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UM Abundancia e pobreza Cidade EM MUITAS CIDADES NAO EXISTE um “centro”. Quer dizer: um lugar geografico preciso, marcado por monumentos, cruzamen- tos de certas ruas e avenidas, teatros, cinemas, restaurantes, confeitarias, ruas de pedestres, antincios luminosos cintilando no Ifquido também luminoso e metélico que banha os edificios. Antes, podia-se discutir se 0 “centro” de fato terminava em tal rua ou um pouco depois, mas ninguém discutiria a existéncia mesma de um tnico centro: imagens, rufdos, hordrios dife- rentes. Ia-se ao “centro”, partindo dos bairros, como se fosse uma atividade especial, de feriado, como programa noturno, para as compras ou, simplesmente, para ver e estar no centro. Los Angeles (essa imensa cidade sem centro) nao € tao incom- preensivel como foi, nos anos 60. Muitas cidades latino- americanas, entre elas Buenos Aires, entraram num processo de “angelenizacaio”.” As pessoas hoje pertencem mais aos bairros urbanos (e aos “bairros audiovisuais”) do que nos anos 20, quando a ida * Nas tltimas pdginas deste livro os leitores encontraréo as referéncias bibliogrdficas com que cada capitulo dialoga. Senter, seja qual um simulacto de ¢ de todos os extremos do urbano fj npéries, que as passarelas e atcadae g, Tromperam, sem anular; 0s ruidos, que a uma programagio unificada; o cured colisio de luzes diferentes, contririas, ‘am, reforgavam-se ou, simplesmente, ipnoraramss Ss outras; a grande escala virios andares, 0 pé-direito rates peice calico dk cor oe dezenas de metros, 20 longo de suas fachadas, ou re as marquises, em grandes letras garrafais, fixadas sobre Zentes, escudos, apliques, letre de transito. Esses por design, 380 Abundancia ¢ pobreza V5 ¢ a essa paisagem do “cer sua proposta de cépsula espacial acondicionada pela estética do mercado. Num ponto, todos 0 shopping centers siio iguais: em Minneapolis, em Miami Beach, em Chevy Chase, em New Port, em Rodeo Drive, em Santa Fe € Coronel Diaz, cidade pel moeda € a Lingua dos vendedores permitiria saber onde a das marcas internacionais € das mercadorias formidade de um espago sem qualidades: um voo \etirio a Cacharel, Stephanel, Fiorucci, Kenzo, Guess ‘lds, numa nave fretada sob a insignia das cores uni- das das etiquetas do mundo. ‘A cépsula pode ser um paraiso ou um pesadelo, O ar se renova com a reciclagem dos condicionadores; a temperatura € boa: as luzes sio funcionais € no entram no conflito do claro- escuro, que sempre pode parecer ameagador. outras ameagas sto neutralizadas pelos circuitos fechados, que fazem a infor- magio fluir até o pan-Gptico ocupado pelo pessoal da seguranga. Como numa nave espacial, ¢ possivel realizar ali todas as ati- vidades reprodutivas da vida: que sev panorama do lado os conhecedores de wem de olho num seriam capazes de dizer onde extio a cada momento. De modo, isto, saber onde s¢ extd a cada momento, nio tem portancia. O shop na rua ow de ui ponto de vis posto que 56 08 esp, Pequenos detalhes € 0s que se pa jo € para ser percorrido do in na galeria; no shopping, € preciso ca a decisio de aceitar as armadilhas do acaso, aimda ater ei spacial do shopping, em eujoeacee = O shopping, se for um bom shopping, ca ‘uma ordenagio total, mas sem deixar de, tat 80 mesmo « impressito de pereurso livre: trata-se da deriva no as fungdes desse espago que tem muito a ver com ap outro, sem dar-se conta de que se i std atravessando um limite Justamente por isto € to dificil perder-se num shopping ne ‘io foj feito para levar a um determinado ponto; em conse. quéncia disto, fem seu espago sem hierarquias, também é di, ficil saber se se esté ou no perdido. O shopping nio é un Inbirinto, de onde ¢ preciso encontrar a saida; pelo contriie, 6 uma comparacio superficial pode aproximar o shopping do Iabirinto. O shopping € uma cépsula onde, se possivel no Achar 0 que se procura, é completamente impossfvel perder-se. ‘$6 as criangas muito pequenas se perdem num shopping, por- ue um acidente pode separd-las de outras pessoas e essa au séncia nio € equilibrada com 0 encontro das mercadorias, Como uma nave espacial, o shopping tem uma relagio ‘ndiferente com a cidade & sua volta: essa cidade € sempre 0 Sapo externo, sob a forma de autopista ladeada por favelas, avenida principal, bairro suburbano ou rua de pedestres. Dentro de um shopping, ninguém se importaria em saber se determi- nada ala, onde se encontrou a loja procurada, é paralela ou Perpendicular a uma rua qualquer, no exterior; acima de tudo, © aue no se pode esquecer 6 em que prateleira estd a merca- doria desejada. No shopping, no s6 se anula 0 sentido de ‘Snentagio interna, como também desaparece por completo & Abundance pobre 17 geografia urbana, Em coftrate com as cépsulasespacisis, os Shoppingserguem muros frente 8s perspectives extemas, Como nos cassinos de Las Vegas (eos shoppingsaprenderam muito com Las Vegas), 0 dia e a noite nfo se dstinguem: ou o tempo nilo passa, 00 0 fempo que passa também é um tempo sem, ‘qualidades. : ‘A cidade nto existe para 0 shopping, que foi constuido para substitut-la. Por ist, © shopping Se esquece daqilo que 60 rodeia: no s6 fecha © recinto & Vista doladede fore, ainda por cima frrompe, como que cafdo do eéu, no mio de umn quareirio desta mesma cidade que ignora; ou entéo esta jogado num terreno baldio junte A autopista, onde nfo existe passado urbano, Quando o shopping ocupa um espago marcado pela histria (no reaproveitamento de mercados, docas, bar ractes portuérios © mesmo na reforma em segunda potnci como em galerias comerciais que passam a ser goleras de shoppings) uss-o como decoragio, nfo como arquitetra Quase sempre, inclusive no cas0 de shoppings “presevacio- nistas™ de arquitetura antiga, o shopping se incrusta num vazio de meméria urbana, porque representa 0s novos costumes © ‘io precisa pagar tibuto as tradigSes: onde o mercado devola, ‘6 vento do novo se faz sentir com forga (© shopping é todo futuro: consti novos habits, vira onto de referéncia, faz cidade acomodar-s & sua presenge, fensina as pessoas a agirem no seu interior, No shopping pode- se descobrir um “prottipo premonitsrio do futuro": shoppings cada vez mais extensos, dos quais nunce se precise sir, como se fossem uma fébrica flutuante. J4 sfo assim alguns hotéis- shoppings-spas-centros culturais de Los Angele, & claro, Las ‘Vegas. Sto aldeias-shoppings, museus-shoppings,bibliotecas ¢ joppings, hospitais-shoppings. ee EE EEE IEEE TANOERN A Afirma-se que a cidadania se consti isto, os shoppings podem ser vistos com um novo civismo: agora, templo ¢ me Ht RO mercado o, oo, * Por © 0S Monuments ag ado como . n da velha Ttélia romana. Nos foros havia oradores cee iéncia, Politicos e plebeus a serem manobrados; também os shoppin, os eidadios desempenham paps diferentes: uns compre tos simplesmente olham e admiram. Nos shoppings mac derd descobrir, como nas galerias do século XIX, uns ne logia do capitalismo, senio sua realizagdo mais plena, Frente & cidade real, construfda no tempo, o shopping apresenta seu modelo de cidade de servigos miniaturizada, que se autonomiza soberanamente das tradigées e do seu enter, ‘Tem a atmosfera irreal de uma cidade em miniatura, Porque foi construfdo muito rapido e nao conheceu vacilages, marchas © contramarchas, corregdes, destruigdes, influéncias de projetos mais amplos. A hist6ria esté ausente, e, quando existe ali algo de histdria, nao se evidencia o conflito apaixonante entre a re- sistncia do passado e o impulso do presente. A histéria 6 usa- da para desempenhar um papel servil, convertendo-se em deco- raedo banal: preservacionismo fetichista de alguns muros como se fossem cascas. Por isto, o shopping esta em perfeita sintonia com a paixo pelo decorativismo manifestada pela arquitetura dita p6s-moderna. No shopping de intengo preservacionista, a hist6ria é paradoxalmente tratada como souvenir e niio como suporte material de uma identidade e uma temporalidade que Sempre apresentam ao presente seu conflito. Dispensada a histéria, como detalhe, o shopping sofre de uma amnésia necesséria ao bom andamento de seus negécios, Porque se 0s tragos da hist6ria forem evidentes demais, supe- ando a fungio decorativa, o shopping viveria um choque de fung6es e sentidos: para o shopping, a nica maquina semidtica Ou. eGEr—t—e Abundancia e pobreza 19 éa de seu proprio projeto. Em contrapartida, a histéria esbanja ied ‘que o shopping nao tem interesse em preservar, porque BS seu espaco, além de tudo, os sentidos valem menos que a , significantes. . 0 MeO) shopping 6 um srtefato pecfeitamente adequado & hipétese do nomadismo contemporaneo: qualquer pessoa que ienha usado um shopping uma vez pode usar qualquer outro, em outra cidade, mesmo estrangeira, da qual no conhega sequer a liigua © 05 costumes. As massas temporariamente némades que se movem segundo os fluxos do turismo encon- iram no Shopping-2dogura do Tar, onde se apagam os contra- tempos da diferenga ¢ do mal-entendido. Depois de uma tra- vessia por cidades desconhecidas, o shopping é um odsis onde tudo acontece exatamente como em casa: do exotismo que deleita o turista até esgoté-lo, pode-se encontrar um repouso em espagos que sio familiares, mas que no deixam de ser de certa forma atraentes, uma vez que se sabe que eles estiio no “estrangeiro”, sendo, ao mesmo tempo, idénticos em toda par- te. Sem shoppings e sem clubes Mediterranée, o turismo de ‘massas seria impensdvel: ambos proporcionam a seguranga que 86 se sente na pr6pria casa, sem perder-se completamente a emogio provocada pelo fato de que ela foi deixada para tras. Quando o espago estrangeiro e a forga da incomunicabilidade ameagam como um deserto, 0 shopping oferece o paliativo de sua familiaridade, Esta, no entanto, no € a tinica nem a mais importante Contribui¢io do shopping a0 nomadismo. Pelo contririo, a méquina perfeita do shopping, com sua légica aproximativa, €, em si mesma, um tabuleiro para a deriva desterritorializada, Os Pontos de referéncia sio universais: logomarcas, siglas, letras, tiquetas no requerem que seus intérpretes estejam enraizados 20. CENAS DA VIDA POS-MODERNA em nenhuma cultura anterior, ou distinta da cultura do mercado, Assim, 0 shopping produz uma cultura extraterritorial da qual ninguém pode sentir-se exclufdo: mesmo aqueles que menos consomem se movimentam com desenvoltura pelo shopping ¢ inventam alguns usos imprevistos que a maquina tolera desde que nio dilapidem as energias que o shopping administra. 14 vi, nos bairros ricos da cidade, mulheres do subirbio sentadas na beirada dos canteiros, bem perto das repletas mesas de uma praca de alimentagao, dando de comer a seus bebés, enquanto outras criangas corriam entre os baleses de vendas carregando uma garrafa plastica de dois litros de Coca-Cola; ja vi pessoas tirando sanduiches caseiros de sacolas plésticas estampadas com marcas internacionais, que certamente foram reaprovei- tadas diversas vezes desde o instante em que sairam das lojas conforme as leis de um primeiro uso “legitimo”. Tais visitantes, que a maquina do shopping nao contempla, mas tampouco rejeita ativamente, sdo extraterritoriais; mesmo assim, a propria extraterritorialidade do shopping admite seu ingresso, num cu- rioso paradoxo de liberdade plebéia. Fiel & universalidade do mercado, 0 shopping em principio nao exclui Sua extraterritorialidade tem vantagens para os mais obres: estes carecem de uma cidade mais limpa, segura, com bons servigos, transitével a qualquer hora; vivem em subtirbios de onde o Estado se retirou e a pobreza impede que o mercado Ccupe esse lugar vacante; suportam a crise das sociedades Vicinais, a deterioragio das solidariedades comunitérias e 0 noti- cidrio cotidiano da violéncia. O shopping é exatamente uma rea- zacao hiperbélica e condensada de qualidades opostas; além disso, como espago extraterritorial, ele nao exige vistos es- es do arco social, a extraterritorialidade afetar aquilo que os setores médios e altos Abundancia e pobreza 21 direitos: mesmo assim, 0 uso conforme dias 5; jolisio dessas pretensbes fins de semana, quan-"| jderam seu: : i demarcados impede a c bres vo ao shopping nos ais ricos preferem ir a outros luga- | ¢ horirios jistintas. Os pol docs eos Pobre ¢ 5 rransforma 20 correr das horas © dos nifestando esse cardter transocial que, segundo alguns, dias, rai ferro e fogo a virada da pés-modernidade, aaa extraterritorialidade do shopping também fascina as « muito jovens ainda, justamente pela possibilidade de ae riva no mundo dos significantes mercantis. Em favor so fesihisrno das marcas, arma-se no shopping uma cenografia riqufssima na qual, pelo menos em teoria, nada falta: pelo con- trdrio, faz-se necessério ali um excesso que surpreenda até 5 entendidos mais eruditos. O cendrio mostra sua cara de Disneyworld: como em Disneyworld, todos os personagens estio presentes cada um exibe os atributos de sua fama. O shopping é uma exposicao de todos os objetos sonhados. Esse espago sem referéncias urbanas esté repleto de referencias neoculturais, de modo que as pessoas que as des- conhecem podem aprender um know-how que se adquire pelo mero estar ali. O mercado, potencializando a liberdade de escolha (mesmo que isto seja sé uma tomada de partido ima- gindria), educa em saberes que so, por um lado, funcionais em sua dindmica e, por outro, adequados ao desejo juvenil de iberdade antiinstitucional. Sobre o shopping, ninguém sabe mais do que os adolescentes que podem ali praticar um sen- Uimentalismo anti-sentimental no entusiasmo pela exibicdo e pela berdade de transito, apoiada numa desordem sob controle marcas © etiquetas que constituem a paisagem do shopping Substituem 0 elenco de velhos simbolos piblicos ou re! do os res. © mesmo espago S ue rare ue entraram em declinio. Além disso, para as criangas con- 22. CENAS DA VIDA FOS-MODERNA tapindas pela febe high-tech dos computadores, 0 shopping oferece umn espago que parece high-tech, sinda que em verde de cidades peritics isto seja mais um efit estéico do que ma carctristca real de funcionamento. O shopping, enfin, combine plenitude iconogrfica de todas as etiquetas com ag macas “artesanas" de alguns produtos foll-ecol6gico-natuis. tas, completando assim a soma deesilos que define uma ete. sca adolescent. Kitsch industial e compact disc. ‘A rapidez. com que 0 shopping se impés na cultura urbana no tee precedentes ém nenhuma outta mudanga de costumes, nem mesmo neste século marcado pela transit. riedade da mereedora pela intabilidade dos valores: Dir-se- 4 que « mudanga nfo é fundamental nem pode ser comparads com ovtras, anteriores. Mesmo assim, aeredito que ela sntetza os trgosbisicos daquilo que vir, ou melhor, daquilo que veio para fier: em cidades que se fraturam e se desintegram, ease sbrigo antinuclear € perfeitamente adequado ao tom de uma p08. Onde as instituigBes e a esfera piblicaj& no podem consrir marcos que se pretendam eternos, erige-se um monde mento baseadojustamente na velocdade do fluxo mercantl. 0 Shopping apeiena oespetho de uma crise do espago psbico onde € difil constr sentidos; 0 espelho devolve wm ima- gem invertida na qual flu € noite uma ordenada torrente de significant, Mercado Aconteceu recentemente, numa tarde de domingo, num ‘estaurante que comecava a esvaziar. Os pais da menina per- Buntaram o que ela queria ganhar de aniversério. ‘Nocés jé sabem, respondeu ela: a operagio que me pro- ‘meteram no ano passedo, quando fiz 14 = Abundancia e pobresa £2 am, ofrecer um més fag de esq pra et i dept ax oF 82 suns rns inet, modelo ago. de delta, tenis com he cetim com forro de pele sintética pa ee eniatel para o namoradinho ficar para dor- perme gp de festa Calvin Klein orginal ec .xtraleve para levar.na bolsa, um ‘bone- Tanoahs natural un boneco infve va ver sea convent uma es uma pris 00 Cai, a i ul sola fina depois do esque ‘mir todas 08 noi dim reprodutor de CDS © fel de Al Rose 4 ari ‘anho natural, uma cama de gindstica passi vim gbinete de rai ultraviolet, Ientes de contato verdes, sam ago e azul turquesa, um holograma de sua cabeya, tama satral, um péster para seu quarto, com a reprodugdo da pri- Ineia foto que tiraram dela, quando ela nasceu, um corte de cabelo, um implante de pestanas permanente, pintura de sobran- cela, uma festa na discoteca que ela preferisse, um ursinho Sarah Kay gigante. Quero a operagio, insistiu a menina. ‘Acho que vocé tem ancas bastante desenvolvidas para sua idade, argumentou a mie, Detesto meu bumbum, replicou ‘filha, Ndo vejo nada demais nele, disse o irmozinho. Ao que & teimosa reagiu: por isso mesmo! Vocé ainda é muito nova Part tomar essa decisio, afirmou o pai. Todas as minhas ami terse slguma coisa ou vio mexer para suas festas ' € que nio quero ser a tinica idiota! Idiotice & fa A iu © itmo, porque deve doer beca. {et operat, redarg nguém me entende, lamentou a menina, co inf de Luis Miguel, tam 24> CENAS DA VIDA POS-MODERNA se eu niio puder sair em capa de revista... Isso € que vai sar caro, os gastos com a terapia,e sem que eu possa arranjar qual. quer trabalho quando crescer. Nisso ela tem alguma raziio, siderou a mie. Ninguém perguntou a voc quanto custou 0 seu lifting, disse a menina, sem se dar conta de que no precisava atacar seus aliados. Eu mesma paguei o meu lifting; fui até a clinica com um saco cheio de moedinhas ¢ ainda sobrou dinheiro, Sabe-se lé de onde vocé foi tirar essa grana, ironizou a filha. Dinheiro nao fede nem cheira, disse o irmfozinho. Tirei o di- nheiro do estdio, disse a mae. E 0 menino perguntou: do es- tidio de quem? Idiota, esse guri é um idiota, falou o pai. Do jeito que eu sou, com esse bumbum achatado, tenho vergonha até de ir & escola, Todas as garotas mexeram em alguma coisa: alargamento da ponte nasal, realce das magas do rosto, engrossamento do labio inferior, implante de cabelo para diminuir a testa, retoque do queixo, seios maiores, seios mais arredondados, depilagao definitiva do pubis, serradura da dltima costela, ancas, realce dos gliiteos, desbastamento de torno- zelos, endireitamento dos dedos dos pés, levantamento do peito dos pés, suavizagio dos punhos, implante de misculo peitoral duplo, arredondamento dos bragos, estreitamento do pescogo, peeling com 4cidos naturais. E se eu pedisse implante de cabelos lisos? Seria muito pior, porque a gente nao sabe se vai poder continuar usando, Isto sim € que seria jogar dinheiro fo- fa, como as tatuagens que esse doido af fez. Nao se meta comi- 80, reagiu o menino. Nao somos milionérios, disse a mae. E 0 que é que isso tem a ver com meu presente? Desde que comecei 0 Segundo Grau voce j4 fez as bolsas debaixo dos olhos, endireitou 0 desvio de septo, botou colégeno duas vezes e operou a barriga con- Abundancia € poores® ~~ antas vezes vocé fez ani- do Grau? Trés. E quantas anestesia total e, além ha foram vocés dois. {ni de novo. Qui bigut para poder USAT eu enti no SeBum de que cB versiirio ae aaa nem todas tiveram — i ‘iguint isso, reagit 0 . | Nao se metam comigo, TEP do me pega outra coisa até 4 bem, disse 0 Pal, pega ou Me a a Th, aos 18 j4 vou ser uma milionéria © vou && aos 18. Ih, emi, disse a menina. E depois, a mamic disse Jo em Mia vues antes que percebessem que ela ja que ia fazer dois reid pras caidas. Com dois retoques Por estava ficando Fast eae mais ou menos setenta retoques, ano, se viver aft que mais pode aparecer nesse meio tempo. 195 vse preisava se operar era o pai. Com ois beta se fosse mandado embora do trabalho nunca mais conseguiria um emprego decente. Este ano eu também trou me operar, declarou. Afinal, mais coisas dependem de mim sozinho do que de vocés todos juntos. / Somos livres. Cada vez seremos mais livres para projetar nossos corpos. Hoje a cirurgia plistica, amanhi a genética, tor- nam ov tornaram reais todos os sonhos. E quem sonha esses sonhos? A cultura sonha, somos sonhados por icones da cul- tura, Somos livremente sonhados pelas capas de revistas, pelos cartazes, pela publicidade, pela moda: cada um de nés encontra lum fio que promete conduzir a algo profundamente pessoal, hessa trama tecida com desejos absolutamente comuns. A ins- labilidade da sociedade moderna se compensa no lar dos so- nhos, onde com retalhos de todos os lados conseguimos operar a"Imguagenr da nossa identidade social”A cultura nos sonha como uma colcha de Fetalhios, uma colagem de pegas, um con- junt i 5 , 7 a ae terminado de todo, no qual se pode reconhecer 0 otigiggy at? COmPONente foi forjado, sua procedéncia, o 'ginal que procura imitar, chegar morand 26 cENAS DA 1A POS-MODERNA, As identidades, dizem, quebraram, Em seu lugar nig ficou o vazio, mas © mercado. As eigncias sociais descobren, que a cidadania também se pratica no mercado, € que as pes. soas que nao tém como realizar suas transagées ali ficam, por assim dizer, fora do mundo. Fragmentos de subjetividade se obtém nesse cendrio planetério, da qual ficam excluidos os muito pobres. O mercado unifica, seleciona e, além disso, pro- duz a ilusio da diferenga através dos sentidos extramercantis que abarcam os objetos adquiridos por meio do intercémbio mercantil. O mercado é uma linguagem e todos nés procuramos falar algumas de suas linguas: nossos sonhos nio tém muito jogo de cintura, Sonhamos com as coisas que esto no mercado, Séculos atrés, essas mercadorias vinham de outras partes e nao eram necessariamente melhores. A critica dos sonhos foi um dos grandes impulsos para a construgdo da imagem de socie- dades diferentes. Assim, hoje, sao os sonhos seriais do mercado que se apresentam como objeto da critica. O desejo do novo é, por definigao, inextinguivel. Em certa medida as vanguardas estéticas jé sabiam disto, porque uma vez rompidas as comportas da tradicdo, da religido, das autoridades indiscutiveis, 0 novo se impde com seu moto-per- pétuo, O mesmo ocorre no mercado ou, melhor dizendo, no mercado mais do que em qualquer outro cenério. Hoje o sujeito que pode entrar no mercado, que tem o dinheiro para intervir nele como consumidor, é uma espécie de colecionador as avessas. Em vez de colecionar objetos, cole- Ciona atos de aquisigao de objetos. O velho tipo de colecionador subirai os objetos da ulagao e do uso a fim de anexé-los # seu tesouro: nenhum filatelista envia cartas com os selos de sua colegio; nenhum aficcionado por soldadinhos de chumbo permite que uma crianga brinque com eles; as caixinhas de _ necer intatas. O cole mercado de seus 0D- tempo de trabalho ‘9 niio tenham sido adquiridos Mt o valor, vyenda, Mas ele também conte alos ae obi am em sua colegio; jetos tem b atatico que esses ODI a cole; sate a Jetar uma série, 4] z “ o fan pare me algurna, a5 hist6rias que estl0 s de . Wleles. Na colegio tradicional, 0S objeto mre insubstituiveis, ainda que Um ar algum para conseguir outro mais ) ou conhece ris de cada um Yaliosos sao literalme cionador possa sacrific yalioso ainda. | oi eeetram.se assim que ele os agarra. O valor desses aE ee iain erodir-se e entdo enfraquece a forga mag- outs comes Sno aos produtos quando esti0 nas vitrines ven ereado: uma vex adguitidas, as mercadorias perdem sua salma; na colegio, ao contrério, a alma das coisas enriquece & medida que a colegdo vai se tornando mais e mais rica: na cole- fo, a antigiiidade implica maior valor. Para 0 colecionador as avessas, 0 desejo nao tem um objeto com o qual possa confor- mar-se, pois sempre haverd outro objeto chamando sua atengao. Ele coleciona atos de compra-e-venda, momentos plenamente ardentes ¢ gloriosos: os norte-americanos, bons conhecedores {is peripécias da modernidade e da pés-modernidade, chamam de shopping spree a uma espécie de bacanal de compras na qual ats de ee a até 0 esgotamento que encerra o dia nos Ticamente ji Apa shopping Spree € az Bier ee houver condi . Trata-se, tos de consumo na qu: de ser tocado Pelo uso, lor as_avessas sabe que os objetos que um impulso teo- ides econdmicas a0 pé da letra, de uma colecio de ‘al © objeto se consome antes sequer cxsndiidedal 28 CENAS DA VIDA POS-MODERNA No pélo oposto ao colecionador ds avessas estiio os ex. cluidos do mercado: desde os exelufdos que, de qualquer mo. podem sonhar consumos imagindrios, até aqueles cuja pobreza os restringe ao curral das fantasias mfnimas, Es. jotam 0s odjetos no consumo e a aquisi¢ao de objetos nao faz : tes percam seu interesse: para eles, 0 uso dos dimensio fundamental da posse. Porém, salvo no caso destes atrasados para a festa, © desejo de objetos é hoje quase inextinguivel para as pessoas que compreenderam as regras do jogo e estio em condigdes de jogar. Os objetos nos escapam: as vezes porque no podemos consegui-los, outras vezes porque j4 0s conseguimos, mas sempre nos escapam, A identidade transit6ria afeta tanto os co- Jecionadores as avessas quanto os menos favorecidos colecio- nadores imagindrios: ambos pensam que o objeto Ihes dé (ou daria) algo de que precisam, no no nifvel da posse, mas no da identidade. Assim, os Objetos nos significam: eles tém o poder de outorgar-nos alguns sentidos, e nds estamos dispostos a aceité-los. Um tradicionalista diria que se trata de um mundo com que perfeitamente invertido. Mesmo assim, quando nem a religitio, nem as ideologias, nem a politica, nem os velhos lagos comu- nitirios, nem as relagdes modernas da sociedade podem ofere- cer uma base de identificagao ou um fundamento suficiente pa- 12 08 valores, ali esti 0 mercado, um espaco universal e livre, que nos GE algo para substituir os deuses desaparecidos. Os objetos so 0s nossos fcones, quando os outros fcones, que Te- Presentavam alguma divindade, demonstram sua impoténcia Simbélica; Sio"08 nossos cones porque podem eriar uma co- munidade imagindria (a dos consumidores, cujo livro sagrado €0 advertising, : ising, ¢ cujo ritual € 0 shopping spree, e cujo templo ‘€ 0 shopping, sendo a moda seu cédigo civil). ‘Abundancia e pobreza 29 cetos escapam (¢ nao s6 dos desejos das Entretanto, 08 obj sepa idem adentrar com desenvoltura ni Jor os pés)- Aquilo que os torna dese- oon sejam voléteis. A instabilidade dos objetos s° ea da moda codifica a cada temporada. S40 que a enciclop®d'™ ‘dam constantemente, mas, por paradoxal ae ae perdem seu valor porque constantemente Seer ida nio encontra apoio neles, € ninguém vai querer ae en anis velhos s6 porque um dia foi feliz enquanto we Por vue lismo pode salvar os objetos os calgava. Por vezes, 0 sentimentalism ddadesaparigio: guardam-se as camisetas de um time de futebol, —— v SS iol a timentalismo, assim, é uma forma psicol6gica do colecionismo. Em geral, no entanto, 0 passado marca os objetos s6 com a velhice, e niio ha defensores dos objetos velhos, assim como pessoas que niio por cow sequer pod existem os preservacionistas de cidades ou edificios: somente © publico reclamia a preservacio. Os objetos-privados envelhe- cem répido e apenas um projeto perfeito poderia salv4-los de tal deterioragio. Alids, nem isto: os objetos de projeto perfeito vaio parar nos museus € nas colegdes; os objetos de projeto “ordinério” (geralmente, os objetos marcados pela moda) s6 so preservados enquanto nao se puder substituf-los por outros mais novos e melhores. O tempo foi abolido para os objetos comuns do mercado. Nao que eles sejam eternos, ¢ sim por serem inteiramente tran- sitérios. Duram enquanto simbélico, porque, além d: signifi civil) 20 us: no se gastar de todo seu valor le mercadorias, so objetos hiper- antes. No passado, s6 os objetos de culto (religioso ou ©0s objetos de arte tinham essa capacidade de acrescentar © um “algo mais” de sentido que Ihes conferia um signi- 30 CENAS DA VIDA POS-MODERNA ficado maior. Hoje, 0 mercado pode tanto quanto a religiio oy 6 poder: acrescenta aos objetos um “algo mais” simbélico fy. gaz, porém tio poderoso quanto qualquer outro simbolo, Os objetos criam um sentido para além de sua utilidade ou de sua beleza ou, melhor dizendo, sua utilidade e sua beleza sig subprodutos desse sentido que vem da hierarquia mercantil, Nio € & toa que os objetos que ocupam 0 centro e 0 topo da hierarquia sejam mais belos (mais bem projetados) do que os que formam a base € os escaldes médios. Sem diivida, o mer- cado nio é uma nau dos insensatos, onde se atribui maior pon- tuagio a uma etiqueta sem que suas qualidades sejam sequer examinadas. Contudo, a pontuag’o de uma marca, uma etiqueta ou uma firma sempre tem outros fundamentos, que extrapolam suas qualidades materiais, seu funcionamento ou a perfeicao de seu projeto, Tudo isto € sabido. Ainda assim, os objetos continuam escapando de nés. Tornaram-se tio valiosos para a construgiio de uma identidade, so tao centrais no discurso da fantasia, despejam tamanha infamia sobre quem no os possui, que parecem feitos da matéria resistente € inacessfvel dos sonhos. Frente a uma realidade instavel e fragmentéria, em processo de velocissimas metamorfoses, os objetos sio uma ancora, Porém uma ancora paradoxal, pois ela mesma deve mudar o tempo todo, oxidar-se e destruir-se, entrar em obsolescéncia No proprio dia de sua estréia, Com tais paradoxos constréi-se © poder dos objetos: a liberdade daqueles que os consomem Surge da férrea necessidade do mercado de converter-nos em consumidores permanentes. A liberdade dos nossos sonhos de objetos escuta a voz do Ponto teatral mais poderoso, e com ela nos fala. © mundo dos objetos se expandiu e continuard a expan- dir-se. Até ha poucas décadas, 0 que se podia comprar e vender Abundancia e pobreza 31 tinha uma materialidade exterior que s6 excepcionalmente entrava na intimidade de nossos corpos. Hoje, nfo existe um territério onde 0 mercado, com sua imponente maré generali- zadora, no esteja abrindo suas lojas, Sonham-se objetos que transformario nossos corpos, € este € 0 sonho mais feliz ¢ ater- rorizante. O desejo, no tendo encontrado um s6 objeto que © satisfaga nem ao menos transitoriamente, encontrou na cons- trugio de objetos a partir do préprio corpo 0 non plus ultra onde se retinem dois mitos: beleza e juventude. Numa corrida contra 0 tempo, 0 mercado propde uma ficgdo consoladora: a velhice pode ser adiada e possivelmente — nao agora, mas talvez em breve — para sempre vencida. Se a velhice indigna das mercadorias expulsou a tem- poralidade da nossa vida didria (0 tempo dos objetos s6 pesa para quem no pode substitui-los por outros mais novos), agora nos oferecem objetos que alteram nosso corpo: proteses, substncias sintéticas, suportes artificiais, que entram no corpo durante intervengdes que o modificam segundo as pautas de um design que muda de tempos em tempos — alguém ainda quer os peitos chatos que se usavam ha dez anos, ou a magreza da década de 60? No cenério piblico, os corpos devem ade- quar-se & fungio perfeita, A prova de velhice, que antes se esperava das mercadorias. Nio h4 motivos para rejeitar essa tecnologia cirtirgica, imitando o escdndalo com que as senhoras respeitaveis do Novecentos se abstinham de tingir os cabelos Nao se trata de ficarmos horrorizados hoje, diante de inter vengdes que nés mesmos vamos considerar até inocentes den tro de uma década, Ainda assim, precisamos perguntar 0 qu esta sociedade esta buscando em tais avatares da engenhari corporal ou do design de mercado. {quem fala em nossos sonhos de beleza? © gy se conseguitmos no s6 prolongar a a acon, i i mplesmente, — abolit a morte? a, mag Jovens ntasia € um tema € tanto. Nas discotecas, de m, gada, os mul o jovens interpretam a seu modo um ritual} me set carnaval gue todos pensavam definitivamente te uid dg cultura urbana. Entretanto, 0 fim do século o deg, enterra oa a sair A noite. Que ninguém se confunda: essa garota que parece prosttuta de uma hist6ria em quadrinhos da movida espanhola & simplesmente uma méscara, Est fantasiada de prostituta, mas seria um grave mal-entendido se a confundissemos com uma prostituta de verdade (que, por sua vez, jamais se vestiria dessejeto, e sim no estilo das modelos). Confundi-la com uma prostituta equivaleria a crer, num carnaval dos anos 20, que a“dama antiga” ou a “bailarina russa” vinham mesmo do século XVII ou da Russia, Essa garota pintou o rosto e distribuiu sobre o corpo uma série de signos que j4 ndo significam o que the ee a blusa Preta e transparente allo é un) ‘ana saa os sis Semele nao sao labios ai : fie ates _ nga" sao seios nus € Cee tal, colada nas cadiras, a a a aay ae exci use wetinse no pubis, é uma minissaia. Essa ae Versio do traje de festa ie a de madrugada; nfo ¢ ae Citgo entre vn vera le in sathe, nemo resultado da nego- mins fame, Princesa © a8 possibilidades €c0” hein good la niio se veste adaptando uma moda liscotecas da adolescéncia, como se vestia® Abundéncia epobreca 33 ‘as garotas dos anos 50, quando iam tomar ché na boate, na tentativa de serem as reprodugdes Kitsch de suas mies ou das mulheres do cinema, Como seu amigo (colete pintado & mio, em cores mais ou menos rasta, tatuagem no biceps, aros), ela veste uma fantasia de discoteca na qual o humor disputa o ter- reno com 0 erotismo. ‘A pura exterioridade do camaval produz um efeito de superficie, em que tudo esté para ser visto por inteiro: € uma moda que se propée a desnudar, opondo-se & sua fungio tra- dicional de oscilar entre o visto € 0 néo visto. O traje de festa 6 a apoteose da insinuagdo; a fantasia de discoteca realiza quase completamente o ideal de visibilidade total. O traje de festa nao ‘admite combinagées fora de seu sistema: os sapatos, a bolsa, as jéias, o perfume devem pertencer a isso que o traje significa. ‘A fantasia vive de uma certa descontinuidade; sua beleza sur- preendente provém da arte do imprevisto, da imaginacao combinat6ria mais que do cinon. Como a roupa hippie dos anos 60, a fantasia de discoteca nao exclui a combinagio de diferen- tes temporalidades e origens: retré punk, retrd roméntico, retrd cabaré, retré folk, retr6 militar, retré Titanes en el Ring’, retro rasta, gigol6, femme fatale, demi-mondaine, prostituta de Al- modévar. Como na fantasia carnavalesca (que Madonna inter~ preta com deliberada fidelidade), prefixo “retro” € um trago asico do estilo que aposta mais na reciclagem que na produgio do inteiramente novo. A originalidade é sintatica, evoca o collage € niio rejeita uma estratégia de ready-made. A garota esté vestida em dois tempos: hé um contraponto entre o corpo e sta fantasia. A roupa niio foi escolhida para o argentina semethante * N.do T: Trata-se de um programa da televi a0 “Telequete” brasileiro. segundo um calculo facil que, rdades a certos corpos, quanto. macs oF tivres para escolher a moda que iria cobritnt per. contririo, 4 garott escolhe a fantasia e depois a pie con® corpo — amass, em falxas, em pinceladas — g g 7 ° fom que aceitar a fantasia porque esta € mais importante queele, ainda q4e o exiba generosamente. A garota ni fey <° escolha considerando 0 que Ihe cairia melhor; vestiy a fontan pas gosta ou, simplesmente, aquelA que tinha de yey i. de qu &i impée sobr idéias: ih idgia do carnaval se impoe sobre outras idgias: no camavay, o que favorece a beleza dos corpos deve ceder diante do im 9 de mostrar OS COrpos travestidos na fantasia, Bxistem perativ ° y Frisas que $6 so vistas numa discoteca: 0 vestido de festa por sua ve, podia ser usado também para ir 20 teatro oy a um casamento. Quando cantavam no teatro, as velhas estrelas pop nto exceto pela sobrecarga do gla- se vestiam de modo diferent our, nem Doris Day nem Bing Crosby usavam um traje que os distinguisse da idéia que a moda ocidental impunha nas passarelas e nas revistas. Quando Carlos Gardel ou Maurice Chevalier se vestiam de gaticho ou canotier parisiense ficava muito claro que isso era sé um acréscimo decorativo que nfo poderia nem deveria ir além da cena. Desde os anos 60, a cultura do rock, por sua ved, fez do traje uma marca central de seu estilo. O rock foi mais do que uma misica; moveu-se desde o infeio com o impulso de una conracultura que se espalhou pela vida cotidiana. O r0°k a “ modo extramusical: sustentada pel ae mobilizag, Tees Henites de na territério ont m ‘ia hee ae tencia experimentagao. A droga, 4 hae Privado de burgueses curiosos, poets Abundancia e pobreza 35 dentes, dindis ¢ exploradores da subjetividade, foi parte da cultura do rock e, no interior dela, adquiriu um caréter de reivindicagio ptiblica e de fronteira transitavel. Até hoje, no imaginério coletivo, ela € associada aos jovens de um modo moralista € persecut6rio. O rock foi um desafio juvenil (pos- sivelmente 0 tiltimo) e nao se equivocaram aqueles que assi- nalavam seu potencial subversivo fundado na emergéncia de ideologias libertérias. A rebeldia do rock anuncia um espirito de contestagiio que nfo pode ser separado da onda juvenil que entra no cenério politico em finais dos anos 60. Podiam nao ser os mesmos protagonistas, mas ainda que fossem diferentes, ainda que nem se conhecessem, eram parte de um clima cultural. © rock cumpriu um de seus destinos possiveis: deixou de ser um programa para transformar-se num estilo. A expan- so tardia do rock na cultura juvenil menos rebelde acompanha areciclagem de mitos romanticos, satnicos, excéntricos. Como estilo, o mercado recorre a ele, saqueia seus pais fundadores, subtrai o que neles havia de musica pop. Esse movimento de assimilagdo, alids, no é novo: insereve-se como uma forma de circulagio do rock desde o comego. Irmios ¢ inimigos, 0 rock € 0 pop marcharam por caminhos cruzados, inclusive nos mo- mentos de maior qualidade estética. Por isso, hoje, tudo pode ser remetido ao rock, na medida em que este se tornou um filo da cultura moderna, e com 0 desaparecimento de seus aspectos subversivos apés a morte de seus hérdis ou na emer- géncia de discursos mais piedosos (ecologistas, naturistas, es- piritualistas, new age) adotados pelos remanescentes. Convertido-em estilo (0 que também aconteceu com as juvenil 0 vanguardas histéricas), todas as variantes da cultura j citam, Se 0 rock, como os hippies, encontrou no traje uma marca de excepcionalidade, a idéia do traje como diferenciagao 36 CENAS DH" sos culturas se desenvolve em todas as suas aaa ede estilo aparecem e desaparecem; voltam eee wma temporada, 88 1022S € as sombra podem sero porto ato da maquiagem, as feridas do; Go reccladas pela tatuagem, © COUr toma O lugar do jeans o jeans toma o lugar do couro,fepetes com gel ou nucas rag” das, garots que no fundo so um tanto racistas vestem cojere, po Bob Marly. O taje Sobressai Com 0 esplendor de ae, sa obsolescéncia e sua arbitrariedade soberana, Assim, a garota da discoteca dé 0 testemunho de umg forma de anestesia: ela despreza a origem dos estilos que combina em seu corpo. Sua fantasia no tem passado (tampoucs o traje de “bailarina russa” indicava baile folclérico ou nacio. nalidade ussa): nfo a distingue 0 significado dos elementos que ela combina, sim a sintaxe com que eles se articulam. Pura forma, sua fantasia se diferencia da forma da moda “legitima” por nfo aspirar 8 universalidade e sim a uma frago particular: marca sua idade, sua condigzio de jovem, e nio sua condigéo social ou seu dinheiro, Com a fantasia, a garota cumpre por estrepi inteiro 0 ciclo de algo que jé comegava a esbogar-se nos anos 50: 0 “estilo jovem”. A juventude no é uma idade e sim uma estética da vida cotidiana. 7 A infincia quase desapareceu, encurralada por uma ado- ,, lese@ncia precocissima. A primeira juventude se prolonga até odes dos 30 anos, Um ergo da vida se desenvolve sob ort oe juventude, tio convencional quanto quaisquer outros rét- os s ' ‘ ®: Todo mundo sabe que esses limites, aceitos como indica- Goes precisas, Costumam mudar 0 tempo todo. a 1900, @ muther imigrante que jé tinha dois filhos nals a nnit72¥8 to jovem aos 17 anos; seu marido, dez anos omem maduro, Antes, os pobres s6 eram ais Velho, era um hy Petipécias, 8 jaquetas S do punk 8 Skinheads Abundancia e pobreza 37 jovens excepcionalmente; em seu mundo, passava-se direta- ‘mente da infincia & cultura do trabalho, e os que no seguissem esse itinerdrio entravam na qualificagao de excepcionalidade perigosa: delingUentes juvenis, cujas fotos mostram pequenos velhos, como fotografias de meninos raquiticos. Neste caso, a juventude, mais que um valor, podia chegar a ser considerada um sinal de perigo (esse habito deu origem & criminologia, mas a policia o pratica até hoje). Entretanto, em 1918, os estudantes de Cérdoba iniciaram © movimento da reforma universitéria proclamando-se jovens: Ingenieros, Rod6, Palacios, Haya de la Torre acreditavam que estavam falando aos jovens e descobriram que o interlocutor Jovem podia ser insitufdo em beneficio de quem quisesse ins- tituir-se como seu mentor. Também se reconheciam como jovens os dirigentes da Revolugdo Cubana e os que marcharam pelas ruas de Paris em maio de 1968, Tendo a mesma idade, 08 lideres da Revolugio Russa de 1917 nfo eram jovens. A juventude revolucionaria do comego do século supunha ter mais deveres a cumprir do que direitos a reclamar; seu mes- sianismo, como o das guerrilhas latino-americanas, valorizava © tom moral ou o imperativo politico que obrigava os jovens a atuar como protagonistas mais audazes ¢ livres de qualquer vinculo tradicional, Os roménticos, por sua vez, tinham descoberto na ju- ventude um argumento estético € politico, Rimbaud inven- tou, a prego de siléncio e exilio, o mito modemno da juventude, transexual, inocente e perversa. As vanguardas argentinas da década de 20 praticaram um estilo de intervengio que logo foi considerado juvenil. Bertold Brecht, por sua vez, nunca foi jovem, nem Benjamin, Adorno, Roland Barthes. Os retratos de Sartre, Raymond Aron e Simone de Beauvoir, aos 20 anos de pnostam & pose FAVE COM a qual sous ial ensigns ia imate ge Jos ten omorowiez. Eramos ovens, afirma Nizay, fascina me venta dizer que 0S 20 AN0S So a méthor gan eg David Vilas nfo era 1do jover quando, aos 2am gia a revista Conforne, na qual e categoria de “Jovem fei Ge azada por Juan Jos6 Sebrei, dois ow tré5 anog ma saree Wis. Quando falaram de uma “nova geracén, ae vs foram usados como marca de diferenca ideolégica que pom completes, dispensave qualquer Tecurso a uma revin dicagao de juventude. Orson Welles nio era to jovem quando, aos 24 anos fimava 0 Cidaddo Kane. Nem Bufiuel, nem Hitchcock, nem Bergman jamais fizeram qualquer “cinema jovem”, como Jim Jarmusch ou Godard. Greta Garbo, Louise Brooks, Ingrid Bergman, Marfa Félix nunca foram adolescentes: sendo tao jovens, sempre pareceram s6 jovens. Audrey Hepburn foi a pri- meira adolescente do cinema americano: mais jovem que ela, 6 as criangas prodigio. Frank Sinatra ou Miles Davis nao foram jovens como os Beatles. Nem Elvis Presley sacava da juventude como seu capital mais valioso: enquanto apaixonava um pablico adolescente, sua subversdo era mais sexual do que idade apens Mode. Juvenil. Jimmy Hendrix nunca pareceu mais jovem que 0 eterno Jovem, velho jovem, adolescente congelado, Mick Jagger. Até o jeans e a minissaia nao existiu uma moda jovem, nem um mercado que a pusesse em circulagio. Mary Quant, inna academia do novo design. Até 1960, os jovens ae rite 6u, no méximo, parodiavam 0 que ert ice oe Assim, as fotos de atores bem joven’ we nto, ¢ a ou estudantes universitérios nao evocam™ grafia de coroinhas perversos ou roqueitos Abundancia e pobreza 39 dispostos a tudo, o que agora é lugar-comum. Essa iconografia tem apenas um quarto de século, As modelos de publicidade imitavam as atrizes ou a classe alta; hoje, imitam as modelos mais jovens. As atrizes é que imitam as modelos. Somente no caso dos homens a maturidade conserva algum magnetismo Sexual. Madonna € um desafio original porque adota a moda fetré sem incorporar a ela clichés juvenis; com ela, passou a existir uma fantasia s6 usada pelos jovens, que complica o sig- nificado dos sinais de adolescéncia somados a uma moda que exibe a acumulagio de tragos desta Ultima metade de século. Hoje a juventude € mais prestigiosa do que nunca, como \ convém a culturas que passaram pela desestabilizagio dos princfpios hierérquicos. A infancia jé nd proporciona uma base adequada para as ilusbes de felicidade, suspensio tranqtilizado- ra da sexualidade ou inocéncia. A categoria de “jovem”, por sua vez, garante um outro ser de ilusdes com a vantagem de poder trazer & cena a sexualidade e, ao mesmo tempo, desven- cilhar-se mais livremente de suas obrigag6es adultas, entre elas ‘a de uma definigdo taxativa do sexo. Assim, a juventude € um territ6rio onde todos querem viver indefinidamente. No entanto, os “jovens” expulsam desse territério os impostores, que nao cumprem as condigSes da idade e entram numa guerra geracional banalizada pela cosmética, a eternidade quiingtenal das cirurgias estéticas ¢ das terapias new age. A cultura juvenil, como cultura universal e tribal ao mesmo tempo, constr6i-se no marco de uma instituigéo tradi- cionalmente consagrada aos jovens, que est em crise: a escola, cujo prestigio se debilitou tanto pela queda das autoridades tradicionais quanto pela conversio dos meios de massa no espago de uma abundancia simbélica que a escola no oferece. As estratégias para definir 0 permitido e o proibido entraram [DA POS-MODERNA 40 ceNAs DA rise. A permanéncia, que era um ago constitutive dq sridade, foi rompida pelo fluir da novidade. Se 6 quase Heel definir 0 permitido e 0 proibido, a moral deixa dg ar tertério de conflitos significativos para converterse sum elenco de enunciados banais: a autoridade perdeu seu as. pecto terivel eintimidatério (que potencializava a rebeliao) ¢ 6 6 autoridade quando exerce a forga repressiva (como costy. ma fazer, com indesejavel frequéncia). Onde antes se podia enfrentar a proibigao discursiva, hoje parece restar s6 a policia, Onde hé poucas décadas estava a politica, apareceram depois os movimentos sociais e hoje avangam as neo-religiées, © mercado ganha relevo e corteja a juventude, depois em ct ser um de instituf-la como protagonista da maioria de seus mitos. A esquina onde se encontram a hegemonia do mercado ¢ 0 peso decadente da escola ilustra bem uma tendéncia: os “jovens” passam da novela familiar de uma infancia cada vez mais breve para o folhetim hiper-realista que poe em cena a danca das mercadorias frente aos que podem pagar por elas ¢ também frente aqueles outros consumidores imagindrios, aqueles que so mais pobres, aos quais a perspectiva de uma vida de tra- balho e sacrificio nfo atinge com a mesma eficécia do que a seus avés, entre outros motivos porque eles sabem que nao Conseguirdo sequer 0 que seus avés conseguiram, ou porque no querem conseguir s6 0 que estes buscavam. Consumidores efetivos ou consumidores imagindtios, Fi eS 20 mercado de mereadorias e bens simb6- canes say a eos discursos fast preparados espe- ciacia scents S re de cireulagao e, portanto, a obsoles- mercado, ag ee a numa alegoria de juventude: Ly — levem ser novas, devem ter 0 estilo da_moda, di Moda, devem ¢; ‘aplar as mudangas mais insignificantes do Abundancia e pobreza 41 ar dos tempos. A renovagio incessante necessétia a0 mercado capitalista captura o mito da novidade permanente que também impulsiona a juventude. Nunca as necessidades do mercado estiveram afinadas to precisamente ao imagindrio de seus consumidores. Q mercado promete uma forma do ideal de liberdade e, na sua contraface, uma garantia de exclusio. Assim como 0 racismo se desnuda na entrada de algumas discotecas, cujos porteiros sao especialistas em diferenciagdes sociais, o mer- cado escolhe aqueles que estardo em condig6es de, no seu in- ietior, fazer suas escolhas. Todavia, como precisa ser universal, ele enuncia seu discurso como se todos, nele, fossem iguais. Os meios de comunicagao reforgam essa idéia de igualdade na liberdade que € parte central das ideologias juvenis bem pensantes, as quais desprezam as desigualdades reais a fim de armar uma cultura estratificada porém igualmente magnetizada pelos eixos de identidade musical que se convertem em espagos para a identidade de experiéncias. S6 muito abaixo, nas mar- gens da sociedade, esse actimulo de camadas se racha. As rachaduras, de todo modo, tém suas pontes simbélicas: 0 vi- deoclipe e a misica pop criam a ilusio de uma continuidade na qual as diferengas se fantasiam de escolhas que parecem individuais e isentas de motivagio social. Se € certo, como se disse, que se ama uma estrela pop com o mesmo amor com que se torce por um time de futebol, o carter transocial desses afetos trangililiza a consciéncia de seus portadores, ainda que eles mesmos, depois, diferenciem cuidadosamente ¢ até com certo prazer esnobe os negros dos louros, segundo a Iégica que também os classifica na portaria das discotecas. © impulso igualitario que as vezes se cré encontrar na cultura dos jovens tem seus limites nos preconceitos sociais e raciais, sexuais € morais. fODERNA 42. cenas DA VIDA POS: ‘5 deblidade do pertencimento @ uma comunidade de valores e sentidos € compensada POF Unt cenério mais abstatg poréin igualment® forte: @ insistencit de um imaginatio sem asperezas, brilhante, assegura que & propria juventude € fone dos valores com que esse imaginério interpela 08 jovens, © fecha de modo quase perfeito. circulo st Videogames Entro num lugar com barulho de discoteca ¢ iluminagao de bar da zona portudria. Os freqilentadores parecem safdos de um colégio, uma favela ou um escrit6rio onde trabalhariam na faixa mais baixa de especializagao ¢ salério, Cada um na sua, sem que os olhares se cruzem por um instante sequer. De quan- do em quando, um ou outro vai até o balcio do fundo e faz alguma transagio. O balconista desconfia dos clientes ¢ evita qualquer contato além do indispensdvel. Sou aqui a nica mu- Iher. Mais tarde, entram duas garotas, que parecem amigas de um dos estudantes. 7 As paredes do slo esto pintadas de cores écidas, verde mag’, amarelo, violeta. Sobre os painéis coloridos recaem as luzes que vém do teto, com a reverberago adicional de alguns grafismos em néon, raios, estrelas, espirais. Seja como for, nin- ‘guém olha para as paredes ou para o teto; ninguém tem tempo para desviar a vista, Todos sabem que ha pouco a ser visto. O mufdo da musica — uma percusso que se repete sem varia- ies com ° eo es uma melodia brevissima, bem simples, desonm apas ie ee vel — mistura-se a outra sé dléies mane cos, golpes surdos, sibitas ondas s de sintetizador, tiros, vozes irre- conheciveis, boin, animado, ‘8 fong, clash, a trilha sonora do desenho Abundéncia e pobreza 43 A luz fria se mistura a outras luzes: clardes, raios, escu- recimentos até o breu total, mudangas de planos de cor, auréolas que se chocam contra a parede e os corpos. Siio efeitos de Juz que se mostram a si mesmos, valem pelo que sio e nilo pelo que permitem ver ao redor. Sio como coisas que preen- chem o espaco ¢ 0 transformam num holograma. Sem a luz € © som, o lugar ficaria vazio, porque na verdade seus méveis so esses mesmos efeitos: trata-se de um cenério de luzes onde cada metro quadrado apresenta uma disposigao nitidamente delimitada de cores e rufdos. Por isso, cada um pode isolar-se e ficar na sua, Se me aproximo de algum dos freqtentadores, meio de lado, para ver 0 que est fazendo, ele nfo desvia os olhos; essa falta de contato me permite supor que nao estou incomodando muito, Seus olhos esto abstrafdos num video, suas mos sepa- radas manejam as alavancas e os botdes de um painel. As ve- zes, um movimento da cabega da a idéia de surpresa, contra- riedade ou alegria, mas em geral essas pessoas no so de dar na vista, est’io ensimesmadas, abstrafdas na configuragio visual do video que muda conforme os resultados instantineos de seus atos ou as decisées inescrutiveis dos chips. A cada trés, quatro ou cinco minutos, retorna-se a0 princfpio: letras no video indicam que, apesar de tudo parecer idéntico e infinito, nao é bem assim, o contador zerou de novo, € hora de comegar a contagem outra vez. As maquinas so um infinito periédico, em que cada tanto encerra um ciclo € inicia outro, basicamente igual,-mas ao mesmo tempo caracterizado por variagdes. Como um infinito periddico, hipnotizam e indu- zem a busca de um limite inalcangdvel acima do qual 0 jogador venceria a maquina. 44. CENAS DA VIDA POS-MODERNA Do outro lado do salio existe um mundo mais arcaico, Painéis verticais € horizontais, armados conforme a estética pop do grafismo dos anos 50, oferecem uma superficie povoada de obstéculos (cogumelos, pontes, buracos, barreiras, labirin- tos, arcos) por onde circula uma bola de metal: avanga, retroce- de e desaparece. Avanga, retrocede e desaparece, mas, ao fazé- lo, produz miisica: a mtisica que o jogador joga, com as mios nas laterais do painel horizontal, impedindo que a esfera caia no poco de onde ja nfo sai até que tudo recomece mais uma vez. Observo que os jogadores golpeiam, inclinam, empurram os pés e as laterais da maquina, que no é operada somente com as méios, mas com todo o corpo. No painel vertical, as luzes iluminam diferentes setores, desenhos de animais, anées, roletas, naves espaciais, gorilas, florestas, praias, piscinas, mulheres, sol- dados, dinossauros, atletas. Os desenhos so verdadeiros de- senhos (ao contrério das figuras geometrizadas da maioria dos videos); os sons também tém algo de real porque a esfera em movimento bate fisicamente nos cogumelos ou nas barreiras de metal. Essas maquinas (as que nilo tém video) lembram um cas- sino: Las Vegas no espago de dois metros por um. Nao estou querendo dizer simplesmente que os cassinos de Las Vegas esto cheios dessas méquinas e de videos como os do outro lado. Cada uma dessas méquinas tetiza 0 ruido € a iluminagio de lum casino, a repeti¢ao, a concentragio, 0 infinito petiédico de um cassino. Além disso, copiam a estética de Las Vegas (ou quem sabe seria melhor dizer que Las Vegas ¢ estas maquinas tem a mesma estética?), : Dou uma volta em U e chego a safda, Ali, a cada lado 'a porta, ha dois grandes teldes nos quais se reproduz um jogo Abundancia e pobreza 45 de bola; como na televisio, 0 resultado aparece na base do ‘video, identificando os times pela cor de suas camisetas. Um homem olha, como eu, para essa partida realmente infinita e periddica, vai até 0 baledo e retorna com uma ficha, disposto a intervir para mudar a ordem da méquina, Em outro lugar como esse, havia um cenério de fundo, com escadaria e cascata, teto decorado e pintado de dourado, com uma fonte que jorra égua de verdade. Provavelmente nes- ses ambiciosos restos de decoragio estar a metéfora que procuro para entender o jogo em questo. Esse saldo era um cinema. Hoje, 0 cinema foi dividido, como uma imagem de televisfio processada por computador, em mais de cem cub/- culos. Onde a escuridio e o siléncio admitiam uma s6 super- ficie iluminada e uma s6 fonte de som, agora h4 cem super- ficies e cem sons. No entanto, nada tem o futuro assegurado: ‘em pouco tempo mais, a realidade virtual acabaré com as telas de videogame e s6 os roqueiros nostilgicos ou os ar- tistas do revivalismo freqiientario os poucos fliperamas que no tiverem sido transformados, como as velhas juke-boxes, em pegas de decoragdo retré pop. As casas de videogames nao podem evitar 0 “efeito espelunca” — nem mesmo as mais luxuosas, que combinam © Kitsch ¢ um certo ar East Side nova-iorquino com escadas de ferro e biombos de metal dobravel, ou grafismos de publicidade pés-moderna com as cores fosforescentes que se usavam hé dez anos. Melhor dizendo, suportam esse feito como uma das consequéncias de sua cenografia, Nos bairros, algumas mies que acompanham seus filhos parecem com pletamente fora de lugar, porque nfo sabem como se porta como evitar o golpe da luz ou do som: levaram seus filhos @ «um lugar inevitavel porém perigoso e acreditam que sua preseng 4G cenas DA VIDA POS-MODERNA i poder salvi-los de um vicio que consideram terrivel justa. vee porque reir seus filhos dagueles espagos imaginrios avers onde se pode exercer a vigilancia. Seus filhos, tendo oe fontroles 2 mio, so mais habeis do que elas. E também vnais inteligentes, porque ndo se perdem no labirinto grafico, pelo qual elas aio se interessam, pois no compreendem, oy o compreendem, porque nao as interessa. Essas mies nag am o “efeito espelunca”; alids, o ressaltam: estio ali co- se amet mo quem acompanha um alcodlatra até o bar, com a finalidade inalcangavel de que ele tome uns copos a menos. Muito mais que a mecnica dos jogos, 0 “efeito espe- lunca” marca a presenga de uma subcultura cujos membros valorizam feitos que o resto da sociedade no considera tanto. Por exemplo, ganhar da maquina, o que significa vencer alguém que nao é teoricamente igual, mas sim realmente diferente; por exemplo, ganhar sem obter outra recompensa além da simbé- lica. (Nos cassinos, quando se ganha das maquinas as recom- pensas so, evidentemente, materiais. Numa ou noutra casa de videogames cheguei a ver apostas, mas isso é francamente excepcional), O “efeito espelunca” também tem, entretanto, algo de cassino: cada jogador est4 isolado para definir seu destino num combate singular com a maquina, e é maquina, € no aos outros, que se deve demonstrar destreza, impavidez, Perspicdcia, arrojo e rapidez. Se & certo que muitas méquinas Permitem 0 desafio entre dois jogadores, 0 mais comum, nos lugares pébli é hg Pablicos, é o enfrentamento individual do jogador com '4 méquina. Como no cassino, assistir & performance dos jogadoi Sortudos, mas, quadas eel Como nos casinos, as maneiras ade~ aoe a Tegra de bom-tom: nao olhar de modo a Sentir-se olhado e vice-versa, no fazer 0S alguns observadores podem res mais habilidosos ou mais Abundincia e pobreza 47 gestos de quem sabe que esté sendo olhado. © curioso metido co exibicionista se distinguem negativamente na paisagem dos videogames. “efeito espelunca” também tem a ver com a presenga minoritéria de mulheres. Algumas vio atrés dos namorados; outras, mais inclinadas ao jogo, em geral se restringem aos videogames geométricos, que sio menos surpreendentes na proliferacdo de sons, mas impdem dificuldades mais intelec- tuais, O Ultimo Tetris tridimensional apresenta verdadeiros de- safios & previsio de configuracées espaciais sobre trés planos ¢ um quarto eixo temporal que pauta a velocidade de queda dos volumes. Seja como for, as mulheres so poucas e ninguém olha para elas. Nao so ignoradas por serem mulheres, ¢ sim porque o hébito induz a cruzar a menor quantidade possivel de olhares sobre os espacos reais; os espagos reais embotam o olhar ¢ tiram sua acuidade e sua capacidade de enfoque refinado, necessdrios para enxergar bem os espagos das telas de video. Obviamente, hé mais mulheres nas casas de videoga- mes situadas nos bairros residenciais (mais familiares, menores e mais pobres na sua oferta técnica) e nos enormes videsdro- mos do centro, que interrompem a decadéncia de algumas ruas, antes tradicionais, com uma decoragio generosa ¢ a presenga de segurangas, que muitas vezes sio apresentados como um dos servigos especiais oferecidos pela casa. Quando se descobre a presenga de um desses segurangas, 0 “efeito espelurica” au- menta imediatamente. As méquinas estdo para além de tudo o que se disse. Na verdade, sio um conjunto de elementos de temporalidades diversas: as alavancas € os botdes de controle pertencem A era da mecfnica; os videos, & era de imagens e sons digitalizados. A combinagio dessas duas tecnologias produz um hfbrido ainda 48° CENAS DA VIDA POS-MODERNA i ongruente que 0 teclado bem projetado de um com. putador barato. Assim, combater essas méquinas requer uma Soma de habilidades de tipos diferentes: 0 manejo das alavancas fe dos botdes se inscreve na ordem dos reflexos corporais; en. tretanto 0 que se passa no video € 0 que se deseja que ali acon. tega obedece a uma légica extracorporal. Muitos dos jogos trabalham com as dificuldades resultantes dessa heterogenej. dade. Até que ponto posso acelerar meus reflexos corporais para conseguir vencer a velocidade dos chips? Que nivel de dificuldade posso atingir, nao pela previsio abstrata, mas pela capacidade fisica de transformé-la em agdes que aparecam no video? Sio estas as perguntas cruciais de todo bom jogador de videogames. Os maus jogadores (como os maus bebedores, que s6 bebem para embriagar-se) nao procuram respondé-las. Sio facilmente identificdveis porque operam a alavanca como se fossem sondmbulos, apertam os botdes 0 tempo todo, nio se sujeitam a rapidissima légica de efeitos e conseqiléncias, nfo mudam de tética; vo até o fim do jogo como se cumprissem um destino inexordvel, que nunca conseguem adiar ou transpor, através de uma pontuagio mais elevada. Esses maus jogadores (a maioria dos que vi) sao arrebatados pela velocidade da méquina e acreditam que a rapidez do reflexo fisico poder um dia compensar a aceleragio visual. Trabalham contra 0 tempo. © bom jogador, por sua vez, trabalha com o tempo: é répido apenas o bastante, néo mais. Os maus jogadores vio contra a légica do jogo, que nao esté sé na aceleragao fisica, mas numa teoria do encontro (como a balistica) entre a aceleragao dos movimentos € a traduco dos reflexos em decisbes que retat- demo. fim. Raramente encontrei bons jogadores, mas jé existem manuais de auto-ajuda nos Estados Unidos. Os jogadores no aprendem muito quando se entregam ao videogame como se fosse um programa de televisio um pouco mais participativo. a Abundanciae pobreza 49 Ha méquinas que simulam um filme ruim e tém con- troles imitando pistolas ou rifles. Embora sua tecnologia seja mais sofisticada, conceitualmente estio na pré-histéria do video- game. O realismo das imagens produzidas por tais jogos é banal ¢ incrivel: banal porque traduz em {cones a independéncia icénica original das imagens clissicas do videogame; incrivel porque, segundo as leis do videogame, s6 se pode admitir um realismo naturalista perfeito (como a realidade virtual) € nio a aproximagdo grosseira de imagens mais velhas do que a tecno- logia que as torna possiveis. Poucos jogadores sutis escolhem essas maquinas, cujas regras, ainda por cima, sto simplérias, e cuja imitagao aproximada acaba sendo ofensiva & imaginagio totalmente livre do referente “naturalista” que se destaca nos jogos mais bem projetados. Em geral, essas maquinas (como as que apresentam partidas de futebol nas quais se enfrentam times realmente existentes) encontram-se nas entradas das casas de videogame, para atrair aqueles que nao so verdadeiros aficionados, que comegam a jogar porque as méquinas lhes fazem lembrar de outra coisa e no por Ihes mostrarem algo de inteiramente novo. No mesmo local se encontram as méquinas que simulam a condugiio de um carro pela estrada ou numa pista de corridas. Pode-se dizer que sio as méquinas infantis por exceléncia, Didéticas, com ligeiras mudangas de programagao poderiam ser incorporadas & auto-escola, que ensina a dirigir respeitando os sinais de transito, acelerando apropriadamente nas curvas evitando os bélides que a qualquer momento podem aparecer pela frente. Multiplicadoras de uma onipoténcia trivial, adap- tam-se aos desejos mais previstveis. Seu didatismo nao ensina nada de novo; a emogiio que produzem vern de uma variante hipertecnolégica dos carrinhos de bater, dos parques de diver- ODERNA 50. cenas DA VIDA POSM ODER ‘oentendem a abstragio do videogame .estilizada inventada pelos Nintendo recorrem a esses jogos, mals afins 20 imagindrio do mercado rblcidade tlevisiva do que & estética do videbdromo, vas maquinas cléssicas (chamemos assim 2quelas que, como 0 Pacman, produzem seus préprios herdis) so as mais ce snais. Elas deixam bem clara aI6gica de variagio e repeticio gue € a lei do jogo. E também assinalam que © segredo esté visi limite nitido entre ciclos de peripéciais e vazio de sentido narrativo, Em cada unidade, se ganha ou se perde sem que se altere qualquer relato, A progressio consiste em acumular pontos a favor ou evitar 0 aumento das dificuldades pela abertura de saidas poss(veis. Nao hd uma histéria, e sim uni- dades regulares, ao final das quais o jogador fica sabendo se ganhou ou perdev. O videogame clissico rejeita a narrativa: o suspense depende das contas que a maquina e o jogador fazem depois de cada troca de tela, a cada acionamento de botio ot movimento de alavanca. Os jogos classicos estilizaram perso- nagens e objetos do imagindrio das hist6rias em quadrinhos, da reportagem ou do filme de aco, mas sua veracidade é maior nos personagens inventados. Porque existe Pacman, pode haver avides, discos voadores, animais pré-hist6ricos, lutadores de caraté e princesas aprisionadas em outros videogames. Pacman € Tetris sio 0 tipo ideal de semiose a que foram adaptados os Personagens ¢ objetos que vém de Ambitos exteriores ao chip. E estes ficam tanto melhores quanto mais perderem os tragos Pertencentes a dimensdes gréficas ou narrativas historicamente ae a0 videogame. Entretanto, anuncia-se para um futuro Proximo a superago desses jogos classicos pelo cruzamento entre filmes e j ter ine © Jogos. Somente ento sera reconhecido seu caré- soes, Os jogadores que ni geométrico ou iconografi Abundancia e pobreza 51 Jé se disse que 0s videogames sio um “camaval de signi- ficantes”. Assim é interpretado 0 esvaziamento de narragio que eles realizam, mesmo 0s que, no titulo e no sistema de persona- gens, prometem uma histéria, Na realidade, o cumprimento dessa promessa nao faz diferenca para o jogador, que nio co- mega 0 jogo para ver se este afinal revelard o desenlace de uma fiego quase inexistente, ¢ sim para produzir um desenlace ndo- {ficcional em seu duelo com a méquina, Os signos que evocam personagens, oposig6es, hierarquias, inimigos ¢ ajudantes (num espantoso modelo estrutural-folk-televisivo) provam que possivel um sistema de personagens sem hist6ria. Da mesma forma, existe ago sem narragio em cada uma das unidades do jogo: algo aproxima os videogames do tédio de um infinito ciclico, como o desenho animado de gato ¢ rato, ou o do papa- Iéguas. Nao é preciso recordar a unidade anterior para passar para a seguinte. E mais: se o jogador se detivesse em recorda- ges ficaria imediatamente atrasado na corrida imposta pelo jogo. O que existe, ¢ os antincios publicitérios que acompanham ‘0s jogos o apresentam como argumento de venda, € um tema, geralmente descrito da perspectiva do jogador, que o antincio converte em primeira pessoa: vocé é um piloto de guerra que deve cumprir uma missio, sobrevoando um territério monta- nhoso desconhecido, etc., etc., etc, Também existem jogos “intelectuais”, para computadores domiciliares, que cortejam a boa consciéncia de seus usuarios, assim convidados a construir relatos completos, com tempo disponivel para que imaginem alternativas, F ‘Tema sem narragio, tema em estado primitivo antes da” peripécia, dos desvios, das linhas secundérias. Portanto: tema/ sem significantes. No meio, repetigées organizadas em ciclo verdade nio esta no enfren- que exigem uma performance cuja »OS-MODERNA 52. cenas DA VIDA r tamento de personagens, © sim no duelo entre jogador ¢ Maquin, Neste sentido, 0 videogame classico produz uma trama nig. narrativa, composta pelo encontro de aces fisicas COM suas conseqiiéncias digitais. Muitos filmes hoje imitam, sem alcanca de todo, esse esvaziamento de historia: onde esteve a histérig, repete-se a peripécia. O videogame, como esses filmes, Separa narragao e peripécia, personagem e narracao, do conjunto que tradicionalmente os unira. Carnaval, portanto, de peripécias sem relato, préprio de uma época em que a experiéncia do relato tende a desapa- recer: 0 videogame propée a ilusdo de que as ac6es um dia poderéo mudar o infinito periddico que a maquina tem ins- crito e apresenta ao jogador em potencial, na primeira tela do jogo, onde suas alternativas se repetem indefinidamente. Como no zapping televisivo, também aqui existe algo dessa combi- nagao de velocidade e desvanecimento, que poderia ser o signo de uma época.

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