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NA DESPEDIDA DE ROGER BASTIDE (1) Fernando de Azevedo Lembra-me ter lido em Haya de Ja Torte que, em conversa com um alto che- fe da Marinha norte-americana, por volta de 1927, 0 ouvira dizer que nfo conhecia povo mais inclinado a fécil crueldade do que os latino-americanos. Pouco tempo depois, a0 que nos relata, um sabio alem4o que veio a conhecer, emitia numa en- trevista pessoal a mesma opinido. Goldschmidt (era esse o professor a que se refe- ia, autor de importante obra sobre a América) contou que, indo certa vez a casa de um escritor sul-americano, se espantard de ver os que ali encontrou, to cruéis, no sentido de falta de respeito e de generosidade uns para com os outros. “Nfo imagina 0 sr. a minha desilusfo. O escritor que me acolheu, nfo fazia senfo falar mal dos demais e de tal forma se pés a atacar pessoas ausentes que eu considera- va dignas de respeito que tratei logo de por termo a visita” “Os senhores (actescen- tou no encontro com o escritor peruano) nfo respeitam nada nos outros. S6 os mortos se salvam na América Latina”; ¢ passou a explicar, por essa crueldade entre ©s vivos, “a nosso culto exagerado pelos mortos, a beleza dos cemitérios, a falta de sentido critico para julgar a obra dos que se foram. Enquanto vivos, a cruelda- de os destroga, « quando morrem, a supersti¢do os respeita”. Embora essa cruel- dade no a tivesse notado em relag4o ao estrangeiro a quem, ao contrério, segun- do ele, se devotava antes excessiva submissdo, declarava Goldschmidt que nfo quereria ser um latino-americano desses tempos e que seria sempre penosa a sorte de homens superiores estranhos ao ambiente. No trabalho que publicou, sobre a América, examina 0 esctitor com agude- za € erudicfo germanica os ditos irreverentes, o rumor malévolo que circula como lingua de fogo, o trocadilho ou a anedota que fere como punhal, e o nosso pr6- prio chiste ou gracejo, em que vé outras tantas expressdes dessa crueldade que atribui a instabilidade de nossa organizag4o econémica e social, 4 nossa inseguran- gae a deficiéncia de nossas forcas. Os povos, como os individuos, débeis e timi- dos, sdo cruéis. E os latinos j4 diziam: timidus, crudelis. Porque estamos envenena- Fernando de Azevedo dos de crueldade, de ressentimentos e rancores, os nossos julgamentos sio artes cruéis do que severos; e mesmo entre os homens superiores desses pafses, nfo fal- tam, a seu juizo, alguns cuja grandeza é marcada pela crueldade. Dia vird, porém (€ j4 € o seu, um prognéstico animador), em que a fortaleza nos faga generosos uns para com os outros e muita energia que se perde ou se desperdica, se utiliza- ré nas grande realizagdes, E possivel que, descontados os exageros, ainda fique ‘um resfduo de muita verdade nas observagSes do almirante americano e do sdbio alemfo. Mas acredito que, se tivesse qualquer deles visitado um desses grupos lite- rérios, — as “‘chapelles’ como lhes chamais, ou as “‘igrejinhas’ como por aqui sfo batizados, teriam eles sentido a necessidade de rever os seus julgamentos dian- te da dogura com que se entendem, dos louvores com que se obsequiam e da in- dulgente admiragfo que, no interior do grupo, se consagram uns aos outros e é s6 compardvel 4 hostilidade com que encaram os estranhos a essas confrarias. Na série de retratos de animais, que Jules Renard reuniu em suas “‘Histéires Natu- telles", um dos mais finos e espirituosos é 0 dos pombos, “‘Les Pigeons”, de que 0 observador incisivo nos d4, com alguns tragos essenciais, uma pintura graciosa, irdnica e fiel, Os escritores e os poetas (ah! se Goldschmidt os tivesse surpreen- dido nos seus cfrculos de camaradagem e nessas feiras de vaidades satisfeitas!) fazem-se, como os pombos, as mesmas saudagdes frenéticas, “‘encantam, como eles, a princfpio e acabam por entediar”, e, nos louvores que se trocam, de boca a boca, julgam poderem fecundar-se uns aos outros ¢ produzir criagdes originais, como os pombos que, fazendo sobre as casas “um rufdo de tambor velado’’, se obstinam, com seus arrulhos, “4 croire qu’on fait les enfants par le bec”. De vossa passagem pela nossa Faculdade, no nos terd ficado, Prof. Roger Bastide, nem un.a nem outra impressio: nem a de hostilidades e prevengdes, nem a das complactncias e cumplicidades de situagdes de compromisso. Nem a de crueldade de competigdes desabridas nem a de efusdes sentimentais das “coteries”, Naquele ambiente, em que, pafa nosso prazer e proveito, trabalhastes conosco dezoito anos, em que h4 um pouco de nés, sul-americanos do Brasil, ficou muito da misso francesa, e, particularmente de vés. Foi certamente larga a contribui- go que trouxeste, para recrié-la, fazendo circular pela atmosfera do Departamento nfo s6 a consciéncia da necessidade de uma disciplina ascética nos estudos, o gosto da pesquisa e da descoberta, o espirito crftico e o jufzo pessozl, senfio também o sentido de responsabilidade como o de equilfbrio e de medida, a liberdade e a exatidfo de julgamentos (e nés, em geral, nfo somos severos porque somos injus- tos, ¢, por isso mesmo, cruéis), uma inteligéncia, compreensiva e humana, mas que aprenden a distinguir, na hierarquia de valores, os merecimentos auténticos e, além da modéstia, um certo sentido de humildade que provém dessa compara- fo constante entre 0 pouco que, afinal, sabemos e o muito que ainda nos resta conhecer. Tudo isso faz parte do espfrito da cultura francesa ¢ de tal modo e em tio alto grau j4 vinha integrado em vés, que, se, por vossos exemplos e ligées, nifo tivésseis repartido, em graus varifveis, por tantos de vossos discfpulos, terfa- mos de convocar-vos e reunir-fAos n@o para um jantar de despedida, mas para vos declarar ¢ vos conservar nosso prisioneiro, mas sem a mais vaga intengao de en- volver-vos um dia (é preciso ter muito cuidado com a crueldade sul-ame- ricana. . .) numa dessas cerim6nias antropofdgicas em que certas sociedades primi- Na Despedida de Roger Bastide tivas acabavam por devorar os prisioneiros, na crenga de ingerirem, com a carne humana, as suas mais apreciadas qualidades, . . No Departamento de Sociologia e Antropologia, em nome do qual tenho a honra de vos falar, ndo fostes apenas o soci6logo eminente que, ao chegar no Brasil, ainda mogo, j4 se havia imposto nos meios europeus, pelos seus estudos sobre a vida mfstica e 2 sociologia religiosa, e cuja presenca sentimds logo, aos primeiros contatos, por seu saber e por sua erudicac. Fostes ainda (o que era da maior importéncia para nés) um conselheiro, modelo e guia, o homem de cién- cia que escolhera e realizou, dentre “as maneiras de ser um sd4bio” que Charles Richet analisou, a mais bela, a mais humana e a mais fecunda: a do professor que, sendo um cientista e pesquisador de prirreira ordem, “se compraz em se ver cercado de seus alunos, em thes abrir perspectivas e indicar-lhes o trabalho a fa- zer; que conversa com eles, .que os faz partilhar suas idéias; lhes dé conselhos; que é feliz quando pode tragar um plano de pesquisa; que passa de boa vontade horas com seus alunos para lhes inspirar trabalhos que lhes sfo tac caros como os seus préprios; que faz escola” e deixa discfpulos. J4 podeis compreender agora, meu caro Prof. Bastide, que, embora tenhamos a seguranga de vos rever entre nds e de tornar a vos ouvir, a curtos intervalos, ndo podemos deixar de sen- tir a tristeza de perder professor de tio alta categoria, que tao poderosamente concorreu para o desenvolvimento dos estudos e das pesquisas sociolégicas entre nos; o homem que sempre se conduziu nobremente, sem o querer, por estar acos- tumado a nfo querer nada des outros e a servi-los sempre, um dos maiores e melho- res amigos do’ Brasil — a vossa segunda pitria, pelos servicos que prestastes a cul- tura ¢ 2 formagao da mocidade, pela obstinagdo metédica e pelo| calor humano que com que lhe estudastes, através de aros, a cultura literdria e art{stica e aspec- tos da vida e otganizagdo social, em uma série inumerdvel de pesquisas, traba- lhos e obras; ¢, sobretudo, o amigo e companheiro de todas as horas, cujas con- vivéncia e colaboragdo inestimdveis, com se terem estendido por dezoito anos, ainda nos patecem curtas demais para nossos desejcs e necessidades, mas foram suficientemente longas para criarem, entre nés, uma dessas amizades superiores a todas as contigéncias e nos assegurarem, em nossos estudos, no ensino e nas atividades cientfficas, a presenga ccnstante de vosso alto espfrito, de vossas sd- bias ligdes e de vosso grande ¢ generoso coragao.

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