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(ENTO DE INDETERMINACAO UALIZAGAO Ba HILOSOFIA nO piterro DE HEGEL axel honneth Se ce eee etn ico He ste da floofia politica comtemporine usta, Un See eee EUnet ee ene ca Soe ener te eric eee Cree eee on en cement ee ota Ses a nts ee oe ae eee Peon Pere nee eee en or erence ani f Ser Se ee et et eee Portanto, St ey jowar ee fens ocean erie eearrar ee tn Se eee ny ence eee COS ee ee ee ey Pane ee certs ss Por ontro fad, © propisito de funda See ere ee een ee es ee ee es eee ete rer ee ee © solo do diteito & em geral, o-Memento espreit ‘seu luyat mais preciso €0 seu porto de partida€ Sha substincia © & sun destinacao, ¢ que o sistema do idireito.€ © reino da liberdade efeivads, 0 mando da bspirito produzide # parti do proprio espirité cong ‘umir segunda naturena gue & livre, assint que 4 berdade copstitul GER Hegel en eco Cu Gostatia de proceder ne mints tehtativa dé. peatuae et eee er es lizagao, de, tal modo a reinterpretar pr See ee ee intenga fundariien ida Mlosofia do difeite hegeliana ere ch ene een & mostrar clatamonte’a utilidade desse texto ob a ahs ‘bite Wtal Hadife que deveuob-eharian de “direita 4 Ae] Honnsth + ) esfera publica : ~ -wwawesfetapublicaeditorial.com.br | Il | ME SOFRIMENTO DE INDETERMINAGAO: Uma reatualizacio da Filosofia do direito de Hegel Axel Honneth SOFRIMENTO DE INDETERMINAGAO: Uma reatualizacao da Filosofia do direito de Hegel Tradugio Risrion Soares Melo © esfera publica Dados inna de Catalan Publi (C1) (Gs rarer d iv, Sra) ona ak “umentodeindterina: wm seas Fh cde Heel Ae! Hanne So Pr Era Saga. Et abe 20 ISB: 755.850013 “Tl crgia Laden sa Ubon Be Resoaierang, ke Vgc RehpbsopeRecan201 Td de Rion Stue hic, cousa2 cop. s01 {nds pre cal wltemc: 1 Hig, Geog Nien sich tsteaenerpetan 2 Uberdde 3 Bea «loss do Disko. ttm Coordenagi Bator: Paulo Todescan Lesa Mattos Baitore: Denilson Lis Werle Iie Repa Mauricio Cardoso Keinert Raion Soares Melo Revisio: Paola Morello. [Eitorgdoeletrdncar Microart Com, Baitorasio Hletrnica Lida, (Capa: Taian Gentil Machado @estera palin veserapublicaeditorialcombr (0 desta edict: Batra Singular Editor Singular a Jose Nobrega Barbosa n° 100, (CEP 02336-090 -Sio Paulo-SP ‘TayFax: (11 3862-1242 ‘woniceditorasingularcom.be singular@editorasingula.com.br SUMARIO Inet Trin ra auc de Denilson Luis Werle e Rtron Soares Melo. cen 1 ~AFloofiadodrito de Hegel como teria dajatia nn 45 1 Aida dalberdade individ condita fivas de sutonomia 2. 0 “ita Fb d dit: eters noes de uto- relia : 1 Ovincl entre tora ca jutiga e dagntico de paca 3. Softimento de indetrminacio patlogas da liberdade individual .. eet 4 “Libra do siento signa apn de Stead ent m.. ~ tina a cme eis mated mde 5, Auto-realizcdo e reconhecimento: condigoes para atic. 33 6 n 81 98 105 106 6. A superinstituionalizagdo da -cticidade” problemas abordagem hegeiana 14 INTRODUGAO: Teoria critica, teorias da justiga e a “reatualizacao” de Hegel Denilson Luis Werle Riirion Soares Melo Dois passos nos parecem necessérios para compreender «a tarefa proposta por Axel Hoaneth em seu livro Sofrimento de indeterminagao: pot um lado, entendemos ser preciso vincular sua obra a tradigao de pensamento conhecida como “teoria critica” (1); por outro lado, preciso entender aespecificidade de sua apropriagao, ou melhor, de sua “reatualizacao" da filo- sofia hegeliana tanto para o propésito maior de implementar ‘uma teoria critica da sociedade como para solucionar as di- cotomias presentes no debate contemporaneo sobre teorias, da justiga (II). Ap6s uma exposicao despretensiosa desses dois passos fundamentais, vamos procurar apresentar de que modo Honneth implementa sua “reatualizagao” da Filosofia do direito de Hegel (111). Atradigio da teoria crtica é marcada pela existencia de diferentes modelos de teoria critica, ou seja, diferentes mo- dos de pensar o ancoramento da critica na realidade social Sctierto deinatringi: wnat a Fld ita de ese ¢ diferentes tentativas de critica imanente, compondo assim ‘um didlogo rico e sempre autocritico entre os autores que se inscrevem nesta tradicio.' Desde Max Horkheimere Theodor ‘Adomo,ela écaracterizada por umareflexto sobreas potencia- lidades c limites das diferentes formas de fazer critica, isto é, ‘marcada por uma atitude critica sobre a propria teoria critica diante das novas exigéncias colocadas pela tarefa de fazer um diagnéstico das patologias e potenciais emancipatorios das sociedades contemporaneas. Para compreendermos como Honneth encontra-se vinculado a essa tradigao, acreditamos serfundamental, primeiramente,partirmosdaquilo queenten- demos ser sua tentativa de mostrar que a formulacao de uma teoria critica dasociedade empreendida por Jargen Habermas gerou novos problemas nao solucionouas aporias em que se encontrava a teoria critica antes dele. Desde seus primeiros escritos sobre a dinamica da esfera piblicano capitalismo tardio até os seus escritos mais recentes sobre moral, politica e direito, Habermas teve como umas de suas preocupacéesprincipaiseliminar o que chamoude“déficit da tradigéo da teoria critica’, sobretudo 0s fundamentos nor- ‘mativos dacritica, Parainvestigar alguns ragosdesuaproposta, ‘vamos considerar, ainda que seja apenas superficialmente, {que entendemos ser o niicleo da teria critica habermasiana, tal como apresentada em sua principal obra, Teoria da agao comunicativa.® Um dos problemas centrais expostos no livro consistiu ‘em demonstrar que uma interpretacdo exclusivamente “ins- trumental” ou “estratégica” de racionalidade seria inadequada ' CENobre,M. A teora erica, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2004 > Habermas, J. Theorie des kommunikativen Handels, Prankfurt/M, Subrkamp, 1981.22. co para os objetivos de uma teoria critica da sociedade que nao aceitasse uma postura resignada e pretendesse oferecer com. seus préprios meios uma explicacio positiva.* Para tanto, 0 primeiro passo importante consistiu em desenvolver um con- ceito complexo de racionalidade que ndo se encontrasse preso ‘nem limitado pelas premissas subjetivistas e individualistas da filosofia do sujeito e da teoria social moderna, Nisso consiste a mudanga do paradigma de uma razio centrada no sujeito parao da razao comunicativa, Por iss0,0 marco categorial eos fundamentosnormativos de sua eoria social io desenvolvidos na forma de uma teoria geral da agdo comunicativa. Habermas entende por“racionalidade” nossa capacidade para nos comu- nicarmos, ou seja, nossa capacidade de nos orientarmos numa interagdo comunicativa por pretensdes de validade (sobre a verdade, a justeza normativa ou a veracidade subjetiva) que estio assentadas no reconhecimento intersubjetivo. A acio ‘comunicativa, portanto, est orientadapara o“entendimento” ‘endo para a manipulacao, ea propria obtencéo de um acordo reside na possibilidade de fazer uso de razdes capazes de levar ‘a.um reconhecimento intersubjetivo dessas pretensoes de va~ lidade suscetiveis deeritica. © passo seguinte consiste em construir um conceito de sociedade em dois nfveis, integrando tanto o paradigma do ‘sistema” como 0 do “mundo da vida". O conceito de “sistema” diz respeito a razdo “instrumental” e corresponde aos ambitos. de reproducio “material” da sociedade, em que se exige que as. atividades racionais com*respeitoafins” de todos osindividuos sejam eficientemente coordenadas. 0 conceito “mundo da vida” * Como éocaso,para Habermas do diagnbstico edasandlises presentes no lvro de Horkheimer e Adorno, Dialétca do esclarecimento. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1985, Satinerto de ndetrinai: una retusa Fis do dito de Hee éintroduzido como um complemento necessério do conceito de agio comunicativa, pois esta serviré como meio adequado paraa reproducio simbolica” daquele. Comessadistinglo,serd poss{vel, por um lado, reconstruir um Ambito deracionalidade autdnoma especifica do “mundo da vida’, atribuindo-Iheassim um potencial emancipat6rio. Por outro lado, abordar as pato- logias sociais com aajuda desse conceito de sociedade em dois niveis significa interpreté-las como deformagoes que prove deperturbagdesnareprodusio do“mundo da vida’: Emoutras palavras, Habermas se interessa pelos tipos de patologias que se apresentam quando desequilibrios sisttmicos geradores de crises, produzidos no sistema econdmico e no aparato estatal, se direcionam ao “mundo da vida” e comegam a distorcer sua reprodusao simbélica. Segundo uma das teses centrais de sua teoria critica da sociedade, as principais patologias das socie~ dades contemporaneas decorrem da *colonizag40” do mundo davida pelos imperativos sistémicos. Ora, para Honneth, a solugio que Habermas deu para o déficit da teoria critica se fez ao preco de novos problemas, ou melhor, cabou por nao tratar de um outro déficit que acom- panha. teoria critica desde o trabalho seminal de Horkheimet ‘nos anos 1930.‘ critica de Honneth € de que a teoria social critica de Habermas, fundamentada na distingao dual entre “mundo da vida" e“sistema’” enum conceito mais complexo de razio, ainda que tenha mostrado avangos significativos em re~ Jagio a Horkheimer e Adorno, nao conseguiu superar o“déficit sociol6gico” da teoria critica. Déficit sociol6gico no sentido de {que vigora uma concepgio de sociedade que tem duas formas «Cf Horkheimer, M."Teoria tradicional eteoria critica, in Colegfo Os Pensadores, Sao Paulo, Abril Oaltural, 1987. rd de racionalidade e nenhuma mediacao entre elas. A critica de Honnetha Habermas pode er divididaem doispontos:acriticaa distingdo entre“sistema” e" mundo davvida” eacriticaa intersub- jetividade comunicativa orientada para oentendimento,ambas levando a idéia de que falta a Habermas — assim como faltava paraHorkheimer—levaremcontaaagio sociale oconflitosocial, como mediadores necessios.© No primeiro caso, Honneth mostra que a distingéo entre “sistema” e“ mundodavida’ éambigua,oscilando entreuma dife- rengaqueémeramenteanaliticaeumarealentreesferassociaisde agdo diversas. Como vimos, Habermas introduziuessadistingio para elaborar um conceitg de racionalidade complexo, em que a razdo instrumental passa a ser limitada para nio obscurecer as estruturas comunicativas do mundo da vida. Mas, ao fazer isso, Habermas tambsém justificoua racionalidade instrumental ‘comoum elemento necessério para coordenaciodaagao.social e reprodugio material em sociedades complexas. E, a0 intro- uzir a tese do desacoplamento entre mundo da vida e sistema, Habermas acabou por ceder demais teoria dos sistemas. Isso teria impossibilitado Habermas de pensar os proprios sistemas, © sua l6gica instrumental como resultado de conflitos sociais permanentes. Como conseqiiéncia, no modelo habermasiano a * CLHonneth,A. Kritkder Macht. Prankfurt/M. Suhrkamp;1989,prin- cipalmente caps. 8 9. CC. aapresentagdo de Marcos Nobre, “Lata por reconhecimento: Axel ‘Honneth ea teora critic’ in Honneth, A, Luta por rconhecimento: «agramética moral dos conflitossociis. Trad. Luz Repa. Sto Paulo, Ed 34,2003. * Cl tambémm McCarthy, “Complexity and democracy: The seduce- ‘ments of systems theory’ in Ideals and illusions on reconstruction and deconstruction in contemporary critical theory. Cambridge: The MIT Press, 1993, u Setierto de ineterinai: una etaliso 6aFlsfi do dita de eae indica de transformagdo e as patologias sociais passam a ser descritas de forma muito abstrata, mectnicae funcional, como processos de racionalizacao que decorrem de um embate entre mperativos sistémicos colonizadores as estruturas intersub- jetivas comunicativas do mundo da vida. ‘No segundo caso, Honneth criticaa propria intersubjetivi ‘dade comunicativaorientada paraoentendimento.Adimensio do contfto teria ficado em segundo plano na obra, pois ao invés de ressaltaros conflitos em torno das violagoes de pretenses de identidade adquiridas na socializacdo, Habermas entendeu os. conflitos como uma violagao do “ponto de vista moral” estabe- lecido segundo regrasdalinguagem,Naverdade,ambos osargu- ‘mentos apontam para um niicleo comum, a saber, mostrar que a teoria habermasiana da agéo comunicativa estaria ignorando ‘ofundamento social da teoria critica, ou seja,0 confit social. A basedaiinteracao seriaanteso conflto eagraméticamoral desse conflito consistitia,como veremos, naluta porreconhecimento. “No modelo habermasiano’ segundo Honneth, “torna-se posst- vel explicar como um processo de raci6nalizagdo comunicativa do mundo da vida pode desdobrar-se historicamente, mas ele no se reflete nas experiéncias dos sujeitos humanos como um ‘estado moral de coisas”? Para Honneth,ateoria criticatemde procurar dar expressio asexperiénciasdeinjustca social dossujeitos.Paradesfazerodé- ficitsociol6gico,asaida apontada porHonneth éadedesenvolver ‘o paradigma da comunicagao maisem diregao aos pressupostos sociol6gicos igadosa teoriadaiintersubjetividade,no sentido de explicitarasexpectativasmoraisdereconhecimentoinseridasnos + Honneth, Axel. “The social dynamics of disrespect: situating crti- cal theory today’ in Dews, Petr (org). Habermas: a critical reader. Blackwell Publishers, 1999.p.328. 2 Ido processoscotidianos de socializagio, de construgio daidentidade, integragdo social e reprodusao cultural. Portanto,o paradigma a comunicacéo, para Honneth, teria de ser desenvolvido nao nostermosdeuma teoriada linguagem, masa partirdasrelagdes de reconhecimento formadoras da identidade. A dinamica da reprodugio social, os conflitos ea transformagao da sociedade poderiam ser mais bem explicados a partir dos sentimentos de injusticae desrespeito decorrentesda violagao das pretenséesde identidade individual ecoletiva, ‘Comisso, mudaoancoramentodateoriacriticana ealidade social:*Os sentimentos de injustica queacompanhamas formas ‘estruturais de desrespeito representam o fato pré-te6rico quea critica das relages de reconhecimento pode usar para demons- trarsuaprépriabase na tealidade social” A partirdisso, também ‘0 diagnéstico critico de nossa época teria de ser destocado. Em ‘vez de focalizar a tensio entre “sistema” “mundo da vide’, a perspectiva critica deveria concentrar-senas causas esponsiveis pela sistemtica violacdo das condigbes de reconhecimento. O citério para identificar as patologias sociais nao residiria mais, nas condigdes racionais da busca porum entendimento livre de dominagdo, como ocorre em Habermas, mas seria fornecido pelos pressupostos intersubjetivos da formagdo bem-sucedida daidentidade humana, na luta por reconhecimento e suas con- figuragbes sociais institucionais. Como aapropriacao dafilosofiade Heyelajudardacompor ‘os elementos centrais de um novo modelo critico? Inspirando- se na idéia hegeliana de luta por reconhecimento, Honneth rocurou fundamentar uma versio propria da teoria critica, e, ‘com isso, elaborar uma concep¢io da mudanga e da evoluca0 > Tider, p.330. B Seinen de intel: uma eta dal do dito de Hoge sociais a partir da relaco entre identidade pessoal ¢ coletiva ameagada e luta por reconhecimento, propondo uma concep- do normativa da vida boa a partir do vinculo interno pleno ¢ nio distorcido entre identidade pessoal e reconhecimento ‘em diferentes dimensGes. Isso ser realizado em seu principal livro, Luta por reconhecimento; no qual Honneth elabora siste- ‘maticamente os fundamentos do que chama“uma teoria social comteornormativo”!*e“uma teoriacriticadasociedade”"Em linhas bem gerais, ele apresenta uma teoria que pretende ser, ‘a0 mesmo tempo, tebrico-explicativae critico-normativa. *propésito explicativo” bésico é 0 de dar conta da “gramatica” dos contlitos e da “ldgica” das mudancas sociais, tendo em vista 0 objetivo mais amplo de “explicar a evolugdo moral da sociedade”.” © lado “critico-normativo” consiste em fornecet um padrao para identificar patologias sociais eavaliar osmovi- ‘mentos sociais (seu caréteremancipatério ou reacionério), para distinguir“a fungio quedesempenham parao.stabelecimento de um progresso moral na dimensao’do reconhecimento”.” Esse padrao critico-normativo € formulado por Honneth em “uma concepsao formal de vida boa, oumais precisamente, de cticidade’."*Nesse sentido, compartilhao propésito original da tradicio da teoriacritica de diagnosticaras patologias sociaise ‘os elementos emancipatérios na realidade social. % Honmeth, Axel. Luta por reconhecimento,op.citp.23. idem, p.24, "© thidem,p. 125. Aparentemente Honneth parece usar os termos “gra _mitica”e"1égica” (0 primeiro nos remete a Wittgenstein €o segundo ‘a Hegel) de modo intercambisvel © idem, p.265. Tider, p.270. 4 Ingo ‘Toda a primeira parte do livro consiste no exame e na reconstrugao do desenvolvimento do jovem Hegel (escritos de Jena), isto é,limita-se & fase anterior a Fenomenologia do esptrito, livro no qual Hegel teria abandonado sua idéia ori nal de construir uma teoria social com base numa explicasio intersubjetiva da luta por reconhecimento em favor de uma filosofia do “espfrito absoluto”. Os escritos de juventude de Hegel fornecem um grande potencial de inspirasao para a re- construgio do conceit de uma luta moralmente motivada. A reconstrucio da argumentacao de Hegel conduz distingio de trés formas de reconhecimento que contém em si respectivo potencial para uma motivagao dos contlitos, servindo, desse ‘modo, ao propésito de encontrar uma mediacéo necesséria bbaseada na agéo e no conflito sociais. Honneth encontraem Hegel trés dimenses doreconheci- ‘mento distintas, masinterligadas. A primeiradimensio consiste nas relages primdrias baseadas no “amor” e na “amizade”,e dizrespeito a esfera emotiva, em que permitido ao individuo desenvolver uma confianga em si mesmo, indispensével para seus projetos de auto-realizacao pessoal. A segunda dimensio consiste nas relacdes juridicas baseadas em “direitos”. Trata-se daesferajuridico-moral,em que apessoa é reconhecida como auténoma e moralmente imputavel ¢ desenvolve sentimentos de auto-respeito. A terceira ¢ iltima dimensio é aquela que concerne & comunidade de valores baseada na “solidariedade social” Honneth esté pensando, neste caso, na esfera da estima social, onde os projetos de auto-realizacio pessoal podem ser objeto de respeito solidério numa comunidade de valores. ‘A idéia basica da gramética dos conflitos sociais parece simples. Os conflitos sociais emanam de experiéncias morais decorrentes da violagéo de expectativas normativas de reco- nhecimento firmemente arraigadas em alguma das dimen- 15 Sofie de ntarinagi: una etal a Flas do et de Hegel s0es expostas acima, Essas expectativas formam a identidade pessoal, de modo que o individuo pode se autocompreender como membro auténomo e individualizado, reconhecidonas formas de sociabilidade comum. Quando essas expectativas sdodesapontadas, surge uma experiéncia moral que se expressa no sentimento de desrespeito. O sentimento de destespeito, por sua vez, somente pode se tornar a base motivacional de uma mobilizasao politica se for capaz de expressar um ponto de vista generalizavel, dentro do horizonte normativo de um ‘grupo. A seqdéncia formada pelo desrespeito, pela luta por reconhecimento e pela mudanga social constitui o desenvol- ‘vimento l6gico dos movimentos coletivos. Esta € a concep¢ao ‘que Honneth tem da l6gica moral e da gramética moral dos conflitos sociais, Em resumo, a idéia bésica é a de que senti- ‘mentosmorais, quando articulados numa linguagemcomum, podem motivar as lutas sociais. Mas qual 60 ponto de vista normativocom queHonneth pode avaliar as lutas sociais? A partir da dinémica social do reconhecimento, do desrespeito e da uta por reconhecimen- to, podemos extrair uma concepcdo formal de eticidade ou vida boa que serve como padrio normativo de justificagao da normatividade. Na esteira de Hegel, Honneth define 0 con- ceito deeticidade como o “todo das condigses intersubjetivas das quais se pode demonstrar que servem a auto-realizagao individual na qualidade de pressupostos normativos”* Esse conceito formal de eticidade pretende ser uma ampliagao da moralidade no sentido de integrar num mesmo quadro tanto a universalidade do reconhecimento jurfdico-moral da autonomia individual quanto a particularidade do reco- nhecimento ético da autorealizagao pessoal. Tal concepsio € "© thidem,p.271-272. 16 Indo definida por Honneth de modo abstrato o suficientepara no cair sob a suspeita de incorporar uma concepsao particular de vida boa, mas, ao mesmo tempo é uma estrutura que jé se encontra inserida nos contextos concretos. Pelo fato de a relagdo juridica ea comunidade de valores encerraremem si ‘© potencial de um aperfeicoamento normativo, a concep¢4o formal de eticidade fica limitada pelas situagdes historicas concretas: est4 sempre impregnada pelo nivel atual das rela- ‘gbes de reconhecimento reciproco. 0 Aquestio central do debate contemporineo sobreajustica consiste na fundamentacio de uma teoria da justica politica e social que seja moralmente justificivel. Nos termos em que 0 debate ganhou notoriedade,“liberais’,de um lado, e“comuni- taristas’ de outro, entendem que as normas que pretendem ser ‘moralmente justificadas sao designadas de justas” ou porque sio transcendentes ao contexto, no caso dos primeiros, ou porque sio imanentes a0 contexto, no caso dos segundos. Formulando tais posicées de uma forma bem geral, para os “iberais”trata-se de dar prioridadea uma concepcdo abstrata de pessoa’, desvinculando suas capacidades de agir de forma auténoma elivredos contextosedeterminacéeshistoricasespe- cificas que compdem sua identidade, Para que uma concepsao de justica possa fornecer principios e normas com pretensoes moraisde justica, € preciso limitar-sea uma concepgao“impes- soal” e“imparcial” de pessoa. é segundo os“comunitaristas”,a Para uma reconstrucio detalhada do debate sobre ajusticaentre“li- berais"e"“comunitarisas’conferir Fort, Kontexte der Gerechtghet. Frankfurt/M, Suhrkamp, 1996. 7 Safir de ndtrinai ua tai a Fld dit de eae justiga esté atrelada aos contextos da comunidade,oumelhor,& sua historia, tradigao, praticasevalores que formam ohorizonte ‘normativo paraa constituicio da identidade de seus membros ¢, por conseguinte, dos principios de justica. O debate entre ‘ambos os grupos no inicio da década de 1980 se caracterizou pelarigidez das distingoes:os"liberais’ pertencentestradigao kantiana, podiamser definidos como aqueles que'‘esquecem do contexto”;jé 0s “comunitaristas’, de tradicao hegeliana, como €05 que sio “obsessivos pelo contexto™” Ja desde o final da década de 1980 alguns autores pro- curaram articular o ponto de vista imparcial da justificacio normativa com as exigencias mais concretas de ancoramento dos principios de justiga, No interior das solugdes kantianas, ‘as quais sempre dominaram a pauta do debate sobre teorias da justiga, surgiam questdes que apontavam para uma sensi- bilizagio maior frente a contextos; ¢ aqueles “obcecados pelo contexto” passavam a admitir a legitimidade das pretensoes ‘universalistas da justica cuja justificagdo normativa implicava alguma forma de transcendéncia emtelacdo as determinagoes éticas. A entrada de Honneth nesse debate tem deser entendida como umatentativade oferecer umanovasolusio paraoimpas- seestabelecido, ou seja, articular simultaneamente uma teoria relacionada as préticas sociais e situagdes hist6ricas concretas sem cair no“relativismo” principal nome a compor o debate contemporanco de filosofia politica, e frente ao qual Honneth vai procurar se con- trapor com sua versio hegeliana de uma teoria da justice, €John Rawls.""Nesse sentido, torna-seimprescindivel apresentar,ainda © Cfidem,p.15. C&. Rawls, J. Uma teoria da justi. Trad. de Almiro Pisetta e Lenita ‘MAR Esteves. So Paulo, Martins Fontes, 2002. Ct. também Rawls}. 18 Inauo ‘que de forma introdut6ria, a intengio, os principais conceitose ‘modos de argumentagao presentesnafilosofia politica deRawls, com o intuito de contrastar sua solucao conceitual kantiana para o problema da justiga com a solugdo hegeliana proposta porHonneth, Rawls considera as idéias e objetivos centrais da sua teoria da justiga como eqitidade“como osde uma concep¢ao flosética da justiga para uma democracia constitucional’.A esperanca de Rawls “éa de que a justica como equiidade parega razodvele itil, ainda quendototalmenteconvincente,parauma grande gamade “orientagdes politicas ponderadase, portanto, expresse o nticleo comum da tradico democratica’.” Um dos pressupostos da teoria de Rawls é 0 de que tem de haver um vinculo neoessério ‘entre justiga ea estrutura bisica de uma sociedade democritica. Nesse sentido, uma dastarefas fundamentaisda filosofiapolitica Ebuscar fornecer uma base publica de justificagao para acordos politicos sobre as questées politicas fundamentais que dizem respeito aos direitose deveres dos cidadaoslivreseiguais unscom ‘osoutroscomomembrosplenos deumacomunidadepoliticaed Aistribuigao dosbeneficioseencargosresultantes dacooperaca0 social voltada para vantagens miituas de todos. & importante considerarque Rawlsnéo pretende elaborar uma concep¢aomo- ralabrangente da justica que seja aplicévela um amplo leque de questoes priticas, desde juizos morais quotidianosaté problemas ‘maisamplos da relagao moral, politica editeito. Seu propésito é ‘maislimitado: “o objeto primério da justica 6aestrutura basica da sociedade, ou mais exatamente, a maneira pela qual as inst- iberalismo politico. Trad. de Dinah de Abreu Azevedo Sto Palo, Atica, 2000. Rawls). "Preficio& edigao brasileira” in Rawls. Uma teoviadajustiga, op.cit, p.xit-xi. 19 Saint te ndtrinagi: wma etal Fld data de Hegel tuigées sociais mais importantes distribuem direitos e deveres fandamentais e determinam a divisio de vantagens decorrentes da cooperagao social” ‘Ateoria da ustiga de Rawls pretende fundamentarumcon- junto de principioscapaz de fornecer um ponto de vista comum. partir do qual reivindicagbes conflitantes dos idadaos possam. serjulgadas. A concepgio da justica como equidade oferece um padrao pelo qual sedevemavaliar osaspectosda estruturabisica ‘quando questées politicas fundamentaisestdo em jogo. Trata-se, portanto, de um padrao voltado paras as principaisinstituigdes, da sociedade, e apenas indiretamente para os individuos, na ‘medida em que estes vivem e levam adiante seus planos de vida sob as regras piblicas estabelecidas por aquelasinsttuigbes. O alcance imita-sea forma¢io de um juizo politicosobredoistipos de problemas, que se referem a duas“circunstancias da justia”: (a) questies de justica distributiva, que decorrem do problema da escassez: moderada e referem-se a0 modo de estabelecer os termos eqiitativos que determinam a partilha dos encargos beneficios decorrentes da cooperagao social. Estas questdes nao podem ser resolvidas pelo simples jogo do livre mercado, mas sim por meio de principios substantivos de justiga aplicados & estrutura bésica da sociedade; (b) questdes da tolerdncia que decorrem do fato do pluralismo das formas de vida culturais % Idem, p.8.0 conceito de estruturabisica¢, como reconheceo proprio ‘Rawls, um tanto vago. Nem sempre ica claro quaisinstituigSesouquais, de suas caractersticas deveriam ser incluldas, Numa definigfo aproxi- ‘mada Rawlsentende porinsttuigbesmaisimportantes‘aconstituigio politica eos principaisarranjoseconémicos sociais.A protegio legal da lberdade de pensamento de conscitncia, os mereados competi tivos,a propriedade particular no ambito dos meios de produgio ea farnia monogimicaconstituem cxemplos dasinstituigessociais mais importantes” Ibidem. 20 Intodbo ce dos planos de vida individuais. Os principios de justica sao necessérios nao apenas para especificar os termos eqtitativos de cooperagao social, mas também para especificar os direitos ¢ deveres dos cidadios, que, além de perseguirem interesses e pla- nos de vida diferentes, estio também profundamente divididos entre sipor uma diversidade de doutrinas flos6ficas,religiosas, moraise politicasabrangentes. ‘Aaposta de Rawls é que as idéias da moralidade politica liberal conseguem oferecer respostas mais aceitéveis para as questoes politicas fundamentais do que aquelas oferecidas pelo utilitarismo predominante na filosofia politica e moral moder- na. Em telagéo ao utilitarismo, a questdo fundamental para Rawls é afirmar a prioridade da justiga em face do bem. A tese Uimadasapresentagdesmscoerentesdetodaess problemticaencon- teasesempreem: Shlomo Avner Hegels Theorie desmodernen States, FranklurdM, 1976 (Shlomo Avineri, Hepl'sthoryofthemoder Sat, London, 1972). + Adependénciadaargimentaciogeralda Filosofia dodiretoemrlagio soconcitodeespiritopresupostofoitratada de modo prtcularmente convincentzedlaroporRalf-PeterHorstmana “Hegel, Georg Wilhelm Friedrich’ in Routledge encyclopedia of philosophy, org por Edward Craigt 2p. 259-280, rincipalmente p.273.ess). 49 ‘sir de ndteinai: uma etal Flas do rea de Hegel ‘vas para eu proprio conceito de'‘eticidade” permaneceu oculto por detrés dos elementos postos em diivida de sua metodologia edeseu conceito de Estado. Mas, se com essa caracterizacao ru- dimentar também é corretamente descrita, ainda que de forma aproximada,a situacao da obra luz da hist6ria de seus efeitos, entdo hoje toda tentativa de uma reatualizagéo renovada ja se colocadesde ocomecoem face da escolha entre duasalternativas: ouaquelas duas objegessdolangadasno caminhodiretodeuma critica em que, na forma de uma nova interpretacio do texto da Filosofia do direito, io desmascaradas como mera incompreen- siios ou a critica necesséria se realiza somente por meio de um caminho indireto,no qual éapontadaairrelevancia deambasas objegdes para aquela reapropriagio efetivamente produtiva da obra. Enquantoa primeira estratégia—chamada aquide“direta” ~teria como objetivo atualizar a Filasofiadodireito de acordocom. seuspréprios padroesmet6dicos,ecomisso reabilitar aomesmo tempo o conceito hegeliano de Estado, & segunda, isto é,3 forma indireta de reatualizagdo, se coloca um objetivo ainda mais mo- desto: deve-se mostrar que também se podem reconstruir hoje de forma produtiva o propésito eaestrutura basica do texto se tanto 0 conceito substancialista de Estado como as instrugdes ‘operativas da “Légica” ndo exercerem um papel fundamental. A ambas as formas de reatualizagao encontram-se ligados, como facil notar, os perigos que se opdem a cada caso: a primeica proposta de interpretagao correo risco de salvar a substincia da filosofiadodireito hegeliana ao prego de um retrocesso brutal de rnossos padres pés-metafisicos de racionalidade; assim comoa segunda eindireta forma de reatualizacio corresempreo perigo desacrificara pr6pria substincia da obracomoobjetivodeuma arrumagio entusiasmada do texto. Entretanto, apesar dessas apresentagoes extremamente sucintas, deveria estar suficientemente claro qual dessas duas estratégias considero mais promissora sob condigdes tebricas e normativas do presente; nemo onceitodeEstadodeHegel,nem 50 A rf drt de Hegel como ta tg seuconceito ontol6gico de espirito me parecemojepassiveis de serem de algum modo reabilitados. Poressarazdo, tenho queme contentarcomaformaindiretade reatualizagio desua ilosofiado direito. No presente ensaio, gostaria de propor um esbovo passo 1 passo de como a intencio fundamental ea estrutura do texto zo seu todo devem ser compreendidas, sem com isso precisar das instrugbes met6dicas da “Logica” nem da concepgio basilar do Estado; 0 objetivo desse modo de proceder “indireto” deve ser demonstrar a atualidade da Filosofia do direto hegeliana a0 indicar que esta, como projeto de uma teoria normativa, tem de ser concebida em relacio aquelas esferas de reconhecimento reciproco cujamanutencao €constitutiva paraaidentidademoral desociedades modernas. No entanto, estou consciente do perigo que poderia haver em tal proposta interpretativa ao se perder de vista,em todos 0s. cesforgos de atualizacao, a substincia propria da obra; nada seria pior do que apresentar, sob o titulo da Filosofia do direito, uma teoria da sociedade plenamente normativa a partir da qual se verificasse no fim que elaestava muito poucoligadaacomplicada discussio do texto de Hegel. Para evitar esse risco desagradével, gostaria de verficar primeiramente os dois elementos tebricos cuja considerago me parece totalmente necesséria para uma reconstrusio adequadae justa da obra, mesmo que isso devam cstarligadas dificuldades consideréveis de esclarecimento:trata- se,num caso, das rcas intuigdes que Hlegelligouao seu conceito de“espirito objetivo’, no outro caso, daquelas miltiplasrazdes que o levaram a adotar 0 conceito de “eticidade”. O primeiro conceito, sob uma desconsideragdo de sua vinculagio com 0 conjunto do sistema hegeliano, me parece coiter a tese de que toda realidade social possui uma estrutura racional, diante da qual se deve evitar conceitos falsos ou insuficientes que lever aconseqiéncias negativasno interior da propria vida ocial,uma vezqueestasencontramai umaaplicacio pritica;emsuma, Hegel 51 Sete de nding: restuaizao d lsfo dodo de Heat quer afirmar com sua representacaodasociedadecomo"espirito objetivo” que a violagao contra argumentos racionais, com os. uais nossas préticassociais sempreseencontraramentrelagadas num determinado tempo, causa danose lesoesa realidadesocial. O segundo conceito central, aquele de eticidade’, me parece a0 contrério conter a tese de que na realidade social, ao menos na modernidade,encontram-sedispostasesferas de acao nas quais indlinagdes enormas moras interessese valoresjése misturaram. anteriormenteem formas deinteracéesinstitucionalizadas;desse ‘modo, Hegel pode afirmar de forma conseqiiente que aquelas roprias esferas de agao receberam uma marca normativa no ‘onceito de “eticidade”, em vez de se ter buscado isso segundo ‘meios conceituais igados a uma orientagaonormativadosujeito na forma de conceitos moraisabstratos. Deambasas eses,ainda ‘queeutenha hes dado uma nterpretagao vaga, pode-sedizer,de ‘maneira valida, que tém de pertencer ao pr6prio micleo de uma reatualizacio indireta da Filosofia do direito de Hegel: dizem que «quem renuncia areconstrucio racionaldosconceitosdeespirito “objetivo” e de“eticidade” sacifica seu teor substancial em favor ‘de uma plausibilidade superficial do texto. Em particular, gostaria de proceder na minha tentativade reatualizagao,de al modo areinterpretar primeiramenteain- tengo fundamental da flosofiado direito hegelianae mostrar claramentea utilidadedesse texto sobas premissaste6ricasda discussao do presente na filosofia politica; tratar-se-4 acima detudo deum esclarecimento atualizador do pensamentoque Hegel exprime com sua formulacao dificilmente compreen- dida de que a “idéia” da “vontade livre universal” determina © Ambito total daquilo que devemos chamar de “direito”; ‘tentarei interpretar essa determinacéo como o micleodeuma teoria da justiga que visa & garantia universal das condicdes intersubjetivas de auto-realizacao individual (I). Em seguida, deve ser apresentado num segundo passo em que medida 52 Als do deo te Hee como ea austen Hegel liga de um modo imanente o projeto de sua teoria da justiga com um diagnéstico da patologia social; pois,comoo ‘icleo propriamente original da Filosofiadodireito,entendoa propostadeconceber ambos os conceitos de“direitoabstrato” ede“moralidade” como duas determinagves insuficientes da liberdade individual que no mundo da vida se exprimem em. ‘um “sofrimento de indeterminagao”; com isso, também terei de esclarecer nesse contexto em que medida Hegel atribui a0 projeto de sua teoria da justica a0 mesmo tempo o signi- ficado terapéutico de uma emancipagao dos fendmenos de sofrimento (II). No ailtimo passo, esclarecerei finalmente 0 conceito hegeliano de “eticidade”, no qual apresento as con- digdes complexas que aquelas esferas sociais, de acordo com sua convicgao, devem preencher na modernidade, possibili- tando assim a realizacio da liberdade individual; aqui devem tornar-se claros também os limites da abordagem hegeliana, nna qual noto uma representagio muito institucionalista das condigées de liberdade individual (111). 1, Aidéia da liberdade individual: condigdes intersubjetivas da autonomia Quando Hegel, apés sua nomeagao na Universidade de Berlim, deu continuidade as aulas sobre flosofia do dircito ja iniciadas em Heidelberg, para finalmente publicar no ano de 1820 um liveo intitulado Linhas fundamentais da flosofia do direito, naturalmente nao abandonou, apesar de sua arquite- tura sistemitica entao construfda, as intuiges fundamentais da flosofia pritica de sua juventude.*Sob o titulo de“espfrito + Para agtnesee 0 conceito da Filosofia do direito de Hegel, conferir 0 ‘timo artigo de Ludwieg Siep,“Vernunfirecht und Rechtsgeschicht, ‘Kontext und Konzept der ‘Grundlinien im Blick auf die Vorrede”, 53 ‘oie de indetoinai: uma retinal a Fido deo de ee objetivo’, tal como se chamava aquela parte de sua filosofia que tinha por objeto os principios normativos de uma ordem. social justa sob condigdes modernas, teve que seguir um cami- ho de fundamentagao bem diferente daquele que foi adotado por Kant ou por Fichte nas diferentes dedugdes do direito racional: primeiramente, em razao do fato de os sujeitos jase ‘encontrarem constantemente ligados em relagbes intersubje- tivas, uma tal justificacao dos principios universais de justia nao deve partir da representacdo atomista segundo a qual a liberdade dos individuos residia no exercicio tranquilo, e nto influenciado pelos outros, do arbitrio individual. Decorreu disso também, em segundo lugar, o objetivo, que se manteve igualmente inalterado, de efetuar 0 projeto de tais principios de justica universais como justificagao daquelas condigies sociais sob as quais os sujeitos podem ver reciprocamente na liberdade do outro um pressuposto de sua auto-realizacio individual. Além disso, em terceiro lugar, Hegel nao abriu mio das idéias de cunho aristotélico de sua juventude, segundo as ‘quais ais princfpios normativos de iberdade comunicativana sociedade moderna ndo devem estar ancorados em preceitos externos voltados para o comportamento ou em meras leis de coersdo, mas precisam estar attelados ao exercicio prético presente nos padrdes habituais de agdo e nos costumes, para ‘com isso perderem aquele resto de heteronomia; finalmente, ‘em quarto lugar, Hegel estava, entretanto, mais convencido do ‘que antes de que em uma tal cultura da liberdade comunica- tiva denominada “eticidade” teria que poder ser previsto um espago essencial para aquelas esferas sociais de agdo nas quis 05 sujeitos, sob condigdes do mercado capitalista, pudessem in Sep, L. (org). Grundlinien der Philosophie des Rechts, Berlin, 1997 (Rlassiker Auslegen, Bd.9),p.5-30, 54 Als do eo de Hegel ono toa dustin perseguir reciprocamente seus interesses egofstas.‘ Hegel nio queria se separar de nenhuma dessas quatro premissas ~ que em geral provinham da criativa fase inicial de seu tempo em Jena —quando, em Berlim, se ocupou com os planos para uma publicagao de sua Filosofia do direito; por outro lado, porém, a elaboragdo deseu sistema filos6fico esse periodo desenvolveu- se de um modo tio independente que em geral nao é possivel perceber como asintuigSes originais puderam semanter vélidas sem alteragoes nesse novo espaco. A solugdo que Hegel encon- trou paraatarefa esbocadaem seutrabalho naotornasomente compreensivel a intengao central de sua filosofia pratica, mas esclarece ainda melhor tanto o ambito do conceito de direito tomado por base como também a construgao, a primeira vista confusa, do texto como um todo. ‘Coma elaboracdo de seu sistema, Hegel, desdea despedida de Jena, teveaidéia de que aquela disciplina consagrada moral ao direito tem de corresponder parte de sua filosofia que de- veria ervird apresentacdo do espirito objetivo”; ditodemaneira simplificada, ao fazer isso ele compreendera aquela parte deseu empreendimento filoséfico que tem de reconstruir 0 processo de auto-reflexdo da razdo durante a etapa na qual esta,na forma do espirito humano, se realiza nas manifestagdes exteriores das instituigbesepraticas sociais”A distancia entreessaformulac30 eas arefas que normalmente ligamos a disciplinas como a ética ‘ota ilosofia moral vai diminuir sensivelmenteseconsiderarmos ‘uma outra determinagao com que Hegel disposaquelaesferado “espirito objetivo”;épreciso terem vista obretudo adificuldade que se cria ao incluir com a caracterizacao objetiva um amplo « Sobre essa quarta premissada losofiapritica do jovemHegelcf Axel Honneth, Kampfum Anerkennung, Frankfur/M, 1994, cap.12. > Para uma melhor determinagio do lugar da Filosofia do dieito na coms- trugfo do sistema, cf Horstmann (ver nota ),p.274ess 55 ‘Siero de neering: uma retuizati a Flos do eto de Hage elemento hist6rico no sistema, que em geral deve expor a auto- reflexdo da razao. Hegel comenta que quando aquela forma do espitito realiza a razio no mundo objetivo das instituicées sociais,ela,sob as condigdes da modernidade, possuia formada “vontade livre universal”; com isso, impée-se para Hegel como determinagio mais geral de sua filosofia do “espirito objetivo” ‘0 fato de esta ter de reconstruir sistematicamente aquele passo necessario que exige que a vontade livre decada um doshomens se realize no presente.* Ora, a partir daqui ja nao ¢ tao dificil ver nessa parte do sistema hegeliano o interesse pela disciplina filos6fica 8 qual normalmente foram atributdas classficagoes ‘como “filosofia do direito” ou também “ética”; e ao se desligar dovinculo como todo do sistema € possivel fazer uma descric30 da teoria concebida desse modo nio somente compardvel com asfilosofias da moral edo direito contemporineas,mastambém coms concepybes de justica do presente. ‘Tal como foi dito acima, Hegel concebeu como principio fundamental de sua Filosofia do dieito a idéia davontade livre "universal"; com isso, e em acordo com Rousseau, Kant e Fichte, parte da premisse de que, sob as condigdes do Esclarecimento ‘moderno, todasas determinagoesmorais ou juridicass6 podem ser corretamente consideradas na medida em que exprimem a autonomia individual ouaautodeterminagaodoshomens. Uma talcomparagao fica mais dificil quando Hegel, por meio de uma * Paraumesclarecimentodaintensdogeralque Hegelligouasua Fibsofia do dircit,f Kenneth Westphal, “The basic context and structure of Hegel’ philosophy ofright!in: PrederickC. Beier (org). The Cambridge Companion to Hegel,Carbridge entre outos),1994,p.234-269;Siep, “Vernunitrecht und Rechtsgeschichte”(vernota 5); Katl-Heinz king, “Die truktur der Heglschen Rechtsphilosophie’ ins Manfred Riedel (org. Materialen2ur HegelschenRechsphlosophie, Bd. 2, Frankfurt! M,1974,p.52-78, 56 Ales do deo Hegel oma tov da ustgn mudanga de suas consideragdes sistemiticas, descreve a pers- pectivasoba qual aquela“vontade livre” deve ser examinada;na conhecida formulacdo do § 29 da Introducao, diz que sua tarefa reside na apresentacao da existencia (Dasein) da vontadelivre’, namedidaem queela determina igualmente aesferado'direito” como um todo. Se comparada com as abordagens anteriores, nessa caracterizacio quase tudo é, primeira vista, confuso; claro que, até certa medida, para a compreensio do conceito de“existéncia’, ajuda a referencia de que se deve tratar aqui das condigoes sociais da realizacao da “vontade livre” no sentido da determinacio do“espirito objetivo’, porém permanece sem uma resposta exata a questdo de saber em que medida pode se tratar nesse caso dealgum tipo de justificacao normativa.S6 se poderé cexigit um esclarecimento maior sobre isso quando a utilizagao hhegeliana do conceito de“vontade live” for melhor elucidada; pois desde 0 comeso ele se familiarizou comessacategoria chave de sua Filosofia do direto, que de certo modo também o distan- ciou ainda mais de Kant ou Fichte, ou seja, trabalhou com uma primeira parte daquelasintuiges que nao foram abandonadas ‘equeestavam de acordo com sua fase anterior. Em sew esclarecimento categorial do conceito de“vontade livre”, que constitui a maior parte de sua Introducio a Filosofia do direito, Hegel discute as idéias modernas da autonomia individual ou autodeterminacio,’ Segundo sua interpretacio, apenas duas concepdes igualmente incompletas conservaram. até agora, no tratamento filos6fico, esse ideal normativo: de um lado, a autodeterminagdo individual foi concebida como * Umpanoramaprimorososobreaformasao da idéiamodernadaauto- nomia foi oferecido por J.B. Schneewind, The invention of autonomy, (Cambridge, 1998;contudo,essareconstrugio te6rico-histricatermina ‘com Kant. 37 Salient de indeterinagi: una reat 6 Fz do deo de Hee individual se limitam ao direito de, conforme os préprios inte- esses, fazer aquilo que ndo 6proibido no mbito da ordem juri- dca; em outras palavras, para a realizacao da prépria liberdade, nadamais énecessério sendo um conjunto dedireitos subjetivos ue proporcionem ao individuo uma multiplicidade de opgdes possiveis de aco, Hegel nao havia somente levantado contra este modelo a objesio de que com isso jf se pretende afirmar conceitualmentea possibilidade de utilizara liberdade do outro comoum simples meio paraa préprialiberdade;nio,suaobjecao central dizia que, segundo uma tal concepgéo,é completamente irrelevante para 0 conceito de liberdade individual aquilo que sempre se entendia como meta de uma agio livre. Ora, esse foi ‘erro essencial que Hegel alega como sendo a razao decisiva para sedirigitao pontode vista moral nosegundo capitulo; poisaqui, naidéia da autonomiamoral,aliberdade individual éexplorada recisamente pelo outro lado, na medida em que s6 vale como asio livre o queé resultado da autodeterminagdo racional. Hegel € claro ao mostrar que apenas com essa idéia da autonomia moral a dimenso que cabe A liberdade individual €percebida como aquela que corresponde a relagio do sujeito consigo mesmo} por isso, logo no comego do capitulo sobre a “moralidade’,no Adendo ao 106, também seafirma oseguinte: “Nao dizia respeito ao direito estritoo que era meu principioou minha intengio, Essa questao sobrea autodeterminacio oumo- tivodavontade,assim como que cabeao propésito, vem atona aquisomenteemrelagiod moralidade” Nesse sentido, Hegelquer dizer queaesfera da moralidade,aonoschamaraatengioapartir de dentro, nos revela também que sempre temos de conceber a liberdade como uma forma especifica de auto-relagdo: apenas quando um sujito de fatoavalia reflexivamente como deveagir, Podemos entio falar propriamentedeliberdadeindividual.Com isso jf se esbocou no essencial o que Hegel em seguida entende 92 0 vino ene nr justine dagnsticn de po como o valor da autonomia moral para o proceso de auto- realizacio individual como um todo: nessa esfera esta contida aquela atividade de avaliacio reflexiva que cada sujcito deve ser ‘capaz de empreender em face de si mesmo caso queira conceber suas atividades einteragdes como expressdo da liberdade; desse ‘modo, pertence as condigdes de auto-realizacio individual 0 direito ~ entendido aqui num sentido mais amplo — de tornar © consentimento para com as priticas sociais dependente do resultado obtido por meio da avaliacio feitaaluzdeargumentos racionais. Naturalmente resulta dessa determinacio a conse- ‘iiéncia de realizar toda sua reflexio posterior supondo que ela pode encontrar o assentimento racional de cada membro das. sociedades modernas;mas, por outro lado, isso também significa para cle apenas tornar explicitas as pressuposigdes que desde 0 inicio estavam contidas em seu conceito de “espitito objetivo’. Se com essas poucas palavras foram esbocadas a8 raz6es plas quais Hegel atribui& esfera moral um valor, um direito de cexisténcia,é verdade que nada se disse ainda sobre as condigbes realmente completas da liberdade individual; ¢ com isso coloca- se primeiramente a questdo que Hegel procurou responder com sua conhecida critica Kant coma finalidadede indicaros limites do ponto de vista moral” Nosso autor aproxima-se do seu tema » Dagrande quantidadedeliteraturasecundsriasobreotemacitoapenas (0s textos que foram de grande ajuda para a minha prépriaproposta de interpretagdo Allen Wood, “The emptiness ofthe moral will’ in ‘The Monist,72 (1988), . 3, p. 454-483; Sally 8. Sedgewick, "Hegel's critique ofthe subjetive idealism of Kant’ ethics’ inJournalofistory ‘of Philosophy, 26 (1988). 1, p. 89-105; Andréas Wildt, Autonomie ‘und Anerkenrung, Stuttgart, 1982, cap. I Parece-me importante ver ‘0 paralelos entre a critica de Hegel ao vestigio mentalista da teoria ddo conhecimento kantiana e sua critica da moralidade: em ambos os ‘easos me parece que Hegel quer argumentar que em Kant éabstraido 93 Seino de neterino: uma eta a Ff do ta de Hoge ‘namedida em queamplia categoricamente o conceitodeacioin- tencionalde uma forma progressiaatéchegar ao pontoemqueo mperativo categérico emerge como principal motivo;aqui,neste nivel, uma agdo vale como livre somente se resultar da aplicagio do princfpio de universalizagéo. Das diversas formulagdes que resumirama objec de Hegel contra umattal concepcao deliber- dadeindividual, apenas uma meparece realmente apropriadapara determinaro ponto digno deser considerado, justamente por ser © mais importante; trata-se da objegdo contra a cegueira em face docontexto,quecertamente implica umatransigio espectfcapara ‘queo significado transit6rio doargumentopossasercorretamente ‘compreendido. £ conhecido fato de Hegel objetar,contraaidéia

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