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“O que € cienlifico?” (D) Colega aposentado com todas as credenciais e titulagdes. Fazia tempo que a gente no se via. Entrow em meu, escritorio sem bater ¢ sem se anunciar. Nem disse bom. dia, Foi direto a0 assunto, "— Rubao, estou escrevendo ‘um Tivo em que conto o que aprendi em minha vida, ‘Mas eles dizem que o que escrevo nao serve. Nao é cGiemtfico. Rub3o: 0 que € centifico?” Havia um ar de indignacdo e perplexidade naquela pergunta. Uma sabe- doria de vida tinha de ser calada: nio era cienuifica. As nquisigdes de hoje, nao é mais a lereja que as faz. Nao sou fl6sofo, Hes sabem disso ¢ nem me conv dam para seus simpésios enuditos. Se me convidassem cu ‘io iia, Faltam-me as cracersicas esencais. Nieusche, bufao, fazendo cacoada,cita Stendhal sobre as caracters- ticas do filésofo, “Para se er um: bom fsa & preciso ser seco, claro sem dusies. Un bangueiro que fez fortuna tent parte do carior nocessrio para se fzer descents em filo- sofia, to €, para ver com clareza dentro daquilo que €% Nao sou filésolo paraue no penso a partir de con- ‘eitos. Penso a partir de imagens. Meu pensamento se Acs cur wows nutte do sensual. Preciso ver. Imagens s30 bringuedos dos sentidos. Com imagens eu construo historias E fol assim que, no preciso momento em que meu colega formulou sua pergunta perplexa, chamada por aquela pergunta augusta, apareceram na minha cabesa imagens que me contam uma hist: “Era uma ver, uma aldeia 2s margens de um rio, rio nenso cujo lado de li n3o se via, as Aguas passavam, ‘Sem parat, ora mansas, ora furlosas, rio que fascinava ¢ dava medo, muitos haviam morrido em suas Aguas misteriosas, © por medo ¢ fascinio os aldedes haviam construfdo altares 2 suas margens, neles 0 fogo estava sempre aceso, e a0 redor deles se ouviam as cancoes e (03 poemas que artistas haviam composto sob © encan tamento do rio sem fim, O rio era morada de muitos seres misteriosos. Al guns repentinamente saltavam de suas éguas, para logo depois mergulhar e desaparecer. Outros, deles s6 se viam fs dorsos que se mostravam na superlicie das aguas. havia as sombras que podiam ser vistas deslizando das profundezas, sem nunca subir a superficie. Contava-se, zhas conversas a roda do fogo, que havia monstros, dra- 0es, sereias € iaras naquelas Aguas, sendo que alguns suspeitavam mesmo gue o tio fosse morada de deuses, E todos se perguntavam sobre os outros seres, nunca vistos, de ntimero indefinido, de formas impensadas, de ‘movimentos desconhecidos, que morariam nas profun- dezas escuras do rio, ‘Mas tudo eram suposicées. Os moradores da aldeia viam de longe © suspeitavam — mas nunca haviam 20 cue ¢ aneatcot” conseguido capturar uma tnica criatura das que habita: ‘yam 0 rio: todas as suas magias, encantacées, filosofias ce religides haviam sido intteis: haviam produzido mul tos livros mas nao haviam conseguido capturar nenhu- ma das criaturas do rio. Assim foi, por geragGes sem conta, Até que um dos aldedis pensou um objeto jamais pensado, (0 pensa- mento ¢ uma coisa existindo na imaginacao antes de ela se tomar real. A mente ¢ itero, AimaginacSo a fecunda. Formase um feto: pensamento, Af ele naive...) Ele imaginou um objeto para pegar as criaturae do rio. Pensow e fez, Objeto estranho: uma porcio de buracos amarrados por barbantes. Os buracos eram para deixar passar o que no se desejava pegar a agua. Os barban. tes eram necessirios para se pegar 0 que se desea pega: 8 peixes. Ele teceu uma rede ‘Todos se riram quando ele caminhou na directo do rio com a rede que tecera. Riram-se dos buracos dela. Ele nem ligou, Armou a rede como pode ¢ foi dormix. No dia seguinte, ao puxar a rede, viu que nela se encontrava, resa, enroscada, uma criatura do rio: um peixe dourado, Foi aquele alvorogo. Uns ficaram com raiva, Tinbam, estado tentando pegar as criaturas do rio com formulas sagradas, sem sucesso. Disseram que a rede era objeto de feitigaria, Quando o homem thes mastrou 0 peixe dourado que sua rede apanhara, eles fecharam os olhos © 0 ameacaram com a fogueira. (Outros ficaram alegres e trataram de aprender a arte de fazer redes, Os tipos mais variados de redes foram 8 inventados. Redondas, compridas, de malhas grandes, de malhas pequenas, umas para ser langadas, outias para ficar 2 espera, outras para ser arrastadas, Cada rede pe- gava um tipo diferente de peixe. Os pescadores-fabricantes de redes ficaram muito importantes. Porque os peines que eles pescavam tinham poderes maravilhosos para diminuir o sofrimento e au- ‘mentar 0 prazer. Havia peixes que se prestavam para ser comidos, para curar doengxs, para tirar a dor. para fazer voar, para fertilizar os campos e alé mesmo para matar Sua are de pescar Ihes deu grande poder e prestigio, e cles passaram a ser muito respeitados e invelados. Os pescadores-fabricantes de redes se organizaram ‘numa conffaria, Para pertencer a confraria, cra necessa- rio que 0 postulante soubesse tecer redes e que apresen- {asse, como prova de sua competéncia, um peixe pesca. do com as redes que ele mesmo tecera, ‘Mas uma coisa estranha aconteceu. De tanto vecer redes, pescar peixes e falar sobre redes e peixes, os mem bros da confraria acabaram por esquecer a linguagem que 0s habitantes da aldeia haviam falado sempre e ain- da falavam, Puseram, em seu lugar, uma lingwagem apro. priada a suas redes e a seus peixes, que tinha de ser falada| por todos 0s seus membros, sob pena de expulsio. A nova linguagem recebeu 0 nome de ictiolalés (do prego ichhys = *peixe” + Iulia = “fala"). Mas, como bem disse ‘Wittgenstein alguns séculos depois, “0s limites da minha Linguagem denctam os limizes do mew mundo”. Mew mundo E aquilo sobre o que posto falar. A Tinguagem estabelece ‘uma ontologia. Os membros da conffaria, por forca de 20 ove eonerncot” ‘seus habitos de linguagem, passaram a pensar que s6 eral real aquilo sobre que eles sabiam falar, isto ¢, aquilo que era pescado com redes e falado em ietiolales. Qualquer caisa que nao fosse peixe, que no fosse apanhado com suas redes, que no pudesse ser falado em ictiolalés, eles recusavam e diziam: “Nao € real’. Quando as pessoas Ihes falavam de nuvens, eles diziam: “Com que tede esse peixe foi pescado?” A pes- soa Tespondia: “N3o fol pescado, ndo € peixe". Hes punham logo fim a conversa: “Nao ¢ real’. O mesmo acontecia se as pessoas Ihes falavam de cores, cheiros, sentimentos, muisica, poesia, amor, felicidad. Essas coisas, nao ha redes de barbante que as peguem. A fala cra Tejeitada com o julgamento final: “Se nao foi pesca- do no rie com rede aprovada nao € real’ ‘As redes usadas pelos membros da confraria eram boas? Muito boas Os peizes pescadios pelos membros da confraria eram, bon.t Muito bons As redes usadas pelos membros da confraria se pres tavam para pescar tudo o que existia no mundo? NZo. Ha muita coisa no mundo, muita cols mesmo, que as redes dos membros da confraria nao conseguem pegar. ‘So criaturas mais leves, que exigem redes de outro tipo, mais sutis, mais delicadas. E, no entanto, s3o absoluta- ‘mente reais. $6 que nao nadam no rio. Meu colega aposentado, com todas as credenciais e titulagbes. mostrou para os colegas um sabia que ele ‘mesmo criara, Fez o sabi cantar para eles, ¢ eles disse- 8s ram: “Nao foi pego com as redes regulamentares; néo & real; nao sabemos o que é um sabig; ndo sabemos o que €o canto de um sabia...” ‘Sua pergunta esta respondida, meu amigo: 0 que ¢ cientifico? Resposta: é aquilo que caiu nas redes reconhecidas pela confraria dos cientistas. Cientistas so aqueles que escam no grande Ti ‘Mas ha também os céus e as matas que se enchen de cantos de sabifs... LA as redes dos cientistas ficam sempre vazias. “O que € cientifico?” (II) Ni hd diva de que a mena €0 esitmago da mente. Da mesma forma como 0 alimento ¢ wazido i boca pola rumina- io, asi as coisas sao traidas da meméria pola lembranca.” Agostinho, autor dessa afirmacao (capitulo 14 do lito 10 ddas Confises), percebeu com clateza as relagces de ana- logia existemtes entre o ato de pensar € 0 ato de comer. ‘Nietzsche se deu conta da mesma analogia eafimou que ‘a mente é tm estomage". Quer entende como funciona 6 estémaga entende camo funciona a cabesa Analogia € um dos mais importantes artificios do pensamento. Octavio Paz, em seu livio Ls hijo del lime”, afirma que “a analegia tora 0 mundo habitdvel”. Ela “8 0 reino da palavra ‘como’, essa ponte verbal que, sem suprimi- las, reconcilia as diferenas e obosiies’. A analogia 103 permite caminhar do conhecido para o desconhecido. F assim: eu conliego A mas nada sel sobre B. Sei, enuetan- 10, que B é andlogo a A. Assim, posso concluir, logica- mente, que B é parecido com A. 1. Agorinho de Hipons, Cenfiées Penpals, Vozes, 2 Octavio Paz, Los Io dl imo, Nadia Planeta 1995, Aaanalogia entre o est6mago € a mente nos permite saltar daquilo que sabemos sobre o estomago para o ‘que na sabemas acerca da mente. f em grande medi- dda, gragas as analogias que o conhecimento avanca ¢ que (0 ensino acontece. Quando a ciéncia usa as palavras onda’ e “particula’, esta se valendo de analogias tiradas do mundo visivel para dizer 0 universo naquilo que ele tem de invisivel, Um bom professor tem de ser um mestre de analogias. Uma boa analogia é um flash de luz © estomago € drgio processador de alimentos. Os imentos $40 objets exteriores, estranhos a0 corpo. Ele os transforma em objetos interiores, semelhantes 20 compo. £ isso que torna possivel a assimilaqao. “Assimi lar’ significa, precisamente, tornar semelhante (de casimlar, “ad” + “similis” ‘A mente é tum processador de informacoes. Informa Ges so objetos exteriores, estranhos & mente. A mente ‘os transforma em objetos intesiores, ito é, pensiveis. Pelo pensamento, as informagoes sa0 assimiladas, tomam-se ‘da mesma substancia da mente. O pensamento estranho ‘se toma pensamento compreendido, Entre todos os estomagos, os humanos so 08 mais ‘extraordinarios, dada sua versatilidade. Eles tem uma capacidade inigualavel para digerir os mais diferentes tipos de comida: leite, café, po, manteiga, nabo, ce: noua, jilé, mandioca, alface, repolho, ovo, trigo, Tho, banana, coco, pequi, azeite, came, pimenta, vinho, uisque, coca-cola etc Por veves, essa versatiidace do estomago ¢ subme- ‘ida a restrigdes. Alguns, por doenca, deixam de comer ae -0 que ¢ oneal”) tonresmo e comidas gordurosas, Outros, por pobreza, ‘Acostumam-se a uma dieta de batatas, como na famosa tela de Van Gogh. Outros, ainda, por religiao, adotam um cardapio vegetariano, HS estémagos que s6 conseguem digerir um tipo de comida. E 0 caso dos tigres. Seus estOmagos $6 digerem ‘came. Eles 6 reconhecem came como alimento, Se, nu zool6gico, 0 tratador dos tigres, vegetariano convicto, tentar converter os tigies a suas conviesies alimentares, submetendo.os a uma dieta de nabos e cenouras, é cer to que os tigres morrerdo, Diante dos legumes os tigres dirio: "Iso nio & comida!” (0s estomagos das vacas 36 digerem capim, com re sulados magnificos para os seres humanos. f dificil pensar a vida humana sem a presenca dos produtos que reaultam dos processamentos digestivos dos estomagoe das vacas sobre o capim. Sem as vacas. nao teiamos Ieitey café com leit, rningau, quijon (quantos!), le 3 Parmegiana, morango com lite condensado, sorvetes de vaiados tipos, cemes, pudins,sabonetes. Os esto ‘magos das vacas. com sua modesta deta de capim, s80 dignos dos maiores elogios, A mente € um estOmago. H4 muitos tipos de mente: -estomago. Alguns se parece com os esiémagos huma: ‘nos € processam 0s mais vatiados tipos de informagoes. Leonardo da Vinci € um exemplo extraordinario desse estmago omnivoro, capaz de digerir poesia, musica, arguitetura, urbanismo, pintura, engenharia, ciencia, ‘aiptografia, filosofia, Outros estomagos se especializa ram e 86 sio capazes de digerix um tipo de alimento. 8 ‘© que vou dizer agora, digo-o com o maior respei to, sem nenhuma intengio ironica. Estou apenas me valendo de uma analogia: € assim que meu pensamento funciona. As possiveis quebxas, que sejam feitas a Deus ‘Todo-Poderoso, pois foi ele, ou forca andloga, que me ddeu o processador de pensamentos que tenho. A ciéncia € um de nossos estomagos possiveis. Nao € nosso est0- ‘mago original. E-um estomago produzido historicamen- te, por meio de uma disciplina alimentar nica, E eu sugiro que o estomago da cencia ¢ andlogo 20 estoma- 0 das vacas. Os estomagos das vacas 36 reconhecem capim como alimento. Se eu oferecer a uma vaca um bife suculento, ela me olharé indiferente. Seu alhar bovino me estaré dizendo “Isso no € comida" Para 0 ‘estomago das vacas comida ¢ s6 capim, A cigncia, A semethanga das vacas, tem um estome. {g0 especializado que s0 é capaz de digerir um tipo de comida. Se eu oferecer a ciencia uma comida nao-apro priada ela a recusara ¢ dira: "Nao € comida’ Ou, na Tinguagem que Ihe € prépria: “Isso nio € cientifico” Que € 4 mesma coisa. Quando se diz: "Isso nio € cien- tifico” esta se dizendo que aquela comida nao pode ser digerida pelo estomago da ciencia. Quando a vaca, diante do suculento bife, declara de forma definitiva que aquilo nao & comida, ela esta em erro, Fala, & sua afirmacao, senso critico. Sua resposta, para ser verdadeira, devetia ser: “Isso no & comida para © meu estOmago". Sim, porque para muitos outtos est6- ‘magos aguilo ¢ comida. Assim, quando a ciencia diz, “isso nio € cientifico’,€ preciso ter em mente que. para muitos outros estémagos, aquilo é comida, comida boa, 0 te ewncot® (1) gostosa, que da vida, que da sabedoria, Acontece que ‘existe uma indinagio nawral da mente em acreditar que 56 € real aquilo que é real para ela (0 que ¢, cen tificamente, uma estupidez) — de modo que, quando normalmente se diz. “isso nio € cientifica’, se esti a afinmar, impliciamente, que aquilo nao € comida para estdmago algum. \Vao me perguntar sobre as razdes por que escolhi 0 estdmago da vaca e nao do tigre como andlogo a0 da iencia. O tgre parece ser mais nobre, mais inteligente. Esso escolheu a tigre como seu simbolo; jamais esco- Iheria a vaca. Ao que me consta, existe uma Gnica ins- tiwigdo de saber superior cujo nome ests ligado 2 vaca: €a universidade de Oxford. *Ox", como ¢ bem sabido, a palavra inglesa para vaca. Eu teria sido mais pruden- te, escolhendo a analogia do tigre, € nao a da vaca, visto que ambos os estmagos conhecem apenas um tipo de comida, Mas hé uma diferenca. Nao ba nada {que facamos com os produtos dos estomagos dos tt sgres. Mas daquilo que o estomago da vaca produz, 08 homens fazem uma série maravilhosa de produtos que da € a cultura, Ja imaginaram 0 ia se no houvesse as vacas? Assim © estOmago da ciéncia, com seus producos infinitos, incontaveis, maravilhosos — se nao fosse por cles eu ja estaria morto —, mais se assemelha ao estomago das vyacas que a0 dos tigres. Resta-nos revelar a comida que 0 estémago da cién- ia & capaz de digeric. Vou logo adiantando: se nio for ‘dito em linguagem matematica a ciéncia diz logo: ‘Nao € cientifico”... Concluo que isso que estou ouvindo ot agora, a “Rhapsody in Blue*, de Gershwin, que me dé tanto praver, que me toma mais leve, que espanta a tristeza, coisa real pelos seus efeitos sobre meu corpo e minha alma, isso nao é coisa que o estomago da céncia seja capaz de processar. Nao € cientifico. © edplayer, 0 ‘estomago da clencia o digere facil. Mas a muisica a faz vomitar “O que € Centffico?” (I) (Quer seduzir voct a jogar um jogo de palavras chama. do filosofia. Vocé nao sc interessa por filosofia, nunca estudou filosafia, nada sabe sobre os fil6sofas. Filoso: fla, coisa chata ¢ complicida. Compreendo. Mas suas alegacées simplesmente significam que voce nio tem condigGes para ser um professor de Blosolia, Professo: res de filosofia tem de dominar uma tradicao, ‘Mas note: © homem que inventou 0 alfabeto era amalfabeto. O primero fléxofo que comesou a filoso- far nao tinha atcis de si‘uma bibliografia flosofca xcesso de informacées perturba o pensamento, “Quem fcurnia muita informagio perde © conde de caivinhar divinace, Os sabia dvinam, assim dizia Manoe! de Bar- ros. (E poetactianga. Crianca brinca com brinquedos poeta brinca com palavras. Essa afirmacao do poets nio ¢ cientifica. Nao foi produzida por umn metodo. Ela € magica, Quebra feitigos, Faz voar ideias plantadas) ‘Frequentemente os professores de filosofia pensam tan- to-0 pensamento de outros que acabam por nia ter pensamentos proprios, 38 ‘os MOM Nc TERPLON ON ANCA Comecemos, entio, por compreender que 0 floso- far nio € conhecimento de uma tradigio de pensamen- 10, O filosofar € um jito de fazer dancar as ideias, Mudo minha pergunta inicial “Vamos dangar?* Muitas so as dangis: minueto, marcha, lambada, bolero, samba, tango... As dangas, todas elas, se parecer ‘com 03 jogos. Futebol, tenis, frescobol, voleibol, xadrez, dama, buraco, mau-mau, péquer, truco: todos sio jogos Jogos tem. repras fixas e precisas. No jogo existe uma “danca’” entre a liberdade e a regra fixa. A beleza do fu- tebol esti precisamente nisso: a brincadeita da liberdade do jogador dentro de um quadro de regras fixas. Um jogo, como a danca, depende de duas coisas, precisamente definidas. As “entidades” do xaerez Sio as esas: pelo, dama, bispo... As regras s0 os movimen tos possiveis das pecas. As entidades da valsa sio um homem, uma mulher, um ritmo. Os movimentos do homem e da mulher si0 definidos. Eles devem formar uum par: dangar quase abracados. £0 par que deve se mover segundo o ritmo da valsa. As marchas no exi- gem pares, Cada um pode dancar sozinho, como nos Dalles de camaval. Mas o corpo deve se mover num riumo bindrio. Jé a danga flamenca € outra coisa. Pode ser dangada por uma unica dancarina ou por um par — sendo que homem ¢ mulher nao ficam abragados e executam evolucoes por conta propria Sem que disso nos aperecbamos, a0 falar estamos fazendo jogos de palavras. Numa outra cronica, muito antiga, descrevi dois jogos constantemente jogados por 20 que ¢ anew (i) caszis: 0 ténis € 0 frescobol. O objetivo do jogo de palavras “tenis” ¢ tar o outro da jogada. Fim rapido, Fjaculacaa precoce. O objetivo do jogo de palavras fiescobol” € manter © outro na jogada. Fim adiado. Vaivém prolongado. © bom nao ¢ a chegada; € a traves: sia. Ha uma infinidade de jogos, todos eles com regras precisas e fixas A piada é um jogo cujo objetivo é produzir 0 riso. Sua estrutura ¢ fixa, Consta de um discurso que ct luma expectativa, um suspense, repentinamente inter: rompido por uma rasteira seguida de um fim inespe. rado. Nesse momento acontece 0 riso. A lamentacao ¢ ‘outro jogo. Consta de um relato de sofrimentos por que a pessoa passou, cujo objetive & provocar senti ‘mentos de admiragao em quem ouve o relato, Mas isso nunca acontece porque a outra pessoa, ao término do relato da primeira, diz sempre: "Mas isso nio é nada!” — comegando a seguir o relat de seus proprios softi ‘mentos. Contou-me uma paciente que, em certa regiao do Brasil, este ¢ 0 jogo predileto das mulheres pobres, jetivo € ter a gléria de ser aquela que “mais sedugio, as brigas de casals, os discursas dos politicos, ‘ateza, a psicanalise, 08 comerciais, a aula (Sim! a aula!) Os professores deveriam parar para pensar no jogo que ‘sido obrigando seus alunos a jogar! Uma das caracte- risticas desse jogo € que o aluno ¢ obrigada a aceitar as “entidades” com que deve jogar (disciplinas e currcu Jos) € as “tegras” do jogo que a escola impée. Com 35 ‘Aon cm worn won seen en alguma freqiiéncia, o professor nao quer jogar jogo que a diregio da escola e as burocracias governamentais the impoem: mas € obrigado a jogar, sob pena de per- der o emprego. Nessa situagao 96 Ihe resta um recurso a burla, A burla é uma importante possibilidade presen- te numa grande quantidade de jogos. Futebol, por exem- pio, esta cheio de burlas. a no wolei as burlas si pra- ticamente impossiveis, Nao ha formas de burlar no xa drez, mas a graga do truco é, precisamente, a burla. As aulas de portugues si0 um jogo cujo objetivo € ensinar 68 alunos a jogar 0 jogo da linguagem de acordo com as regras oficias: usar as palavias certas e a gramitica certa, Nas aulas de portugues, ensina-se o jogo da lin: guagem sem burlas, como se ele fosse idéntico ao jogo do xadrez, Mas a linguagem se parece mais com 0 truco, A poesia e a literatura sao a arte de burlar as regras da linguagem. Para qué? F 36 perguntar a um filésofo zen {que ele vai dar a resposta Filosofia é um jogo de linguagem, um jeito de usar as palavras. Na filosofia, a gemte usa as palavras para entender as palavras. Wittgenstein definiu esse jogo de palavras chamado filosofia como “uma batalha contra 0 feitico da nossa inieligencia por meio da linguagem’. Fre atientemente as pessoas ficam emburrecidas em decor- réncia das palavras que ficam grudadas em sua intel géncia, Tenho notado, por exemplo, que a palavta “Deus” (vejam; eu disse “a palavra" — nao disse “Deus” Deus esta além das palavras) ¢ uma das palavras que mais se agarram a inteligéncia, fazendo com que as pessoas parem de pensar, Quem fica enfeitigado, é bem sabido, entra em tran- se, comega a dangar e nio para. Dizem que a madastra da Branca de Neve dan¢ou até morrer, E facil identificar a pessoa cuja inteligencia esta enfeiticada por uma pa- Javra: ela s6 sabe dangar uma danga $6. E quem 6 sabe jogar um jogo de linguagem fica burro. E chato. Porque 4 inteligéncia acontece precisamente nos saltos entre dangas diferentes. E preciso notar que o que enfeitiga € sempre uma coisa “fascinante’ “Fascinio" — do latim fascinatio — ‘quer dizer “encantamento magico’, “Feitico” O simbolo magico do objeto fascinante: 2 mag — coisa linda, deliciosa, desejavel —, lugar do conhecimento. ‘A déncia ¢ coisa linda, deliciosa, desejavel, lugar do. ‘conhecimento, eu nao poderia viver sem ela. Mas, como a magi, ela tem um poder enfeiticante, A medida que dé conhecimento de um lado, ela retira conhecimento do outro. Volto a Manoel de Barros: “A cidncia pode clas- sificar ¢ nomear es érglas de um sabid, mas ndo pode medir seus encantas’ Daf o poder enfeitcante — paraisante — da formu Ja “isso nao € cientifico”. Meu amigo, aquele que inva- du meu escrtério, viv paralisado 0 canto de seu sabi quando essa formula lhe fol pronunciada pelos feltice ros da ciéncia. Veio em busca de socorro. Queria pala ‘was para quebrar 0 fetigo £0 que comecei a fazer e itei fazendo. Porque amo muito a cencia. Quero que os pescadores continuer a pescar e a preparar 03 peixes deliciosos que eles pes: cam no rio da realidade. Mas quero que os pescadores| sejam capazes também de ouvir 0 canto do sabia que nenhuma rede pode pegar. Por vezes, o canto do sabia mais importante que um peixe que se pesca, Ov, para quem nao entende: por vezes um poema, uma sonata, um quadro séo mais importantes para a vida © a alegria que arefatos de saber e tecnologia, Precisa- mos dos dois: do conhecimento ¢ da beleza. Mas a beleza nao é cientifica “O que € cientifico?” (IV) ‘Um coainheiro cozinha, Um jardineiro caida do jar- dim. Um barbeiro corta cabelo e barba. Um motorista ‘guia carros, Um cientista, 0 que ¢ que ele faz? ‘A palavra “centista” é um bolso enorme. Arca de Noé. 14 dentro se encontram os tipos mais variados: astrono- mos, genetidistas, donadores de ovelhas,fisicos quanticos, meteorologistas, quimicas especialistas em aromas, anestesistas, cacadores de vinus... A lista nao tem fim. Olhando para aquilo que estio fazendo, eles parecem pessoas que nada tin a ver umas com as outras. No entanto, um tinico nome ¢ usado para todos, “cientista’, 19 que quer dizer que, no fundo, eles estdo jogando 0 mesmo jogo. Qual € 0 jogo que um cientista joga? “Um ciensista, soja um wérico ou um experimentador, propie doclaragoes, ou sistemas do declaracoes, © as testa asso a pass.” F assim que Karl Popper define 0 que um ‘Gentista faz, Popper ¢, provavelmente, o mais famoso filosofo da ciencia de nosso século. Um fildsofo da cen. cia € alguém que tenta entender 0 que um cientista faz Freqdentemente a gente faz coisas, ¢ as fax bem, mas as faz de mancira to natural e automdtica que nem se ds conta de como elas sio feitas. Tal como aconteceu com aquela centopéia... Encontrou-se, um dia, com um ga fanhoto que the disse: “D. Concopeia, a seniora & um somo, tantas pernas, todas andando ao mesmo tempo, raunca vopeqam, nunca se embaralham... D. Cent, por favor me diga: quando a sennra vai andat, qual é a prime ra pera se a senhora mexe?™ A Centopéia se assuston ‘Nunca havia pensado nisso. Sempre andara sem prec sar pensar. ‘Ndo sei, senhor Gafanhoto, Mas promelo: da présima vez gue ew andar, presiarei atengo.” Termina a historia dizendo que desde esse dia a Centopeta ficou paralitica.. sso € verdadeito de todos nés. Veja, por ezemplo, @ fala — ndo € centopéia, € miridpode: milla res de regras, complicadissimas. $6 que, ao falar, nao temos consciéncia dessas regras. Nao penso nas regras da grandtica agora, que estou escrevendo, Fscrevo da ‘mesma forma como a Centopeia andava. Os gramaticos tentam entender as tegras da fala. © fildsofo da ciéncia se parece com o gramatico: ele tena entender as regras desse jogo lingiistico que o cientisia joga Contar piada € um jogo de linguagem. Seu objetivo 6 produzir 0 riso. A gente 1i por causa das palavras, ‘Ninguem, 20 ouvir uma piada, pergunta se ela € verda- deira. Piada € jogo do riso, nao € jogo da verdade. A. “coisa” da piada, © humot, se encontra nas préprias palavras, e nao na vida real, fora delas. O sargento ber ra: ‘Ordinario, marche!” Ninguém discute Os pracinhas se poem a marcha. Ninguém 11. As palavras do sargento, nao sao pinda: sao uma ordem. Ninguém pergunta se 100 eee lr £0 ou ¢ oumiwot" (IV) clas enunciam a verdade Uma ordem nao é para enun- car uma verdade; & um jogo de palavras cujo objetivo ¢ produzir obediencia, F 0 jogo de palavras que o cien- tista joga? Qual seu objetivo? ‘As palavras do cientista tem por objetivo enunciar a verdade. Como num espelho: a imagem, dentro do es pelho, nao ¢ real; é viral. Mas, olhando para o espe- Iho retrovisor de meu carro, vejo 0 carro que vai me ultrapassar. A imagem virtual corresponde a uma coisa real. Actedito na imagem, Se nao acreditar, poderei pro: ‘vocar tm desastre, Assim s20 as palavras do jogo que a éncia joga: elas buscam ser imagens fiis da realidade. ‘A ciéncia nasceu: da desconfianca dos sentidos. Ela acredita que a realidade é como uma mulher pudica, acredita que aquilo que a gente vé nao é a verdade Fla fica envergonhada quando ¢ vista por meio dos senti- dos, Esconde-se deles, Dissimula. Engana. 4 realidade, para set vista em sua maravilliosa nudes, s6 pode ser vista — pasmem! — com 0 auxilio de palavras. As pa- lavras s30 os olhos da ciéncia, “Teorias” e “hipoteses”: esses s20 08 nomes que esses olhos comumente rece bem, Na verdade, todas as teorias no passarn de hipo- teses. Uma teoria é uma hipétese que ainda nao foi desbancada. A ciéncia, assim, pode ser descrita como ‘um strip-tease da realidade por meio de palavras. F 0 que é que a gente ve, ao final do sirip-tease? A gente ve uma linguagem... Quem percebeu isso em primeiro lugar foram os filosofos gregos, que diziam que Ia no fundo de todas as coisas sensiveis se encontra algo que pode set visto apenas com os olhos da razo. A esa “coisa” eles deram 0 nome de “Logos”, que quer dizer “pala- ‘via Essa € a razio por que Popper defini o cientista como alguém que “prope declaragdes ou sistemas de decla- racoes”. Um cientista brinca com palavras. Mas nao qual quer palavra. Muitas palavras sio proibidas. Quais sio as palavras que sio permitidas? Calileu responde: “O lito da filosofia é 0 tivo da nnatureza, limo que aparece aberio constantemente diante dos nosso olhus, mas que poucos sabem dcifiare ler, porque ele est escrito com sinals que diferem daqueles do nosso alfabe- to, e que sto triangulos ¢ quacrados, cireulose esfeas, cones e pisarnides” Com isso voltamos aquela aldeia de pescadores que aprenderam a pescar os peixes que nadavam no rio da realidade... Aprenderam que peixes se pescam comn re- des. Contei essa paribola como analogia para o que fazem 0s cientistas, pois eles também sao pescadores que pescam no tio da realidade. Também eles usam redes para pescar. As redes dos cientistas sio feltas com palavras. Somente palavras que possam ser amartadas ‘com nés de niimeros. Os peixes que caem nas malhas da ciencia sto entidades matematicas — do jeito mes mo como Galileu 0 disse. Um tolo poderia dizer: “Que pena que se tenha de usar redes! Nas redes os buracos slo multo maiores que ‘as malhas! A rede deiza passar muito mais do que se- ‘gura! Seria melhor se, em vex. de tedes, usissemos lonas de plistico que ndo deixam passar nada. Assim, pegaria ‘mos tudo!” Palavras dle um tolo, Luma lona de plastico, 102 £0 cue anmpeot UW) ‘por pretender pegar tudo, nao pegaria nada, A rede 36 pega peixes porque seus buracos deixam passar As re des da ciéncia deixam passar muito mais do que segu- ram. As coisas que as redes da ciencia nao conseguem segurar slo as coisas que a cigncia nao pode dizer. As ‘coisas que “nao sto cientificas’, sobre as quais ela tem de se calar Estou ouvindo “Du nao existo sem voce", de Tom Jobim, $6 posso ouvi-la por causa da ciéncia. Foi a cién- da que, com teorias e medigGes, construiu meu compu- tador, Foi ela que, com teotias e medigoes, produziu o ci, traduzindo a misica em entidades eletronicas defi nidas, Mas um engenheiro surdo poderia ter feito isso, Porque a3 redes da cencia nao pegam musica. Pegam entidades eletrOnicas quantificaveis. Assim, um cientista ue fosse também um fildsofo, a0 declarar "Isso nao € Gentifico", estaria simplesmente confessando: ‘Isso, as redes da ciéncia nao conseguem pegat, Elas deixam passat. Seria nevessirio outta rede...” Volto a Manoel de Barros: “A ciéncia pede classficar ¢ nomear os drgdos de um sabid, mas nie pode mer seus fencantos”. Quira rede: meu corpo ¢ a outta rede, feita de ccoragio, sangue e emogio, Deixa passar o due a ciéncia segura, F segura o que a ciéncia deixa passar. Nao mede {5 encantos do sabia. Mas fica tiste a0 ouvi-lo, a0 cair da tarde... Isso também € parte da realidade. Sem ser cientifico. “O que € cienlifico2” (V) Fico logo arrepiado quando ougo alguém afirmar: “Fs- tou convencido de que...” Digo logo para mim mesmo: “Cuidado! [4 vai um inquisidor em potencal!” Convic- Ges so entidades mais petigosas que os dem6nios. F © problema ¢ que nao ha exorcismo capaz de expulss- slas da cabega onde se alojaram, peta simples razao de que elas se apresentam como didivas dos deuses, Os recem-convertidos estio sempre convicias de que, final- mente, contemplaram a verdade, Dat a transformacao por que passam: seus ouvidos, Grgios de audicho, se avrofiam, enquanto as bocas, drios da fala, se agigan- tam. Quem esta convicto da verdade nao precisa escu- tar Por que escular? Somente prestam atencao nas op) nides dos ouuos, diferentes da propria, aqueles que nao estao convictos de ser possuidores da verdade. Quem ‘io esta convicto esté pronto a escutar — é um perma nente aprendiz. Quem esté convicio nao tem o que aprender — € um permanente (eu ia dizer “professor” Peco perdie aos professores. O professor verdadero, acima de todas 2s coisas que ensina, ensina a arte de desconfiar de si mesmo...) mestre de catecismo. “Boca 105 Ge forma! oro! Furtaram um bolo Bol..." Dizia Nietzsche que “as conviccdes so pioresinimigos da verdade que as ‘mentnas’,Estranho isso? Nao. Absolutamente certo, Por- {que quem mente sabe que esté mentindo, sabe que aquilo que esté dizendo é um engano. Mas quem esti convicto nao se da conta da propria bobeira. O convicto sempre pensa que sua bobeira € sabedoria. As inquisicées se fazem com pessoas convictas. O Inguisidor no esta interessado em ouvir as razies da- quele que esté sendo inquirido. Interessa-The uma coisa apenas: “As idéias dessa pessoa sio iguais ou diferentes das minhast” Se forem iguais. esté absolvido, Se forem diferentes, vai para a fogueira As conseqjiiéncias mortais e paralisantes das convie- «es se espalham por todos os campos. E bem sabide 0 que as convicgdes religiosas fizeram na Idade Media. A igieia catolica e as igrejas protestantes, convictas de se: em possuidoras de verdades que Thes haviam sido di- retamente reveladas por Deus, mataram nas fogueiras milhares de pessoas inteligentes e boas simplesmente ppelo crime de pensarem diferente: Joao Huss, Savonarola, Giordano Bruno, Miguel Serveto. Galileu eseapou por ouco, gracas 2 mentira, Mas os demOntios das conviogdes tm atributos dos deuses: s20 onipresentes. Escomtegam da religiao. Emi ‘gram para a politica, Milan Kundera, em A insustentavel levera do ser, escreveu este parégrafo luminoso sobre 2 ‘M. Kundera. A tnswtene exe do sr lo de Janeiro, Nova Prontcza, 1984 105 £0 que anencor” (V) relacao entre as convicebes ¢ os crimes politicos: “Aque- Tes que pensam que os regimes comunistas da Europa Central sto obra exclusiva de criminasos deixam ma somira urna verdade fundamental: as regimes criminosos ndo foram feitos por criminoses, mas por entusiastas convencidos de terem descoberto 0 tinico caminko para @ paratso. Defendiam: cova josamente esse caminho, executando, por iso, centenas de pessoas. Mais tarde ficou claro que 0 paraiso nde exstia, € ‘que, portanto, os entusiastas exam assassinos™ As lgejas dits criss, para proteger suas verdades, valiamse de meios que elas mesmas lamentavam. “Os fins jusificam os meios",alegavam. A mesma coisa pode ser dita dos governos des ditadores, convencidos de que cles esavam a caminho do paraiso. “Que pena que temos de usar a violencia! Mas s20 eles mesmos que nos obi gam! Quetem desvia © pow do caminho verdadeito!” Nenhuma instiwuigao esté livre das dem@nios das conviccoes. Nem mesmo a déncia, As instiatigbes cien- tificas s80 movidas pelas mesmas leis sociologicas, po liticas e psicanaliticas que movem as igrejas c os gover- nos, Para entender bem as insticuicées cientificas ha de se ler Maquiavel, Freud ¢ Foucault. Os sacerdotes da citncia me responderdo: “Peguel Porque um dos dogmas centrais da cigncia & que nao es- tamnos nunca de posse da verdade final. As conclusdes da ciencia sto sempre provisérias. A céncia nao tem dogmas!” Cento, cerissimo! A ciéncia nao tem dogmas quanto 1 seus resitados, Pelo menos oficialmente, em sua decla ragdo de intengSes. Mas essa pretensio é consiatada por 107 Acs ove nem Ror Tasron 1 cE ‘Thomas Kuhn, autor de A estrutura das reolugdes cientt- ‘fieas. Le afirma, baseando-se em dados histéricos, que a ciéncia tem dogmas sim. E seus dogmas si0 mantidos pelos ciemtistas que se agarram a suas teorias e jamais admitem que a verdade possa ser diferente. Diz: Kubn que, freqiientemente, € 56 com a morte desses papas que os dogmas caem de seu pedestal Mas, deixando isso de lado, hi um dogma sobre o qual todos estao de acordo: o dogma do métado. O que € 0 dogma do métodot 14 expliquei: 0 método ¢ a rede que os cientistas usam para pegar seus peixes. & esta certo: € preciso rede para pegar peixe. © dogma apare- ce quando se diz que “real & somente aquilo que se Pega com as redes metodolégicas da citncia” Foi isso que fizeram com meu augusto amigo: ele foi mostrar a seus amigos os passaros que havia encantado tocan- do flauia, e todos disseram: *Nio foi pego com as re- des metodolégicas da cigncial Nao é real! Nao merece respeitol” A loucura chega ao ridiculo, Recebi uma carta de uma jovem que estava fazendo urna tese cientifica sobre minhas historias infantis, A pobrezinha me escrevet pedindo que eu respondesse um questionario. Fla, cer- tamente nas maos de um orientador cientifica, possut do pelo dogma do método, me favia duas perguntas que me fizeram sorrit/chorar. Primeira pergunta, “Qual 4 teoria que o senor usa para escrever suas historias?” 2 Thomas Kuhn, A etrau ds eagles ceria, Sto Paul, Pempectiva 108 a *0 que € creat” (W) Segunda pergunta: “Qual 0 méiodo que o senhor wsa para escrover suas histérias?” Af eu tive de contar para ela que rmitas coisas nesse universo, muitas mesmo, nos ch gam sem que as pesquemos com as redes da ciencia, Picasso dizia: “Bu ndo procure. Eu encontso’. As historias So assim, A gente vai vagabundando, fazendo nada, ‘com uma coceira no pensador, e de repente a hist6ria chega — nas palavras do Guimaraes Rosa — como a bola chega 2s maos do goleiro: prontinha, Sem teoria, Sem método. f $6 ir para casa e escrever. Uma coisa é certa: a historia nao me chega quando estou trabalhan- do, quando estou procurando. E ¢ assim que acontece a literatura, a pintura ¢ incu- ‘As boas idias nao so pescadas nas redes metodologicas. “Nao ha metado para se ter idetas boas.” Se hhouvesse método para se teridias boas, bastaria aplicar © méodo que serfamos inteligentes, Freqemtemente 0 resultado do uso do método ¢ 0 oposto da inteligencia, 0 tipo esta lancando suas redes, as tedes voltam sempre varias, «ele no se di conta dos pissaros que se assen. taram em seu ombro. A obsessaio com o método entope © caminho das boas idéias Eston preocupado com a devastagia que © dogma do método pode fazer na inteligencia e no carter das pessoas, especialmente nos dos jovens pretendentes a tum lugar nos templos da ciéncia, coroinhas a servico dos bispos. Na inteligencia, porque ele pode produzir cegueira: $6 € real o que cai na rede ortodoxa. (Veio-me agora uma idéia — chegou-me gratuitamente, sem mé ‘odo: 0 livro do Saramago, sobre a cegueira, nao seri ‘uma parabola? Vou investiga...) No carster, porque ele pode tornar as pessoas intolerantes e inquisitorias. Hi ‘sempre 0 perigo de que a ciéncia — coisa tao boa — se tome uma comvicgao religiosa, um dogma sobre a tinica ‘via metodol6gica para conhecer a realidade. “O que € cientifico?” (VI) Era uma vez um jovem que amava xadtez, Sua voragio. cera 0 xadrez. Jogar xadver Ihe dava grande prazer. Que- ria passar a vida jogando xadrez. Nada mais Ihe interes sava. S6 lia livros de xadrez. Estudava as partidas dos grandes mestres. S6 conversava sobre xadrer. Quando fra apresentado @ uma pessoa, sua primeira pergunta cera: voce joga xadrezt Se a pessoa dizia que nao, ele sc despedia imediatamente, Tornou-se um grande meste ‘Mas seu sonho era ser campeio, Derrotar o computa- dor, Até mesmo quando andava, jogava xadrez, Por ve- _zes, a0s pulos para a frente. Outras veres, passinhos na diagonal. De vez.em quando, dois pulos para a frente ‘um para o lado. As pessoas normais fugiam dele porque ‘era um chato, Sé falava de xadrez. Nada sabia sobre as coisas do mundo como pombas, beijos © sambas. Nao ‘conseguia ter namoradas, porque seu tinico assunto era xadrez. Suas cartas de amor s6 falavam de bispos, torres ce roques. Na verdade, ele no queria namoradas. Queria adversirias. Essas coisas como jogo de damas, jogos de baralho, jogo de peteca, jogo de namoro cram inexis- tentes em seu mundo. Inclusive, entrou para uma of dem religiosa, Fu viajei ao lado dele, de aviao, de Sao) Paulo para Belo Horizonte. Cabeca raspada. Durante toda a viagem, rezou o tergo. Nao prestei atengao, mas sugpeito que as contas de seu tergo eram pedes, cavalos € bispos. Sua metafisica era quadriculada. Deus € 0 rei A rainha € Nossa Senhora. O adversirio so as hostes, do inferno, {As pessoas normais brincam com muitos jogos de linguagem: jogos de amor, jogos de poder jogos de saber, jogos de prazer jogos de fare, jogos de brinear. Porque 2 vida nao € urna coisa 30, A vida é uma mulidéo de jogs acontecendo ao mesmo tempo, uns coidindo com Os outtos, das coisGes surgindo foicas. Uma cabeca Tigada com a vida € um festival de jogos. F€ iso que faz a intcligincia, Mas noseo hei, coitado, ea cabera de tim jogo s6. Joga o tal jogo de maneira fantastica Especializousse. Sabia tudo sobre o assunto.F, de fto, sabia tudo sobre o mundo do xadrez, Mas 0 preco que pagou € que perdeu tudo sobre © mundo da vida. Vitou tim computador ambulance, computador de um disquete 6. Disqutes sao linguagens. O corpo humano, muito mais inteigente que os computadores €capaz de usat muitos disquetes a0 mesmo tempo. Ele passa de um programa para outro sem pedi licenga ¢ sem pensar Simplesmemte pula, sata nteligencia € sso: acapacida- de de pular de um programa para outro, de dangar rmuitas dangas ao mesmo tempo. © humor s¢ nutze esses pulos. 0 riso aparece no momento preciso em {que a pia faz a intligencia par de uma Logica para Gutra, Ha a piada dos dois velhinhos que foram 20 £0 que e aumco!” (V1) gerontologista que, depois de examiné-los, prescreveu remédios ¢ uma dieta alimentar a ser seguida por duas semanas. Passadas as duas semanas, voltaram. O resul- tado deixou o médico estupefato. A velhinha estava lin- da: sorridente, saltitante, toda maquiada. O velhinho. um caco, umulo, pemas bambas, dentadura frouxa, apoiado na mulher. Como explicar isso, que uma mes ma receita tivesse produzido resultados tao diferentes? Depois de muito investigar 0 médico atinon com o acontecido. “Mas eu mandei senhor comer aveia wes ‘vezes a0 dia e 0 senhor comeu a véia trés vezes a0 dia?” riso aparece no jogo de ambigitidade entre aveia e a twéia. Nosso herdi munca ria de piadas porque ele 6 conhecia 2 légica do xadrez, ¢ 0 riso no esti previsto no xadrez, A inteligencia de nosso her6i nao sabia pu lar. So marchar. Faz muitos anos um fil6sofo chamado Herbert Marcuse escreveu tum livro ao qual deu 0 titulo’ de O homem unidimensional. © homem unidimensional €0 homem que se especializou numa tnica linguagem ‘¢ ve o mundo somente por meio dela. Para ele 0 mun- do € 56 aquilo que as redes de sua linguagem pegam. O resto € irreal A ciéncia & um jogo. Um jogo com suas regras pre- ‘sas. Como o xadrez. No jogo do xadrez, ndo se admite (© uso das regras do jogo de damas. Nem do xadrez chinés. Ou truco. Uma vez escolhido um jogo e suas segras, todos os demais sio exclufdas. As regras do jogo dda ciencia definem uma linguagem. Elas definem, pri- 1, Hesbert Marcuse, One Dimensional Man. Sulit Kelogy of Adsanced nduaial Soci, Boston Beacon, 1984. na ee iro, as entidades que existem dentro dele. As entida- des do jogo de xadrex so um tabuleiro quadriculado as, AS entidades que existem dentio do jogo stico da ciéncia so, segundo Camap, “coisas fist- 3, isso €, entidades que podem ser ditas por meio de nuimeros, Esses £40 0s objetos do léxico da ciencia. Mas 1 linguagem define também uma sintaxe, isso ¢, 2 for ‘ma como suas entidades se movem. Os movimentos das pecas do xadrer so definides com rigor. E assim ‘também so definidos os movimentos das coisas fisicas do jogo da cincia, Kuhn, em seu livro A estrutura das revolugoes cientifi- ‘eae, diz. que os cientistas fazem ciéncia pelos mesmos: motivos que os jogadores de xadrez jogam xadrez: qule- rem todos provar-se “grandes meses" Para atingir o ntvel de “grande mestwe” no xadrez ou nna dencia, € necessaria uma dedicacio total. Conselho ‘20 cientista que pretende ser “grande mestre”: lembre-se dde que, enquanto voce gasta tempo com literatura, poe: sia, namoro, em conversas no bar, ha sempre um japo- nes trabalhando no laboratGrio noite adenuo. £ possi- ‘vel que ele esteja pesquisando 0 mesmo problema que voce. Se ele publicar os resultados da pesquisa antes de vote, ele, e no voee, seré o "grande mestre’, pretendente ao titulo de “grande mestre” deve se dedicat de corpo e alma 20 jogo da ciencia. O cientista ‘que assim procede ficaré com conhecimentos cada vex mais refinados em sua area de especializacao: ele co 2, Thomas Kuhn, op. £0 ques axyencot” (Mi) nnhecerd cada vex mais de cada vez. menos. Mas, A medi- da que seu software de linguagem cienttfica se expande, (03 outros softuares vao se atrofiando, Por inatividade. O Gentista se transforma num “homem unidimensional” vista apurada para explorar sua cavema, denominada “Area de especializacao", mas cego em relacao a tudo 0 «que nao seja aquilo previsto pelo jogo da ciéncia. Sua linguagem € extremamente eficaz para capturar objetos fisicos. Totalmente incapaz, de capturar relacbes afetiva. Se nao houvesse homens no mundo, se o mundo fosse constituido apenas de objetos. entio a linguagem da Gencia seria completa. Acontece que os seres humanos amam, riem, tém medo, esperancas, sentem a beleza, apaixonam se por ideais. Meteoros si0 objeto fisicos. Podem ser ditos com a linguagem da cgncia. A cigncia fs estuda e examina a possibilidade de que, eventual- mente, um deles venha 2 colidir com a terra. Dizem, inclusive, que foi_um evento assim que pés fim aos inossauros. A paixio dos homens pelos ideais nao é ‘um objeto fisico, Nao pode ser dita com a linguagem da ‘dencia, No entanto, ela é um nao-objeto que tem poder para se apossar dos homens que, por causa dela, se tor- nam herdis ou vildes,fazem guerra e fazem paz. Mas um projeto de pesquisa sobre a paixio dos homens pelas Idéias nao € admissvel na linguagem da dencia. Nao seria aceito para ser publicado numa revista cientifica incexada intemacional. Nao é cientifico A Géndia é muito boa — dentro de seus precisos limites. Quando transformada na tnica Tinguagem para se conhecer 0 mundo, entretanto, ela pode produzir dogmatismo, cegueira e, eventualmente, emburrecimento, “O que € cienlifico?” (VI) Se voeé ests planejando fazer uma reforma em sua casa, ‘aqui val meu conselho: marque horario no “consultéria de arquitetura” do arquiteto argentino Rodolfo Livingston, Fiquei sabendo sobre ele num artigo “O homem, a casa a felicidade”, publicado na revista Mais vida (jan. 97) um arquiteto fora do gabarito, especializou-se na refor ‘ma de pequenas residéncias e se autodefine como médi- co de casas, azo para o nome de “consultério" que dew 2 seu cscritéro. “Onde € que sua casa esté deendo?” Assim Rodolfo Livingston inicia suas “consultas", porque as casas po- dem doet, podem fazer amor. $30 muito mais que es trutaras de cimento, tijoles, portas e janclas. Formam ‘um espago — e esse espaco se consttul num prolonga- mento do corpo. £ por isso que dlas “doem’. Nao basta que a casa sea flta de forma perfeita, do pono de vista técnico de engenharia todas as paredes na vertical, 10- dos os cileulos de viga corvelos, casa que vai durar cen- to e cingUenta anos. O fato € que hd casas que nos fazem sentir bem, © outras que nos fazem sentir mal 117 Fax tempo, vi umas fotos da casa da Xuxa. Fiquei hor- rorizado. Mais tica nao poderia existit. Mais cheia de solide no poderia exist. AAs casas, assim, podem ser vistas por dois angulos diferentes: a casa em si mesma, objeto fisico, ea casa como espaco que faz algo 3s pessoas que moram nela ‘A.casa, em si mesma, objeto fisico, € entidade cientifica, Nas faculdades de engenharia se aprende a ciéncia de construir casas, As paredes se erguem com fio de pru- mo. AAs vigas sao feitas com cimento, ferro € matemati a. As tintas se fazem com qufmica. Os princfpios cien- Uficos para a construcao das casas s30 universais. Valem para todas as casas, de todos os tipos, em todas as épo- ‘as, em todos os lugares. Quem sabe a céncia da cons. ‘rucio de casas sabe construir qualquer casa ‘A casa em relagio as pessoas que moram nela, a0 conuitio, & casa como objeto de prazer ou dor. Para isso nao ha dénda. Nese momento, estou ouvindo um, ced de negro spirituals, que eu amo: “Sometimes | feel like ‘a motherless child”: por vezes eu me sinto como uma crianca rf... Sinto vontade de chorar. Esse cd foi pro- duzido pela dencia. E com certeza hd milhares de cds iguais a ele dando prazer a outras pessoas. A céncia realiza feitos maravilhosos! Mas € posstvel que o técnl- co que o produziu nao goste de sprituals — que pretira rock, Assim, a musica ¢ a leua que me comovem o dei- xam frio,talvez inritado. A técnica de fazer cds pode ser ‘ensinada de forma cientifica, Mas o “gosto” pela m — note que “gosto” € palavra tirada da gastronomia, ele ne 10 que écxsinest” (VII) se refere a uma “qualidade” que nao pode ser explicada, dita, ensinada! —, sim, o gosto pela misica no pode ser ensinado de forma direta. Se quero introduzit mi- nha neta ao prazer dos spiriuals, tenho de me assentar com ela € dizer: “Fique quietinha, escute essa musica {que © vovd ama. Ela € muito bonital” F af, alvez pela contemplagio de meu rosto, € possivel que ela sinta 0 ‘mesmo “gosto” que eu sinto, Iso vale para as casas. Hi ‘casas que me emocionam, que provocam minha imagi nacdo, eu gostaria de viver nelas. F outras, rics, cheias de objetos de arte, me provocam um estranho senti mento de estar num espaco ndo-humano. © alemao ‘tem uma palavra curiosa: unbeimlich. Heim ¢ lar. Un € a negagio. Traducio: sentimento de estar num espago estranho, que nao ¢ lar. Hé algo errado na casa produ. ida em série, igual para todos, do tipo apartamento grifino ou casa de conjunto habitacional. Porque as pessoas sJo diferentes. N3o s4o produzidas em série. H, em mim, algo que nenhum arguiteto sabe, nenhum decorador sabe, nenhum paisagista sabe. \ alma huma: na ndo pode ser conhecida “em geral’, “cientificamen- te", Cada pessoa € tinica, Cada casa, portanto, tem de ser ‘uma coisa tinica, A casa tem de ser a realiza¢ao objetiva dos espacos que moram em minha meméria postica Hegel diria: “objeriacao do espirito". Mane ditia ‘espetho ‘orade polemos nos contemplar — e fica flizes”. Freud dixie: “umm sonho de amor tomado vistvl”. Rodolfo Livingston dé um puxio de orelha nas fa culdades de arquitetura e urbanismo. “Os estudantes munca ‘os Que Now Noe HoUNeE BK IEC viram wm cliente @, depois de formados,falam ma tingua- {27 que s6 cles entondem. labora projets funciona; néo eguntam para a pesion. dwante a rejorma, onde a casa bi, Eu uttizo wm ‘ofrendmeno" & un lied para ir entendando 0 que é importante €0 que ndo 6 para que meu cliente se sta ber.” F claro que ele esta fazendo uma brincadeira. Nao ha aparelhos que possam medir o sofiimento e a felicidade. Nao h4 maneira de fazer uma pesquisa objetiva, ‘statistica, sobre o softimento e a felicidade. Porque “sofrimento e felicidad= no sio objetos. Sofrimento € felicidade so qualidades de relagies", Para saber sobre relag6es é preciso conhecer a arte de adivinhar. Essa arte € rigorosamente proibida aos cientistas. Na verda- de, eles nem sabem do que se trata. As ciéncias fisicas pesquisam objetos. Conhecer objetos. Tudo ignoram sobre qualidades, isso € 0 sentimento de felicidade ou infelicidade que um objeto proxiuz. numa pessoa. A cién- da produz os conhecimentos de quimica necessérios ppara a fabricagao de tintas de todas as cores. Coisa muito boa. Quando compro uma lata de tinta quero ter a certeza de que ela é da mesma cor da tinta que ja com- prei. A cienca garante isso. Ela sabe receitas precisas para a reproducao de objetos. Mas ela nada sabe sobre as reagbes de sofrimento ou felicidade que uma cor pode produzit. De que cor vou pintar a parede? Roxo? Preto? Rosa? Azul? Amarelo? Absbora? Quando essa pergunta feita safmos do campo da objetividade e entramos no ‘campo da qualidade: 0 que a cor faz, comigo, a relagao do objeto comigo. 120 0 ave f exact (VI) Um pesquisador enviou um projeto de pesquisa & FAPESP — Fundagio de Amparo a Pesquisa do Estado de Sao Paulo. Area médica, Propunha uma pesquisa qua- litativa. Nao The interessavam dosagens honmonais, es- ‘uturas anatomicas, metastases cancerosas: objetos que pposlem ser conhecidos quantitativamente. Interessavam- lhe sentimentos, essas “coisas” escorregadias que tem a ver com o softimento e a felicidade dos homens. Recut ‘08 para sua pesquisa foram negados. Nao sei se 0 pro- jeto era born ou no, O que me interessa sao as alega- bes do assessor, Blas revelam muito, Transcrevo duas elas: “1. Pesquisas qualitatinas sao exiremamente inners veis a vids de todos as tipos, difcultando sobremaneira a confiabilidade, validade, e reprodutibilidade do estudo (que 6 0 objetivo maior da inwestigayde cientifica). 2. Esse aba Iho asficilmente seria aceite para publicacao em uma revista cientfica intemacional. Penso que 0s recursos da FAPESP serlam mais adequadamente utilizades em pesquisas cujos resultados seam confidvels, vilidos e reproduttveis” Acho que 0 assessor, quem quer que tera sido, nao. marcaria hora no “consultsrio” do Rodolfo Livingston. le preferiria uma casa construfda em série em algum conjunto habitacional Que pena que os cientistas profbam a investigacao das coisas que trazem softimento ou felicidade aos homens! ae aaa “O que € cientifico?” (Vill) Ha os pianos. Ha a miisica. Ambos s40 absolutamente reais. Ambos sio absolutamente diferentes. Os pianos moram no mundo das quantidades. Deles se diz: “Como so bem-feitos!” A misica mora no mundo das quali- dades. Dela se diz: “Como bela! Dos pianos, os mais famosos s30 0s Steinway, pre- feridos dos grandes pianistas. Sio eles que se enconuam nos palcos dos grandes teairos do mundo. Pianos s20 maquinas de grande precisa0. Sua fabricacao exige uma ciencia rigorosa, Tudo tem de ser medido, pesado, tes- tado. As tecias devem ter o tamanho exato, devem reagir de maneira uniforme 3 pressio dos dedos, deve ter reagio instantinea, E hé de se considerar a afinagio. O| planista Benedetto Michelangelo, ao iniciar um concer to na ddade de Washington, parou imediatamente apos 05 primeiros acordes: seu ouvido percebeu que a afina- ‘G40 nao estava certa, O concerto foi interrompido para ‘que um alinador desse as cordas a tensio exata para produzir os sons preciso. Um dos objetivas da cigncia exata da fabricasio de pianos € a produg3o de pianos absolutamente iguais. Se tie eR ri—“(issSs—SSCisS os QUE Non NOH TEMES Ba BNC ‘nao forem iguais, o planista nao conseguira tocar num iano em que nunca tocou, Digo que a fabricagio de pianos é uma ciéncia por- ‘que tudo, no piano, esta submetido ao critério da me- ida: tamanhos, pesos, tens0es. Mesmo as afinacdes, que normalmente requerem ouvidos delicados ¢ precisos, podem prescindir dos ouvidos dos afinadores — 0 afinador pode ser surdo! — desde que haja um apare- Tho que mega 0 niimero de vibragBes das cordas, A realidad do piano se encontra em suas qualida des fisicas, que podem ser dits ¢ descritas na precisa Jingvagem cientifea dos miimeros F essa linguagem que toma possivel fazer pianos iguais uns aos outros. Na cienca, a possibilidade de repetir de fazer objets gua ns aos outros, € um criteso de verdade. Coisa de cu- niva: se digo que uma reeeita de bolo ¢ boa, todas vezes que qualquer pestoa fizer a mesma recita, com os mesinos ingredientes, as medias exatas, na mesma temperatura de foro, o resultado devers ser igual. A cexatidao dos miimeros toma a repeticin possivl. Assim a cncia. essa eulinaria precisa ec Tanto os pianos como 08 objtos da ciencia s80 construidos com o au 3ilio de um método chamado suamtitatio isso €, ue vale de nimezos. Na céncla e na constricio de pianos, 56 € real 0 que pode ser medio, Pianos nao sio fins em si mesmos. Pianos sto meios, xistem para ser tocados. A mtisica € Go real quanto os pianos. Mas a realidade da mtisica nao ¢ da mesma ordem que a realidade dos pianos. Fssa € a razdo por -0 gor € omer” (Vi que os fabricantes de pianos no se contentam em) fabricar pianos: eles vao aos concertos ouvir a musica ‘que 0s pianistas tocam. £ certo que a misica tem uma realidade fisica, em si mesma, independente dos sen- ‘imentos de quem ouve. \ musica existe mesmo se 0 ced esta sendo tocado numa sala vazia, sem ninguém que a ouca, Mas isso no € a realidade da musica, A. realidade da mtisica se encontza no prager de quem a uve. O mesmo vale para a comida. As cozinheiras carinham para dar prazer aos que comem. Os pintores pintam para dar prazer 20s que olham. Também os amantes beijam por causa do prazer. O desejo do pra- zer move o mundo, © prazer & uma experiéncia qualitativa. N30 pode ser medido, Nao ha receltas para sua repeticao. Cada ‘vez € tinica, irrepetivel. Um pianista nao interpreta a ‘mesma miisica das vezes de forma igual. O “Concerto italiano’, de Bach, poe em ordem meu corpo e minha alma. Outra pessoa, 20 ouvi-lo, val dizer: “Que musica hata!” Desde cedo 08 fil6sofos naturais (assim eram cha- mados os cientistas no pasado) perceberam a diferen 2 enue a ordem das quantidades e a ordem das qua lidades. & as designaram com as expressoes “qualida des primarias" e “qualidades secundarias’. As qualidades primdtias sio aquelas que pertencem ao objeto, inde. pendentemente de nossos sentimentos; elas podem ser dlitas em linguagem matemética, tornando possivel repeticio. Com elas se faz a citncia, As qualidades se cundatias s30 aquelas que se referem as experiencias 135 subjetivas que temos ac “provar" o objeto. © frango ‘a0 molho pardo tem uma realidade fisica. Mas 0 “gos: to" s6 existe em minha boca, em minha lingua e em minhas memérias de mineiro. Outra pessoa, com boca lingua anatomica ¢ fisiologicamemte idénticas as mi rnhas, mas que ndo participe das mesmas memérias (uma pessoa de conviccoes religiosas adventistas, por ‘exemplo), sentiré um “gosto” diferente do meu, possi velmemte repulsivo. A experiéncia de gosto, da beleza, da estética pertence ao mundo humano das “qualida des’, Nao pertence ao mundo das realidades quantita tivas, A linguagem matematica da ciencia nao dé conta dessa experiéncia. Nao € capaz de dize-la. Faltam he palavras, Faltam-Ihe sutilezas. Faltam-lhe, sobretudo, Intersticios. Mas como dizer a beleza de uma sonata? Lénin, ao falar do que sentia a0 ouvir a sonata “Appassionata", de Beethoven, usa palavras do vocab lario dos apaixonados. Mas, 20 Ie las, eu no fico sa endo como é a beleza da musica. Que palavras irei usar para transmnitir ao leitor o gosto € 0 prazer do frango ao molho pardo? E, no entanto, essa “coisa” indizivel € real. A expe- rtncia estética, ndo-cientifica, qualitativa, se apossa do corpo: ruflam os tambores. Ougo © ‘Danibio azul” tenho vontade de dancar. Ougo a “Serenata de Schubert” fe tenho vontade de chorar. Ougo a "Ave Maria” © 2 oracao surge, espontanea, dentro de mim, Ougo 0 *Clair de Lune”, de Debussy, ¢ fico tranquiilo. Quco o estudo ‘op. 10 n. 12, de Chopin, chamado “revolucionirio", fico agitado. 36 £0 ae cine (VI Nada disso € cientifico, quantitativo. Mas é real. Move corpos. O que comove os homens e os faz. agir € sempre (0 qualtatio, Inclusive a clencia. Os clemtistas, ao fazer Giéncia, nio sio movidos por razdes quantitativas, cien tuficas. S20 movides por autiosidade, prazer,inveja, com- peticto, narcisismo, ambicao profissional, dinheiro, fama, autoritarismo Havia, cevta vez, uma terra distante onde pianos maravilliosos eram fabricados. Os fabricantes de pia- no, envaidecidos por sua cigncia quantitativa precisa, comecaram a desprezar os pianistas, que tocavam mo- vidos por raz6es qualitativas, indiziveis. Concuiram que os pianistas eram seres de segunda classe e termi- hharam por proibir que eles tocassem. E cunharam a frase clissica: “Fabricar pianos é preciso. Tocar piano nao € preciso” Isso nao € ficc0. E isso esté acontecendo nos meics ientificos brasileiros. As pesquisas “qualitativas” so re- jeitadas porque seus resultados sao imprecisos, nao. passfveis de ser repetidos, © essas pesquisas nao si publiciveis em revistas intemacionais. Todos os ciemtis- tas devem adorar diante do altar desse novo {dolo: as revistas intemacionais indexadas, fesse fdolo que dec: de sobre 0 destino das pesquisas e dos pesquisadores Na comunidade cientifica, somente se permite a lingua ‘gem quantitativa, Tem havido casos de cursos de pos- graduagao serem desqualificados pelo fato de suas pes- ‘quisas serem feitas no compo do qualitative. O dente fico € fabricar pianos. O gostar de musica nao € cien- sufico. © que leva a solugies cientiicas ridfoulas. De que maneira um pianisia provaria sua competencia, com vistas 2 um grau de dou! dando um concerto, A ciénca contesta A ci sabe 0 que € um concerto. Se © pianista quiser ter 0 ‘grau de doutor, cle tera de escrever uma tese na qual a “qualidade” que ele sabe produzir € transformada num saber quantitative duvidoso. (Guimaraes Rosa profetizou que os homens haveriam de ficar loucos em decorrencia da Logica. & isso [4 esta acontecendo em nossas insttuigdes de pes vain os pianos! Mas as concertos esto p 128 IV Sobre computadores c Deus

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