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PERSONAGENS:
DORA DULEBOV
A GRAN DUQUESA
IVAN KALIAYEV
STEPAN FEDOROV
BORIS ANNENKOV
ALEXIS VOINOV
SKURATOV
FOKA
O CARCEREIRO
PRIMEIRO ATO
No apartamento dos terroristas. Pela manhã.
Abre o pano. Em silêncio. DORA e ANNENKOV em cena, imóveis. Se ouve uma vez a
campainha. ANNENKOV faz um gesto para deter DORA que parece querer dizer algo.
A campainha soa duas vezes seguidas.
ANNENKOV: É ele.
(Sai. DORA aguarda, sem mover-se. ANNENKOV volta com STEPAN, a quem agarra
pelos ombros.)
ANNENKOV: É ele! Aqui está Stepan.
DORA (se aproxima de STEPAN e lhe estende a mão): Que alegria, Stepan!
STEPAN: Olá, Dora.
DORA (lhe olha): Três anos já.
STEPAN: Sim, três anos. O dia que me detiveram, ia me reunir com vocês.
DORA: Te esperavamos. Passava o tempo e cada vez me encolhia mais o coração. Não
nos atrevíamos nem a olhar-nos.
ANNENKOV: Tivemos que mudar de apartamento outra vez.
STEPAN: Eu sei.
DORA: E lá, Stepan?
STEPAN: Lá?
DORA: Na cadeia?
STEPAN: As pessoas fogem.
ANNENKOV: Sim. Nos alegramos em inteirar-nos de que poderias chegar a Suíça.
STEPAN: Suíça é outra cadeia, Boria.
ANNENKOV: O que disse? Lá são livres, ao menos.
STEPAN: A liberdade será uma cadeia enquanto ainda houver um só homem
escravizado em terra. Eu era livre e não deixava de pensar na Rússia e seus escravos.
(Silêncio.)
ANNENKOV: Me alegra muito, Stepan, de que o partido tenha te mandado aqui.
STEPAN: Era necessário. Me sufocava. Atuar, atuar por fim... (Olha ANNENKOV.) O
mataremos, verdade?
ANNENKOV: Seguramente.
STEPAN: Mataremos esse maldito. Você é o chefe, Boria, e te obedecerei.
ANNENKOV: Não preciso da tua promessa, Stepan. Somos todos irmãos.
STEPAN: Falta disciplina. Compreendi isso na cadeia. O partido socialista
revolucionário necessita disciplina. Disciplinados mataremos o gran duque e
destruiremos a tirania.
DORA (aproximando-se dele): Sente-se, Stepan, deve estar cansado depois dessa longa
viagem.
STEPAN: Eu nunca me canso.
(Silêncio. DORA se senta.)
STEPAN: Esta tudo pronto, Boria?
ANNENKOV (mudando de tom): A um mês, dois dos nossos estudam os movimentos
do gran duque. Dora reuniu o material necessário.
STEPAN: Está redigida a proclamação?
ANNENKOV: Sim. Toda Rússia saberá que o gran duque Sergio foi executado com
uma bomba pelo grupo de combate do partido socialista revolucionário para acelerar a
liberação do povo russo. A corte imperial saberá também que estamos decididos a
exercer o terror até que a terra seja restituída ao povo. Sim, Stepan, tudo está preparado!
Se aproxima o momento.
STEPAN: O que eu devo fazer?
ANNENKOV: Para iniciar, ajudará a Dora. Schweitzer, a quem você substituirá,
trabalhava com ela.
STEPAN: Morreu?
ANNENKOV: Sim.
STEPAN: Como?
DORA: Um acidente.
(STEPAN olha para DORA. DORA desvia o olhar.)
STEPAN: E depois?
ANNENKOV: Depois, veremos. Deves estar disposto a substituir-nos, pegando o caso,
e a manter o enlace com o Comitê Central.
STEPAN: Quem são nossos camaradas?
ANNENKOV: Conheceste Voinov na Suíça. Confie nele, a pesar de sua juventude. Não
conheces a Yanek.
STEPAN: Yanek?
ANNENKOV: Kaliayev. O chamamos também o Poeta.
STEPAN: Não é um nome para um terrorista.
ANNENKOV (rindo): Yanek pensa o contrario. Diz que a poesia é revolucionaria.
STEPAN: Só a bomba é revolucionaria. (Silêncio.) Dora, crês que saberei te ajudar?
DORA: Sim. A única coisa que vai ter que cuidar é de que não se rompa o tubo.
STEPAN: E sê se romper?
DORA: Assim morreu Schweitzer. (Uma pausa.) Por quê está sorrindo, Stepan?
STEPAN: Sorrindo?
DORA: Sim.
STEPAN: Me acontece as vezes. (Uma pausa. STEPAN parece reflexivo.) Dora,
bastaria uma só bomba para fazer voar esta casa?
DORA: Uma só não. Mas faria estragos.
STEPAN: Quantas seriam necessárias para fazer voar Moscou?
ANNENKOV: Esta louco! Que quer dizer?
STEPAN: Nada.
(A campainha chama uma vez. Todos escutam e aguardam. Chamam duas vezes.
ANNENKOV passa para a ante sala e volta com VOINOV.)
VOINOV: Stepan!
STEPAN: Salve.
(Apertam as mãos. VOINOV se aproxima de DORA e a beija.)
ANNENKOV: Tudo ocorreu bem, Alexis?
VOINOV: Sim.
ANNENKOV: Estudaste o percurso desde o palácio até o teatro?
VOINOV: Agora posso desenha-lo. Veja (desenha.) Esquinas, ruas estreitas,
obstáculos..., o carro passará abaixo de nossos narizes.
ANNENKOV: O que significam essas duas cruzes?
VOINOV: Uma pracinha onde os cavalos terão que moderar o passo, e o teatro onde se
deterão. Na minha opinião, são os melhores lugares.
ANNENKOV: Me dê!
STEPAN: E os informantes?
VOINOV (vacilante): Há muitos.
STEPAN: Te impressionam?
VOINOV: Não me sinto tranquilo.
ANNENKOV: Ninguém se sente na frente deles. Não te preocupes.
VOINOV: Não temo nada. Acontece que não me acostumei a mentir.
STEPAN: Todo mundo mente. O que faz falta é mentir bem.
VOINOV: Não é fácil. Quando eu era estudante, meus companheiros se afastaram de
mim por que não sabia dissimular. Dizia o que pensava. Ao final me expulsaram da
Universidade.
STEPAN: Por quê?
VOINOV: No curso de história, o professor me perguntou como Pedro o Grande havia
edificado Petrogrado.
STEPAN: Boa pergunta.
VOINOV: Com sangue e a chicotadas, respondi. Me expulsaram.
STEPAN: E depois...
VOINOV: Compreendi que não bastava denunciar a injustiça. Era mister dar a vida para
combater-la. Agora sou feliz.
STEPAN: E no entanto, mentes?
VOINOV: Minto. Mas não mentirei o dia que jogarei a bomba.
(Chamam. Duas campainhas, depois uma só. DORA se precipita.)
ANNENKOV: É Yanek.
STEPAN: Não é a mesma senha.
ANNENKOV: Yanek se diverte mudando-a. Tem sua senha própria.
(STEPAN se encolhe de ombros. Vai falar com DORA na ante-sala. Entram DORA
e KALIAYEV, de braços dados. KALIAYEV rí.)
DORA: Yanek. Este é Stepan, que substitui Schweitzer.
KALIAYEV: Bem vindo, irmão.
STEPAN: Obrigado.
(DORA e KALIAYEV se sentam em frente aos demais.)
ANNENKOV: Yanek, estás seguro de que reconhecerás a carrogem?
KALIAYEV: Sim, a vi duas vezes muito demoradamente. E quando aparecer a
reconhecerei entre mil! Anotei todos os detalhes. Por exemplo, um dos cristais da liteira
esquerda esta desportilhado.
VOINOV: E os soplones?
KALIAYEV: Aos montes. Mas somos velhos amigos. Sempre me compram cigarros.
(ríem.)
ANNENKOV: Pavel confirmou a informação?
KALIAYEV: O gran duque irá esta semana ao teatro. Em algum momento, Pavel saberá
o dia exato e entregara uma mensajem ao porteiro. (Se volta para DORA e riem.)
Teremos sorte, Dora.
DORA (olhando-o): Já não é um carroceiro? Agora estás feito um senhor. Que bonito
estás.
KALIAYEV (ri): É certo, estava muito orgulhoso dela. (A STEPAN e a ANNENKOV.)
Passei dois meses observando aos carroceiros e mais de um mês ensaiando em meu
quarto. Meus colegas nunca tiveram suspeitas. «Um tipão», diziam. «Seria capaz de
vender até os cavalos do kzar.» E tratavam de me imitar.
DORA: Naturalmente, isso te divertia.
KALIAYEV: Sabes que não posso impedi-los. O disfarce, a nova vida... Tudo me
divertia.
DORA: Não gosto dos disfraces. (Mostra seu vestido.) E além do mais, esta antiguidade
luxuosa! Boria já deveria ter me encontrado outra coisa. Uma atriz! Singela como sou!
KALIAYEV (ri): Estas tão bonita com este vestido.
DORA: Bonita! Adoraria estar. Mas não há porque pensar essas coisas.
KALIAYEV: Por quê? Por que sempre esse olhar tão triste, Dora? Tem que ser alegre.
Tem que ser orgulhosa. A beleza existe, a alegria existe! «En los lugares tranquilos
donde te anhelaba mi corazón...
DORA (sorridente): Yo respiraba un eterno verano...»
KALIAYEV: Oh, Dora, você lembra desses versos. Sorria. Isso me alegra muito.
STEPAN (cortando-o): Estamos perdendo tempo. Boria, suponho que já avisaste o
porteiro, não?
(KALIAYEV lhe olha com assombro.)
ANNENKOV: Sim. Dora, queres descer? Não esqueça a gorjeta. Voinov te ajudara
depois a juntar o material no quarto.
(Saem cada um para um lado. STEPAN vai até ANNENKOV com passo decidido.)
STEPAN: Eu quero jogar a bomba.
ANNENKOV: Não, Stepan. Já estão designados os que vão jogá-la.
STEPAN: Te rogo. Sabes o que isso significa para mim.
ANNENKOV: Não. Regras são regras. (Um silêncio.) Eu não a jogo e vou esperar
aqui. A regra é dura.
STEPAN: Quem lançará a primeira bomba?
KALIAYEV: Eu. Voinov joga a segunda.
STEPAN: Tú?
KALIAYEV: Te entranha? Não tens confiança em mim!
STEPAN: É necessário experiência.
KALIAYEV: Experiência? Sabes muito bem que só se faz uma vez e depois... Ninguém
jogou nunca duas vezes.
STEPAN: É necessário uma mão firme.
KALIAYEV (mostrando sua mão): Olha. Crês que tremerei?
(STEPAN se afasta.)
KALIAYEV: Não tremerei. Vamos! Com o tirano a minha frente vou vacilar? Como
podes crer nisso? E mesmo que me trema o braço, conheço um meio seguro de matar o
gran duque.
ANNENKOV: Qual?
KALIAYEV: Joga-se abaixo das patas dos cavalos.
(STEPAN encolhe de ombros e vai sentar-se ao fundo.)
ANNENKOV: Não, não será necessário. Ele poderá tentar fugir. A organização
necessita de ti, deves se cuidar.
KALIAYEV: Obedecerei, Boria! Que honra, que honra para mim! Oh, serei digno dela.
ANNENKOV: Stepan, tú estarás na rua enquanto Yanek e Alexis esperam a chegada da
carroagem. Passará certo tempo diante de nossa janela e trocaremos uma senha. Dora e
eu esperaremos aqui o momento de lançar a proclamação. Com um pouco de sorte, o
gran duque cairá.
KALIAYEV (com exaltação): Sim, o matarei! Que felicidade se tivermos êxito! Pois o
gran duque não é nada. Terá que golpear mais acima!
ANNENKOV: Primeiro o gran duque.
KALIAYEV: E se fracassarmos, Boria? Devíamos imitar os japoneses.
ANNENKOV: Que queres dizer?
KALIAYEV: Durante a guerra, os japoneses não se rendiam. Se suicidavam.
ANNENKOV: Não. Não pense em suicídio.
KALIAYEV: Em que, então?
ANNENKOV: No terror, de novo.
STEPAN (falando desde o fundo): Para suicidar-se tem que querer muito. Um
verdadeiro revolucionário não pode amar a si mesmo.
KALIAYEV (voltando-se vivamente): Um verdadeiro revolucionário? Por quê me tratas
assim? Que te fiz eu?
STEPAN: Não me agrada os que entram na revolução porque se entedíam.
ANNENKOV: Stepan!
STEPAN (levantando-se e aproximando-se deles): Sim, sou brutal. Mas para mim o
ódio não é um jogo. Não estamos aqui para admirar-nos uns aos outros. Estamos aqui
para triunfar.
KALIAYEV (suavemente): Por quê me ofendes? Quem te falou que eu me entediei?
STEPAN: Não sei. Mudas as senhas, te agrada fazer o papel de carroceiro, dizes versos,
queres arremessar abaixo das patas dos cavalos, e agora, o suicídio (O fita.) Não tenho
confiança em ti.
KALIAYEV (dominando-se): Não me conheces, irmão. Amo a vida. Não me entedio.
Entrei na revolução porque gosto da vida.
STEPAN: Eu não amo a vida e sim a justiça, que esta por cima da vida.
KALIAYEV (Com visível esforço): Cada um serve a justiça como pode. Tem que
aceitar que somos diferentes. Teremos que querer-nos, se pudermos.
STEPAN: Não podemos.
KALIAYEV (estalando): Então, o que esta fazendo conosco?
STEPAN: Vim para matar um homem, não para ama-lo nem para reconhecer sua
diferença.
KALIAYEV (violentamente): Não o matarás sozinho, nem em nome de nada. O
matarás conosco e em nome do povo russo. Essa é tua justificativa.
STEPAN (Com o mesmo tom): Não a necessito. Achei uma justificativa em uma noite, e
para sempre, a três anos, na prisão. E não suportei...
ANNENKOV: Basta! Estão loucos? Lembram-se a quem devemos? Somos irmãos,
todos juntos, dispostos a executar os tiranos para libertar o país! Matamos juntos, e nada
pode nos separar. (Silêncio. Lhes olha.) Vem, Stepan, devemos combinar as senhas...
(STEPAN sai.)
ANNENKOV (a KALIAYEV): Não é nada. Stepan sofreu. Falarei com ele.
KALIAYEV (muito pálido) Assim me ofende, Boria.: (Entra DORA.)
DORA (ao ver a KALIAYEV): O que se passa?
ANNENKOV: Nada.
(Sai.)
DORA (a KALIAYEV): O que houve?
KALIAYEV: Nos chocamos. Não me querem.
(DORA se senta em silêncio. Pausa.)
DORA: Creio que não querem a ninguém. Quando tudo estiver terminado seremos mais
felizes. Não fique triste.
KALIAYEV: Estou triste. Necessito que todos vocês me queiram. Abandonei tudo pela
organização. Como suportar que meus irmãos se separem de mim? As vezes tenho a
impressão de que não me compreendem. É culpa minha? Sou meio lerdo, eu sei...
DORA: Te querem e te compreendem. Stepan é diferente.
KALIAYEV: Não. Sei o que pensa. Já Schweitzer dizia: «Demasiado extraordinário
para ser revolucionário.» Eu queria explicar-lhes que não sou extraordinário. Me tomam
um pouco por louco, demasiado espontâneo. Não obstante, creio como eles na causa.
Como eles, quero sacrificar-me. Eu também posso ser hábil, taciturno, dissimulado,
eficaz. Só que a vida segue parecendo-me maravilhosa. Amo a beleza e a felicidade. Por
isso e porque odeio o despotismo. Como explicar-lhes isto? A revolução, claro! Mas a
revolução pela vida, para dar uma possibilidade a vida, compreendes?
DORA (Com impeto): Sim... (Mais baixo, depois de um silêncio.) E não obstante,
vamos matar.
KALIAYEV: Quem? Nós?... Ah, queres dizer... Não é o mesmo. Oh não, não é o
mesmo. E ademais, matamos para construir um mundo em que ninguém mate nunca
mais! Aceitamos ser criminosos para que a terra se cubra por fim de inocentes.
DORA: E se não ocorrer isso?
KALIAYEV: Não fale assim, bem sabes que é impossível. Então Stepan tería razão. E
haveria que esculpir-lhe a beleza na cara.
DORA: Sou mais antiga que tu na organização. Sei que nada é facil. Mas você tem fé...
Todos necessitamos de fé.
KALIAYEV: Fé? Não. Um só a tem.
DORA: Você tem força de ânimo. E isso te abrirá o caminho até o fim. Por quê queres
jogar a primeira bomba?
KALIAYEV: Pode-se falar da ação terrorista sem praticá-la?
DORA: Não.
KALIAYEV: Tem que estar na primeira fila.
DORA (refletindo): Sim. Existe a primeira fila e o último momento. Devemos pensar
nisso. É dessa coragem, essa exaltação que necessitamos..., que você necessita.
KALIAYEV: A um ano não penso em outra coisa. Tenho vivido até agora por este
momento. E agora sei que quero morrer ai mesmo, ao lado do gran duque. Perder
sangue até a ultima gota, ou arder de uma só vez, na chama da explosão, e não deixar
nada atrás de mim. Compreende por quê pedi para jogar a bomba? Morrer pela causa é a
única maneira de esta a altura da causa. É a justificação.
DORA: Eu também desejo a morte.
KALIAYEV: Sim, é uma felicidade invejável. Pela noite, as vezes me agito em meu
jargão de carroceiro. Um pensamento me atormenta: nos convertemos em assassinos.
Mas penso ao mesmo tempo que vou morrer, e então meu coração se pacifica. Sorrio,
sabe, e durmo como uma criança.
DORA: Esta bem assim, Yanek. Matar e morrer. Mas, em minha opinião, Há uma
felicidade todavia maior. (Pausa. KALIAYEV a olha. Ela baixa os olhos.) O alçapão.
KALIAYEV (febrilmente): Eu pensei nisso. Morrer no atentado deixa algo inconcluso.
Entre o atentado e o alçapão, mudamos, há toda uma eternidade, a única possível talvez
para o homem.
DORA (com voz apreensiva, agarrando-lhe as mãos) Esse pensamento deve te ajudar.
Pagamos mais do que devemos.
KALIAYEV: Que queres dizer?
DORA: Vemos-nos obrigados a matar, correto? Sacrificamos deliberadamente uma
vida, uma só?
KALIAYEV: Sim.
DORA: Mas há o atentado e logo depois o alçapão, é dar duas vezes a vida. Pagamos
mais do que devemos.
KALIAYEV: Sim, é morrer duas vezes. Obrigado, Dora. Ninguém pode nos recriminar.
Agora estou seguro de mim. (Silêncio.) O que você tem, Dora? Não diz nada?
DORA Queria te ajudar um pouco mais. Só que...
KALIAYEV: Só que?
DORA: Não, estou louca.
KALIAYEV: Desconfias de mim?
DORA: Oh, não, querido, desconfio de mim. Desde a morte de Schweitzer as vezes me
ocorrem idéias raras. E além do mais, não corresponde a mim te dizer o que será difícil.
KALIAYEV: Eu gosto do difícil. Se me estimas, fala.
DORA (olhando-o): Eu sei. Es valente. Isso é o que me inquieta. Você ri, se exalta, te
encaminhas ao sacrifício cheio de fervor. Mas dentro de algumas horas terá que sair
deste sonho e atuar. Quem sabe seja melhor falar antes... para evitar uma surpresa, um
desfalecimento...
KALIAYEV: Não terá desfalecimentos. Diz-me o que pensas.
DORA: Bem, pois o atentado, o alçapão, morrer duas vezes, é o mais fácil. Te bastará o
ânimo. Mas a primeira fila... (Se cala, lhe olha e parece vacilar.) Na primeira fila vais a
vê-lo...
KALIAYEV: A quem?
DORA: Ao gran duque.
KALIAYEV: Um segundo apenas.
DORA: Um segundo em que vais vê-lo! Oh, Yanek, tens que saber, tens que estar
prevenido! Um homem é um homem. O gran duque talvez tenha olhos bondosos. O
verá coçar a orelha ou sorrir alegremente. Quem sabe, talvez tenha um pequeno taxo
feito com a navalha de barbear. E se te olha nesse momento...
KALIAYEV: Não é ele a quem vou matar. Mato o despotismo.
DORA: Claro, claro. Há que matar o despotismo. Eu preparei a bomba e ao selar o tubo,
no momento mais difícil, quando os nervos estão tensos, sentirá, sem embargo, uma
entranha felicidade no coração. Mas não conheço o gran duque e minha tarefa seria
menos fácil se, entretanto, o dito estiver sentado diante de mim. Tu vais vê-lo de perto.
Muito perto...
KALIAYEV (Com violência) Não o verei.
DORA: Por quê? Vais cerrar os olhos?
KALIAYEV: Não. Mas, Deus, mediante o ódio, me chegara no momento oportuno e
me cegara.
(chamam. Uma vez. Permanecem imóveis. Entram STEPAN e VOINOV.)
(Vozes na ante sala. Entra ANNENKOV.)
ANNENKOV: É o porteiro. O gran duque irá ao teatro amanhã. (Os olha.) Tudo deve
estar pronto, Dora.
DORA (com voz surda): Sim. (Sai lentamente.)
KALIAYEV (A observa sair e em voz baixa, voltando-se a STEPAN): O matarei. Com
alegria!
CORTINAS
SEGUNDO ATO
CORTINA
TERCEIRO ATO
No mesmo lugar, na mesma hora, dois dias depois.
CORTINA
ACTO CUARTO
Uma cela na torre Pugatchev, na prisão Butirki. Pela manhã.
Ao abrir as cortinas, KALIAYEV esta na cela e olha a porta. Um GUARDA e um
PRISIONEIRO, que traz um cubo, entram.
GUARDA: Limpa. E rápido.
(Se coloca junto a janela. FOKA começa a limpar sem olhar KALIAYEV. Silêncio.)
KALIAYEV: Como te chamas, irmão?
FOKA: Foka.
KALIAYEV: Esta condenado?
FOKA: Assim parece.
KALIAYEV: O que fizeste?
FOKA: Matei.
KALIAYEV: Tinhas fome...
GUARDA: Não tão alto.
KALIAYEV: Como?
GUARDA: Não tão alto. Os deixo falar a pesar da consigna. Assim, não falem tão alto.
Imite o velho.
KALIAYEV: Tinhas fome?
FOKA: Não, tinha sede.
KALIAYEV: E então?
FOKA: Então, havia um machado. O desidratei todo. Parece que matei a três.
(KALIAYEV o olha.) Bem, barão, já não me chamas de irmão? Estas doente?
KALIAYEV: Não. Eu também matei.
FOKA: A quantos?
KALIAYEV: Te contarei, irmão, se quiseres. Mas me responde; te arrependestes do que
passou, verdade?
FOKA: Claro, vinte anos são caros. Te fazem arrepender-se.
KALIAYEV: Vinte anos. Entro aqui aos vinte e três e saio com os cabelos brancos.
FOKA: Oh! Talvez seja melhor. Os juízes tem altos e baixos. Depende se estão
cansados e com quem. E ademais você é barão. Não é a mesma tarifa para os pobres
diabos. Muda-se o passo.
KALIAYEV: Não creio. E não quero. Não poderia suportar a vergonha durante vinte
anos.
FOKA: A vergonha? Que vergonha? A fim, são idéias de barão. A quantos matastes?
KALIAYEV: Um só.
FOKA: O que disse? Isso não é nada.
KALIAYEV: Matei o gran duque Sergio.
FOKA: O gran duque? Eh, boa feita. Há que ver estes barão! É grave, verdade?
KALIAYEV: É grave. Mas era necessário.
FOKA: Por quê? Vivas na corte? Uma historia de mulheres, não? Bonito como é...
KALIAYEV: Sou socialista.
GUARDA: Não tão alto.
KALIAYEV (mais alto): Sou socialista revolucionário,
FOKA: Valha! E que necessidade tinhas tu de ser o que diz? Não tinhas mais que
aquietar-se tranquilo e tudo te teria ido bem. A terra foi feita para os barões.
KALIAYEV: Não, foi feita para ti. Há demasiada miséria e demasiados crimes. Quando
houver menos miséria, haverá menos crimes. Se a terra fosse livre, tu não estarias aqui.
FOKA: Sim e não. Em fim, livre ou não, nunca é bom beber demais.
KALIAYEV: Nunca é bom. Só que se bebe porque se está humilhado. Chegará um dia
em que já não será útil beber, em que nada sinta vergonha: nem o barão, nem o pobre
diabo. Todos seremos irmãos e a justiça fará transparentes nossos corações. Sabes de
que te falo?
FOKA: Sim, do reino de Deus.
GUARDA: Não tão alto.
KALIAYEV: Não há que dizer isso, irmão. Deus não pode nada. A justiça é coisa
nossa! (Um silêncio.) Não compreendes? Conheces a lenda de São Demetrio?
FOKA: Não.
KALIAYEV: Tinha encontro na estepe com o mesmo Deus, e lá ia com pressa quando
encontrou um camponês com o carro atolado. Então São Demetrio o ajudou. O barro era
espesso, o atoleiro profundo. Teve que lutar durante uma hora. E ao terminar, São
Demetrio correu para o encontro, mas Deus já não estava.
FOKA: E então?
KALIAYEV: E então estão os que sempre chegaram tarde ao encontro porque há
demasiadas carretas atoladas e demasiados irmãos que socorrer.
(FOKA retrocede.)
KALIAYEV: O que houve?
GUARDA: Não tão alto. E tu, velho, apressa-te.
FOKA: Não acredito. Tudo isto não é normal. A ninguém lhe ocorre de meter-se na
cadeia por histórias de santos e de carretas. E, além do mais, tem outra coisa...
(O GUARDA ri.)
KALIAYEV (Olhando-o): O que?
FOKA: O que fazem com os que matam aos grandes duques?
KALIAYEV: Os enforcam.
FOKA: Ah!
(E se vai, aproximando do GUARDA rindo cada vez mais forte.)
KALIAYEV: Acalme-se. O que te fiz?
FOKA: Não me fizeste nada. Por mais barín que sejas, não quero te enganar. Uma
conversa assim passa o tempo, mas se te vão enforcar, não esta bem.
KALIAYEV: Por quê?
GUARDA (rindo): Vamos, velho, diga a ele...
FOKA: Porque não podes falar-me como a um irmão. Eu sou o que enforca os
condenados.
KALIAYEV: Não eis tu também um preso?
FOKA: Precisamente por isso. Me propuseram fazer este trabalho, e por cada enforcado
me tiram um ano de prisão. É um bom negócio.
KALIAYEV: Para te perdoarem teus crimes, te fazem cometer outros?
FOKA: Oh, não são crimes, porque há uma ordem. E, além do mais, isso se da igual. Se
queres saber minha opinião, não são cristãos.
KALIAYEV: E quantas vezes, já?
FOKA: Duas vezes.
(KALIAYEV retrocede. Os outros se dirigem a porta; GUARDA empurra FOKA.)
KALIAYEV: ¿Así que eres un verdugo?
FOKA (na porta): Bem, barín, e tu?
(Sai. Se ouvem passos, ordens. Entra SKURATOV, muito elegante, com o GUARDA.)
SKURATOV: Deixe-nos. Bom dia. Não me conhece? Eu sim lhe conheço. (ri.) Já
célebre, heim? (O olha.) Posso apresentar-me? (KALIAYEV não diz nada) Não diz
nada? Compreendo. A incomunicacão, heim? Deve ser muito duro estar oito dias
incomunicado. Hoje temos suprimido a falta de comunicação e terá visitas. Estou aqui
para isso, além do mais. Já lhe mandei Foka. Excepcional, não é verdade? Pensei que
lhe interessaria. Esta contente? É bom ver caras depois de oito dias. Não?
KALIAYEV: Tudo depende da cara.
SKURATOV: Bela voz, bem timbrada. Você sabe o que quer (Uma pausa.) Se
compreendi bem, minha cara não 1he agrada, verdade?
KALIAYEV: Sim.
SKURATOV: Que pena! Mas é um mal entendido. O que passa é que isto está muito
mal iluminado. Em um sótão ninguém é simpático. Além do mais, você não me
conhece. As vezes, uma cara fechada não nos agrada. Mas logo, quando se conhece a
fundo a...
KALIAYEV: Basta. Quem é você?
SKURATOV: Skuratov, diretor do departamento de Polícia.
KALIAYEV: Um lacaio.
SKURATOV: Para servir a você. Mas em seu lugar eu me mostraria menos orgulhoso.
Talvez chegue a suceder-lhe o mesmo. Se começa por querer a justiça e acaba
organizando uma polícia. Além do mais, a verdade não me assusta. Vou ser franco com
você. Você me interessa e lhe ofereço os meios de obter a graça.
KALIAYEV: Que graça?
SKURATOV: Como, que graça? Te ofereço salvar sua vida.
KALIAYEV: Quem pediu isso?
SKURATOV: A vida não se pede, querido amigo. Se recebe. Nunca concedeu você
graça a ninguém? (Pausa.) Pense bem.
KALIAYEV: Rejeito sua graça de uma vez por todas.
SKURATOV: Me escute, ao menos. Não sou seu inimigo, a pesar das aparências.
Admito que possa ter razão no que pensa. Salvo no que se refere ao assassinato...
KALIAYEV: Lhe proíbo de usar essa palavra.
SKURATOV (olhando-o): Ah! Nervos delicados, heim? (Pausa.) Sinceramente, queria
te ajudar.
KALIAYEV: Me ajudar? Estou disposto a pagar o necessário. Mas não suportarei essa
familiaridade comigo. Deixe-me.
SKURATOV: A acusação que pesa sobre você...
KALIAYEV: Retifico.
SKURATOV: Como disse?
KALIAYEV: Retifico. Sou um prisioneiro de guerra, não um acusado.
SKURATOV: Como queira. No entanto, você causou estragos, verdade? Deixemos de
lado o gran duque e a política. Pelo menos, houve a morte de um homem. E que morte!
KALIAYEV: Lancei a bomba contra a tirania de vocês, não contra um homem.
SKURATOV: Sem duvida. Mas foi o homem quem a recebeu. E isso não lhe ficou nada
bem. Sabe, querido amigo, que quando encontrarão o corpo faltava a cabeça? A cabeça,
desaparecida! E quanto ao resto, apenas se pode reconhecer um braço e uma parte da
perna.
KALIAYEV: Eu executei uma sentença.
SKURATOV: Talvez, talvez. Ninguém está lhe recriminando. O que é uma sentença? É
uma palavra que pode se discutir noites inteiras. O que se recrimina... não, a você não
lhe agradaria essa palavra.... é, digamos, um trabalho fanático, um pouco desordenado,
cujas conseqüências, isso sim, são indiscutíveis. Todo mundo pode vê-las. Pergunte a
gran duquesa. Havia sangue, compreende? Muito sangue.
KALIAYEV: Cale-se.
SKURATOV: Bem. Eu queria dizer simplesmente que se você se obstina em falar da
sentença, em manter que foi o partido e só ele quem julgou e executou, que o gran
duque foi morto não por uma bomba, e sim por uma idéia, então você não necessita a
graça. Suponha, no entanto, que voltamos a evidência, suponha que foi você o que fez
saltar a cabeça do gran duque; então, tudo muda, verdade? Nesse caso você necessitará
a graça. Quero ajudar. Por pura simpatía, acredite. (sorrindo.) O que quer você, a mim
não me interessam as idéias, me interessam as pessoas.
KALIAYEV (estourado): Minha pessoa está acima de você e de seus chefes. Você pode
me matar, não me julgar. Sei onde quer chegar. Busca um ponto fraco e espera de mim
uma atitude envergonhada, lágrimas e arrependimento. Não conseguirá nada. O que eu
sou não lhe concerne. O que lhe concerne é nosso ódio, o meu e o de meus irmãos. Está
a seu serviço.
SKURATOV: O ódio? Outra idéia. O que não é uma idéia é o crime. E suas
conseqüências, naturalmente. Quero dizer, o arrependimento e o castigo. Aí estamos na
realidade. Por isso sou da polícia. Para estar no centro das coisas. Mas a você não lhe
agradam as confidencias. (Uma pausa, se aproxima lentamente dele.) Tudo o que
queria dizer-lhe é isto: não deveria fingir que há esquecido a cabeça do gran duque. Si a
tiver em conta, a idéia já não lhe servirá de nada. Se sentiria envergonhado, por
exemplo, no lugar de orgulhar-se do que fez. E a partir do momento em que sente
vergonha, desejará viver para reparar. O mais importante é que se decida a viver.
KALIAYEV: E se me decidir?
SKURATOV: Obteria a graça para si e seus camaradas.
KALIAYEV: Os prendeu?
SKURATOV: Não. Precisamente. Mas se decidir viver, os deteremos.
KALIAYEV: Compreendi bem?
SKURATOV: Com segurança. Não se irrite outra vez. Reflita. Do ponto de vista da
causa você não pode entrega-los. Do ponto de vista da evidência, pelo contrario, os faz
um favor. Lhes evitará novos problemas e, ao mesmo tempo, os liberará da forca. Mas,
sobre tudo, obterá a paz de coração. De muitos pontos de vista, é um negócio vantajoso.
(KALIAYEV se cala.) Então?
KALIAYEV: Meus irmãos não tardarão em lhe dar resposta.
SKURATOV: Outro crime! Decididamente, é uma vocação. Bem, minha missão
terminou. Meu coração está triste. Mas vejo que você se agarra a suas idéias. Não posso
separa-lo delas.
KALIAYEV: Você não pode me separar de meus irmãos.
SKURATOV: Até a vista. (Vai saindo e volta.) Por quê, neste caso, poupou a vida da
gran duquesa e a seus sobrinhos?
KALIAYEV: Quem lhe disse?
SKURATOV: O informante de você nos informava também. Em parte, ao menos... Mas
por quê lhes poupou a vida?
KALIAYEV: Isso não lhe interessa.
SKURATOV (rindo): Percebe? Vou lhe dizer por que. Uma idéia pode matar a um gran
duque, mas dificilmente chega a matar crianças. Isso é o que voce descobriu. Então se
planta uma questão: se a idéia não chega a matar crianças, merece que se mate a um
gran duque? (KALIAYEV faz um gesto.) Oh, não me responda, não me responda! Dirá
você a gran duquesa.
KALIAYEV: A gran duquesa?
SKURATOV: Sim, quer ver-lo. E eu vim, sobre tudo, para assegurar-me que esta
conversa era possível. E é. Até pode fazer vpcê mudar de opinião. A gran duquesa é
cristã. A alma, sabe, é sua especialidade.
(ri.)
KALIAYEV: Não quero vê-la.
SKURATOV: Sinto, ela insiste. E depois de tudo, você lhe deve algumas
considerações. Além do mais dizem que desde a morte de seu marido não está em seu
juízo. Não queremos contrariá-la. (na porta.) Se mudar de opinião, não esqueça minha
proposta. Voltarei. (Uma pausa. Escuta.) Aqui está. Depois da polícia, a religião!
Decididamente, lhe mimamos. Mas tudo se relaciona. Imagine Deus semn as prisões.
Que solidão! (Sai. Se ouvem vozes e ordens.)
(Entra A GRAN DUQUESA, que permanece imóvel e silenciosa. A puerta esta aberta.)
KALIAYEV: O que quer?
A GRAN DUQUESA (descubrindo o rosto): Veja. (KALIAYEV cala.) Muitas coisas
morrem com um homem.
KALIAYEV: Eu sei.
A GRAN DUQUESA (com naturalidade, mas com uma voz gastada): Os assassinos
não sabem. Se soubessem, como poderiam matar?
(Silêncio.)
KALIAYEV: Já lhe vi. Agora desejo estar só.
A GRAN DUQUESA: Não. Necessito lhe ver também. (KALIAYEV retrocede. A GRAN
DUQUESA se senta, como cansada.) Já não posso estar só. Antes, se eu sofria, ele
podia ver meu sofrimento. Sofrer era algo bom então. Agora... Não, já não posso estar
só, calar-me... Mas com quem falar? Os outros não sabem. Fingem estar tristes. O estão,
uma hora ou duas. Depois vão comer, e dormir... Dormir, sobre tudo... Pensei que
devias estar como eu. Tu não dormes, estou certa. E com quem falar do crime, senão
com o criminoso?
KALIAYEV: Que crime? Só recordo um ato de justiça.
A GRAN DUQUESA: A mesma voz! A mesma voz que ele. Todos os homens adotam
o mesmo tom para falar de justiça. Ele dizia: «Isso é justo!», e ninguém deveria falar.
Talvez se equivocava, talvez tu te equivocaste...
KALIAYEV: O encarnava a suprema injustiça, a que faz geminar o povo russo desde os
séculos. Por ele, só recebia privilegios. Ainda que me equivoquei, a prisão e a morte são
meu pagamento.
A GRAN DUQUESA: Sim, tu sofres. Mas mataste a ele.
KALIAYEV: Morreu surpreendido. Uma morte assim não é nada.
A GRAN DUQUESA: Nada? (Mais baixo.) É certo. Te trouxeram em seguida. Parece
que pronunciavas discursos em meio dos policiais. Compreendo. Isso te ajudaria. Mas
eu cheguei uns segundos depois. Vi. Pus em uma maca tudo o que pude encontrar.
Quanto sangue! (Uma pausa.) Eu levava um vestido branco...
KALIAYEV: Cale-se.
A GRAN DUQUESA: Por quê? Digo a verdade. Sabes que fazia ele duas horas antes de
morrer? Dormia. Em uma poltrona, com os pés sobre uma cadeira... como sempre.
Dormia, e tu o esperavas, na noite cruel... (chora.) Ajúda-me agora. (Ele retrocede,
rigido.) Es jovem. Não podes ser mal.
KALIAYEV: Não tive tempo de ser jovem.
A GRAN DUQUESA: Por quê te pões tão rígido? Nunca tiveste compaixão de si
mesmo?
KALIAYEV: Não.
A GRAN DUQUESA: Fazes mal. Isso alivia. Eu já não tenho compaixão se não de mim
mesma. (Uma pausa.) Sofro. Deveria ter me matado com ele, em vez de poupar-me a
vida.
KALIAYEV: Não poupei a sua e sim a das crianças que iam consigo.
A GRAN DUQUESA: Eu sei... Eu não os queria muito. (Uma pausa.) São os sobrinhos
do gran duque. Não eram culpados como seu tio?
KALIAYEV: Não.
A GRAN DUQUESA: Os conhece? Minha sobrinha tem mal coração. Se nega a dar ela
mesma esmola aos pobres. Tem medo de tocar-los. Não é ela injusta? É injusta. Ela,
pelo menos, queria aos camponeses. Bebia com eles. E tu o mataste. Certamente, tu
também é injusto. A terra esta deserta.
KALIAYEV: Tudo isto é inútil. Você tenta deixar-me sem forças e desesperar-me. Não
o conseguirá. Deixe-me.
A GRAN DUQUESA: Não queres rezar comigo, arrepender-se?... Assim não estaremos
sós.
KALIAYEV: Deixe me preparar para morrer. Se não morrer, então sim serei um
assassino.
A GRAN DUQUESA (se ergue): Morrer? Queres morrer? Não. (Se aproxima de
KALIAYEV com grande agitação.) Deves viver e convencer-te de que es um assassino.
Não o mataste? Deus te justificará.
KALIAYEV: Que Deus, o meu ou o seu?
A GRAN DUQUESA: O da Santa Igreja.
KALIAYEV: A Santa Igreja não tem nada haver com isto.
A GRAN DUQUESA: Ela serve a um senhor que também conheceu a prisão.
KALIAYEV: Os tempos mudaram. E a Santa Igreja escolheu entre a herança de seu
senhor.
A GRAN DUQUESA: Que escolheste? Que queres dizer?
KALIAYEV: Se aquietou com a graça e jogou em nossas mãos o exercício da caridade.
A GRAN DUQUESA: A nós? A quem?
KALIAYEV (gritando): A todos os que vocês enforcam.
(Silêncio.)
A GRAN DUQUESA (com doçura): Eu não sou sua inimiga.
KALIAYEV (com desespero): É, como todos os de sua raça e de seu clã. Há algo mais
abjeto que ser um criminoso: forçar ao crime quem não nasceu para ele. Olhe. Lhe juro
que eu não fui feito para matar.
A GRAN DUQUESA: Não me fale como se fora sua inimiga. veja. (fecha a porta.)
Confio em você. (chora.) O sangue nos separa. Mas você pode alcançar-me em Deus,
no lugar da infelicidade. Polo menos, reze comigo.
KALIAYEV: Me nego. (Se aproxima dela.) Só sinto por você compaixão e acaba de
comover minha alma. Agora me compreenderá, porque não lhe ocultarei nada. Já não
espero o encontro com Deus. Mas ao morrer serei pontual no encontro que tenho com
os que amo, com meus irmãos que pensam em mim neste momento. Rezar sería traí-los.
A GRAN DUQUESA: O que quer dizer?
KALIAYEV (com exaltação): Nada, senão que vou ser feliz. Tenho que sustentar uma
larga luta e a sustentarei. Mas quando se pronunciar o veredicto e a execução estiver
pronta, ao pé do alçapão me separarei de você e deste mundo horrível e desejarei levar o
amor que preencho. Compreende?
A GRAN DUQUESA: Não há amor longe de Deus.
KALIAYEV: Sim. O amor pela criatura.
A GRAN DUQUESA: A criatura é abjeta. Que outra coisa cabe fazer senão destruí-la
ou perdoá-la?
KALIAYEV: Morrer com ela.
A GRAN DUQUESA: Morremos só. Ele morreu só.
KALIAYEV (com desespero): Morrer com ela! Os que hoje se amam, devem morrer
juntos se querem reunir-se. A injustiça separa, a vergonha, a dor, o dano que se faz aos
demais, os crimes separam. Viver é uma tortura, posto que viver separa...
A GRAN DUQUESA: Deus junta.
KALIAYEV: Não neste mundo. E meus encontros são neste mundo.
A GRAN DUQUESA: É o encontro dos cachorros, com o focinho no chão, sempre
fuçando, sempre decepcionados.
KALIAYEV (volta para a janela): Pronto! O sabes. (Uma pausa.) Mas não é possível
imaginar que dois seres que renunciam a toda alegria, se amem na dor sem poder dar-se
outro encontro que o da dor? (O olha.) Não é possível imaginar que a mesma corda
una, então, esses dois seres?
A GRAN DUQUESA: Que é esse amor terrível?
KALIAYEV: Você e os seus nunca nos permitiram outro.
A GRAN DUQUESA: Eu também amava o que você matou.
KALIAYEV: A compreendi. Por isso a perdôo o mal que você e os seus me fizeram.
(Uma pausa.) Agora, deixe-me.
(longo silêncio.)
A GRAN DUQUESA (erguendo-se): Vou deixa-lo. Mas vim aqui para lhe conduzir a
Deus, agora sei. Você quer julgar-se e se salvar só. Não pode fazê-lo. Deus poderá, se
você vive. Pedirei graça por você.
KALIAYEV: Lhe suplico, não faça. Deixe-me morrer ou a odiarei mortalmente.
A GRAN DUQUESA (na porta): Pedirei graça por você, aos homens e a Deus.
KALIAYEV: Não, não! A proíbo. (Corre a porta para encontrar de repente a
SKURATOV. KALIAYEV retrocede, fecha os olhos. Silêncio. Olha SKURATOV de
novo.) O necessitava.
SKURATOV: Aqui me tens, encantado. Por quê?
KALIAYEV: Necessitava desprezar de novo.
SKURATOV: Uma pena. Vinha buscar a minha resposta.
KALIAYEV: Já a tens.
SKURATOV (muda de tom): Não, todavia não a tenho. Escute bem. Tenho facilitado
esta entrevista com a gran duquesa para poder publicar amanhã a notícia nos periódicos.
O relato será exato, salvo em um ponto. Consentirá na confissão de seu arrependimento.
Seus camaradas pensarão que você os traiu.
KALIAYEV (tranquilamente): Não acreditarão.
SKURATOV: Só deterei a publicação no caso de que você confesse. Tem a noite para
decidir. (volta até a porta.)
KALIAYEV (mais forte): Não acreditarão.
SKURATOV (voltando-se): Por quê? Nunca pecaram?
KALIAYEV: Você não conhece o amor deles.
SKURATOV: Não. Mas sei que não se pode crer na fraternidade toda uma noite, sem
um só minuto de desfalecimento. Esperarei o desfalecimento. (tranca a porta e fala
pelas grades.) Não se apresse. Sou paciente.
(Permanecem frente a frente.)
CORTINA
QUINTO ATO
Outro lugar, mas no mesmo estilo. Uma semana depois. A noite. Silêncio. DORA anda
de um lado para o outro.
CAI O PANO