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ARTICOS A violéncia vista da favela* Dulce Chaves Pandolfi** Mario Grynszpan*** Focos de pobreza ¢ de precariedade, as favelas freqiientemente sao também associadas a violéncia que se desenvolve nas grandes cidades do Pais. Essa associagdo tem em sua base, em grande parte, o fato de que o trafico de drogas tem naquelas areas uma de suas faces mais evidentes. Reforgam essa visio os recorrentes enfrentamentos, as guerras que ali se observam entre grupos rivais de traficantes, ou entre estes e a policia, noticiados com insisténcia pela midia. Busca-se mensurar os transtornos € os prejuizos produzidos por esses eventos para as atividades corriquei- ras e mesmo para a imagem das cidades onde ocorrem. Contabilizam-se mortos, feridos ¢ presos. O asfalto, assustado, aguarda o fim dos confli- tos.! Autoridades e especialistas so procurados pelos meios de comu- nicagao, expressando visdes e fazendo previsdes que sio amplamente * Esteartigo é uma versio modificada do trabalho “Viotencia: pertepcidn de los favelados ea la ciudad de Rio de Janeiro", publicado nos Anais da XII Conferéncia Internactonal de Historia Oral (Pieter maritzburg, Arica do Sul, 24-27 de junho de 2002, vol. IY, p. 1.706-19) Pesquisacora do Centro de Pesquisa e Documentagio de Histéria Comtemporinea do Brasil (CPDOC) da Fundagio Getulio Vargas ¢ professora do Departamento de Cifncias Sociais da PUC Ric. *% Pesquisador do Centzo de Pesquisa e Documentagio de Historia Comtemporinea do Brasil (CPDOC) da Fundaco Getulio Vargas e professor do Departamento de Histéria da Universidade Federal Fluminense (UFF). 1 “Asfalto” é um termo que se ope a “morro” no discurso de moradores de favelas, expressando 0 que cles vivem como uma divisio entre as favelas ea cidade de mancira mais ampla. O morro é a favela, com seus moradores, ¢ 0 asfalto, a cidade, com seus habitants. 130 PANDOLFI, Dulce; GRYNSZPAN, Mario. A violéncia vistada favela, divulgadas. Imagens da guerra ultrapassam as fronteiras nacionais, mos- trando policiais e traficantes entrincheirados, corpos de vitimados por ba- las, moradores - homens e mulheres, velhos ¢ criangas — aterrorizados, im- pedidos de sair ou de retornar as suas casas. Via de regra, a favela que aparece no noticiario, nessas ocasides, é somente 0 cenario onde as guerras se desenrolam, Seus moradores com- pSem 0 cenario, mas suas vozes sdo apenas pontualmente ouvidas. Quem fala pelas favelas sdo autoridades, ONGs e intelectuais. E se assim é em momentos de tensio, momentos em que essas areas ganham maior evi- déncia, 0 siléncio das vozes dos moradores é ainda mais intenso quando os conflitos séo mais restritos, ou quando reina a paz, mesmo que apa- rentemente. E para romper com esse siléncio que este trabalho busca con tribuir, Seu objetivo é destacar alguns elementos importantes das per- cepgdes que moradores de favelas da cidade do Rio de Janeiro ttm da violéncia2 Nio é demais acentuar que 0 Rio de Janeiro é considerado uma das cidades mais violentas do mundo, 0 que é em parte atribuido 3 exis- téncia de um grande numero de favelas, as quais, ao contrario do que ocorre em outros casos, esto localizadas nao apenas em sua periferia, mas também em suas areas mais centrais e nobres. Além disso, as guer- ras entre facgGes rivais do tréfico de drogas tém se mostrado ali parti- cularmente intensas e recorrentes, envolvendo mesmo agées espetacula- res fora das favelas, como o fechamento de vias publicas, a depredacio de dnibus ea paralisagao do comércio e de atividades escolares, entre outras. Foi principalmente nos anos 1980 que, no Rio de Janeiro, se as- sistiu a um processo de evidenciagio do trafico de drogas, que passou a gatthar visibilidade publica crescente. Esse aumento da percepcio da sua existéncia coincidiu com uma presen¢a maior do poder publico ¢ com a entrada em cena das ONGs nas favelas, realizando investimen- tos e projetos sociais. Foi a partir dali que, em larga medida, o trafico foi algado pelas autoridades de seguranca, e pela midia, A condicio de inimigo publico nimero 1, identificado como a raiz de uma série de 2 Niose tem aqui nenhuma pretensio 3 exaustividade, representatividade estatistica ou mesmo 3 producio de uma anilise mais sistemética. Trata-se, tio somente, de trazer i luz algumas falas que possam fornecer elementos para uma relativizacio das visdes correntes sobre a violéneia e sobre a sua associagio com as favelas, BL Histria Oral. 8, 0.1, p. 129-196, jan jun. 2 outras praticas criminosas como, por exemplo, assaltos e seqiiest ros. Organizado em facgdes conhecidas por nomes como Comando Verme- lho, Terceiro Comando e Amigos dos Amigos, apenas para citar alguns, ele passou a disputar o controle de favelas, e também de seus pontos de venda de droga, promovendo as guerras. Os dados que deram origem a este trabalho foram produzidos por intermédio da metodologia de histéria oral. As entrevistas foram realiza- das em trés favelas de caracteristicas distintas e localizadas em diferentes areas da cidade: Formiga, na Tijuca, bairro da Zona Norte, Maré, na cha- mada Zona da Leopoldina, e Rocinha, na Zona Sul.} Nao havia, em ne- nhuma das trés favelas, no momento em que a pesquisa foi conduzida, uma situacio de conflito aberto e prolongado, ainda que enfrentamentos localizados e investidas da policia pudessem ocorrer. Em ao menos duas delas, porém, a eclosio de conflitos era algo bastante possivel e, de certo modo, antecipado. Entao dominado por uma das facgdes do trafico, o morro da Formiga localizava-se de frente para um outro, o da Casa Bran- ca, controlado por um grupo rival. Por isso, as trocas de tiros entre os dois morros cram relativamente constantes. Jaa Maré tinha o seu territdrio dividido por duas faccSes inimigas, sendo que a fronteira entre elas era palco de freqiientes tenses. Das trés, a Rocinha era a tinica que gozava de relativa estabilidade, sendo controlada por somente um grupo, que mantinha o seu poder de forma até entao inquestionavel. A violéncia nao foi o tema central da pesquisa, cujo objetivo era analisar os efeitos sociais produzidos pelas agdes de ONGs e do poder 3. Rocinhae Maré sio grandes favelas, com populacies superiares a duzentas mil pessoas e numerosos domicilios, sendo que a primeia est localizada em uma irea de encosta da Zona Sul da cidade, em uunta das regides de maior poder aquisitivo, entre os bairros da Giveae de Sio Conrado. Ela ostenta o titulo de maior favela da América Latina. A Maré é predominantemente plana e, na verdade, é um complexo que reine virias favelas e conjuntos habitacionais populares, Com uma historia que recua a fins do século XIX, situa-se aa regiio chamada de Zona da L eopoldina, area mengs afluente e mais antiga, prOxima ao mar da Baia da Guanabara, a0 longo das principais vias de acesso a cidade, Tanto a Maré quanto a Rocinha foram traasformadas em baieros recentemente, configurando uma situagio dlistinta da favela da Formiga. Esta é menor, contando com cerca de oito mil habitantes, e um pouco mais recente, tendo a sua ocupagio se inicisdo na década de 1920. A Formiga esta instalada em um motro da Zona Norte do Rio, na Tijuca, um bairro de nivel de renda elevado. Os entrevistados foram, fandamentalmente, nos trés casos, pessoas que acupavam posigio de lideranga em suas comunidades, reconbecidas como porta-vozes aurorizados, atuando, ou tendo atuado, 3 frente de associagtes de moradores, de igrejas, de projeros de ONGs e do poder piblico, 132 PANDOLFI, Dulce Cs GRYNSZPAN, Mario. A violencia visea da favela, publico em favelas.* A associag3o entre favelas e violéncia, contudo, era tao forte que a referéncia a esse tema tornava-se quase que obrigatéria. Quando nao era o pesquisador que abordava a questio, era o proprio en- trevistado que a mencionava, ainda que para relativiza-la, para desfazer 0 vinculo incontornavel que, na percep¢ao da populacao, de maneira mais ampla, se havia estabelecido entre a violéncia e as favelas. Essa relati- vizagio se operava, em geral, por uma dissociagao, no nivel do discurso, entre a violéncia como um fendmeno mais geral e, de modo mais especi- fico, a ameaca representada pelo trafico. Era a violéncia como um fend- meno geral que os entrevistados enfatizavam em suas falas, acentuando que se tratava de um problema da cidade concebida de forma mais ampla, nao podendo ter sua razio atribuida as favelas. Mais do que isso, eles procura- vam requalificar esses espacos, invertendo a rela cio de causalidade corren- temente aceita, ou seja, identificando o asfalto como o lugar por exceléncia da violéncia. No morro, ao contrario, regido por principios comunitarios, de amizade, vizinhanga e parentesco, era bem menor a possibilidade de ocorréncia de atos violentos. Nio se chegava, é claro, a negar ou a omitir a presenga do trafico. Nio se ia, igualmente, ao extremo de legitimé-lo, de apresenta-lo como positivo, ainda que por vezes se atribuisse a situagio de relativa seguranga que se afirmava viver nas favelas a uma certa acio reguladora do trafico. De maneira geral, quando se admitia a sua existéncia, buscava-se também explica-la, atribuindo-a a fatores exégenos. Era lembrado, por exemplo, que drogas e armas vinham de fora das favelas, e que os grandes trafican- tes viviam no asfalto, e mesmo fora do pais, em prédios e condominios deluxo, A populagio das favelas, particularmente suas criangas e jovens, seria, isso sim, na visio de um dos entrevistados, uma vitima dos grandes interesses que movem 0 trafico para além dos limites das comunidades. Como ele observa: “Acho que a droga éa maior desgraga da Humanidade, e nfo tem jeito. Sabem por qué? Porque a droga nio vem por esse bandidinho 4A pesquisa se inticula “Lim estudo dos efeitos das agdes de organizagdes governamentais e nio governamentais em comunidades de baixa renda”, ¢ contou com o apoio da Fundacio Pord, da Fundacio Konrad Adenauer e da Fundagio Carlos Chagas Filho de Amparo 4 Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faper)). Um de seus resultados foi o livro A frvela fula: depoimentos av CPDOC (Rio de Janeiro, Editora FGV, 2004), que retine depoimentos de 12 lideres das favelas estudadas. Historia Oral. 8,n. i p. 129-146 jan-jun. 2005 133 daqui; a gente sabe que o caminho da droga nesse pais vem por cima. Esses juizes todos, esses ministros, esses senadores nao vio querer perder essa ‘mamiata’. Instalou-se no mundo uma outra forma de guerra, para matar a Humanidade, mas isso j4 é antigo. E existe um acordo ld em cima, porque esses paises todos sabem onde existe o plantio e o dinheiro que corre para manter esse plantio. As maiores vitimas dessa guerra sho as eriangas, 08 jo- vens, que serio os primeiros a morrer, tanto aqui quanto 14 em- baixo, porque vejo muito filho de classe média, muito filho de rico, todos subindo aqui para comprar droga. As familias vao so- frer muito. (...) O pessoal gratido da droga armazena riqueza, conse- gue patriménio, é uma gente multimilionaria em outros paises, mas essa riqueza vem da desgraga de centenas de milhares de pessoas.” Outros fatores externos, gerais, lembrados pelos entrevistados para justificar a adesdo de jovens ao trAfico eram o desemprego, a falta de oportunidades e de boas perspectivas, a auséncia do poder ptblicoea propria segregacao social de que as favelas seriam objeto. De fato, um dos sentidos da relativizagao da violéncia nas favelas operada nas falas de seus moradores é, justamente, a tentativa de uma minimizagio dos efeitos des- sa segregacdo. Varios deles observaram que o fato de morarem no morro criava-lhes dificuldades diversas, como no estabelecimento de lagos com pessoas do asfalto, na busca de um emprego ou mesmo em questdes mais corriqueiras, como a entrega em domicilio de bens adquiridos. Des- construir 0 vinculo entre violéncia e favela significa, portanto, fazer reco- nhecer, impor uma identidade mais positiva para essas areas ¢ seus mo- radores, contribuindo para romper a segregacio. Existe, porém, um outro sentido importante na relativizagio da vi- oléncia mediante uma atenuacao do peso e da presenga do trafico nas fa- velas. Trata-se da tentativa de garantir a seguranga e a integridade fisicas diante, justamente, do peso e da presenga do trafico naquelas areas. Ou seja, longe de negar, a atenuacio e mesmo o siléncio sobre o trafico reite- ram o quadro de temor por ele gerado no interior das favelas. Como re- forgo desse argumento, cabe citar 0 fato de que as mesmas pessoas que, abordadas em suas favelas, evitavam falar ou relativizavam a ameaga do trafico adentravam o assunto com mais liberdade quando eram entre- vistadas fora dali, em outros espacos, ainda que mesmo assim o temor Ba Mario. & violénea vist da favela impusesse limites ao discurso.5 Sao trechos de algumas das falas produzi- das nessas situagdes que se procurara trazer aqui. E curioso observar que, se a auséncia do Estado é apontada por moradores como um propiciador da violéncia nas favelas, a sua presenga por meio da policia também 0 é. A visio negativa da policia é expressa por um dos entrevistados, quando ele se refere as incursdes desta para prender traficantes e apreender drogas e armas. Ele chega mesmo a qua- lificar a policia de bandida, ainda que justificando suas acdes em fungio dos baixos salarios que lhe s’o pagos, 0 que caracteriza, em sua opiniio, uma situacio de descaso dos governantes. Em suas palavras: “Esse prédio em que estamos ja foi todo quebrado pela policia, assim como todas as portas da minha casa, que ja foi revistada centenas de vezes. Quantas vezes ja entraram na escola... Nas paredes desse prédio tem buracos de bala da policia, que fica ati- rando 14 de baixo. (..) A policia é bandida, porque a sociedade quer uma policia que lhe dé garantias, mas paga miseravelmente. Neste pais, o dinheiro piblico tem os grandes donos; quando um governante entra, ja sabe quanto vai passar para as préprias con- tas, € 0 que sobra para manter o servico piiblico é quase nada. Quem fez a policia bandida foram os governantes deste pais.” Nessa mesma chave, outro entrevistado afirma: “Sei que existe uma policia corrupta, por quem nao tenho o menor respeito, mas ela é a0 mesmo tempo culpada e é vitima também”, De fato, os modos como, his- toricamente, a policia lidou com a populagao das favelas terminou por gerar entre esta e aquela uma relacdo tensa. Na visao de um dos entrevistados, a policia praticaria uma violéncia generalizada nas favelas, conferindo aos seus moradores um tratamento discriminatério, negando-lhes, por des- considerar o principio da igualdade de direitos, 0 estatuto de cidadios. Como ele acentua: 5 A grande maioria das entrevistas foi realizada no préprio CPDOC-FGY, onde as reservas ¢ as visdes negativas erm relagio 20 trifico puderam aflorar de modo mais livre, mesmo mamendo-se detersnina- dos limites. Faziasse referéncia a0 trafico de um modo bastante geral, sem nunea proceder a nenkuma especificagio, mencionar nomes ou situagdes precisas. Isso também nunca foi explorado pelos pesquisadores, ou porque nio era o seu objeto central de interesse, ou em fungie do risco que scarretava, Histéria Oral, v. 8,011, p. 1294146 jan jun, 2095, 135 “Bu nio consigo olhar para um policial e ver ali um oficial, um representante da lei. Aqui, dentro da favela, nao. E tambem nas experiéncias que tive fora, de blitz em énibus. Chego ao absurdo ds, dencen de um delbas,serodniensoesmade® Ene, acnlaha relacio coma policia é essa, o sentimento que eu nutro (...) Ede revolta. (...) Nem cidadaos nds somos. Nés somos favelados, Isso & que nés somos: fa-ve-la-dos, $6 que jamais eu vou aceitar esse titulo. Sou favelado porque moro numa favela, mas eu sou cida- dao, eu sou gente, entao eu tenho os mesmos direitos que 0 mo- rador de Sio Conrado tem, que o morador da Barra tem, do Leblon, de Ipanema, que o morador lé de Nova Iguacu tem. Pelo menos, na letra da lei esta escrito isso. Entao, é nisso que eu vou pensar ¢ lutar: que cu seja respeitado.” Assim como as operagées policiais, as guerras entre faccSes crimi- nosas s4o vistas como momentos perturbadores, geradores de fortes ame- agas, uma vez que, além de estragos materiais, produzem amitide vitimas fatais. Por vezes, para homenagear seus mortos, o trafico impée aos co- merciantes, nio apenas de dentro, mas igualmente de areas nas cercanias de favelas, o fechamento de suas portas como sinal de luto. Com freqiién- cia, as mortes provocam reagdes dos moradores, que, em protesto, ocu- pam c bloqueiam ruas ou grandes vias préximas 4s favelas, reclamando de excessos cometidos pela policia, acusando-a de matar trabalhadores inocentes, jovens ou criangas sem rela¢do com o trafico. Por seu turno, as autoridades policiais, via de regra, procuram desqualificar essas manifes- tages, argumentando serem orquestradas por facgdes criminosas com 0 fim de denegrir a policia. Buscam caracterizar os mortos como agentes do trafico derrubados em combate ou, quando reconhecem tratar-se de alguém inocente, vitimas quer do fogo cruzado quer de balas dos prépri- os traficantes. Se é possivel formular acusacées de que 0 trafico é capaz de pro- mover manifestages numerosas, ¢ se tais acusagGes podem ser reconhe- cidas como plausiveis, € porque se conformou, nas ultimas décadas, a 6 O faro de ser um alvo privilegiado de poticiais em revistas feitas em transportes piblicos é atribuido pelo entrevistado 4 sua condigio nfo somente de favelado — ainda que isso seja enfatizado no creche citado ~ mas também de negro. 6 PANDOLFL, Dulce C. GRYNSZPAN, Mario. violbncia vista da avela nogio de que, estando enraizado e sendo formado por pessoas das pré- prias favelas, o trafico conta, quando nao com o apoio, com a condescen- déncia de seus moradores. Nao se trata aqui de negar que o trafico possa, efetivamente, promover manifestagdes, nem que haja apoio ou condes- cendéncia por parte de alguns moradores. O que as entrevistas realizadas indicam, todavia, é que essa questao é bem mais complexa do que se cos- tuma supor, devendo ser tratada com maior cuidado. Para um dos entre- vistados, as acusagdes de que moradores, de maneira geral, so coniven- tes com 0 trafico representariam uma forma de exclusio, de negagio, mais uma vez, da cidadania aos favelados. Em suas palavras: “E nos acusam de esconder bandidos, de ser favoraveis ao trafi- co, coniventes com esse poder paralelo. Se vocé pegar, 98%, 99% da populagio da comunidade sio de trabalhadores, pessoas que chegam altas horas da noite do trabalho, que saem de madrugada para trabalhar. Ento, por que tratar as pessoas daqui assim? Por que o Estado olha para a gente dessa forma, também? E uma forma de excluir, também. Nao reconhecer que vocé tem direito. Vocé esta excluido. Excluido economicamente, excluido da poli- tica, excluido socialmente, dos seus direitos; enfim, sio varias for- mas de exclusio.” Em uma chave préxima, outro entrevistado procura negar que a maioria dos moradores seja condescendente com 0 trafico. Reconhece, entretanto, que ha uma enorme dificuldade, diante das ameagas reais, de assumir atitudes abertamente contrarias. Sua inseguranga é dupla, proxi- mo que esta dos criminosos e desprotegido que se sente diante da poli- cia. Como o préprio entrevistado observa: “Eu acho 0 seguinte. Algumas pessoas (...) a minoria se beneficia. Mas a imensa maioria, se tivesse uma vara magica que pudesse, assim, sem correr risco, acabar com isso, acabaria. Isso com certeza. Isso é a imensa maioria, a imensa maioria pensa assim. Entio, quer dizer, a imensa maioriaé totalmente contra isso. Mas nao vé como resolver. Por qué? Vai fazer como? Denunciar? As vezes a propria policia ta envolvida (...). Essa é a realidade. Entao, os moradores nio se sentem seguros pra denunciar nada, entendeu? Histdria Oral, v.8,n.1,p, 129-146, jan-jan, 2008. 137 E porque (...) o poder puiblico sabe que existe, sabe como chegae no resolve, a verdade é essa, entendeu? Mas a imensa maioriaé formada de pessoas trabalhadoras, que descem todo dia pra tra- balhar, enfim, vivem com dignidade e tal.” Vale destacar que o trafico se implantou e se consolidou nas favelas mesmo antes de ganhar visibilidade, encontrando poucos obstaculos di- ante da situacao de auséncia do poder publico nessas areas. De um qua- dro em que alguns poucos traficantes individuais, que tinham, muitas vezes, uma avaliagao negativa de suas atividades, aconselhando os mais jovens, como lembra um antigo morador de uma das favelas estudadas, a nao seguir o seu exemplo, passou-se a um outro em que facgdes se estruturaram e passaram a se enfrentar pelo controle de dominios terri- toriais e, assim, do comércio de drogas, exercendo uma forte atracio justamente sobre os mais jovens, que formam os seus exércitos. O pro- cesso de organizacio do trafico correspondeu também a uma centrali- zagao da autoridade dentro das favelas, contendo a dispersio, eliminan- do a concorréncia interna entre os diferentes pretendentes a chefe, unificando o comando nas mios de uma pessoa. Com a contengio da concorréncia e o disciplinamento dos comandados, instaurou-se nas fa- velas uma situacao de ordem, ainda que ditada por esses grupos, que passaram a exercer também fungées policiais em seus territérios. As fa- velas tornaram-se, assim, quando ndo estavam em guerra, lugares relati- vamente seguros, com um reduzido numero de agressdes, roubos ou estupros, atos que podem, muitas vezes, ser punidos com a morte pelos chefes locais. Destarte, é bastante comum, como ja se destacou, ouvir- se de moradores a afirmagio de que as favelas sio bem mais seguras do que outras areas da cidade, podendo-se ali dormir 4 noite de portas e Janelas abertas. Essa tranqililidade, contudo, é oposta a uma outra, anterior, que pre- valecia quando o trafico nao tinha ainda a forga que hoje ostenta. Esse passado de paz é lembrado com um tom de nostalgia, na fala de um anti- go morador que, atualmente, vive fora, em um dos bairros proximos a sua antiga favela: “Eu acho que a gente t4 querendo na verdade uma vida 3 anti- ga. Porque qual é 0 projeto mais importante la dessa questo? a PANDOLFI, Dulee C.; GRYNSZPAN, Mario. A violdncia vista da favela Bexatamente a questo da seguranga. E a seguranga, quer dizer, na época, antigamente, o morro era muito tranqiiilo. Era exata- mente 0 morro em que todo mundo tinha liberdade; eu fui cria- do, andava pra tudo quanto é canto, ia sem nenhuma preocupa- cio, andava prum lado, andava pro outro. E hoje, quer dizer, ew até criei meus filhos até ha alguns anos 14, meus filhos ficavam pra- ticamente em casa. Entao, a gente queria, quer dizer, aquela volta ao tempo antigo.” Um ponto importante a ser acentuado é que a autoridade ¢ o presti- gio dos chefes passaram a ser reconhecidos mesmo fora dos seus circulos mais imediatos, consolidando-se, com relac3o a alguns deles, a imagem do bom bandido. Além de prestar seguranga, eles também passaram a medi- ar conflitos diversos entre moradores, sendo procurados por alguns deles para resolver problemas particulares, e passaram a investir nas favelas, dis- tribuindo presentes ou mesmo alimentos, financiando festas ¢ outras ati- vidades de lazer, assim como a construgio de espagos de uso comunita- rio. A fala de um dos entrevistados refere-se claramente 4 ajuda que os “meninos”’ do trafico dao 4s comunidades, reforgando, ao mesmo tem- po, a percepcio de uma auséncia do poder piblico. Segundo ele: “O trafico também é presente na comunidade, porque o trafico também tem agées sociais dentro da comunidade. Quanto ao poder publico, ele se preocupa muito mais com as comunidades da Zona Sul, ou da Tijuca, onde tem aquele pessoal de classe media, onde as ages serio mais observadas. E em muitas outras comunidades afastadas, como Nova Iguacu e Santa Cruz, nao ha uma preocupagio tao grande, porque ali no tem uma elite obser- vando o movimento do poder piblico.” A visio de que o trafico da as comunidades 0 acesso a determina- dos servigos é reforcada por um segundo entrevistado, quando se refere aum passado nfo distante como uma forma de explicar 0 seu enraiza- mento: “Em muitos lugares o trafico cuidava também da parte da satide, 7 “Meninos" é uma das formas como, nas favelas, sic chamados os traficantes. Historia Oral, v-8,0.1,p. 129-146, jn-jun. 2008 139 tinha ambulancia ou carro para levar as pessoas. Houve um periodo que existiu isso ai”. Gerov-se, dessa forma, um sistema de dividas morais, uma das ba- ses de sustentagao dos traficantes nas favelas, em que os dons distri bui- dos pelos chefes supunham um contradom, que ia desde prestar lealcade ¢ respeito até esconder um aliado, levar um ferido a um hospital, ou mes- mo ceder a residéncia, entre outras tantas obrigagdes que poderiam ser cobradas de imediato ou tempos depois. E por isso que, na visio de algu- mas antigas liderangas de favelas, o contato com 0 trafico deveria ser evi- tado a todo custo, sob pena de se contrair com ele uma divida por toda a vida. Como afirma uma delas: “Tem essa outra questo: se vocé vai procurar os ‘meninos’, vocé ja vai estar estabelecendo um certo tipo de relacionamento com eles... Vai estar legitimando, também. No meu caso, que eu sou uma pessoa publica, é inconveniente fazer isso. Porque, além dis- so, uma relago sempre de m&o-dupla.” O prestigio dos chefes locais tem operado como um fator de atra- Gao, para o trafico, de jovens que buscam neles se espelhar. Entrar para o trafico, ou para o movimento, na expressio local, vincular-se a uma fac- So significa pertencer a uma rede de interdependéncia, a uma estrutura de referéncia, que confere apoio, protecao e seguranga. Significa, igual- mente, acumular um recurso de poder e de respeitabilidade que vai muito além do simples porte de uma arma. Cada participante é investido da forca do grupo como um todo, sabendo que pode acioné-la quando for necessario e legitimo. Por outro lado, suas ages devem se conformar aos padrées morais e 4s normas de comportamento instituidas pelo grupo, pois, caso contrario, o préprio prestigio do grupo como um todo, e aqui esta cm jogo nao somente o prestigio junto aos moradores das favelas, mas também junto a facgao 4 qual pertence, se vera atingido. Nao é por outra raz4o que os deslizes, ou vacilos, na linguagem local, sio duramen- te punidos. Para alguns, ser investido do poder do trafico representa uma mu- danga drastica em sua representacdo, no modo como sao vistos c trata- dos, passando a ser temidos, mas também respeitados, e assumindo uma posicio que, de outra forma, dificilmente teriam. O mesmo se pode dizer 140 PANDOLFI, Dulce C.; GRYNSZPAN, Mario. A violencia vista dl favela em relacdo aos bens a que, virtualmente, passam a ter acesso. Entrar para o trafico significa passar a auferir ganhos que, muito provavelmente, nun- ca teriam se seguissem os percursos tradicionais, desempenhando as fun- des que sio geralmente abertas, quando o so, a jovens com um baixo capital social e escolar. Isso Thes abre a possibilidade ou, mais exatamen- te, a crenca na possibilidade de adquirir determinados bens vistos como conferidores de prestigio e de status social, e que, de outra forma, lhes seriam interditados.* Mais do que a pobreza em si, ou a falta de trabalho, embora estas sejam bastante reais principalmente entre os jovens das fa- velas, 0 que pesa na sua adesio ao trafico é a desesperanga em relagio ao futuro e a possibilidade de sair da pobreza, é a descrenga em relagio 4 efi- cicia das vias de mobilidade que se mostram possiveis para eles, a escola ¢ otrabalho, resultando assim na sua rejeigio. Na verdade, o préprio fato de trafico se colocar no horizonte do possivel representa j4 um elemen- to de desnaturalizagio do mundo, relativizando a pobreza, a privacio, a precariedade e o trabalho mal remunerado como futuro inexoravel. Sem divida, o trafico tem mantido a sua forga e, ainda mais, tem revelado uma grande capacidade de naturalizar e incorporar ages que, a principio, visam a se afirmar como alternativas a ele, promovendo a sua neutralizacao. Nao somente ele se apropria de parte das categorias do dis- curso militante das ONGs, utilizando-as em seu proveito de modo a legi- timar suas préprias praticas, como estabelece, por vezes, uma espécie de divisio do trabalho nfo acordada, nao intencional, nao prevista, com aces mesmo do poder piblico. Os proprios chefes locais podem passar aencaminhar as ONGs, e ao poder publico, moradores que os procuram com determinados tipos de pleitos. Um desses moradores, depois de re- latar ao chefe do trafico de uma das favelas estudadas 0 problema para o qual pedia solugdo, ouviu dele o conselho para procurar 0 Balcio de Di- reitos, projeto de uma ONG, cujo objetivo é oferecer servigos juridicos e promover a mediagio como mecanismo de resolugio de conflitos em favelas: “Para isso, vocé procure o Balcao de Direitos”. E possivel, porém, observar uma tendéncia a considerar a ago do trafico como um mecanismo mais eficaz de distribuigao de justiga 8 Entre o: bens a que passam a ter acesso esta a propria droga, como a cocaina, cujo consumo vem, cxescendo nas prdprias favelas. Na verdade, chega-se, em algumas favelas, a consumir mais da metade dasdrozas que nelas sio vendidas. Muitas vezes, é 0 consumo que leva um jovem a entcar para o trio. istévia Oral, v. 8,0. fp. 129-196, jan jun. 2005. 1st e mediagSo de conflitos do que o préprio Judiciario. Nas palavras deum dos moradores: “Eu sempre costumo dizer que nés temos dois Tribuaais de Justica: 0 da lei eo de fora da lei. O de fora da lei funciona mais rapido do que o da lei (..) Funciona rapidinho! E acabou, nao tem problema! Porque a intencio deles ¢ que na favela ndo tenha problema!”. Segundo outro depoente, “a ago policial nao existe. Os problemas quem resolve é o pessoal do trafico, que manda parar. Tem muito mais respeito. Ali as pessoas nem brigam, com medo. As pessoas, as vezes, com receio, no brigam”. Essa percepcio é partilhada mesmo por aqueles que nio recorrem ao trafico e que, diante da auséncia do poder piblico, se véem sem instrumentos de resolugio de conflitos. Nas palavras de um entrevistado: “Por exempl dem Campo Grande, se vocé ligar 0 seu ridio alto, a vizinha do lado vai reclamar. Se nao resolver, ela vai cha- mar a policia. A policia vai li na sua porta. E como acontece em qualquer apartamento. F 14 onde eu moro nao acontece isso. No tem ninguém que vocé pode chamar. Vocé nio pode fazer nada. Vocé tem que ficar quieto.” Na medida em que se afirmou internamente, o trafico também pas- sou a disputar a diregao das associagSes de moradores. Isso pesou para que uma parcela das liderancas locais deixasse de ver nas associages um es- paco valorizado de atuagio, 0 que foi percebido como um processo de esva- ziamento dessas organizacées. De acordo com um ex-presidente de asso- ciagio de moradores: “Tinha na verdade o trafico ja organizado 1a, pequeno, timido, que no tinha essa forca, mas tinha. Mas nio se envolvia, nfo queria discussio com a Associago. Mas depois, no meu segundo mandato, comegou a querer ter um envolvimento em coisas até que hoje nds consideramos pequenas. O trAfico queria quea As- sociagio fizesse IA antincio (...) chamavam um diretor domingo praanunciar a morte ld dos bandidos, anunciar a missa de sétimo dia etc. Ea gente achava que aquilo ali era um absurdo. E ai co- megou aincomodar. Eles davam uns recados e ai a minha familia comecou ase preocupar, entio eu achei melhor me afastar.” wz PANDOLEI, DulceC.; GRYNSZPAN, Mario. A violéncia vita da favela, Relembra outro entrevistado, também ex-presidente de associacao, vinculando o declinio dessas organizagées ao crescimento do trafico: “As liderancas conquistaram um espaco como liderangas comu- nitarias. Se pegarmos o movimento associativo de favelas, ele vai ter um crescimento do final da década de 70 até meados de 80, quando se dé auge da interlocugio, feita pela lideranga comuni- taria, pelo presidente da Associagao, que tem um papel muito definido. Paralelamente a isso, comega lentamente acrescer 0 poder do trafico, que vai ganhar mais félego e exigir mais espaco. E toda aimprensa dizendo: ‘Existe um trafico que paga enterro, existe um trafico que da bailes...’ Como benfeitores. Isso tudo vai ali- mentando essa imagem do defensor, do paladino.” Mais do que simplesmente concorrer com as associag6es, 0 trafico, na visio do mesmo entrevistado, passou aos poucos a concorrer pelas as- sociag6es. Diz ele: “£. E isso ver crescendo, até uma convergéncia, que tem a ver com adisputa dos pontos de trafico na cidade do Rio, com um. trifico muito mais armado, armamento pesado, e muito dinheiro rolando, Deve ter alguma pesquisa mostrando que esse foi um periodo em que comecou a aparecer muito dinheiro no movi- mento, entao as disputas ficaram mais fortes. E também era um outro momento politico, em que passou a ser possivel fazer a defesa, aafirmacio de alguns direitos, ecomegar a dizer: ‘Nao, na favela nio se pode arrombar barraco’. E eles continuam arrom- bando até hoje. Mas se comecou a tentar exercer esse direito, a mostrar a favela como um espaco onde a lei também teria que ser respeitada. Entio, a convergéneia desses varios fatores vai cha- mando a atengio para o poder da Associagio de Moradores, Co- megam ai alguns convénios com o poder piblico. O Projeto Mutirio, por exemplo, comega nesse periodo. A Associagio pas- saa definir o mestre de obras, que era o responsavel por receber odinheiro ¢ repassar para as equipes. Comegaa circular dinheiro na Associago de Moradores, e ela passa a ter uma interlocugio diretacom o Estado. Fica muito claro que esse é um espago que Historia Oral v. 8, Jyp. 129-146, jan jun, 2095, 13 tem forga e que o trafico vai disputar, de uma forma ou de outra; de um lado, ele vai minar, de outro vai tentar cooptar e, em alguns lugares, vai tirar mesmo, vai assumir, vai indicar alguém para esses espacos.” Para os depoentes, o problema da violéncia é de dificil solugio, de- pendendo de medidas cujos efeitos seriam sentidos apenas a médio € lon- go prazo. Suas causas mais profundas, como jé foi acentuado, estariam nas desigualdades econdmicas, raciais € no estigma que recai sobre as propri- as favelas. Como observou um deles: “O que fazer? Armar mais policiais? Com mais morte, com mais violéncia se faz.a paz? Nao, sé se faz uma violéncia maior. A solugio nao é por ai! Haverd confronto, vai morrer gente inocen- te, vai morrer traficante, vai morrer policial. Quem é culpado nes- sa historia toda? Talvez. o que morreu seja o mais inocente de todos, talvez eu seja mais culpado, por nio ter me dedicado mais, no ter brigado mais, mostrado a ele que o caminho certo nio era aquele. Talvez.o policial seja 0 culpado, pois muitas vezes chega na comunidade, toma a lei em suas mos, decide quem vive, quem morte. O nosso sistema carcerario é o pior do mundo! Nao recu- pera ninguém. Muitas vezes, a pessoa prefere até morrer a ir pre- sa. Entio, por onde comegar a paz, por onde? (...) Nao estou fazendo apologia do crime, estou dizendo que temos que come- gar dando oportunidade as pessoas, porque levando a violencia, vamos trazer mais violéncia, mais revolta.” Para o entrevistado, oportunidades produzidas por politicas de ge- racio de trabalho e renda poderiam reduzir 0 ingresso dos jovens no tra- fico, Como ele diz: “Veja a delingiiéncia juvenil; é uma coisa que todo mundo viveu. Quando se sente o tal, aos 17, 18 anos, o filho de um rico vai surfar, botar pega, viajar, fazer um monte de coisas. O nosso jovem nao tem uma roupa bonita, nao tem nada disso. Qual é a forma de se sentir 0 tal? E pelo trafico. Como vai conseguir comprar uma roupa bonita? E dessa forma, E uma alternativa de vida. Outro dia, houve uma 4 PANDOLEI, Dulce C.; GRYNSZPAN, Mario. A violéncia vista ca favela, conversa entre o governador e varias comunidades sobre crimi- nalidade, e o presidente da Associagao de Moradores do Morro de Sao Carlos disse: ‘O senhor me conceda cem vagas de emprego, que vou mostrar como se diminui acriminalidade. O senhor me dé in- vestimento para jovens, na area social, mas um projeto sério, que vou lhe mostrar como é que se combate a violéncia’. Nio sei nem por onde comegar, mas sei que as pessoas tém que comegar a assu- mir responsabilidades; eu assumo as minhas. Nao adianta apenas dizer: ‘Vou para casa, visto uma roupa branca e acendo uma vela pela paz. Pronto, acabou’. Nao! Eu prego a paz o tempo inteiro, nio apenas um movimento pela paz, como esse que houve ai. ‘Tem que haver uma agio efetiva pela paz, tem que haver distribui- io de renda. Paz é isso, a paz é um monte de coisa, a paz é amor, é fraternidade.” Assim, segundo o entrevistado, embora sejam importantes, campa- nhas simbdlicas como as pela paz. teriam um efeito limitado: “E preciso que a midia reveja a questio da discriminagio. Paz, para mim, é pegar um sujeito feio e fazer dele um Alain Delon, fazer dele 0 ator principal. Existe uma guerra contra os negros, os ‘paraibas’, os massacrados, os coitadinhos. Que ponham um ‘paraiba’ como ator principal de uma novela! Aia gente vai ter paz. Hoje nos presidios sé tém os trés Ps: preto, pobre e ‘paraiba’, Isso é uma violéncia.” Mesmo para moradores nao envolvidos com a atividade, 0 trafico vem se constituindo em uma forte referéncia nas favelas. Assim, em are- as divididas por facg6es rivais, como uma das estudadas, que tem parte controlada pelo Comando Vermelho e parte pelo Terceiro Comando, era comum ouvir-se de moradores referéncias como “eu moro na area do Comando Vermelho” ou “eu sou da area do Terceiro Comando”. 9. Ainda scb o impacto do seqiiestro do Snibus da linha 174, em juno de 2002, a0 qual quatro mulheres foram mantidas como reféns ¢ uma delas, Geisa Firmo Goncalves, foi morta, ocorreu no largo da Carcsca acampanha “Basta! Fu quero Paz”, promovida pelo Viva Rio. Ver © Globo e Jomal do Brasil, 08/7/2200. Histéria Oral, v.8,n. 1,p- 129-146, jan jun. 2008. 445 Nos dizeres de um dos nossos entrevistados, “dentro da mesma comuni- dade, tem pessoas mais vinculadas a um comando e outras pessoas acutro comando, ds vezes tem. E uma espécie de um partido, como fizesse pol!- tica”. Nesse caso de divisio da comunidade, a liberdade de ir e vir dos mo- radores se via comprometida. Entrevistados declararam que pessoas que habitavam a area controlada por um dos comandos ficavam temeresas de circular pelo territério da facgao rival. Esse mesmo problema nao parecia ocorrer nas favelas controladas por um tinico grupo, ou ao menos era isso que alguns dos depoentes pro- curavam afirmar, minimizando a presenca constrangedora e ameacadora do trafico, Disse um dos entrevistados, respondendo a uma pergunta sobre a liberdade de movimento e acdo em sua comunidade: “O trafico que existe na minha comunidade nfo nos inibe de trabalhar. Circulo livremente, nao tenho nenhum problema. Nunca sofri nenhum constrangimento. Minha familia tem uma historia muito longa e muito bonita na comunidade, e fago questio de continuar isso (...). Sentimos que em muitas comunidades a situa. 40 melhorou (...), Na minha comunidade nfo tem isso, nao; des- conhego esse tipo de coisa. LA as pessoas trafegam normalmente para la e para ca, a qualquer hora do dia, Em outras comunidades até pode existir isso, mas nio na minha.” Indagado se sairia de sua comunidade caso tivesse condigGes, res- pondeu: “Eu? Para qué? A comunidade é minha area de lazer. Vou ficar morando ali, Vocés terZo noticias minhas, velhinho, ainda morando ali. Quero ficar ali mesmo, gosto demais dali”. A realidade da violéncia, contudo, terminou falando mais alto que o desejo do entrevistado. Quando fomos procuré-lo, pouco tempo depois, soubemos que havia sido obrigado a sair da comunidade. Resumo: O objetivo do artigo é discutir a questio da violéncia, tomando como referéncia depoimentos de liderangas de algumas favelas do Rio de Janeiro. Ume das cidades mais violentas do mundo, o Rio de Janeiro, nos iltimos anos, vem assistindo a um processo de expansiio das suas areas faveladas, Para diversos sep, mentos da sociedade existe uma relagio direta ¢ imediata entre a expanisio das 145, PANDOLFI, Dulce C, GRYNSZPAN, Mario. A violéacia vista da faves, favelas ¢ 0 aumento da violencia. Mas, ao se ouvir 0s moradores das favelas, percebe-se que a questio é bem mais complexa. Além de contestar esse tipo de associagio, os depoentes requalificam os termos favela ¢ violéncia e atribuem ao poder piblico responsabilidade maior pelo aumento da violencia que atinge a cidade como um todo Palavras-chave: Rio de Janciro; favelas; violéncia; depoimentos. The Violence as Seen From the Slum Abstract: The aim of this article is discussing the issue of violence, taking into account testimonies of leaderships from some slums in Rio de Janeiro. One of the world's most violent cities, Rio de Janeiro has been dealing with an expanding, process of its shum areas in the last few years. According to several segments of the society, there isa straight and immediate relationship becween slum expansion and violence growth, However, when listening to people living in slums, one rea lizes chat the question is much more complex, Besides contesting this type of association, the deponents requalify the terms slum and violence, and attribute greater responsibility to the state power for the violence growth that affects the city asa whole, Keywords: Rio de Janeiro; shims; violence; testimonies.

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