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L8PMPOCKETENCYCLOPAEDIA Henri Lefebvre Wile ee ‘Séue L&PMPOCKETENCYCLOPAEDIA __ Budismo~ Claude B. Levenson Cabala — Roland Goetschel Capitalism — Claude Jessua (Cledpatra — Christian-Georges Schwentzel Accrise de 1929 Bernard Gazier Cruzadas— Cécile Morrisson Economia: 100 palavras-chave — Jean-Paul Betbeze Geragao Beat Claudio Willer Império Romano— Patrick Le Roux Marxismo— Henri Lefebvre Mitologia grega— Pierre Grimal Revolugo francesa — Frédéric Bluche, Stéphane Rials e Jean Tulard Santos Dumont — Aley Cheuiche Sigonunid Freud ~ Edson Sousa e Paulo Endo Préximos langamentos: Egito Antigo ~ Sophie Desplancques. Escrita chinesa — Viviane Alleton Existencialismo — Jacques Colette Histdria de Paris— Yvan Combeau Hist6ria do vinho — Jean-Frangois Gautier Isla — Paul Balta ‘Tragédias gregas Pascal Thiercy Henri Lefebvre Marxismo Tradugdo de Wi.ttas LaGos vewwilpm.com.br Coleco L&IPM Pocket, vol. 784 enti Lefebvre (1901-1991) foi um dos intlecunis fanceses que mais ‘tuow na divulgagie do maraismo poo mando. Realizou tambér impor ames contibuioes na Sreae 62 sociologa,geografi,Hlosfia ectica Tierra sl de te elon na Universiade de Pais-Nanterte. Durante ‘Segunda Guerra Munda unis Resisénca, Juntamente com Norbect Goternan, pubicow a primeira tadugto dos Mamucrits Econdmico-Filo~ ‘afcs de Rael Mar, escrito em 1844, Lefebre legou vata obra litera, (que fo amnplarsente tradi, Titolo orignal: Le marisme Primeica edig30 na Coleco RPM POCKET: juno de 2009 “Tradudo: Willian Lagos Capa van Pinheito Machado, Fot: Rue ds Archives PVDE Preparaode orginal Patricia Vurgel Reva Lia Cremonese CPB. Catlogagao-na-Fonte Sindcato Nacional dor Héitores de Livros, R} 1s2im Lefebre, Hent, 1901-1991 “Marsismo / Henri Lefebvre; traducto de Willam Lagos. ~ Porto Alegre, 2S: LAM, 2008, 12p ~ (Coleg LAPM Pocket, 784) Tradusto de: Lemarsime Incl bibliograia, ISBN 978-85-254-1832-6 1. Mar Kar, 1818-1883, 2. Socalismo, I. Titulo I. Série on.sz4s cpp: 3354 (CDU: 33085 0 Prescs Universitaires de France, Le marxisme ‘Todos os diritos desta edigdo reservados a LPM Eaitores Roa Comendador Cora 314, loja 9 Fovesta~90220-180 orto Akgre= RS~ Brasil /Fone51.32255777 Fax S1.3221-5380 Prosar & Duro, course: vendas@ipm.com.be Pale eowosco:info@pm.com.br wor ipm.combr Impreso no Brasil TInverno de 2009 SuMARIO Aviso a0 leitor. Introdugio.. Capitulo I~A filosofia marxista Capitulo I-A moral marxist Capftulo IIT — A sociologia marxista ou ‘0 materialismo histérico Capitulo IV ~ A economia marxista. Capitulo V~ A politica marxista.. Conclusio.. Bibliografia. AVISO AO LEITOR Este livro' procura condensar, em um niimero restrito de paginas, os elementos essenciais de uma doutrina muito vasta ecomplexa, Numerosos pontos importantes tiverarn de ser omitidos ou apenas mencionados de passagem. Pedimos ao leitor, portanto, que ndo busque aqui senao uma introdugao ao estudo do marxismo desprovida de todos 10s detalhes e de todo 0 aparato de citagdes ereferéncias. A fim de completar esta leitura e para a conveniéncia do leitor, <é preferivel dirigi-se diretamente aos textos originais. Esta exposigao sobre o marxismo é obra de wm marxis- ta, Isto quer dizer que 0 marxismo estard presente ent toda a stua amplitude e com toda a forga de sua argumentagdo. Seré necessério salientar que, ao tentarmas responder aos argu- ‘mentos dos adversérios, nos dedicaremos aqui para colocar aadiscussao emt seu nivel mais elevado ent termos de pesquisa objetiva e busca racional e desapaixonada da verdade? Em outras obras, 0 autor deste estudo se esforgou em “apresentar a formagao do pensamento de Karl Marx, a teo- ria da liberdade na obra de Marx e a aplicacao de seu méto- do.a virios problemas. Aqui, ele se permite convidar 0 leitor, caso seu interesse tenha sido despertado, a dirigir-se a esses trabalhos mais desenvolvides. 1LA primeira eligi deste lio fo publicadaem 1948 (NT:) InrropugAo Pouco antes da itima guerra, a revista catélica Ar- chives de philosophie (Arquivos flossficos) consagrou um ‘gr0ss0 volume ao marxismo (0 néimero XVII dessa pu- blicagao), Desde o inicio de sua exposigao, os redatores da revista advertiam seus leitores de que nao se podia con siderar 0 marxismo como uma simples atividade politi ‘ca ou um movimento social entre muitos outros. “Uma Visio tao estreita fasificaria as perspectivas. O marxismo no é somente um método e um programa de governo, nem uma solugao técnica para os problemas econdmicos, ainda menos um oportunismo inconstante ou a temética de declamagoes oratérias. Ele da margem a uma vasta concep¢io do homem e da hist6ria, do individuo e da so- ciedade, da natureza e de Deus; a uma sintese geral, a0 ‘mesmo tempo teérica e prética— em resumo, & concepc3o de um sistema totalitério.” Nessa declaragio liminar, a hostilidade transparecia em certas express6es (“Ele d margem..”), mas sobretudo 1a confusio deliberada entre doutrina completa e “siste- ma totalitério” Aqui, isso tem pouca importincia; © que é impor- tante observar é que o marxismo € hoje reconhecido por seus adversérios mais encarnigados como uma concepgio de mundo. Mesmo as polémicas de nivel inferior langadas contra ele dao toda a importancia a essa declaragio de te6- logos e de escritores catdlicés importantes. ‘O que éuma concepgio de mundo? & uma visio con- junta da natureza e do homem, uma doutrina’ completa. Em certo sentido, uma concepgao de mundo representa ‘0 que se denomina tradicionalmente de filosofia. Entre~ tanto, essa expresso tem um sentido mais amplo do que a palayra “filosofia”. Em primeiro lugar, toda concep¢ao de mundo implica uma agao, isto é alguma coisa mais do ‘que uma “atitude filos6fica”. Mesmo que tal aco nao seja formulada e incluida expressamente na doutrina, mesmo que seu elo permaneca sem ser formulado e que a agio implicada nao dé lugar a um programa, nem por isso deixa de existir. Na concepgdo crista do mundo, a ado nao é outra além da politica da Igreja, dependente das decisbes tomadas pelas autoridades eclesiésticas; sem um lago ra- ional com uma doutrina racional, essa ago nem por isso € menos real. Na concepgio marxista do mundo, a ago se define racionalmente em contato com o conjunto dou- trindrio e dé lugar, abertarente, a um programa politico. Esses dois exemplos demonstram suficientemente que a atividade pratica, social, politica, desdenhada ou relegada a um segundo plano pelas filosofias tradicionais, é parte integrante das concepgies de mundo. Em segundo lugar, uma concepgao de mundo nao é forgosamente a obra des- te ou daquele “pensador”, Ela € acima de tudo a obra e ‘expressio de uma época, Para atingir e formularuma con. cepcio de mundo, € necessario estudar as obras daqueles que a formularam, mas deixar de lado as nuances e deta Ihes; € preciso esforgar-se para atingir 0 conjunto. Se nos ‘ocupamos da filosofia propriamente dita ou da histéria da filosofia no sentido tradicional deste termo, buscamos, bem ao contrétio, as menores nuances que distingam 2. Conforme Claude Bernard: "Quando a hipétese ¢ submetida & verficagao experimental, ela se torna uma teoris a0 passo que, se ela for submetida somente ao crivo da lgica, torna-se um sistema” (Medicina experimental, edigbes Gilbert, p. 285). (N.A.) 10 entre si os “pensadores” ¢ que exprimam sua originali- dade pessoal. Quais sao as grandes concepgdes de mundo que se propdem atualmente? Existem trés e apenas tes, 1) A concepgao cris, formulada com a maior nitidez.e maior rigor pelos grandes tedlogos catdlicos. Reduzida a seu essencial, ela se definiu pela afirma- «0 de uma hierarquia estatica dos seres, do atos, dos “va- ores”, das “formas” e das pessoas. No alto da hierarquia se encontra o Ser Supremo, 0 Espirito puro, o Senhor Deus. Essa doutrina, que busca efetivamente apresentar ‘uma visio de conjunto do universo, foi formulada em tia maior amplidio e com o mais extremo rigor durante a Idade Média, Os séculos ulteriores agregaram pouco & obra de Sao Tomés de Aquino. Por razées histéricas que pedem um estudo particular, essa teoria da hierarquia era particularmente conveniente na Idade Média (nao que tal hhierarquia estatica das pessoas tenha desaparecido logo depois disso, mas porque era entio que se mostrava mais visivel, mais oficial do que nos séculos seguintes). E, portanto, a concepgao medieval do mundo, que permanece valida ainda hoje. 2) Vem, a seguir, a concepgio individualista de mundo. Ela surge no final da Idade Média, no século XVI, com Mon- taigne. Durante quase quatro séculos, numerosos “pensa- dores” formularam ou reafirmaram essa concepgio, ainda ‘que com nuances diversas. Eles nao acrescentaram nada a seus tragos fundamentais; o individuo (endo mais hierar- ‘quia) aparece como a realidade essencial ele possuiria em si mesmo, em seu foro interior, a raziio. Entre estes dois aspectos do ser humano ~ 0 individual e o universal, isto 6 a razio - haveria uma unidade, uma harmonia esponts- nea; de forma semelhante, entre o interesse individual e 0 n interesse geral (ou seja, o de todos 0s individuos), entre os direitos € deveres, entre a Natureza e o Homem. Em substituigdo & teoria pessimista da hierarquia (imutével em seus fundamentos e encontrando sua jus- tificativa em um “além” puramente espiritual), o indi- vidualismo tentou estabelecer uma teoria otimista e a harmonia natural dos homens e das fungdes humanas. Historicamente, essa concepso de mundo corresponde a0 liberalismo, ao crescimento do Terceiro Estado, & bur- guesia da belle époque. £, portanto, uma concepcao essen- cialmente burguesa do mundo (ainda que a burguesia em declinio a abandone hoje em dia e se volte para uma concepgio de mundo de carater pe: ortanto, hierérquico). 3) Por fim, vem a concepgiio marxista do mundo. O mar- xismo se recusa a aceitar uma hierarquia exterior aos in- dividuos (metafisica); mas, por outro lado, nao se deixa encerrar, como 0 individualismo, na consciéncia do in- dividuo e no exame isolado dessa consciéncia. f ciente de realidades que escapam ao exame da consciéncia indivi- dualista: sio as realidades naturais (da natureza, do mun- do exterior), priticas (trabalho e acio), sociaise historicas (estrutura econdmica da sociedade, classes sociais et.) Além disso, 0 marxismo rejeita deliberadamente a subordinacao prévia, imével e imutavel dos elementos do homem e da sociedade uns aos outros; mas no admi- te tampouco a hipétese de uma harmonia espontanea Constata, com efeito, a existéncia de contradigdes tanto no homem como na sociedade humana. Assim, o interesse individual (privado) pode opor-se —e freqientemente se ‘opie — ao interesse comum. As paixdes dos individuos e, ‘mais ainda, as de certos grupos ou classes (seus interesses, por conseguinte) néo concordam de forma espontanea com a Razao, com 0 conhecimento e com a ciéncia, Mais 2 geralmente ainda, a harmonia que os grandes individua- listas, como Rousseau, haviam pensado descobrir entre a natureza e © homem absolutamente nao existe. O ho ‘mem uta contra a natureza; ele nao deve descansar com passividade nela, dedicar-se a contemplé-la nem se imer- gir romanticamente em seu seio. Bem ao contrério, deve vencé-la e dominé-la, através do trabalho, da técnica e do ‘conhecimento cientifico, e é assim que ele se transforma em si mesmo. ‘Quem fala em contradigao fala também em proble ‘mas a resolver, dificuldades e obstaculos — portanto, luta e \¢io ~, mas também na possibilidade de vitoria, de passos 8 frente, de progresso. Como conseqdiéncia, 0 marxismo escapa do pessimismo definitivo, ao mesmo tempo em que foge do otimismo ficil. ‘© marxismo descobriu a realidade natural historica € Iogica das contradigoes. A partir disso, conduz a uma tomada de consciéncia do mundo real, em que as contra- digdes sio evidentes (de tal modo que se rejeita o mundo moderno como irremediavelmente absurdo, caso nao seja colocada no centro das preocupagbes a teoria das contra- digdes e de sua resolugao). ‘© marxismo apareceu historicamente com relagdo a ‘uma forma de atividade humana que tornou evidentea luta do homem contra a natureza: as grandes indtstrias moder- nas, com todos os problemas que acarretaram. Ele também € formulado tendo em vista uma nova realidade social, que resume dentro de si as contradigdes da sociedade moderna: o proletariado, a classe opers- ria, Desde suas obras de juventude, Marx constatou que © progresso técnico, 0 poder exercido sobre a natureza, a liberagio do homem com relagéo & natureza eo enti- quecimento geral da sociedade “moderna”, ou seja, capi- talista, traziam consigo uma contradigdo conseqiiente: a servidao, 0 empobrecimento de uma parte cada vez mais B numerosa dessa sociedade ~ a saber, 0 proletariado. Ao longo de toda a sua vida, ele empreendeu a anilise © 0 processo dessa situacio; demonstrou que tal contradigao implicava e envolvia uma sentenga de morte contra uma sociedade determinada: a sociedade capitalista. Assim, © marxismo apareceu junto com a sociedade “moderna”, com as grandes indiistrias e com o proletaria- do industrial, Apresentou-se como a concepgao de mun- do que exprime 0 mundo moderno ~ suas contradigoes, seus problemas ~ trazendo solugdes racionais para esses problemas. ‘Afirmamos ha pouco existirem trés concepgoes de mundo e somente trés. Isso significa que certas teorias, que hoje se propdem como concepgdes de mundo, nao ‘tem qualquer direito a esse titulo. Por exemplo, 0 exis tencialismo, tao em moda hoje em dia, coloca no centro de suas preocupagoes a consciéncia ea liberdade do indi- ‘viduo tomadas como um absoluto, O existencialismo, vis- tosob esse angulo, nao é mais do que um substituto tardio ¢ degenerado do individualismo classico, Sabemos que cle repudia o otimismo fécil; também sabemos que ocasio- nalmente, para se “modernizar” ¢ difundir como sendo novas algumas teméticas jé envelhecidas, ele se recobre de ‘uma tintura de marxismo, Mas isso no muda em nada 0 essencial, isto 6, 0 esforgo para obter uma pretensa verda- de absoluta a partir de uma descrigéo da “existéncia” e da consciéncia individuais. “Trés concepgdes de mundo e trés somente. Isso sig- nifica que o fascismoe o hitlerismo, apesar de suas preten- s6es ridiculas, nao puderam apresentar uma “concepgdo de mundo”. Quiseram dar @ iluséo de uma renovagao spiritual. Obedecendo a ordens, 0s idedlogos do fascismo italiano tentaram escrever uma “enciclopédia fas ta”, Obedecendo a ordens, os idedlogos do hitlerismo, como Rosenberg, tentaram uma nova “interpretagio” da 4 histéria, Se examinarmos mais de perto essa mistifica- io, mio encontraremos mais do que um emaranhado de residuos ideol6gicos. Assim, os idedlogos hitlerianos tomaram de empréstimo dos primérdios do judaismo “a idéia” do povo eleito e da raca pura, que eles “aperf soaram”, em nome de consideragées biol6gicas cont taveis. Tomaram de empréstimo do marxismo a nogao do “proletariado”, que deformaram fraudulentamente, apresentando pretensas “na¢des proletérias” (Alemanha, Itdlia, Japdo) destinadas a vencer as democracias capi- talistas, E assim por diante, Um amontoado de nogdes tomadas de empréstimo e desvirtuadas, um actimulo de temas demagégicos sem elos racionais entre si (bem a0 contririo, repudiando a razio), eis o que foi a pretensa “concepgao de mundo” fascista.? “Trés concepgoes de mundo ¢ apenas trés. Para jul- géclas, convém inicialmente desvencilhar-se de uma am Dientagdo confusa e passional que muitas vezes cerca esses problemas e apresentar a questo unicamente no plano a Raza. (© marxismo, sendo novo, nao se beneficia ainda de uma espécie de prestigio sentimental sustentado por sé- culos de expressao filosofica e estética. Ele atraiu a novi- dade ~a “modernidade”, na melhor acepyio desse termo, ‘Mas tanto as longas meditagdes sobre a morte ¢ 0 “além”, incorporadas em imtimeras obras, como a longa exalta 40 do individuo como valor nico e supremo criaram ao redor do cristianismo e em torno do individualismo tum conjunto de sentimentos discordes, mas poderosos. ara julgar, € preciso inicialmente suspender as aprecia- 3. Conforme La conscience mystifiée [A consciéncia enganada}, de 1N. Guterman ¢ H. Lefebvre, Paris, 1936, Também de acordo com 6 panfleto clandestino escrito por Georges Politzer, difundido em, janeiro de 1941 ereeditado em 1946 por aitons Sociales: Revolution ft contre-évolution au XXe,séle, réponse a Rosenberg [Revolusao € ‘ontra-revolugdo no século XX: resposta a Rosenberg]. (N.A.) 158 ‘goes sentimentais, 0s julgamentos de valor que permitem ‘todas as confus6es, justficam todos 0s ertos e constituem ‘© refiigio irracional de todos os que recusam a Razao. £ evidente que 0 individualismo esté morrendo, ‘mesmo que tena deixado na sensibilidade sobrevivencias profundas. A hist6ria do individualismo mostraria como ‘os grandes representantes dessa doutrina recuaram, ce- deram terreno, foram obrigados a constatar com grande listima a natureza antagOnica e contradit6ria dos rela- cionamentos naturais e humanos. A obra de Nietzsche & significativa sob esse aspecto capital. Mais ainda: 0 individualismo literalmente “explo- diu” em fungao de suas préprias contradig6es interiores. ‘A unidade harmoniosa que seus grandes representantes clissicos (Descartes e Leibniz, por exemplo; mais tarde, Rousseau acreditaram ter descoberto entre o pensamento individual e o pensamento absoluto, entre a consciéncia individual e a verdade, entre individual e o universal revelou-se falsa. O individual se dissociou do universal para opor-se a ele no anarquismo, sob todas as suas for- ‘mas - lterSrias, sentimentais e politicas. Reciprocamente, © universal nao péde se manter dentro dessa tradigao de pensamento, a nao ser pelo esmagamento do individual, sob a forma de “imperativos categoricos” (Kant) do Es- tado, tomado como uma encamagio da razio (teéricos hhegelianos da direita) etc. Sabe-se, alifs, que todo o lado econdmico, juridico € politico do individualismo — 0 liberalismo clissico e a doutrina do laissez-faire — desmoronou-se, tanto na teoria ‘como na pritica. ss ocorren apesar dos esforsos deses- perados dos “neoliberais” Além de suas contradigdes internas e de sua incapa- cidade de compreender as contradigoes em geral, o velho racionalismo, o velho liberalismo e o velho individualis- ‘mo se desqualificaram, 6 Restam frente a frente, pelo menos na Franca, 0 cris- tianismo (0 catolicismo nao “contaminado” pelo livre exame individualista protestante) ¢ 0 marxismo. Que o catolicismo seja uma doutrina politica ~ em outros termos, que a Igreja tenha uma posigao politica € coisa que hoje em dia ninguém sonha em negar e que ‘no mais precisa nem ao menos ser provada. Somente no se salienta suficientemente a natureza do liame entre a politica e a doutrina, Vamos insistr sobre esse ponto, & uum liame racional? Nao. A partir de proposigées sobre a ‘morte, espiritualidade da alma eo Além, é impossfvel de duzir racionalmente proposigoes concernentes ao Estado € A estrutura social; o mesmo ¢ verdadeiro com relagdo a proposigoes abstratas (metafisicas) sobre a hierarquia das “substincias”. O elo nao é e nao pode ser mais do que um clo de fato, o qual faz.com que as aplicagées politicas sejam externas em relagdo aos principios metafisicos. De fato, a hiierarquia abstrata se demonstra apta a justificar de forma abstrata uma estrutura social hierérquica que é de fato ou- torgada e, acima de tudo, se demonstra apta para justificar Oo esforgo e a agdo que consolidam os quadros dessa socie- dade, Um elo indireto e, no fundo, irracional se estabele- eu, portanto, entre a teoria metafisica e a prética, a qual forneceu um vocabulério justficativo. Reciprocamente, sem essa ago pritica a teoria permaneceria totalmente abstrata, puramente especulativa e, por isso, ineficaz. Em outros termos e para falar com clareza, a concepgio crista do mundo € hoje essencialmente politica ela 6 vive dessa maneira, ela s6 se torna eficaz dessa forma.‘ Entretanto, a tcoria, de forma semelhante a pritica (politica), se situa em outro plano: o da abstragao teolégico-metafisica, Entre 4. Os esforgos dos cristds progresistas para o desenvolvimento de ‘uma nova teologia despida das velhas nogoes hierdrquicas devern ser seguidos com interessee simpatia, mas nao sem algum ceticis mo. (NA) ” (8 dois planos, nao existe qualquer relacionamento que ;possa ser determinado aberta e racionalmente, o que, aliés, presenta a vantagem de permitir uma grande liberdade de manobra. Para © marxismo, como se veré com mais clareza 4 seguir, o relacionamento da ag4o com a teoria é com- pletamente diverso. O marxismo aparece de inicio como a expressio da vida social, prética e real em seu conjun- ‘to, em seu movimento histérico, com seus problemas € suas contradigdes, portanto nele esta compreendida a possibilidade de ultrapassar sua estrutura atual. As pro- ppostas concernentes & agdo politica se encaixam aberta e racionalmente com suas proposigdes gerais. Sao teoremas politicos subordinados a um conhecimento racional da realidade social; portanto, subordinados a uma ciéncia. © marxismo se apresenta, pois, sob esse angulo, como uma sociologia cientifica com conseqiténcias politicas, enquan- to que a concepgdo de mundo que se opée a ele € uma politica abstratamente justificada por uma metafisica. Seria bom dissipar as confusoes a respeito desse pon- to importante. Entre tantos erros que se cometem sobre © marxismo, esta interpretagao permanece uma das mais difundidas, a saber, que o marxismo consistiria essencial- mente em uma politica justificada em nivel secundario or uma tentativa de interpretagdo do mundo. E se ve- rifica precisamente que nao € 0 marxismo que pode ser definido de tal maneira. Se aceitarmos a ampla definigao de “marxismo” como uma concepgio de mundo como a expresso da época moderna com todos os seus problemas, fica claro que 0 “marxismo” nao se reduz a obra de Karl Marx, ou seja, que niio deve ser representado simplesmente como 0 “pensamento de Marx” ou a “filosofia de Marx”. Bfetivamente, de acordo com 0 préprio Marx, a ela- boracao racional (cientifica) dos dados da experiéncia e do pensamento moderno comegam bem antes dele: Is 1) As pesquisas sobre 0 trabalho como relacionamento ativo ¢ fundamental do homem com a natureza — sobre a divisdo do trabalho social, sobre a troca de produtos do trabalho etc. ~tiveram inicio no final do século XVIII, no pais que era na época o mais desenvolvido industrialmen- te (a Inglaterra), por uma série de grandes economistas: Petty, Smith, Ricardo, 2) As pesquisas sobre a natureza como uma realida- de objetiva, como a origem do homem, foram iniciadas € empreendidas pelos grandes filésofos materialistas: 'Holbach, Diderot, Helvécio ¢, mais tarde, por Feuer- bach, do mesmo modo que pelos “sibios”, mateméticos, fisicos e bidlogos que, ao longo dos séculos XVIII e XIX, desvendaram algumas leis da natureza, 3) As pesquisas sobre os grandes grupos sociais, as classes e suas lutas, foram inauguradas pelos historiadores fran- ceses do século XIX: Thierry, Mignet, Guizot, no decurso de pesquisas sobre os eventos revoluciondrios ou aconte- cimentos influenciados por tais eventos. 4) A ruptura com a concepgao de um mundo harmo- nioso se operou desde a metade do século XVII. Ela se encontrava de certa forma na obra de Voltaire (Candido), na de Rousseau (A sociedade oposta a natureza) ¢ na de Kant. A influéncia de Malthus, apesar de todos os seus er- ros, nao pode ser subestimada (teoria da concorréncia e da struggle for life}; mais tarde, Darwin deu o golpe de misericérdia no otimismo fil Porém, sobre esse ponto, a obra essencial €€ perma- neceri sendo a de Hegel. Foi somente ele quem originou © conceito e projetou plena luz sobre a importancia, a fungio, a multiplicidade das contradigaes no homem, na 5." lute pela vida", em inglés no original. (NT) 19 hist6ria e até mesmo na natureza. O ano de 1813 (publi cagio da Fenomenologia do espirito) deve ser considerado como uma data capital na formagio da nova conceitua- lizagao do mundo, 5) Os grandes socialistasfranceses do século XIX apresenta- ram problemas novos: o problema da organizagao cientifica da economia moderna (Saint-Simon), 0 problema da classe operatia e do futuro politico do proletariado (Proudhon), 6 problema do homem, de seu futuro e das condigoes da realizagao humana (Fourier) 6) Finalmente, convém nao esquecer que a palavra “mar- xismo” = que passou a moeda corrente — contém uma ‘espécie de injustiga; desde seu comeco, 0 “marxismo”® re~ sultou de uma verdadeira obra colaborativa dentro da qual se expandiu o genio propriamente dito de Marx. Porém, as contribuigdes de Friedrich Engels para o marxismo nao podem ser deixadas de lado ou langadas para um segundo plano. Em particular, foi Engels que chamou a atencio de Karl Marx para a importancia dos fatos econdmicos, para a situagao do proletariado etc Todos esses elementos, miltiplos ¢ complexos, se encontram no marxismo. Quais foram, portanto, as idéias de Marx, suas con- tribuigdes originai 1) As descobertas mais audaciosas do pensamento huma- no do século XVIII e da primeira metade do século XIX permaneciam dispersas, isoladas umas das outras. Além disso, cada uma dessas doutrinas era limitada e tendia a 6, Bevidente que, algum dia, nao se falaré mais em “marxismo", ddo mesmo modo que ninguém mais emprega o termo “pasteuris- ‘mo” para designar a bacteriologia. Mas ainda ndo chegamos nesse ponto! (NA) 2 fixar-se em um “sistema” incompleto e unilateral. Desse ‘modo, 0 materialismo inspirado pelas ciéncias da natu- reza, 0 materialismo francés do século XVIII, tendia a um ‘mecanicismo, isto é a um reducionismno da natureza a elementos materiais, sempre e por toda parte idénticos a si mesmos. Ao contrério,a teoria das contradigdes de He~ gel tendia a fixar-se em um idealismo abstrato, definindo todas as coisas, de uma vez por todas, através da presenga nelas da contradigdo tomada de modo geral. Do mesmo ‘modo, os trabalhos dos economistas clissicos haviam pa- rado em determinado ponto, justamente quando, para continuar @ andlise, era necessério levar em considera- G40 as contradigoes reais da estrutura econdmica e social dessas classes novamente descobertas pelos historiadores franceses. Por fim, incapazes de dar uma fundamentagio tedrica e pritica as suas aspiragoes, os socialistas permane- ceram utdpicos, construindo sociedades ideais apenas em sua imaginacao. O génio de Marx (¢ de Engels) foi o de apoderar- se de todas essas doutrinas, até entao encerradas em seus proprios dominios, ver nelas as expressdes, fragmentarias ‘mas inseparéveis, da civilizagao industrial moderna, seus problemas e os esclarecimentos novos langados sobre a natureza ea histéria pelos novos tempos, Foi Marx quem soube quebrar as comportas dos compartimentos estanques, separar as doutrinas de suas limitacoes; desse modo, captou-as em seus movimentos ‘ais profundos. Ainda que elas se opusessem contradi- toriamente (por exemplo, o materialismo eo idealismo); ainda que elas apresentassem contradigdes internas (os historiadores que descobriram a uta de classes na Revo- lugao Francesa eram em sua maior parte reacionérios; 0 proprio Hegel perdeu-se ao chegar a esse impasse ete:), Marx soube resolver essas contradigdes e ultrapassar tais doutrinas incompletas (isto é, transformé-las profunda- ai mente ¢ criticé-las em seu processo de integrasio). Soube tirar delas uma teoria nova, extremamente original, mas cuja originalidade nao deve ser compreendida de modo subjetivo como a expressdo da fantasia, da imaginagio criadora ou do génio individual de Marx. Sua original dade reside precisamente no fato de que ele mergulha na realidade que descobriu e expressou, em lugar de separar- se dela ou destacar dela um fragmento isolado. £ assim que sua teoria abrange, ao mesmo tempo em que trans- forma, todas as doutrinas que a prepararam e que sem ela permaneceriam fragmentérias. \Nesse esforgo, brevemente resumido acima, do pen- samento marxista para ser a “sintese” de todos 08 conhe- cimentos, jf podemos pressentir todas as caracteristicas desse pensamento, todos os tragos essenciais do método marxista: a retirada dos fatos ¢ das idéias de seu aparente isolamento, a descoberta de que tudo se relaciona, 0 segui- mento do movimento conjunto que se esbora através de seus aspectos dispersos, a resolugao das contradigdes a fim de atingir (por um stibito progresso) uma realidade ou um pensamento mais elevados, mais amplos, mais com- plexos e mais ricos. 2) Mas a obra pessoal de Marx (e de Engels) nao foi somen- te uma sintese transformadora de seus préprios elemen- tos, Também Ihes devemos a compreensio nitida e clara da importincia dos fendmenos econdmicos ea afirmacio nitida e clara de que tais fendmenos devem ser realgados através de um estudo cientifico, racional e metodicamente orientado, embasado em fatos objetivos e determinaveis E isso que chamamos de materialismo historico, 0 alicerce de uma sociologia cientifica (a bem dizer, os dois termos sio equivalentes €designam dois aspectos de uma mesma pesquise). 2 3) Também a Marx devem ser creditadas a descoberta da estrutura contraditéria da economia capitalista ea andlise do fato crucial, do relacionamento essencial (e essencial- mente contraditério) que constitui essa economia: 0 salé- rio, a produgao da mais-valia. 4) Finalmente, cabe a Marx a descoberta do papel hist6ri- 0 do proletariado e a possibilidade de uma politica inde- pendente (com relagio & burguesia) da classe operéria, ¢ uma transformagao dos relacionamentos sociais por meio de tal politica, © materialismo histérico foi concebido entre 1844 € 1845. A teoria da mais-valia (ou do salério), do mesmo modo que o emprego claro da anélise das contradigies (0 método dialético) ¢ a aplicagao licida dessa anélise a0 estudo do capitalismo, datam de 1857. Para completar, « politica independente do proletariado {foi definida apés as experiéncias dos anos de 1848 a 1850 € aprofundada mais tarde pela anslise dos eventos transcorri- dos na Franga de 1870 a 1871 (Comuna de Paris). © desenvolvimento do marxismo, constituido pelo movimento de um pensamento simbélico e unificador, nunca se interrompeu ou se fixou, Apresenta-se como um conhecimento racional do mundo que, continuamente, se aprofunda ¢ ultrapassa a si mesmo. Esse enriquecimen- to nao se deteve até nossos dias. Foi buscado no passa- do e ainda sera buscado no futuro. Como uma cigncia, ‘0: marxismo se desenvolve, sem com isso destruir os seus prinefpios. Esse é um ponto em que se difere de todas as filosofias clissicas. Entretanto é como veremos adiante, ‘40 mesmo tempo, uma ciéncia (a sociologia cientifica, a economia racionalmente estudada etc.) e uma filosofia (uma teoria do conhecimento, da Razio, do método ra- cional etc.). Unifica em si dois elementos do pensamento 2 humano, até entao separados, cigncia ea filosofia. (© marxismo, como concepgao de mundo tomada em toda a sua amplitude, se denomina materialismo dia- ltico, Com efeito, ele sintetiza e unifica dois elementos que Marx encontrou separados ¢ isolados na ciéncia e na filosofia de seu tempo: 0 materialismo filos6fico, a cigncia ji avangada da natureza, ¢ uma ciéncia esbocada a partir da realidade humana, a dialética de Hegel, isto é, a teoria das contradigies ‘A denominagio “materialismo dialético” convém & doutrina assim designada mais exatamente do que 0 ter ‘mo habitual, “marxismo”, Com efeito, ela mostra melhor (0s elementos essenciais dessa vasta sintese e, sobretudo — sem a destacar da obra propriamente dita de Marx -, per- mite melhor compreender nessa doutrina a expressio de ‘uma época, ¢ nao a de um individuo. A exposicio que se seguira deixa expressamente de lado a formacio, a hist6ria e a pré-histéria do materialis- ‘mo dialético (que remonta ao pensamento grego, especial- mente a Hericlito). Em todo 0 conhecimento racional, a demonstracéo, dos resultados atingidos modifica e, algumas vezes, inverte a ordem segundo a qual tais resultados foram obtidos. Ainda que os resultados (os conhecimentos efetivamente alcan-

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