURRIAUD, “encontro” entre a acumulacao do capital (0 empregador) ¢ a forca de trabalho disponivel (0 empregado), sob a forma de um contrato. to, e sim uma forma histérica de produsio (0 capitalism} © tempo do trabalho, portanto, é menos um “tempo inter- cambiavel” em sentido estrito do que um tempo comprécel por um salério. A obra que forma um “mundo relacional’, tum intersticio social, atualiza o situacionismo e 0 reconei- lia, na medida do possfvel, com 0 mundo da arte. Elas representam nio a troca no absol- O paradigma estético (Félix Guattari e a arte) A obra prematuramente interrompida de Félix Guat- tari ndo constitui um conjunto elaramente recortado, com ‘um subconjunto que tratasse especificamente da questo estética, Para ele, a arte era um material vivo, mais do que uma categoria do pensamento, ¢ essa distingdo define a prépria natureza de seu projeto filoséfico: para além dos géneros e das categorias, escreve ele, “o importante € sa berse uma obra concorre efetivamente para uma produgao mutante de enunciagio”, ¢ ndo delimitar os contornos es: pecificos de tal ou tal tipo de enunciado, A psykhié de um Jado, 0 soeits de outro, ambos se constroem sobre arranjos produtivos, e a arte, mesmo que privilegiada, é apenas um entre outros. Os conceltos de Guattari so ambivalentes, maleaveis, a ponto de ser possfvel traduzi-los em miiltiplos sistemas: € 0 caso, portanto, de discernir af uma estétice ESTETICA RELACIONAL, 121 ppotencial, que adquire uma consisténcia real somente no caso de se entregar a uma constante transeodificagao, Pois 6 psiquiatra da clinica de La Borde sempre concedeu um lugar de destaque ao “paradigma estético” no desenvolvi- mento de sua reflexdo, mas escreveu pouquissimo sobre a arte propriamente dita, exceto o texto de uma conferéncia sobre Balthus e algumas passagens de suas obras princi- pais, no Ambito de um asaunto mais geral. Esse paradigma estético, porém, jé 6 exercido na pré- pria escrita, O estilo, na medida em que podemos empre- gar esse termo — ou melhor: o fluxo da escrita guattariana— cerca cada conceito com varias imagens: os processos de pensamentos so descritos, na maioria das vezes, como fenémenos fisicos, dotados de consisténcia espectfica: as “placas” que andam a deriva e os “planos” que se encai- xam, as “maquinarias” etc, E um materialismo sereno, em que os conceitos, para ter eficécia, devem revestit 05 con- tormos da realidade concteta, devem se territorializer em imagens. A escrita de Guattari é trabalhada por um cui- dado plastico evidente, e até escultural, mas com pouca preocupacao pela clareza sintitica, Sua linguagem as ve zes pode parecer obscura: ele no hesita em formar neo- logismos (‘nacionalitério”, “reftanizar”) ¢ palavias-valise, em usar termos em inglés ou alemao tal como Ihe vém ao papel, em encadear as proposigées sem consideragao pelo icagSes secundérias de um ter- leitor, em jogar com sig mo corrente, Seu fraseado é totalmente oral, caético, “de~ lirante", espontaneo, repleto de abreviaturas enganadoras, 122 NICOLAS ROURRIAUD a0 contrério da ordem conceitual que reina nos escritos de seu colega Gilles Deleuze. Se Guattari ainda nos parece muito subestimado, fre- giientemente reduzido ao papel de acdlito de Deleuze, ho- je & mais facil reconhecer sua contribuigio especifica nos textos a duas maos, desde LAnti-Oedipe (1972) a Quiest-ce que Ia philosophic? (1991)... Do coneeito de "refrao” as pas- sagens magistrais sobre os mods de subjetivacao, a marca guattariana destaca-se nitidamente, ressoando com forca crescente no debate filos6fico contemporaneo. Por sta ex- trema singularidade, pela atengao que concede & “produgio de subjetividade” e seus vetores privilegiados, as obras, 0 pensamenta de Félix Guattari ligam-se dirotamente as ma- quinarias produtivas que constelam a arte de hoje. No atual estado de pentiria da reflexdo estética, cremos ser cada ver mais itil, qualquer que seja o grau de arbitrariedade envol- vido em tal operacdo, proceder a uma espécie de enxerto do pensamento de Guattari no campo da arte contemporanea, criando, assim, um “enlacamento polifénico” cheio de pos sibilidades. Agora, trata-se de pensar a arte com Guattari, com a caixn de ferramentas que ele nos deixou, A subjetividade conduzida e produzida Desnaturalizar a subjetividade Annogio de subjetividade certamente constitui o prin- cipal fo condutor das pesquisas de Guattari. Ele consagrou ESTETICA RELACIONAL, 123 sua vida a desmontar e recorstruir os mecanismos e redes tortuiosas da subjetividade, a explorar seus componentes © modos de funcionamento, chegando a converté-la na pe- dra que sustenta 0 edificio social. Psicandlise e arte? Duas, modalidades de produgdo de subjetividade intertigadas, dois regimes de funcionamento, dois sistemas de instru mentais privilegiados que se unem para a possivel solugdo. do “mal-estar na civilizagao"...A posigdo central que Guat- {ari atribuia subjetividade determina de ponta a ponta sua concepsdo da arte e seu respectivo valor. A subjetividade como producéo, no dispositive guattariano, desempenha © papel de pivd ao qual os modos de conhecimento e aio podem se engatar livremente e se langar em busca das leis do socius, Alids, ¢ isso que determina o campo lexical em- pregado para definir a atividade artistica: nao resta nada do fetichismo habitual nesse registro discursivo. A arte & definida como um processo de semiotizagio nfo verbal, e n30 como uma categoria separada da produgdo global. Extir- par o fetichismo para afirmas a arte como moda de pensa- mento e “invencao de possibilidades de vida” (Nietzsche): a finalidade Gltima da subjetividade é a conquista inces- sante de uma individuacdo, A pratica artistica forma um territério privilegiado dessa individuacdo, fornecendo mo- delizagSes potenciais para a existéncia humana em geral E nisso que o pensamento guattariano pode ser definido: como um vasto empreendimento de des-natuealizagio da subjetividade e seu desdobramento no campo da produ-

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