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CAPITULO 1 UPOSTOS HERMENEUTICOS tica e metodologia =o hermenéutica provém do grego épunvetdo, que signi- - anunciar, interpretar, esclarecer, explicar, traduzir. mpreendido de diversas maneiras. No sentido classico, seral da interpretagdo de textos, que indica os princi- guiar a interpretacdo; é uma disciplina de cunho sentido mais estrito, equivale a metodologia; é um co que determina passos a seguir na interpretacao de odo). O termo é também usado para indicar a com- uum texto aproximando-o de situagées atuais; herme- ica, ent4o, atualizacao da mensagem de um texto. » é utilizado aqui em seu sentido classico, como teoria da compreensao e interpretacao dos textos, ficando termo “método” para a aplicacdo dos principios ge- enéutica num modo sistematico de proceder. A atua- sesiderada uma etapa ulterior & aplicagdo do método. ‘4ncia da reflexdo acerca dos princfpios de interpre- fandamentalmente no fato de que toda metodolo- cada em principios hermenéuticos, que ditam suas mais amplas, concretizadas em seguida em passos ces precisos. PRESSUPOSTOS HERMENEUTICOS | 2. Fundamentos da hermenéutica aplicada a textos biblicos 2.1 Introdugao: texto e leitor O texto é um evento comunicativo, que supée a utilizacado de um sistema linguistico dentro de um determinado modo de expressao. Nao é uma realidade a se, mas se localiza num deter- minado momento histérico, cultural, situacional e num determi- nado contexto literdrio. Ele é 0 mediador entre o emitente, que quer expressar uma palavra, uma experiéncia, e o receptor. O re- ceptor nao entra em contato direto com o emissor, 0 redator, mas somente com 0 texto. Entre ambos ha uma diferenga de situacao, eventualmente de cultura e época. Dirigido a um leitor (ouvinte), © texto € recebido dentro das categorias de seu receptor, de sua capacidade de decifrar os sinais linguisticos nos modos de expres- sao empregados, de sua bagagem cultural, seu contexto histérico e social, além de caracteristicas proprias de sua personalidade (sensibilidade, capacidade intelectual, momento existencial). Enquanto codificacao escrita, o texto é em si mesmo uma realidade objetiva, que oferece pontos referenciais ¢ impoe limites a leitura e interpretacdo; mas é também uma realidade aberta (dentro dos limites que a linguagem impée), a ser apropriada pelo leitor dentro das possibilidades de sentido que oferece. Ele é lido, compreendido (em sua dimensao objetiva) e interpretado (em sua capacidade de significacao), porém, por um sujeito ativo, que o decodifica e dele se apropria. No processo de comunicacao entre texto e leitor, hé assim duas dimensées intrinsecamente relacionadas: de um lado, os limites que 0 texto apresenta e que implicam a necessidade de abertura, por parte do leitor, a suas coordenadas; de outro lado, a apropriagdo que dele faz o leitor e que confere ao texto uma car. ga de significado. O papel do leitor é, ent4o, fundamentalmente triplo: (1) atentar aos sinais do texto, abrindo-se ao sentido que querem comunicar; (2) explicar o texto (possibilidades de senti- do que os sinais linguisticos organizados de uma determinada | EXEcese Bfsxic, aneira oferecem); e (3) interpretar o texto, aproximando-o de mundo e momento." — distancia outra época —. > outra cultura outra situagdo A leitura, compreensao e interpretacéo de um texto consis- em reconstruir 0 evento comunicativo que lhe deu origem. pdem, assim, conhecimento da situacéo em que foi formulado texto e dos recursos linguisticos utilizados para sua colocagao escrito. A relac&o entre o receptor e 0 texto pée em jogo alguns Primeiramente, quanto ao mundo do leitor: a necessidade de avaliar as pré-compreens6es que podem influenciar a compreensao do texto. Para compreender um texto, é ne- cessdrio haver um minimo de sintonia entre leitor e texto. Sem ela, dificilmente se atingem a intengdo, a finalidade que 0 texto apresenta e o mundo de ideias que ele pressu- poe. Esta sintonia basica significa abertura ao que 0 texto quer comunicar, dentro de suas categorias de pensamento. Em segundo lugar, quanto aos critérios para verificagdo do mundo do texto e sua validade para o leitor. O texto traz implicito um leitor ao qual se dirige: as competén- cias linguisticas, culturais, ideologicas, que sio pressupos- tas naquele ao qual se dirige. Ao mesmo tempo, ele quer influenciar seu leitor. Na compreensio e interpretagdo de um texto é importante perceber a quem ele se dirige e que tipo de leitor ele quer formar. Sobre este ponto, cf. W. Egger, Metodologia do Novo Testamento, Sao Paulo, Loyola, 1994, p, 23-41. PRESSUPOSTOS HERMENBUTICOS | | | 17 ¢ Finalmente, a questio do sentido do texto, que constitui © centro da hermenéutica. Um texto pode oferecer mais sentidos do que aqueles pensados por seu autor. Estes sen- tidos, embora presentes no Proprio texto (o que ele ex- Pressa servindo-se do cddigo linguistico e dos dados cultu- rais), sio também construidos na etapa da interpretacao, que extrai do texto suas potencialidades. Estes sentidos sao encontrados pela exegese, que procura compreender o mundo do texto e que o interpreta, aproximando recipro- camente o mundo do texto e o mundo do leitor. A questao que se coloca é ento quanto ao estabelecimento de crité- rios para as etapas de compreensao e interpretagao. 2.2 Coordenadas para a exegese biblica No que tange & exegese biblica, além dos dados indicados, duas ulteriores questées se apresentam: (1) a questdo do cardter sagrado da Escritura, ou seja, de ser palavra da Revelacio divina; (2) a da complexidade da Biblia enquanto conjunto unitério de textos. No que tange ao segundo Ponto, a Biblia apresenta gran- de multiplicidade de escritos ¢ de géneros de escritos, fixados no decorrer de um largo Processo, num arco de tempo que percorre varios séculos, com variagées de cultura e linguagem; no entanto, ela é simultaneamente um nico livro, de modo que surge a per- gunta sobre como coordenar diversidade e unidade. Em relacio ao primeiro aspecto, se a Escritura é comunicagao de Deus ao ser humano, levanta-se a pergunta sobre como coordenar Palavra di- vina e palavras humanas. A partir disso, na exegese biblica torna- ~se necessdrio considerar alguns elementos fundamentais. a) A relevancia da nogSo de inspiragao? A fé crista, seguindo a tradicao judaica, retém que a Escritura nao é fruto unicamente do intelecto e do querer humano, mas Seguimos aqui, fundamentalmente, as colocagdes de G. Borgonovo, Una Proposta di rilettura dellispirazione biblica dopo gli apporti della Form. a 18 | Execese pfpuica: Teoria = prAtica, "foi escrita sob a especial condugdo de Deus, de modo a expres- sar com fidelidade, certeza e sem erro a Palavra que Deus quer comunicar. E 0 que se chama a “inspiracio” divina da Escritu- ra, Nao se trata de um ditado palavra por palavra, onde o ser humano servisse apenas como instrumento passivo para por por escrito 0 que Deus como que se lhe soprasse a0 ouvido. Nem da aprovacao divina da obra de um determinado autor. Nem mesmo de uma assisténcia que se limitasse a impedir que, durante 0 ato de escrever, 0 autor cometesse erros.* Trata-se, na realidade, da particular confluéncia da aco de Deus e do ser humano, onde Deus comunica sua Palavra ao homem e ele, com todas suas ca- racteristicas pessoais, sua cultura, seu modo de ser, compreende, decide pér por escrito ¢ finalmente escreve 0 que sua mente, a Inz de Deus, concebeu. Em todos estes momentos esta presente a acdo especial de Deus, sem 0 que se correria 0 perigo, da parte do escritor humano, de ou nao compreender corretamente 0 que Deus comunica, ou de nao haver a decisdo de escrever ou ainda de que isso fosse feito de modo inapto, nao expressando o que Deus comnnicara.’ Por esta conjungao entre o agir divino e 0 e Redaktionsgeschichte”, in L'Interpretazione della Bibbia nella Chiesa. Atti del Simposio promosso dalla Congregazione per Ja Dottrina della Fede, Roma, settembre 1999, Citta del Vaticano, Editrice Vaticana, 2001, p. 41-63. Cf. Concilio Vaticano Il, Constituigao dogmatica Dei Verbum (abreviada doravante como DV), Roma, Editrice Vaticana, 1965, 11, § 2. Sobre estas concepgdes erréneas, cf. V. Mannucci, Biblia e Palavra de Deus, $40 Paulo, Paulinas, 1985, p. 173-175; Martini, C. M.s Bonatti, P. Il Messaggio della Salvezza. Introduzione generale, Leumann (Torino), Elle Di Ci, 1990, p. 59-66. Sobre estes trés momentos do evento da inspiracao biblica, cf. Ledo PP. XIII, Enciclica Providentissimus Deus (1893), n. 46: Enchiridion Bibli- cum. Documenti della Chiesa sulla Sacra Scrittura. Edizione bilingue, Bo- logna, Dehoniane, 1993, n. 125: “Porque Ele de tal maneira os excitou e moveu com seu influxo sobrenatural para que escrevessem, de tal manei- ra 0 assistiu enquanto escreviam que cles conceberam retamente tudo 50 0 que Ele queria, e o quiseram fielmente escrever, ¢ 0 expressaram de modo apto como verdade infalivel; se assim nao fosse, Ele no seria 0 autor de toda a Sagrada Escritura”. PRESSUPOSTOS HERMENEUTICOS 20 humano, a Escritura € toda Palavra de Deus expressa toda ela em palavras humanas, de modo que Deus é 0 Autor tltimo e princi- pal; o hagidgrafo, porém, é também “verdadeiro autor”.® Na origem do texto biblico est, por conseguinte, Deus que se autocomunica. Comunica-se a alguém que vive a experiéncia de receber a palavra divina. Nao se trata necessariamente de uma palayra audivel, mas da iluminagao da mente, de modo que o ser humano concebe em seu intelecto o que Deus a ele comunica. O ser humano acede, assim, a revelagio, a algo anteriormente nao conhecido e nao experimentado — ou nao conhecido e ex- perimentado do modo como agora é percebido; torna-se disso testemunha e traduz, em linguagem humana, a revelacao. A tes- temunha atesta o que experimentou, 0 que “viu” e “ouviu” (cf. Jo 1,1-4), comunicando-o a outros. Aqueles que recebem sua pa- lavra, atestam-na como verdadeira e, aceitando-a, podem tornar- -Se, por sua vez, transmissores desta palavra (nesse sentido, so discipulos). Eles percebem a palavra do mestre como algo que transmite a yontade de Deus (e, nesse sentido, Palavra divina), confiam na veracidade e na autoridade da testemunha e pot isso a comunicam. Ao aceitarem a mensagem como consoante a von- tade divina, os discfpulos dependem da testemunha para chegat 4 autocomunicagdo de Deus. Mas nao s&o totalmente passivos, pois, para penetrar em seu sentido, devem reviver, de certa forma, a experiéncia do mestre. Tornam-se entao novos transmissores da mensagem, inclusive em outros momentos, diferentes do momen- to e da situacao da testemunha. Este caminho pode ser mais ou menos longo, partindo da comunicagao oral (caso a testemunha nada tenha escrito) e chegando a colocacao por escrito (possivel- mente, de inicio de modo fragmentrio), com possiveis reelabora- ¢des. Na colocagao por escrito entra a especial acao de Deus que inspira o(s) autores). Ao se deparar com o texto biblico, o leitor deve percorrer 0 caminho inverso, que vai do texto inspirado até a autocomuni- cacao de Deus. Aceita 0 escrito como confidvel e, através dele, ® CEDV11,$1. EXEGESE BIBLICA: TEORIA E PRATICA ve chegar 8 revelacio divina. Nem sempre podera reconhecer transmissores desta palavra, seja a sucessd0 dos discipulos que jram e escreveram, seja 0 testemunho do mestre. O texto ad- ire uma valéncia independente daqueles que 0 colocaram por tito e se torna o intermediério entre o leitor e a Palavra origi- tia de Deus. Para o trabalho exegético, este processo chama em causa dois dos: £ necessdrio afrontar o texto na configuracio em que foi recebido pela comunidade de fé na qual foi formulado,’ considerando o sistema linguistico utilizado e 0 modo como 0 foi, bem como as pressuposigGes de ordem histéri- ca, cultural, religiosa. Tal configuragao éa primeira porta de acesso 4 comunicacao origindria de Deus. E igualmente necessdrio chegar a identificar a Palavra di- vina expressa nas palavras humanas. O trabalho filolégico ¢ histérico nao é suficiente para a compreensao € interpre- taco, pois o texto nao € s6 humano. Em outras palavras, trata-se de, através da face humana do texto, chegar 4 Palavra divina. Palavras humanas ¢ Palavra divina sZo como que duas faces de uma mesma moeda: © intérprete da Sagrada Escritura, para saber o que Ele quis comunicar-nos, deve investigar com ateng&o 0 que os hagidégrafos realmente quiseram significar e que aprouve a Deus manifestar por meio das suas palavras (Dei Verbum, 12, § 1)$ > Devem ser verificadas, naturalmente, as variantes introduzidas no pro- cesso de c6pia, julgando-se sen valor e determinando que seria 0 texto mais proximo 20 original ~ 0 que é tarefa da critica textual. + Texto original latino: “interpres Sacrae Scripturae, ut perspiciat, quid Ipse nobiscum communicare voluert, artente investigare debet, quid ha- giographi reapse significare intenderint et eorum verbis manifestare Deo placuerit”. Pressurostos nermenturicos | 21 “Tnvestigar... 0 que os hagidgrafos realmente quiseram signi- ficar” com as palavras, com 0 texto produzido; chegar ao que, através dessas palavras, Deus “manifestou”: sao os dois aspectos fundamentais que a exegese traz em si. No trabalho exegético é preciso, por conseguinte, considerar 0s momentos constitutivos da palavra: a Revelacao, o Testemu- nho, a Escritura, independentemente se estes si0 ou niio préximos entre si no tempo. O objeto tiltimo da exegese é, assim, a experién- cia da testemunha e seu significado. Seu trabalho critico é desen- volvido sobre a interpretago da experiéncia, mas nio mais sobre © evento origindrio, que escapa 4 investigacdo histérica. Este sé atingido através do testemunho enquanto transmitido. Por isso, 0 aspecto salvifico (concernente a fé) da mensagem transmitida nao pode ser objeto da critica histérica.? Como entao chegar a autoco- municacdo de Deus, sera considerado mais A frente. b) A Escritura como momento da Tradi¢ao e a Regula fidei A ideia de tradigdo é essencial a fé crista, pois esta tem ori- gem num dado histérico do passado — a vida e a obra de Jesus de Nazaré -, que ndo é concebido como ultrapassado, mas como constitutivo para o contetido da fé e sua expresso no mundo. Ja a fé judaica, contudo, estava marcada pela tradigdo, uma vez que vivia de dados fundantes do passado (a escolha de um Ppovo, o éxodo, a posse da terra), que sintetizavam sua fé (cf, Dt 6,20-23; 26,5-9; Js 24,1-13) e permitiam vivencid-la no presente e em vista do futuro. A tradicio inclui a doutrina, a vida, 0 culto," transmitidos como pilares que garantem a identidade da comunidade de fé atra- vés das épocas. Por um lado, ela é anterior a Escritura e lhe dé origem. A Escritura, de fato, é a colocagio por escrito, sob a ins- piragdo divina, da experiéncia fundante de testemunhas, recebida € transmitida por discipulos até sua paulatina codificacao escrita. ° Cf. G. Borgonovo, “Una proposta di rilettura dell’ispirazione biblic 57. 1% CfDV8,$1. 22 | Exzexse pfotica: TeORIA £ PRATICA do, a Escritura nao traz o elenco dos livros considera- mesmo tempo, a leitura posterior esté necessariamente pelos dados e questées da época do leitor, de modo que, ensdo, se dd uma “fusio de horizontes”: do leitor e da sa maneira, um mesmo texto pode ser compreendido -ado — dentro dos limites que ele mesmo impde — de for- ntes, conforme variem os elementos que, na época pos- So considerados relevantes para a compreensao. O leitor é sto ativo na recepgo e interpretagao de um texto, de modo entido de um texto nao depende somente dele mesmo, mas a sucessiva. A leitura sucessiva torna 0 texto vivo, capaz também para épocas subsequentes a sua fixacao escrita. posterior ao texto é constituida por esse movimento ede o leitor e que continuaré depois dele. Esta, por isso, ‘inuo crescimento e transformacao."* a DV 8, § 3: “Mediante a mesma Tradicao, conhece a Igreja o inteiro dos livros sagrados”. a Tradi¢do e sua relacdo com a Escritura na Dei Verbum, cf., dentre sxas obras, 0 estudo clissico de R. Latourelle, Teologia da Revelacao, > Paulo, Paulinas, 1985, p. 387-395. HER. Jauss, Pour une esthétique de la réception, Paris, Gallimard, p.58. © tema da tradicdo, particularmente do ponto de vista filoséfico ‘saz aplicagio a exegese biblica, cf. A.-M. Pelletier, D'age en age les PRESSUPOSTOS HERMENEUTICOS: | i 23 24 No que concerne a interpretagio dos textos biblicos, isto sig- nifica que o trabalho exegético nao pode desconsiderar os efeitos que o texto produziu, durante os séculos, na leitura crente.'5 Jaa leitura da Escritura nos primeiros tempos da Igreja se fazia tendo em conta, como algo natural, a compreensio dela pelas geracées anteriores."* A partir dessa visdo, interpretar um texto significava torna-lo palavra viva para a geracio atual e percebé-lo dentro da comunhio diacrénica dos fiéis. A Tradicao vem, assim, integrada na procura do sentido do texto, enquadrando-se no processo que visa desvendar as virtualidades que 0 texto possui e desenvolvé- -las na busca de resposta para as quest6es das diferentes épocas. Tal atencdo 4 comunidade eclesial nao significa, porém, igua- lar todas as interpretacées feitas, mas inclui avalia-las, distinguin- do aquelas mais aderentes ao texto e 4 sua colocag&o em contexto de £6, daquelas que disto se afastam. Inclui, portanto, o critério da medida da f€ (regula fidei), que a Escritura testemunha e com a qual nao pode, portanto, encontrar-se em contradicao. Como instancia divinamente privilegiada de garantia da fidelidade a fé das origens existe, na Igreja Catélica, 0 Magistério, que esta a servico da Palavra de Deus.” Porém, mesmo em outras igrejas crists existe algo andlogo, no sentido que uma interpretagao Ecritures. La Bible et Phermeneutique contemporaine, Bruxelles, Lessius, 2004, p. 115-136, aqui, especialmente p. 125-126. A chamada Wirkungsgeschichte. Sobre a importancia da leitura que acompanha o sentido do texto, cf. A.-M. Pelletier, D’age en age les Ecri- tures, p. 131-133, Tal modo de ler no era uma completa novidade, mas continuava o que jd se fazia na comunidade judaica e que continuow a ser feito posterior- mente: a tradicao escrita (a Biblia judaica) era acompanhada da tradicio oral (o ensinamento e interpretacao dos mestres, posteriormente também Postos por escrito). O Magistério, afirma a Dei Verbum, “nao esta acima da Palavra de Deus, mas sim ao seu servigo, ensinando apenas o que foi transmitido, enquan- to, por mandato divino e com a assisténcia do Espirito Santo, a ouve piamente, a guarda religiosamente ¢ a expe fielmente, haurindo deste depésito tinico da fé tudo quanto propde a fé como divinamente revela- do” (DV 10, § 2). 1s 16 v EXEGESE R{BLICA: TEORIA E PRATICA, j | { | | éblica fortemente destoante do contetido da fé professada por a dada comunidade pode levar a uma ruptura tal que expresse ma real separacio. Ou seja, € sempre necessdria uma sintonia 20 essencial. Em outras palavras, a interpretacdo eclesial é “critério fun- ental da hermenéutica biblica”."* A referéncia 4 Igreja é ine- ente 4 exegese dos textos biblicos, pois € a Igreja que reconhece 2 Escritura como palavra divina e a Escritura é livro da Igreja, a ela pertence. A Igreja é capaz de interpretar a Escritura porque em a garantia da condugdo do Espirito Santo. Como a Escritura pressa a fé do Povo de Deus, s6 pode ser compreendida em eferéncia a este Povo em sua totalidade, 4 grande Igreja, que de Deus recebe a revelacao e que por ela se deve guiar. A regra de fé, ‘itamente ligada 4 comunidade de Fé, se constitui assim pres- posto necessdrio para o entendimento das Escrituras.” A Escritura como testemunha da tinica Palavra de Deus Apesar de apresentar grande multiplicidade de autores e épo- s dos diversos escritos, a propria Escritura apresenta indicios j4 em épocas antigas, unir elementos distintos. O Pentateu- 5. com suas multiplices tradicdes ou fontes, colocadas e retra- Ihadas em vista do conjunto, é disto um exemplo. A propria ocaco de livros distintos num todo (cf. 0 Prélogo do livro do ccida, 1) testemunha em favor deste dado. A Escritura nao é s6 m agrupamento de livros, mas um todo organico. Essa unidade, esar da pluralidade de escritos, é dada pelo seu contetido - a welacdo de Deus acerca de si mesmo e da vocagao e do destino ser humano” -, ligado ao seu Autor principal, Deus. Como asequéncia, a compreensao de um texto biblico nao encontra a salidade de sentido a nao ser que 0 texto seja considerado, pri- iramente, no contexto imediato e no livro particular do qual Cf. Bento XVI, Exortacio apostélica Verbum Domini, sobre a Palavra de Deus na vida e na missdo da Igreja (Roma, Editrice Vaticana, 2010), 29. CE. Verbum Domini, 29-30. Cf. DV 2. PRESSUPOSTOS HERMENEUTICOS faz parte, mas ainda no contexto maior, a Biblia em seu conjunto. Como s6 0 conjunto de uma obra fornece a moldura que permite compreender e interpretar adequadamente uma de suas partes ou seus elementos individuais, assim cada texto biblico, em sua singularidade, s6 pode ser apreendido em seu significado comple- to se considerado na totalidade da Revelacdo divina, a Sagrada Escritura (junto com a Tradigao eclesial). Isto ganha uma dimensao especial para a fé crista, na medida em que a Escritura cristé une num tinico conjunto o Antigo e o Novo Testamento. O Antigo Testamento apresenta um valor perene, enquanto caminho para uma meta e enquanto expressio do mesmo mistério e plano de Deus, levado 4 plena realizacio em Cristo.”! Sendo Jesus o ponto maximo da revelagdo de Deus, toda a Escritura tem nele sua chave de interpretagio; a escolha de Israel e toda a histéria de Deus com seu povo sao, nele, plena- mente compreendidas. A leitura que considera os textos dentro do contexto total da Escritura é, nos uiltimos anos, identificada com a abordagem canénica.” Em sintese Os trés elementos acima (a importancia da nogio de inspira- G80, a Tradigio e a regula fidei e a unidade da Palavra de Deus) sao sintetizados na Dei Verbum: no menos atengio se deve dar, na investigagao do reto sentido dos textos sagrados, ao contexto e & unidade de toda a Escritura, tendo em conta a Tradic&o viva de toda a Igreja e a analogia da fé (DV 12, § 3).25 Cf. DV 14. 15. Sobre a unidade entre Antigo e Novo Testamento, cf. 0 capitulo 2 desta primeira parte. Cf. o excurso no final deste capitulo. Texto latino; “ad recte sacrorum textuum sensum eruendum, non minus diligenter respiciendum est ad contentum et unitatem totius Scripturae, ratione habita vivae totius Ecclesiae Traditionis et analogiae fidei”. a 23 26 | Execese Bipuica: TEORIA & PRATICA Estes trés elementos tém por finalidade encontrar o sentido gue o Espirito Santo inspirou e possibilitam ao leitor atual ler a ‘itura neste mesmo Espirito.* Em esquema, o caminho da exegese: . O escopo da exegese biblica As consideragdes acima evidenciam que a exegese biblica é ‘uma disciplina que conjuga dois polos: teolégico (eclesial) e cien- ‘tifico. E uma disciplina eclesial, enquanto consiste em compreen- der os textos biblicos dentro da tradi¢do da fé, apresentando seus * CE DV 12,53. Pressupostos HERmeniuticos | 27 resultados 4 comunidade eclesial. E uma disciplina cientifica, en- quanto deve ser efetivada tendo em conta uma metodologia cien- tificamente controlavel, que consiga desvendar sua face humana. A natureza dos textos biblicos e os princfpios hermenéuticos apontados acima tragam linhas fundamentais a serem considera- das ao se delinear uma metodologia exegética adequada ao seu objeto: a) Como a revelacao de Deus se deu na histéria, o método em- pregado deve considerar os textos em seu momento no processo de revelacdo. Isto exige que seja utilizada a perspectiva diacrénica na leitura, compreensio e interpretacdo dos textos. Esta tem por fina- lidade entender 0 que os textos quiseram dar a conhecer na época em que foram compostos. E 0 que se denomina sentido literal. | A perspectiva diacrénica é necessdria, na medida em que elementos lingufsticos e culturais localizados num momento de- terminado exigem o conhecimento da lingua e dos costumes da €poca a que se referem. Por outro lado, partindo do Ppressuposto que os textos biblicos chegaram 4 sua formulacdo can6nica, nor- malmente, ap6s um mais ou menos longo processo de elaboragao, € que tal processo pode ter trazido alguma obscuridade quan- to a integracdo dos diversos elementos, pode ser itil investigar também a génese dos textos. Essa andlise, porém, deve servir a compreender melhor os elementos que ficariam sem explicagdo se nao fossem assim investigados; sua finalidade é, portanto, de elu- cidar melhor o sentido que o texto adquiriu em sua formulagdo final. Ela nao tem interesse por si mesma, a nao ser para quem se Pproponha a investigar a histéria. Para o intérprete da Escritura ela esta em funcdo da compreensio do texto. Devido ao carater hist6rico da revelacdo, portanto, a deter- minagao do sentido literal “com a maior exatidao possivel” é a “tarefa principal da exegese”,?’ sem, no entanto, esgotd-la.** * Pontificia Comissio Biblica, A interpretacao da Biblia na Igreja, Roma, Editrice Vaticana, 1993, I, B, 1. E uma das finalidades da exegese biblica: cf. “Divino Afflante Spiritu”, in Enchiridion Biblicum, n. 560. 26 28 | Execs stptica: TEORIA & PRATICA b) Em virtude do carater sagrado dos textos biblicos, a exege- ‘se ndo pode restringir seu trabalho a anélise da palavra humana, ‘mas, através desta andlise, visa chegar a apresentar a Palavra de Deus transmitida no texto de estudo. Visa explicar a Sagrada Escritura, esclarecendo seu sentido como Palavra de Deus diri- gida atualmente a humanidade.*’ Se a Palavra de Deus é sempre atual (cf. Is 40,8; 1Pd 1,25), 0 trabalho exegético deve ser capaz de apresent4-la nao como palavra do passado, mas Palavra viva, capaz de interpelar as circunsténcias e as culturas atuais. Para tanto, deve ter em mente perspectivas hermenéuticas que permi- tam atualizar adequadamente a Palavra, perspectivas que sejam abertas a dimensio da fé.** A partir dai se entende que a exegese tem como escopo final chegar ao sentido do texto biblico, considerada sua dimensao teo- légica, que, a partir dos princfpios enunciados pela Dei Verbum (cf. n. 12, § 3), comporta trés aspectos: a Escritura como unida- de, sua dimensao cristoldgica ¢ seu alcance eclesial.”” Na perspec- tiva crista, é Cristo a chave hermenéutica da Escritura. Por isso, para além da consideragao do contexto histérico, social, cultural, é necessario considerar o novo contexto dado pela Revelagdo em Jesus Cristo e que pode ser compendiado no mistério pascal. £ a luz do mistério pascal que permite evidenciar tanto os aspec- tos transitérios como a dimensdo de revelacao que uma passa- gem biblica aporta.*° Unido a este aspecto esta a consideragao de que os textos biblicos foram redigidos em e para comunidades de fé, de Israel, para o Antigo Testamento, e para a comunidade crista, para o Novo Testamento e para o Antigo, assumido este, entéo, como Escritura crista. E relevante que a exegese chegue a CE, Pontificia Comisséo Biblica, A interpretacao da Biblia na Igreja, Wl, ea CE. Verbum Domini, 35. CE Pontificia Comissio Biblica, A interpretagdo da Biblia na Igreja, WU, C, 1; Bento XVI, Verbum Domini, 34. CE Pontificia Comissio Biblica, A interpretacao da Biblia na Igreja, ll, B, 2; Bento XVI, Verbum Domini, 37-38. PRESSUPOSTOS HERMENEUTICOS | 30 considerar como um texto expressa a fé da comunidade eclesial e como é fator de crescimento dessa fé. Com isso, evidencia-se a finalidade da exegese biblica, Ten- do por objeto de estudo uma realidade que é a Palavra de Deus expressa em palavras humanas, ela abarca, por sua natureza pré- Pria, esses dois ambitos. Buscando realizar tal escopo, a exegese biblica se torna realmente “uma tarefa de Igreja, pois ela consiste em estudar e explicar a Santa Escritura de maneira a colocar to- das as suas riquezas 4 disposigao dos pastores ¢ dos fiéis” 31 Excurso A abordagem canénica Muito valorizada em alguns Ambitos de estudo exegético, sur- giu, nas tltimas décadas, a leitura candnica. Nao foi formulada como um método propriamente dito, mas como uma Perspectiva particular a ser considerada na leitura e interpretagdo. A abordagem canénica retine diversos modos de interpretar um texto,” unificados pelo interesse de lé-lo nao somente como unidade independente, mas considerando sua funcdo na Biblia como conjunto de livros aceito Por uma comunidade de fé (0 c4- non). Tomou duas formas principais:*3 a) a que visa ler um texto dentro do canon e considerando a telacao entre suas diversas Partes** — 0 que significa, de um Pontificia Comissao Biblica, A interpretacdo da Biblia na Tgreja, I, C. CE. P. Bovati; P, Basta, Ci ha parlato per mezzo dei brofeti. Ermeneutica biblica, Cinisello Balsamo (Milano), Roma, San Paolo, Gregorian & Bi- blical Press, 2012, p. 264-265, Cf. A. G. Hunter, “Canonical Criticism”, in R. J. Coggins; J. L. Houl- den (org), A Dictionary of Biblical Interpretation, London, SCM Press, 1994, p. 105-107; G.'T. Sheppard, “Canonical Criticism”, in D. N. Freed, man, The Anchor Bible Dictionary, v. 1, New York, Doubleday, 1992, p. 861-866, B.S. Childs, Biblical Theology in Crisis, Philadelphia, The Westminster Press, 1970; Introduction to the Old Testament as Scripture, London, EXEGESE BIBLICA: TEORIA E PRATICA que, para sua interpretacdo, é necessdrio considerar 56 0 livro em que se encontra, mas ainda o Testamento que se localiza e a Biblia como um todo; e, de outro, © texto final jd traz em si anteriores releituras e inter- acdes da comunidade de fé; visa compreendé-lo dentro do processo de desenvol- vento das tradicdes que levaram A atual formulacio do son: como tradi¢ées foram reinterpretadas (mesmo com as) € postas por escrito sucessivamente pela comu- e de fé, sendo por fim aceitas como canénicas.*5 = 0 passar dos anos, no entanto, essa abordagem assumiu pordagem canénica mostra-se necess4ria na medida em itura nao é um simples conglomerado de textos, mas unto que tem em si um fio condutor. No entanto, cumpre ente definir qual o canon de referéncia (judeu, cristao — ja...2). De outro lado, é necessdrio levantar a questao ica: como realizar a finalidade a que se propde. Cer- nao pode ser identificada com a abordagem canénica a subjetiva ou fundamentalista, que aproximasse tex- r de modelos e sistemas prévios, que nao respeitassem = propria das passagens em questo e da Escritura em seu Press, 1979; Old Testament Theology its Canonical Context, Phila- i2, Fortress Press, 1985. Sanders, Torah and Canon, Philadelphia, Fortress, 1972; Canon munity, Philadelphia, Fortress, 1984; “Scripture as Canon in aurch”, in L'Interpretazione della Bibbia nella Chiesa. Atti del Sim- promosso dalla Congregazione per la Dotirina della Fede, Roma, See Vaticana, 1999, p. 121-143, D. Artus, “La Lecture canonique de l’Ecriture - Une nouvelle orien- de l’exégése biblique”, Communio (francesa) 37 (2012) 75-85. O Bento XVI assim se expressa: “interpretar o texto tendo presente a de toda a Escritura; isto hoje se chama exegese candnica” (Ver- Domini, n, 34). Cf. ainda o n. 57. PRESSUPOSTOS HERMENEUTICOS todo. Nesse sentido, a contribuicio de metodologias diacrénicas pode evitar simplificacées inadequadas, por oferecer dados para uma mais bem ponderada aproximagao de textos, sem que se- jam eliminadas as diferengas porventura existentes entre eles.” Em outras palavras, cumpre tematizar de modo explicit os cri- térios de uma justa abordagem candnica: que considere o texto canénico como autoridade, mas ainda reflita sobre o processo de formacao dos textos, particularmente sob a tica das comuni- dades de fé que o receberam e transmitiram até sua constituicao final. Trés perspectivas podem auxiliar a evitar leituras canOnicas simplistas:* considerar 0 texto como um todo, sem pingar inde- vidamente frases ou palavras; dar a devida atengdo ao aspecto histérico do texto: o contexto extratextual que reflete e os ele- mentos religiosos, culturais, sociais que lhe esto subjacentes; por fim, considerar os valores religiosos da comunidade de fé que o recebeu e atualmente recebe. A atengdo aos aspectos histéricos, culturais, religiosos do mundo do texto e da sua progressiva colocagao por escrito au- xilia no s6 a compreender o que 0 texto aceitou ou rejeitou em seu processo de formagao, mas ainda a entender sua formulagio iiltima. Por outro lado, o uso de terminologia recorrente (ou do mesmo campo semAntico) e a presenga de tematicas afins nos diversos textos que se considera serem relacionados sao critérios iteis para evitar o subjetivismo. Enfim, a observancia dos princi- pios enunciados em Dei Verburm 12 fornece a moldura que evita interpretagdes que se desviem da finalidade ultima da Escritura. Cf. as observacées criticas de H. Simian-Yofre, “Possibilita ¢ limiti dell'interpretazione ‘canonica’ della Bibbia”, Rivista Biblica 56 (2008) 157-175; especialmente p. 159-160. 165. 167. 38 Cf, H. Simian-Yofre, Amos, Milano, Paoline, 2002, p. 25-26. EXEGESE BIBLICA: TEORIA E PRATICA

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