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‘© que significa «Estetica», trad. R, P. Cabral 1 Jacques Ranciére O que significa «Estéticn» Gostai ver, esta nogdo envolve uma certaidcia do QI, opde-se a tendéncia do pensamento anti-estética que tem preponderado no de apresentar a minha concepgao do que significa cestéticay, Como se mundo ocidental ao longo das duas ultimas décadas. Esta critica da tradigio estética apresenta dois aspectos contraditérios. Por um lado, assume o caricter de uma rejeigdio da tradiglio «modemistay. Com efeito, no inicio da década de 1980 assistimos & afirmasto de un QTE TTT que veio romper com a ideia da autonomia da arte e com a crenca no poder subversivo da arte auténoma, uma posigdo que foi resumida num volume de ensaios editado pelo historiador da arte americano Hal Foster sob 0 emblematico titulo The Anti- Aesthetic. E@@rejeicao do ideal modemista conduziu a uma critica mais argada de toda a tradicio estética inaugurada pofRAHRESEUSSEBUIGOFES, A solutizagao da arte e do juizo estético foi denunciada a partir de uma rspectiva sociolagica, bem como filoséfica. Do ponto de vista sociolégico, 0 livro de@PREHENBOUFGIER, La Distinction: Critique sociale du jugement "contestiva idea kaniana do caricter adesinteressadon do juizo esttico acordo com Bourdieu, 0 gosto de cada classe social & determinado pelo s (@{YO juizo desinteressedo do belo constitui uma ilusio filosofica que ocult realidade do gosto «refinado» daqueles que possuem@IGapHAICURUED> «I hes permite supor que(@lSSGlBOst0 esta acini is Wiferenipas|aS|eIaES®) Porém, © caso destes nao deixa de confirmar a regra de que os juizos de gosto sao, na realidade, (GRE. Do ponto de visia filoséfico, a critica da «especulacao estética» foi sobretudo realizada por filésofos analiticos. Numa obra intitulada ddiew a Vesthétique, 0 filosofo francéfono Jean-Marie Schaeffer opés a analise concreta de praticas artisticas e atitudes estéticas is insuficiéncias da tradigao estética especulativa emblematizada pela Filosofia da Arte de Schelling ¢ as Ligdes de Extética de Hegel. Esta contestagio da «absolutizagao estéticay esta em sintonia PROJECTO PROJET PROJEKT YM QO PRO. kkyM 2011 a «Estetican", trad. R, P. Cabral Jacques Ra Fe, "0 que sign com a denincia das vanguardas artisticas que tem no pensador alemao Boris Groys um dos seus principais porte-vozes. Groys acusa a vanguarda de preparado o caminho para 0 totalitarismo através do seu ideal de identificagi (GRRSRAEIEMA e da sua aspiragao 2 uma arte total que acabaria por encont expressio na arte total das paradas militares estalinistas, Se, por um lado@@@MOSMMeHUAGa da estética. A critica de Bourdieu (@GBAB Por iconoclasta que possa parecer, esta critica esta em conformida com a tradi¢ao do regime ético que atribui a cada classe social modos prop! de ser, sentir © pensar, uma tradigiio cuja formulagao filosofica remont (GQPTAMEPARB0. Nesta Republica, do mesmo modo que cada parte da al desempenha a sua propria fungi, cada individuo tem 0 seu «papel» a cump que consiste em governar ou ser governado. Nos tempos modemos, esta Jéxima alimentou uma preocupagao obsessiva entre as classes dominantes ianto ao perigo das classes baixas poderem ser corrompidas pela apropriagao gostos © aspiragdes desadequados & sua condigdo. Esta concepgao de comunidade como estrutura estével onde os grupos se caracterizam pelo lugar que ocupam, a fungae que desempenham ¢ o modo como se adequam a esse lugar © a essa fungi, constitui aquilo a que eu chan GRRE Pare mim, a Policia nio design a parte do aparelho estatal dedicada a repressao, lugares ¢ identidades implica ainda uma distribuigao do visivel, do audivel ¢ pensivel marcada por uma separagdo clara entre 0 real ¢ 0 ficcional, 0 sivel € 0 invisivel ¢, finalmente, 0 possivel ¢ 0 impossivel. Em contrapartida, a logica da politica ¢ caracterizada pela exisiéncia de um elemento suplementar, elemento esse que extravasa a contagem das partes, lugares e identidades. A acgo politica vem baralhar a distribuigdo desses lugares e dessas identidades, bem como a definigio do visivel, do audivel e do possivel. Através dela, KKYM 201 Jacques Rarciére, "O que significa «Estéticay", trad R, P. Cabral 8 aqueles que estavam condenados a uma existéncia obscura ¢ condicionada pela necessidade tornam-se visiveis enquanto seres falantes e pensantes; e aquilo que até entdo era entendido como mero ruido dessa existéncia obscura torna-se ydivel enquanto discurso. A isto chamei «a parte daqueles que no fazem arte». Foi com base nesta ideia que me propus repensar a nogio de Jemocracia, A meu ver, @RpOVONO Seo Ma demoeRtci © referido suplemento; é este que exprime a capacidade de «qualquer um», a a, € este que encarna capacidade dos «incompetentes», capacidade que se situa para além de toda qualquer prerrogativa baseada na posse de uma habilitagdo especifica: nascimento, riqueza, ciéneia, ou outras. Ora, aquilo que Kant propde na sua analise estética do palicio é um «suplemento» do mesmo género. Ele considera 1¢ a apreviagdo dos edificios desse tipo envolve normalmente dois critérios: © itério intelectual do bom ¢ 0 critério sensorial do aprazivel. Esses dois térios envolvem trés relagdes hierirquicas: primeiramente, 0 critério telectual opde © conhecimento a ignorincia; em segundo lugar, o critério nsorial ope os sentidos e gostos refinados aos sentidos e gostos da plebe; por |, © critério intelectual opde-se ao critério sensorial. Contudo, a anilise kantiana da relevo a um terceiro clemento((@jUizoRSi ASE SIbSRENEIO) "miem a0 eritério intelectual nem ao sensorial. |: um elemento suplementar, um GROOM ieraruTERYAAS ACHIAAMEs. Este suplemento neutraliza as trés ae hierérquicas e define uma nova capacidade que & a capacidade de jos e qualquer um (GaeejeomunyyaHdagENte: eis a ligio que um outro pensador, Schiller, retira da Critica de Kant ¢ desenvolve nas suas Cartas sobre a Edueagdo Estética do Homem, Estas cartas foram publicadas alguns anos apés a terceira Critica de Kant, durante a Revolugao Francesa, e dio testemunho de um sentimento de desilusio relativamente & prometida liberdade republicana, Na perspectiva de Schiller, a Revolugo Francesa fracassara ao pretender erradicar por via da lei e do poder do Estado formas de desigualdade e de sujeigao que eram inerentes a0 fundo da experiéncia sensivel. Assim, 0 pensador desenvolveu uma nova PROJET PROJEKT YM AGO PROJECT kKyM2011 Jacques Ronciée, "O que significa «Eetétican", trad RP. Cabral promess de iberdade de iqualdade bases no sgiiado da experiéns GSW schitler transforma o@HVREFOLOD das faculdades de Kant em algo a que chama o@M PUSS UGEOSpY ejeitando a oposigao entre o «impulso formal» activo e 0 «impulso sensivel» passivo, Para este pensador, «o homem s6 & humano quando jogar. O impulso lidico é a capacidade de jogar com a aparéncia enquanto tal, capacidade essa que elide a hierarquia tradicional da forma ¢ da matéria, da actividade ¢ da passividade, dos meios e dos fins, Todas essas oposigdes «intelectuais» eram também oposigdes sociais que distinguiam duas espécies no seio da Humanidade: por um lado, o homem de acgo, capaz de perseguir grandes objectivos e de dar forma material as suas as rages; por ‘outro, 0 homem passive, condenado a esfera material da mera sobrevivéncia. Pelo contrario, a capacidade estética ¢ partilhada tanto pelo amante da arte extasiado perante as antigas estatuas de deuses como pelo primeiro selvagem je decidiu adomar-se. A experiéncia estéiica define um potencial de manidade partilhada que permite o desenvolvimento e langa os fundamentos ra_uma forma de comunidade sensivel que transcende a comunidade terminada pela lei e pelo poder estatal A anilise de Schiller poe em destaque uma questo importante contraria a maioria dos discursos sobre a modemidade e a autonomia artistica Aquilo que o regime estético da arte autonomiza no é a obra artistica ou 0 poder do artista, (iS\SiiijuinilinGdOleSpesihiCOMMEVENPERENCIA)A experiéncia estética constitui a esirutura no seio da qual as formas de arte sio percepcionadas e pensadas; porém, o seu alcance ultrapassa em muito as fronteiras da arte. Envolve 03 diversos modos de experimentar um mundo sensivel, que ja nao esta limitado 20 necessario e ao itil, nem é estruturado pelas hierarquias do bom e do aprazivel. GRRMCIaleapacidadelestenca forma um mundo de experiéncia possivel que transcende a distribuigio licial dos corpos ¢ das formas de ver, sentir © pensar tidas como propriadas» a condigao de cada um. Este esbater de fronteiras constitui um elemento essencial em todas as formas histéricas de emancipagao individual e colectiva dos que viviam enredados apenas num mundo sensivel ~ 0 mundo itario do trabalho arduo ¢ da nevessidade, No meu livro La Nuit des TO PROJET PROJEKT YM QO PROM kkyM 2011 Jacques Rancére, que significa «Estéticay" trad. R, P. Cabral 0 prolétaires, tentei mostrar como a emancipagao social teve origem numa for de subversio estética: surgiu com a apropriagao pelos membros das «class baixas de formas de experiéneia, percepgtio € linguagem que nao er consideradas adequadas sua condigao, isto 6 4 condigéo de wsubaltemo: Assim se explica 0 facto de podermos encontrar uma ilustragao directa colhar desinteressado» que Kant langa ao palécio num texto publica cinquenta anos mais tarde, durante a revolugao de 1848, O texto descreve 0 de trabalho de um marceneiro que esté a assoalhar uma casa rica, em benefict do proprietério do seu patrio: Sentindo: ‘se como que em casa, ele vai-se deleitando com a devoragio de uma sala cenquanto vai assentando o soalho, Se a jancle dé para um jardim ou para um pitoreseo horizonte, por momentos baixa os bragos ¢ na sua imaginaydo atravessa a ampla viste, para a apreciar melhor do que os donos das residéneias vizinhas.' Este texto nada tem a ver com arte, Contudo, aborda uma questao essencial da andlise kantiana: a capacidade de olhar cdesinteressadamente> um espago, que € 0 do trabalho arduo e da propriedade. Acontece que este «desinteresse» no & falheamento do esteta, indiferente a vulgar realidade social. Pelo contrario, implica uma ciso no seio da realidade social: a dissociagdio entre a actividade ‘anual do trabalhador, que ¢ determinada por constrangimentos sociais, ¢ a ctividade do seu olhar, que se auto-emancipa, chegando a apropriar-se da rma de poder inerente ao olhar perspectivo. Esta dissociagaio contraria a distribuigao policial dos modos de sentir considerados adequados ao lugar, 4 fungio e a identidade do trabalhador Dé forma 2 um novo como de trabalhador, ja ndo adaptado aquela distribuigdo. O texto citado nao fala de arte nem de politica, mas de algo que constitui a base comum da experiéncia estética € da acgo politica — aquilo a que eu chamo a distribuigao do sensivel, ou seja, a stribuigao do visivel, do dizivel © do pensavel por meio dos quais os seres manos se interligam numa comunidade, a distribuigao das capacidades ¢ \capacidades atribuidas aos elementos que se encontram aqui ou acolé numa munidade, Assim, nao é por aceso que este texto surja num jornal dirigido ao " Gabriel Gauny, «Le Travail & la tiche», in Le Philosophe plébéien, p. 45-46 CTO PROJET PROJEKT YMAQO PRO. KYM 2011 Jacques Ranciée, "O que significa «Estetican", tad RP roletariado revolucionario durante a revolugdo de 1848, Aparentemente, a fonquista de uma voz colectiva por parte do proletariado dependia da issociagdo «estéticay de uma cera identidade dos trabalhadores — mais recisamente, da identidade considerada «adequada» & sua condicio subalterna ara esses trabalhadores, a questo fundamental nao era a de compreender as jausas da exploragio que sofriam, mas a de inventar um novo corpo, um corpo aquilo que tornou possivel a criagio je um corpo destinado & luta colectiva foi a possibilidade de exercitarem, no r6prio espago da exploragdo, um olhar livre e «desinteressado» Assim, 0 que parece ser uma caracteristica do regime estético da arte é um elo paradoxal entre a indiferenga estética e o potencial politico. Na ldgica ética e representativa existe a suposiggo de uma ligagio directa entre a representagio poética ou visual e um determinado efeito produzido sobre os leitores, a audiéncia ou os espectadores. No teatro classico, esperava-se que a representagdo dos vicios incentivasse as virtudes opostas no espitito dos espectadores. Ainda hoje, espera-se que a representagdo de violéncia, guerras, massacres, etc., inspire em nos um sentimento de aversio & guerra, a0 imperialismo ou ao fanatismo; e € suposto que a parédia artistica da cultura do consumo nos resguarde contra as sedugdes da mesma. Porém, o regime estético tem, desde o inicio, questionado a ideia de tal conexdo directa, Em contrapartida, a ideia schilleriana da «educagao estéticay do homem afirma potencial emancipatério que a experiéncia estética encerra, precisamente com base na rejeigdo de quaisquer tentativas de transmitir uma mensagem ou de incentivar determinadas teacgdes ¢ atitudes nos espectadores No texto que citei, a emancipagao do trabalhador comega com a capacidade estética de um «olhar desinteressado». Tal paradoxo nao é algo do passado. Gostaria de o ilustrar com © exemplo de uma experiéncia artistica ¢ politica que um grupo de artistas tem levado a efeito num dos subirbios mais pobres de Paris, um desses subuirbios maioritariamente habitados por trabalhadores migrantes e marcados por todas as formas de destituigao social e tensao racial, € onde ha alguns anos se verificaram tumultos violentos. Com efeito, actualmente estiio em curso numerosos projectos artisticos que intervém JECTO PROJET PROJEKT YMA QO PROJECT KKYM 2¢ Jacques Ranciée, "O que signifies trad RP. Cabral 12 em bairros considerados «dificeis», Mas 0 modo como este projecto particular aborda a questo parece-nos paradoxal, Em muito daquilo que lemos € ouvimos sobre a «crise» dos subuirbios refere-se a perda dos «lagos sociais» provocada pelo individualismo de massas, bem como a necessidade de reconstituir esses ‘mesmos lagos, Porém, o projecto artistico a que me refiro, encara estas questdes de forma muito particular, ja que propde a criagio nesse subtirbio problematico de um espago «extremamente initil, fragil e nao produtivo»? A discussio deste espago estava aberta a quem assim o desejasse de entre os habitantes locais e 0 ‘mesmo seria entregue a tutela da comunidade. Mas seria utilizado com um fim especifico: o isolamento. Ou seja, o espago era concebido ¢ implementado como um lugar a ser ocupado por uma s6 pessoa de cada vez, com vista a meditagdo e contemplagao solitarias. Isto porque o elemento que falta na vida quotidiana destes suburbios € a possibilidade de se estar so — logo, a possibilidade de uma comunidade baseada na liberdade e nao na necessidade. Eis a razio pela qual 0 projecto se intitulava Lu ¢ Nos. Nao é dificil traduzir estes termos no seu equivalente filosofico — refiro-me, nomeadamente, a niversalidade do juizo estético de Kant. O ponte fuleral do projecto era romper om a normal distrib lades io das formas de experiéncia sensivel e das capa incapacidades que as mesmas implicam. Num filme relacionado com projecto, edia-se aos habitantes do bairro que escolhessem uma frase, a qual era entio ipressa na T-shirt que envergavam diante da camara. Deste modo podiamos. reconhecer um inesperado admirador de Kant ou um apreciador da beleza do por-do-sol. Mas concentremo-nos numa das frases escolhidas, através da qual uma mulher dava a sua propria versio dos objectivos do projecto: @QUERSTEA «Preeacher um mundo vazio»: eis, de facto, uma formula extremamente sugestiva ouvidos dos franceses, a frase poderi evocar também 0 ultimo verso do refrio da Internacional, que diz: «Nous ne sommes rien. Soyons tout.» («Nao somos nada, Sejamos tudo.») Do mesmo modo, os leitores franceses poderio Para mais informagtio pode ver-se hitp:/Avww.evensfoundation.be/, JECTO PROJET PROJEKT YMA QO PROJECT KKYM 2¢ vacqu jere, “O que signiica «Esteticay”, trad. R, P. Cabral 13 identificar na mesma frase um eco do mais célebre personagem literdrio francés, Madame Bovary, cuja desgraga é causada pelas suas tentativas para experimentar na vida real a verdade de algumas palavras que tinha lido nos livros, tais como «felicidader, «éxtase» € «paixtion, Mas podera evocar ainda 0 propasito do autor do romance, Gustave Flaubert, que pretendia escrever um irtude da sua escrita. livro sobre nada, um livro que valesse apenas pela Devido a semelhante propésito, Flaubert foi considerado 0 paladino da «arte pela arte». Acontece que, desde o inicio, a histéria de Madame Bovary ~ a filha de um camponés que deseja viver aquilo que as palavras dizem - foi denunciada como o triunfo da democracia na literatura, Alias, a autonomizagio da «pura literatura» seguia a par e passo com a reviravolta estética implicada por esse desejo da filha de um camponés de introduzir a arte na sua vida. Para se compreender o que significa «estética», é preciso procurar definir a rede de conexées que interliga todas essas formulas, todos esses modos de preencher mundos vazios. Para tanto, ha que pdr de lado as obsoletas e inconsistentes oposigdes entre sofisticagdo estética e realidade social, arte pela arte ¢ arte comprometida, cultura erudita e cultura popular, etc, etc. Inerente 4 «subversio estéticay ¢ a ruptura de qualquer relagao directa entre as formas de produgio artistica € 0 efeito que as mesmas possam exercer sobre os espectadores ou leitores. Inerente 4 mesma é ainda a tensio entre a autonomizacao da experiéncia estética e a elisio da fronteira que separa os temas dignos ou indignos de representagao artistica e os piblicos capazes ou incapazes de os apreciarem, Se queremos compreender essa tenso fundamental, temos de questionar uma série de conceitos que prevalecem na reflexdo histérica sobre a pratica artistica. E certamente o caso de conceitos como modernismo e pés- modernismo. Na tradigao ocidental, 0 modernismo artistico tem sido sobretudo definido como uma ruptura com a arte representativa, Mas © conceito de arte representativa tem recebido uma definigao demasiado estrita, que @ identifica com a figuragio pictérica, Esta definigao tem sorvido de base so paradigma de uma revolugio moderna anti-representativa, que rejeita a tarefa de contar PROJECTO PROJET PROJEKT YM@ QO PRO. T kvm Jacques Ranciéve, "O que significa «Estéticen", trad R. P. Cabral 14 historias ou de representar personagens para se concentrar na investigagio sistematica dos materiais e instrumentos especificos de cada arte. De acordo com este paradigma, Kandinsky, Malevitch e Mondrian iniciaram a modernidade pictérica ao virar costas a figuragao, Schonberg inaugurou a modernidade musical ao por de lado @ tradigao expressiva em favor da linguagem dodecafénica; Mallarmé opds a linguagem comum da tribo a inguagem intransitiva do poema, ete. A partir deste ponto, alguns autores identificaram a modernidade com essa autonomizagao da arte em geral e de cada uma das artes em particular, em relagdo as outras artes, a linguegem da comunicagaio e as imagens da cultura comercial, ao passo que outros procuraram associar a autonomizagao da arte & emancipagao so% ¢ politica, opondo a autonomia artistica a estetizacao da vida quotidiana e da cultura do consumo, Outros ainda associaram a concentragao da arte sobre os seus proprios materiais ao materialismo marxista. Assim se explica que o modernismo de Clement Greenberg da década de 40 ou a teoria estruturalista dos anos 60 tenham procurado estabelecer um paralelismo entre a autonomia artistica e a politica emancipatéria, Nos anos 80, com 0 refluxo da maré, este quadro de andlise sofreu uma completa reviravolta. Os quadrados brancos e negros de Malevich ja nao eram precursores da revolugio social, mas testemunhos de uma arte do Imepresentavel que prenunciava o desastre do holocausto nazi. Porém, jé desde 05 anos 60, a Pop Art, 0 novo realismo e as variadas formas de activismo artistico vinham minando esas identificagdes 20 ressuscitarem outros modernismos: 0 modemismo da performance e da irrisio dadaistas, 0 modernismo surrealista do défournement de objectos prosaicas e imagens populares, 0 modernismo dialéctico de fotomontagens politicas, ete. Estes revivalismos nfo devem ser interpretados como os sinais de uma ruptura pés- moderna que veio pér fim 4 separagiio modernista entre Arte erudita (high) © cultura popular. E isto porque tal separarao foi uma invengao retrospectiva, uma reinterpretag2o tardia e tendenciosa das formas de inovagao artistica do modernismo histérico que remontavam aos finais do século XIX e inicios do século XX. De facto, tais formas nao estabeleciam um contraste entre a JECTO PROJET PROJEKT YMA QO PROJECT KKYM 2¢ vacqu jere, “O que signiica «Esteticay”, trad. R, P. Cabral 18 autonomia artistica e a vida nao artistica, antes procuravam inventar formas de arte que estivessem em sintonia com as novas formas de experiéncia estética. E também nfo isolavam a materialidade especifica de cada arte ~ pelo contrario, pretendiam importar novas possibilidades artisticas de outras artes. As experiéncias de Kandinsky e de Schénberg estavam em consondncia com o projecto de uma nova forma de arte que estabelecia analogias entre todos os sentidos, Se Malevich, Rodchenko e El Lissitzky procuravam formas puras, faziam-no com vista a reconstruir as formas da experiéncia sensivel e da vida quotidiana. Assim se explica que, durante a Revolugao Soviética, essas formas puras tenham inspirado projectos arquitecténicos ou cartazes politicos e comerciais que visavam a identificagao das formas de arte com as formas da vida comum, E a poesia «pura» de Mallarmé procurava integrar uma nova economia simbélica da comunidade que, na opinido do poeta, iria contrabalangar a economia politica e a democracia representativa. Foi com este fim em vista que Mallarmé se propés introduzir efeitos musicais ¢ formas coreograficas na concepgao e na propria tipografia dos seus poemas, que assim se tornariam mais materiais, mais em sintonia com a sua fung&o enquanto emblemas da comunidade © moderismo tardio construiu uma fabula inconsistente sobre a autonomia da arte eo seu significado politico, e fé-lo como consequéncia de uma id simplista que identificava a representagfio com a produgaa figurativa de similitude. Porém, o regime representative nio se definia pela mera produgdo de similitude, Definia-se por uma estrutura que submetia essa produgdo a todo um conjunto de regras que estipulavam 0 que podia ser representado e as formas de representagao mais adequadas a cada tema, Por aqui se compreende que o regime estético nio pede ser entendido como a emancipagdo relativamente a similitude, E, em vez disso, a emancipagio da similitude. E importante notar que, no mundo ocidental, 0 modemismo nao comegou com a pintura abstracta; comegou com a reabilitagao da pintura de género e com a exuberdncia descritiva dos chamados romances realistas. A deseriglio que Hegel faz dos pequenos mendigos de Murillo é um bom exemplo. O ponto fundamental € que o regime estético da arte nao afirma a autonomia da PROJECTO PROJET PROJEKT YM@ QO PRO. T kvm Jacques Ran (ore, “O que significa wEstéticay", trad. RP. Cabral arte enquanto tal Com efeito, essa cautonomia» é a resultante da dissociagao entre a produgdo e a recepgao da arte. O regime estético afirma a autonomia da experiéncia estética através da sua propria distincia relativamente a vontade do artista, Por conseguinte, a autonomia da experiéncia estética é a autonomia de uma forma de experiéncia cujo proprio estatuto é contraditorio. De modo a esclarecer tal contradigdo, talvez nos seja util regressar a anilise da experigncia estética proposta por Schiller nas suas Cartas. Por um lado, a experigncia estética & a experiéncia de uma forma de suspensio — ou neutralizagdo. O «livre jogo» diante da «livre aparéncia» constitui uma forma de experiéncia que contraria as formes comuns da experiéncia sensivel, que so formas de subordinagao. E interessante referir que Schiller 0 descreve como um momento de «inactividaden, ou um momento de equivaléncia entre actividade e passividade, Esta inacti dade ¢ emblematizada pela escultura de uma deusa antiga, a chamada Juno Ludovisi, Schiller enfatiza 0 facto de que esta cabega € representada livre de qualquer preocupagao ou vontade. Hegel afirma 0 mesmo a propésito dos rapazes mendigos de Murillo: estio livres de qualquer preocupagao ou cuidado, Assim como a deusa Juno, nada fazem. De modo semelhante, 0 marceneiro «por momentos baixa os bragos», Podemos entender este «nada fazer, este momento de suspensio, como o ceme da experiéncia estética, Por um lado, esta experiéncia de liberdade e igualdade pode ser relacionada com © novo estatuto da obra de arte no tempo dos museus, dos concertos publicos e da ampla difusio de livros e revistas. Por outro lado, contudo, justifica-se enfatizar a ligagio entre a suspensio estética e a obtengao de direitos politicos. Nesta base, ¢ possivel relacionar a autonomia estética com a autonomia artistica e afirmar a visdo de uma futura comunidade livre. Porém, podemos encara-la de duas formas. Em primeiro lugar, a weducagao estética» do homem pode ser uma forma de aprendizagem para a fruigio de autonomia estética e artistica, e entendida como uma condi¢ao preliminar da liberdade e da igualdade sociais, Mas a questiio pode ser colocada ao contririo. A aparéncia de liberdade da deusa grega testemunha uma forma de arte que nao estava separada da vida Com eftito, a arte antiga ignorava a distingZo entre vida piiblica e vida quotidiana, tem como as distingdes entre arte, politica e religido. PROJECTO PROJET PROJEKT YMAQO PROJECT @ KKYM 2014 Jacques Ran (ore, “O que significa wEstéticay", trad. RP. Cabral 7 Assim, a ceducagio estéticay do homem pode ser interpretada como um programa concreto de transformagao da vida colectiva, com vista a reinstituir a no distingdo ou nao separagdo entre a arte e a vida, Os herdeiros romanticos de Kant e Schiller tomaram esse caminho: opunham a vida da comunidade estética 4 comunidade morta do Estado e da lei. A mesma ideia alimentou o programa marxista de uma revolugdo «humana» que ultrapassava os limites da revolugao politica, ¢ inspirou programa da vanguarda futurista ¢ construtivista na época da Revolugio Soviética: a arte ja no criava obras de arte mas formas de uma nova vida colectiva Por aqui se conclui que nao ha apenas um, mas pelo menos dois moderismos» E ambos procuraram lidar com 0 paradoxo original do regime Ha um «modernismo activista» que elimina essa disjungdo ao tornar a arte ja nfo uma actividade de produgdo de obras de arte, mas um processo de transformagao de formas de vida. No campo oposto, ha um outro modernismo que climina_a mesma disjungdo mediante a transferéncia do poder emancipatorio da experiéneia estética para as proprias obras de ante. Esta tensdo, porém, nao deve ser confundida com uma oposigio entre aarte pela arte © @ arte engajada, Na verdade, as duas estratégias afectam-se mutuamente, ¢ cada uma delas deve importar qualquer coisa da outra. As teorias da escola de Frankfurt sao um bom exemplo disto, tornando-se numa imagem de marca laquilo a que chamei_modernismo tardio, defensor da autonomia da arte ém, esses pensadores nao valorizam a autonomia das obras de arte enquanto is, mas antes a forma de experiéncia nelas corporada, Enfatizam 0 modo como esta forma se opde as formas de experiéncia da vida alienada, Uma vez que estas iiltimas representam a falsa reconciliagdo que disfarga a realidade do trabalho alienado, as formas de arte tém de dar testemunho dessa alienagao. Tém de contrariar a propria ambigao de fazer da obra de arte um todo harmonioso ¢ auto-suficiente. A busca de aparéncia e harmonia deve produzir ‘obras que demonstrem que a aparéncia e a harmonia so impossiveis, e que a beleza ¢ maculada pelo softimento da alienagao social. Se a obra de Schonberg € emblematica para Adorno, tal deve-se ao facto de, ao denunciar o sofrimento PROJECTO PROJET PROJEKT YMAQO PROJECT @ KKYM 2014 vacqu jere, “O que signiica «Esteticay”, trad. R, P. Cabral 18 da vida racionalizada ¢ mecanizada, inventar um sistema que € sinda mais racionalizado e mecanizado do que a propria vida, Pela mesma ordem de ideias, Adomo critica a 6pera Moisés e Aardio de Schonberg por ver nela uma excessiva harmonia entre 0 texto € a musica, A «obra autonoma» € sempre feita de sedimentos da experiéncia social, o que implica conflito social. Em tiltima analise, aquilo que & «politico» nfo € a autonomia da obra, mas a sua incapacidade em a alcangar. Inversamente, os artistas que advogam a transformagao das obras de arte em formas de vida nao podem contentar-se com a mera dissolugao da pratica artistica na vida social. A arte funcional, ao servigo da nova vida, tem de tornar la. Tem de dar perceptivel que é de facto arte funcional a0 servigo da nova vi uma expressio simbélica a essa fungo. Dai as linhas excessivamente obliquas da Tribuna de Lenine imaginada por El Lissitzky, ou dos cartazes e fotografias de Rodchenko. Essas linhas obliquas transcendem as exigéncias da sua fungao «social», como que para imitar 0 despontar da nova vida A significar algo, a modemidade artistica significa no apenas a tensio entre esses dois modemismos, como também a tensfo interna inerente a cada uum, Essa fensfio nao era uma oposigo estatica; pelo contririo, abriu um campo de maltiplas formas de produgao artistica e de experiéncia estética, Assim, nao € facil identificar um novo paradigma capaz de caracterizar com preciso uma forma de arte «pés-modemay. As instalagdes, performances, video-instalagdes € video-performances da arte contemporinea continuam a explorar a tensio entre a produgio de obras de arte e a produgao de situagdes experimentais, inventando dispositivos que visam mudar as formas de percepcionar, sentir e interpretar. ‘A meu ver, a reflexdo sobre a estética tem que ser a reflexdio que procura esclarecer a ldgica dessas tensdes e 0 modo como as mesmas geram formas de percepgao, modos de interpretagio e programas de vida. A estética nao existe enquanto teoria da arte, mas sim enquanto uma forma de experiéncia, um modo de visibilidade © um regime de interpretagiio. A experiéneia estética vai mi 0 além da esfera da arte. A questo é a configurago da paisagem sensivel que PROJECTO PROJET PROJEKT YM@ QO PRO. T kvm ‘© gue significa «Estetica», trad. R, P. Cabral 19 estrutura uma comunidade, a configuragdio daquilo que pode ser visto e sentido e dos modos possiveis de falar e pensar sobre isso, Trata-se de uma distribuigio do possivel, que é também uma distribuigao da capacidade que uns e outros tam de participar nessa mesma distribuigio do possivel. Esta questo é fundamental 4 nogdo kantiana da universalidade do juizo estético, e esta no cerne dos exemplos que apresentei: quem tem a possibilidade de interromper o trabalho para contemplar a paisagem? Quem tem direito a solidao? Quem é que esti habilitado a possuir @ preencher mundos vazios? As «questdes» estéticas dizem respeito configuragdo de um mundo comum, E, a meu ver, a reflexdo sobre tais questdes requer uma forma de discurso «estético» que ndo ¢ uma especialidade da filosofia, mas, pelo contrario, é transversal as fronteiras de disciplinas especificas como a filosofia, a historia da arte, a teoria literdria ou a sociologia da cultura, etc., de maneira a pensar as formas de distribuigao do sensivel a partir das quais as formas possiveis das nossas percepgdes emergem, bem como os modos de produgao de conhecimento e os modos de configuragao de um mundo comum. ‘Tradugao de Rui Pires Cabral. Jacques Ranciére, «O que significa "Estética’s, trad. R. P. Cabral, in www. proymago.pt (Outubro 2011), PROJECTO PROJET PROJEKT y M QO PRO. KYM 2011

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