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HERMISTEN COSTA Pensadores Cristaos Calvino DeAaZ y ACADEMICA Eprrora do grupo ‘ZONDERVAN HarpeRCouuins Filiada & Canana BrasiteiRa Do Livro ASSOCIAGKO BRASILEIRA be Eprrores Chustkos Assoctagto Nacionat. pe Livaanuas Associagho NACIONAL DE Livearaas Bvanceticas ©2006, de Hermisten Costa Todos os direitos em lingua portuguesa reserondet por Eprrora Viva, Rua Julio de Castilhos, 280, Belenzinho cer 03059-000 Sao Paulo, SP Tel.: 0 xx 11 6618 7000 Fax: 0 xx 11 6618 7050 www.editoravida.com.br www.yvidaacademica.net PROIBIDA A REPRODUGAO POR QUAISQUER MEIOS, SALVO EM BREVES CITAGOES, COM INDICACAO DA FONTE, Coordenagio editorial: Rosana Brandéo Edisio: Lilian Jenkino Revisio: Polyana Lima Diagramagio: Sonia Peticov Capa: Marcelo Moscheta Dados Internacionais de Catalogacéo na Publicagéo (CIP) Costa, Hermisten (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Pensadores cristéos: Calvino de A a Z / Hermisten Costa — Sto Paulo : Editora Vida, 2006. Bibliografia Issn 85-7367-922-0 1,Calvinismo 2, Calvino, Jean, 1509-1569 I. Titulo, 05-7626 Indice pars catilogo sistemético: 1, Calvinismo: Teologia: Cristianismo DD 284.2 284.2 Sumario Preficio Joo Calvino, o tedlogo da Palavra e do Espfrito A formagéo de Calvino A conversio de Calvino Calvino como humanista A autoridade interna das Escrituras O balbuciar de Deus e 0 testemunho do Espirito Discfpulo da Escritura na escola do Espirito A Escritura & liz da Escritura Teologia: um comentdrio das Escrituras A brevidade e a clareza necessdrias Conhecer para viver A responsabilidade dos pastores A oragio e a interpretagao bfblica Momentos finais de sua existéncia Calvino & calvinismo: anotagées finais Cronologia Notas Bibliografia 11 12 15 7 22 23 27 32 34 36 39 41 43 44 46 51 297 338 ABNEGAGAO. AGAO SOCIAL ADAO ADOGAO ADORAGAO AFLIGAO ALEGORIA ALEGRIA ALIENAGAO ALMA AMBICGAO. AMOR ANJOS APOSTASIA APOSTOLO ARREPENDIMENTO ARTE ASCENSAO ATE{SMO AUTO-EXAME BATISMO BENCGAO BIBLIA BOAS OBRAS BONDADE CANON CARNE CASTIGO CATOLICA CIENCIA COBIGA COMUNHAO CONFIANGA CONFISSAO CONHECIMENTO 55 55 57 57 58 59 60 60 61 62 62 62 63 64 65 65 66 67 67 68 68 69 71 74 76 7 78 78 78 79 79 79 80 81 82 CONSELHO COOPERAGAO CORAGAO CRIAGAO CRISTIANISMO CRUZ CULTO D_ DEPRAVAGAO TOTAL DESEJOS CARNAIS DESESPERO DEUS DISCIPLINA pIScUSsAO DISPUTA DIZIMO DOMINGO DONS DOUTRINA DUVIDA ELEIGAO ELOQUENCIA ENCARNAGAO ENSINO EPICUREUS ESMOLA ESPECULAGAO ESPERANGA ESPIRITO SANTO ETERNIDADE EVANGELHO EXEMPLO EXPIACAO FABULA FALSADOUTRINA FAMILIA 87 87 87 88 89 89 90 94 95 95 96 7 100 101 101 101 102 103 105 105 108 110 1. 112 112 113 118 119 122 122 125 125 126 126 127 FE FELICIDADE FIDELIDADE FILHO DEDEUS FILOSOFIA FRAGILIDADE HUMANA G GALARDAO GLORIA GLORIFICACAO GOVERNANTES. GRAGA GRATIDAO H HERDEIRO HERMENFUTICA HIPOCRISIA HOMEM HUMILDADE IDOLATRIA, IGREJA ILUMINAGAO IMAGEM ESEMELHANGA IMATURIDADE IMPUNIDADE, INGRATIDAO INTEGRIDADE INTERCESSAO INVEJA IRA JEJUM JESUS JOVEM JUIZO CRITICO JUIZO FINAL JURAMENTO 127 133 134 135 135 136 138 138 140 141 145 147 147 149 149 150 153 153 158 161 162 163 163 165 165 165 166 168 168 169 170 170 173 JUSTICA JUSTIFICAGAO LEI LEMBRANGA LEVANTAR AS MAOS LIBERDADE LIBERTINAGEM LONGANIMIDADE LOUVOR M MANSIDAO, MEDIADOR MEDITAGAO MEDO ‘MESTRE ‘MILAGRE MINISTRO MISERICORDIA MORAL MORTE MUNDO ‘MUSICA N NOME oO OBEDIENCIA OLHOS ORAGAO. ORGULHO PACIENCIA PAPA PASTOR PAZ PECADO PENSAMENTO PERDAO. 173 175 176 179 179 180 180 181 181 181 181 182 182 183 184 184 188 190 190 191 191 195 196 198 198 206 207 209 209 210 211 215 216 PERSEGUICAO PERSEVERANGA PIEDADE POBREZA PODER POLEMICA PREDESTINAGAO PREGAGAO PREGADOR PRESB{TERO PRESCIENCIA PRISAO. PROFECIA PROMESSA PROVIDENCIA PURGATORIO R RAZAO, RECONCILIAGAO REDENGAQ REGENERACAO REINO DECRISTO RELIGIAO RESSURREIGAO REVELACAO RIQUEZA SABEDORIA SACERDOCIO DE CRISTO SACERDOCIO UNIVERSAL, DOS CRENTES SACRAMENTO. SACRIFICIO SALVACAO, SALVACAO DAS CRIANCAS SANTA CEIA SANTIDADE SANTIFICAGAO 217 217 218 219 221 222 223 225 229 230 230 230 230 231 232 238 238 239 240 240 242 242 243 244 246 248 248 250 251 255 256 259 259 265 266 SANTUARIO SATANAS SELO SEMINARIO SENTIMENTO RELIGIOSO SERMAO SERVIGO SERVO S{MBOLO SIMPATIA, SOBERANIA SOCORRO SOFRIMENTO SUBMISSAO SUPERSTIGAO ‘TEMPO, TENTAGAO TEOLOGO TRABALHO ‘TRISTEZA UNGAO UNIAO UNIAO MISTICA v VERDADE VESTIMENTA VICIos VIDA CRISTA VINGANGA VIRTUDE VITORIA, VIVER NO MUNDO VOCACAO VOCAGAO EFICAZ Zz ZELO 267 267 271 272 272 276 276 277 278 279 279 281 281 282 282 284 284 284 285 285 287 288 289 289 290 290 290 291 291 293 294 295 Prefaicio Ao longo dos anos o dr. Hermisten Costa tem-se especializa- do em Jodo Calvino. Seus recentes trabalhos, somados aos cursos ministrados na Escola Superior de Teologia, no Pro- grama de Pés-Graduacao da Universidade Presbiteriana Mackenzie e no Semindrio Teoldgico Presbiteriano rev. José Manoel da Conceigao, evidenciam seu comprometimento com o pensamento calvinista, o que tem contribufdo para despertar um proficuo interesse pela teologia reformada por parte da igreja presbiteriana de hoje. O reformador Joao Calvino (1509-1564), pouco conhe- cido no cendrio evangélico brasileiro, tem para a reforma protestante do século 16 a mesma importAncia que teve o reformador Martinho Lutero. Um elemento diferenciador é que Calvino, fazendo parte da segunda geracéo dos refor- madores, foi aquele que ordenou ¢ sistematizou 0 pensamento teoldgico reformado. Sua dedicagao 4 causa do evangelho é simplesmente insuperdvel. Suas obras tém recebido reconhe- cimento geral e so tidas como literatura clssica universal, principalmente sua obra Instituigio da Religiao Cristi. Segundo um pensador francés, Calvino deve ser conside- rado o “pai de uma civilizagao”. Ao longo dos séculos o calvinismo tem despertado muitas consciéncias e influencia- do nag6es inteiras. Sdo notérias as mudangas que ele provo- cou na Suica, Holanda e Escécia, entre outras nagoes. Calvino de A a Z atenderd aos interesses de leitores, de estudantes e de todos que se dedicam & compreensao da teo- logia do reformador francés. Cremos que a iniciativa da Edi- tora Vida com a publicagao desta obra tornard Calvino e sua teologia da cruz e da soberania de Deus mais vistveis. Com os dons que lhe sao préprios, o rev. Hermisten Costa nos proporciona verdadeiras pérolas da teologia reformada e faz uma investigagio pormenorizada ao recuperar de obras primdrias um pouco do pensamento de Jodo Calvino. Eis aqui uma riqufssima fonte de consultas e aprofundamentos! Rev, WILSON SANTANA SILVA Professor de Histbria da Igreja no Semindrio Teoldgico Presbiteriano Rev. José Manoel da Conceigio em Siio Paulo (SP) Joao Calvino, o tedlogo da Palavra e do Espirito Ele viveu cingtienta e quatro anos, dez meses, dezessete dias, ¢ dedicou metade de sua vida ao sagrado ministério, Ele tinha estatura mediana; a aparéncia sombria ¢ pdlida; os olbos eram brithantes até mesmo na morte, expressando a agudez da sua compreenséio. ‘Trropor Brza! Eu poderia feliz e proveitosamente assentar-me e passar o resto de minha vida somente com Calvino. Carta de Karl Barth ao amigo Eduard ‘Uhurneysen, escrita em 8 de junho de 1922? Calvino, falando das diversas calinias que levantavam contra ele, partindo, inclusive, de falsos irm&os, diz: Sé porque afirmo e mantenho que o mundo ¢ ditigido e gover- nado pela secreta providéncia de Deus, uma multidao de homens presungosos se ergue contra mim alegando que apre- sento Deus como sendo o autor do pecado. [...] Outros tudo fazem para destruir 0 eterno propésito divino da predestina- 40, pelo qual Deus distingue entre os réprobos ¢ os eleitos.? O que nos chama a atengdo na aproximagio bfblica de Calvino é, primeiramente, o seu amplo e em geral preciso conhecimento dos cldssicos da exegese biblica, os quais cita com abundancia, especialmente Criséstomo, Agostinho e Bernardo de Claraval. Outro aspecto ¢ o dominio de algu- mas das principais obras dos tedlogos protestantes contem- poraneos, tais como Melanchton — a quem considerava um homem de “incompard4vel conhecimento nos mais elevados ramos da literatura, profunda piedade e outros dons [e que por isso] merece ser recordado por todas as épocas”* —, Bucer e Bullinger. Contudo, 0 mais fascinante é 0 fato de que ele, mesmo se valendo dos classicos — 0 que, alids, nunca escon- deu —, conseguiu seguir um caminho por vezes diferente, buscando na prépria Escritura o sentido especffico do texto: a Escritura interpretando-se a si mesma. Escapar de um cliché histérico-teoldégico é especialmente dificil. Para que possamos ter uma visdo mais clara da pers- pectiva de Calvino a respeito das Escrituras, precisamos re- fletir um pouco sobre a sua forma de aproximagao da Biblia; assim, poderemos entender a sua visdo hermenéutica ¢ exegética. Comecemos do inicio. A FORMACAO DE CALVINO Joao Calvino nasceu em 10 de julho de 1509, em Noyon, Picardia, sendo possivelmente o segundo filho de uma fami- lia de cinco irm4os*. Seu pai, Gérard Cauvin, era de origem humilde; sua mae, Jeanne Lefranc, uma senhora piedosa pro- veniente de familia abastada, morreu quando Calvino tinha uns 5 ou 6 anos. Como Gérard era secretdrio apostdlico de Charles de Hangest — bispo de Noyon, de 1501 a 1525 — e procurador fiscal do municfpio, a sua familia mantinha *Cabe aqui uma nota de adverténcia: alguns dados referentes & juventude de Calvino sio incertos, havendo disputa quanto a datas ¢ lugares. fntimas relagdes com as familias nobres da regido, sendo ele préprio um ambicioso visionério que procurou encaminhar a educagao de seus filhos da melhor maneira possivel, usan- do dos meios e recursos de que dispunha. Em maio de 1521, ainda crianga, Calvino recebeu um beneficio eclesidstico na catedral, o que ajudaria a custear as despesas de sua educacio. Foi, no entanto, com as criangas da nobre familia de Hangest que Calvino recebeu suas primeiras licdes. Por de- corréncia, Calvino adquiriu os modos refinados prdprios da nobreza, que o permitiram posteriormente transitar em to- dos os meios sociais com polidez. Entre os seus amigos de infancia, destaca-se Claude de Hangest (Mommor), que se tornaria abade de St. Eloi, em Noyon. Além de professores particulares, Calvino estudou na mesma escola dos filhos dos nobres de sua cidade, 0 Colégio de Capeto. Posteriormente, acompanhado de alguns amigos, filhos de nobres de sua terra natal, foi para Paris, onde recebeu seu treinamento para o sacerdécio, estudando alguns meses no Collége de la Marche, em 1523, tendo como mestte o gran- de humanista Maturinus Corderius. Depois, foi para uma escola menos requintada em seus costumes e mais dura em sua disciplina, de orientagao escoldstica: Collége de Montaigu — por onde também passaram Erasmo de Roter- da ¢ Rabelais —, em 1524, estudando sob a diregdo de um mestre espanhol grandemente competente, Antonio Coro- nel, com quem Calvino fez muitos progressos, destacando-se entre os seus colegas no estudo da gramatica. Neste perfodo, Calvino foi também, ao que parece, bastante influenciado por outro de seus professores, que havia retornado a Montaigu 'McGrath discutea possibilidade de essa interpretagao tradicional ser equi- vocada. Em sua opiniao, Calvino nao estudou no Collage de la Marche. Cf. Alister E, McGratu, A vida de Jodo Calvino, p. 37-43. em 1525, 0 escocés John Major (ou Mair). Major “tinha li- gag6es com a Irmandade da Vida em Comum” e foi quem instruiu Calvino na filosofia e na légica medieval, bem como na teologia biblica e patristica. Em 1528, depois de Calvino haver conclu{do 0 curso de Artes, da-se algo inusitado; por causa de uma disputa com os clérigos de Noyon — assunto ainda nao esclarecido satisfato- riamente —, seu pai resolveu envid-lo para a conceituada e concorrida universidade de Orléans, onde Calvino se dedi- caria ao estudo de Direito, sob a influéncia do conceituado jurista Pierre LE toile, cognominado 0 rei da jurisprudéncia e principe dos juristas. Calvino tornou-se bacharel em Di- reito (licencié és lois) em 14 de fevereiro de 1531. Porém, como resolveu deixar a universidade antes de completar seus estudos, a academia, em reconhecimento aos seus servigos prestados e por voto undnime de seus professores, resolveu conferir-Ihe o grau de doutor em Direito, sem cobrar-lhe as taxas habituais; no entanto, nao hd consenso sobre se Calvi- no aceitou ou nao o titulo. Dali, ele foi para Bourges certa- mente attafdo pelo famoso humanista e mestre de Direito, o italiano Andrea Alciati, “um jurista de primeira linha, tedri- co da soberania do Principe”.° Na jd famosa Universidade de Bourges, fundada em 1463 por Luis XI, estudaria com Alciati e Melchior Wolmar, a quem conhecera em Orléans. O préprio Calvino resumiria a sua infancia: Quando era ainda bem pequeno, meu pai me destinou aos estudos de teologia. Mais tarde, porém, ao ponderar que a profissio juridica comumente promovia aqueles que safam em busca de riquezas, tal prospecto o induziu a subitamente mudar seu propésito. E assim aconteceu de eu ser afastado do estudo de filosofia e encaminhado aos estudos da juris- prudéncia. A essa atividade me diligenciei a aplicar-me com toda fidelidade, em obediéncia a meu pai; mas Deus, pela secteta providéncia, finalmente deu uma dire¢ao diferente ao meu curso,” Quanto & sua capelania, recebeu outro encargo: 0 curato de Saint-Martin de Martheville, em setembro de 1527. Em 30 de abril de 1529, Calvino resignou a capelania de La Gesine em favor do irmao mais jovem, Antoine, e em 5 de julho de 1529 trocou o cargo de Saint-Martin para o da aldeia Pont-LEvéque, local de nascimento de seu pai. Com a morte do pai, em 25 ou 26 de maio de 1531, Calvino tornou a Paris para continuar seus estudos literdrios e durante certo perfodo voltou a Orléans para concluir seu curso de Direito. Quando um de seus amigos, Nicol4s Cop, foi eleito reitor da Universidade de Paris, Calvino 0 ajudou a preparar o seu discurso, que foi lido na igreja dos Maturinos, como de costu- me no dia 1° de novembro de 1533. Nesse discurso, propu- nha-se uma reforma na Igreja. A resposta foi imediata: Cop e Calvino tiveram de fugir de Paris. Cop voltou para sua terra natal, Basilia, e Calvino foi para outras cidades francesas. Em 1534, Calvino completaria 25 anos, idade legal para ser ordenado; agora cra o momento de assumir de fato a sua fé e officio. Assim, em 4 de maio de 1534, voltou a Noyon e renunciou aos seus beneficios eclesidsticos. As perseguicdes entio se intensificaram. Novamente ele inicia as suas pere- gtinagées: Paris, Angouléme, Poitiers; passa algum tempo na Itdlia, Estrasburgo e Basiléia, por volta de 1535. Como fica evidente, nesse interim, Calvino havia sido con- vertido ao protestantismo; a questo ¢: como ¢ quando? A CONVERSAO DE CALVINO Nao é possivel precisar as circunstancias e a data da subita conversio de Calvino; contudo, as evidéncias apontam para um periodo entre 1532 e 1534, portanto, em Orléans ou Paris. Devemos estar atentos, também, para o fato de que a vida de Calvino, mesmo antes da sua conversio, nao fora marcada por um comportamento dissoluto e imoral — j4 tao comum nos jovens de seu tempo. Antes, a sua conversio, como observa Schaff, “foi uma transformagao do Romanismo para o Protestantismo, da supersticao papal para a fé evangélica, do tradicionalismo escoléstico para a simplicidade biblica”.® Acredita-se que o primo de Calvino, Olivétan — ainda que nao isoladamente —, teve uma participacéo importante na sua conversdo ao protestantismo. Félice chega a afirmar que “a Biblia que recebeu das maos de um de seus parentes, Pedro Roberto Olivétan, 0 arrebatou do catolicismo”.* Lembremo-nos de que Calvino nao é muito prédigo ao falar da sua vida. No que se refere & sua converséo, em 1539, ele diz: Contrariado com a novidade, eu ouvia com muita md vonta- dee, no in{cio, confesso, resisti com energia ¢ iritacdo; por- que (tal ¢ a firmeza ou o descaramento com os quais é natural aos homens resistir no caminho que outrora tomaram) foi com a maior dificuldade que fui induzido a confessar que, por toda minha vida, eu estivera na ignorancia e no erro. Na introdugao do seu comentario de Salmos, em 1557, Calvino diz: Inicialmente, visto eu me achar tao obstinadamente devota- do as superstigdes do papado, para que pudesse desvenci- Ihar-me com facilidade de tao profundo abismo de lama, Deus, por um ato stibito de conversio, subjugou ¢ trouxe minha mente a uma disposigao suscetfvel, a qual era mais empedernida em tais matérias do que se poderia esperar de mim naquele primeiro perfodo de minha vida."° “Provavelmente, a Biblia mencionada por Félice sejaa edigéo do Novo Testa- mento de 1534. Cf. G. de FELICE, Histéria dos protestantes da Franga, p. 51. 16 Também na carta ao cardeal Sadoleto, datada de 1° de setembro de 1539, Calvino descreve as suas angtistias espiri- tuais em relac4o ao romanismo, resultantes do que a igreja pregava.'' No entanto, em nenhum momento, Calvino men- ciona o instrumento humano usado por Deus. A Biblia francesa, de 1535, traduzida por Pierre Robert Olivétan — apelidado de Olivetanus —, primo de Calvino, foi a primeira tradugao protestante francesa das Escrituras, feita a pedido e as expensas dos Valdense, que gastaram na impresso 1.500 escudos. A traducio, feita diretamente dos originais hebraicos e gregos, foi utilizada pela primeira gera- ao de calvinistas franceses na proclamagao do Evangelho. O Novo Testamento foi editado em 1534, saindo a segunda edigéo em 1535, acompanhado do Antigo Testamento, Esta edigdo, segunda do Novo Testamento e primeira da Biblia completa, foi revisada e prefaciada por Calvino com o titulo: “A todos os que amam a Jesus Cristo e a seu evangelho”. Aqui, temos o primeiro testemunho ptblico da conversio de Cal- vino. Posteriormente, Beza fez nova revisio da Biblia france- $a, que continuou sendo revista de quando em quando nos séculos seguintes. CALVINO COMO HUMANISTA Podemos dizer, no sentido mais pleno da palavra, que Calvino era um genuino humanista, estando profundamen- te interessado pelo ser humano. Ainda que de passagem, exa- minemos alguns pontos que ilustram a nossa tese. A primeira obra escrita por Calvino‘ foi publicada com seus préprios recursos: a edic¢go comentada do livro de Séneca, “Nao consideramos aqui o preficio de Calvino ao trabalho de seu amigo Nicholas Duchemin, Antapologia, de 6 de margo de 1531. De clementia, em 4 de abril de 1532 — “o principal monu- mento dos conhecimentos humanisticos do jovem Calvino”, diz McNeill;"? “sélido trabalho de um humanista muito jo- vem e jé brilhante”, comenta Boisset;!? um “erudito de pri- meira linha”, acrescenta Parker.'4 Nesse trabalho — do qual uma cépia foi enviada a Erasmo —, 0 ent4o jovem autor de 23 anos ja revelava seu gosto literdrio, erudi¢ao, amplo co- nhecimento da literatura grega e romana, uma perspectiva sébria e um estilo préprio de andlise — lapidado dentro de uma andlise filoldgica e literaria da melhor qualidade — que se tornaria uma de suas marcas nos comentarios biblicos que redigiria. No trabalho pioneiro, Calvino parece desafiar o soberano, quando define o tirano como aquele que “governa contra a vontade de seu povo”,'* revelando, ainda que em- brionariamente, a sua ousadia, que tao bem caracterizard a sua vida como pregador, escritor e administrador. Essa pers- pectiva humanista ser4 o fator determinante na sua aproxi- magio pedagégica. O humanismo de Calvino é visivel em sua formacio, escri- tos e atitudes. Ele apoiou o humanista Guillaume Budé, que era chamado de prodigio da Franca e que, ao lado de Erasmo e Juan Luis Vives, compunha 0 considerado tiunvirato do humanismo europeu. Budé, como historiador, fildsofo e hele- nista, contribuiu para o reavivamento do interesse pela lin- gua e literatura grega e colaborou na introdugdo do huma- nismo na Franga. Calvino também dedicou 0 seu Comentério da primeira epistola aos tessalonicenses, publicado em Genebra, em 17 de fevereiro de 1550, ao seu mestre de gramatica e retérica, 0 conhecido humanista Maturinus Corderius, que foi funda- mental na formagao do estilo de Calvino, e a quem este chamou de “homem de eminente piedade e erudiga0”,"* re- conhecendo a sua dfvida para com ele. Posteriormente, Corderius, convertido ao protestantismo, recebeu o convite de Calvino para lecionar na Academia de Genebra e 0 aceitou, tornando-se durante algum tempo di- retor daquela instituigao e permanecendo ali até a sua mor- te, em 1564, quatro meses depois da morte de Calvino. Corderius, além de brilhante e Jaborioso professor, era co- nhecido por sua erudicao, piedade e integridade. Calvino dedicou o seu comentdrio de 2Corintios, de 1° de agosto de 1546, a outro humanista de influéncia luterana que lhe ministrara aula de grego — e também a Beza —, Melchior Wolmar, 0 qual, como jd fizemos mengao, possivelmente pode ter despertado em seus alunos o interes- se pela Reforma. Calvino diz que Wolmar era “o mais distin- guido dos mestres””” de grego. O humanismo de Calvino, no entanto, nao deve ser con- fundido com o humanismo secular, que colocava 0 homem como centro de todas as coisas, Calvino rejeitava esse tipo de humanismo. Na sua obra magna, A instituigdo da religiéo cristd, ele expressa a sua concepgao humanista, que consiste em reconhecer a grandeza do homem como criatura de Deus, a quem deve adorar e glorificar."* Em outro lugar, Calvino escreve: “é notério que jamais chega o homem ao puro co- nhecimento de si mesmo até que haja antes contemplado a face de Deus e da visdéo dEle desca a examinar-se a si pré- prio”."? Como a Biblia é o registro inerrante da Palavra de Deus, podemos dizer que, sem as Escrituras, jamais teremos um conhecimento verdadeiro de néds mesmos, do mundo e do préprio Deus. Calvino tinha uma visio ampla da cultura, entendendo que Deus é Senhor de todas as coisas; por isso, toda verdade €é verdade de Deus. Essa perspectiva amparava-se no concei- to da graca comum ou graca geral de Deus sobre todos os homens. Ele diz: 19 Visto que toda verdade procede de Deus, se algum {mpio disser algo verdadeiro, nao devemos rejeit4-lo, porquanto o mesmo procede de Deus. Além disso, visto que todas as coi- sas procedem de Deus, que mal haveria em empregar, para sua gléria, tudo quanto pode ser corretamente usado dessa forma?” Por exemplo, em passagem magistral, analisando Géne- sis 4.20, destaca 0 fato de que mesmo na amaldigoada des- cendéncia de Caim hd espaco para a graca de Deus, que concede ao homem dons pata a invengao das artes e de ou- tras coisas titeis para a vida presente. “Verdadeiramente é ma- ravilhoso que esta raga que tinha cafdo profundamente de sua integridade superaria 0 resto da posteridade de Addo com raros dons.”*! Entende que Moisés registrou isso para realcar a graca de Deus que nao se tornou vA sobre esses ho- mens, visto que “havia entre os filhos de Addo homens tra- balhadores ¢ habilidosos, que exerceram sua diligéncia na invengao e no cultivo da arte”. Por isso, as “artes liberais e ciéncias chegaram até nds pelos pagaos. Realmente, somos compelidos a reconhecer que recebemos deles a astronomia € outras partes da filosofia, a medicina e a ordem do governo civil”. Hooykaas resume o humanismo de Calvino: “ele era um humanista talentoso e realista demais para aceitar que a Que- da tivesse levado o homem a uma total depravacdo no cam- po cientifico”.* Fiel ao seu principio de que “as escolas teoldgicas [sao] bergdrios de pastores”,?> Calvino criou uma academia em Genebra, em 1559 — contando com 600 alunos e aumen- tando ja no primeiro ano para 900 —, em que lhe coube a educagao dos protestantes da lingua francesa, reunindo, em sua maioria, alunos estrangeiros vindos da Franga, Holanda, Inglaterra, Alemanha, Itdlia e de outras cidades da Sufga. 20 Além disso, Genebra se tornou um grande centro missiond- rio, uma verdadeira escola de missdes, porque os foragidos que [é se instalaram puderam, posteriormente, levar para os seus pafses e cidades o Evangelho ali aprendido. A academia tornou-se grandemente respeitada em toda a Europa; o grau concedido aos seus alunos era amplamente aceito e conside- rado em universidades de paises protestantes, como, por exemplo, na Holanda. O historiador catélico Marc Venard comenta que a aca- demia “ser daf em diante um viveiro de pastores para toda a Europa reformada”.”* A academia contribuiu em grandes proporg6es para fazer de Genebra “um dos fardis do Oci- dente”,?” admite Daniel-Rops. A formagio dada em Gene- bra era intelectual e espiritual; os alunos participavam dos cultos das quartas-feiras, bem como de todos os trés cultos prestados a Deus no domingo. Um escritor referiu-se a Ge- nebra deste modo: “Deus fez de Genebra Sua Belém, isto é, Sua casa do pao”.”§ Calvino insistiu junto aos Conselhos para melhorar as prd- ptias condigdes do ensino, bem como os recursos das escolas. Visto que o Estado estava empobrecido, apelou para doa- ges ¢ legados. Sem duivida, entre os reformadores, Calvino foi quem mais amplamente compreendeu a abrangéncia das implicagdes do Evangelho, nas diversas facetas da vida hu- mana, entendendo que: O evangelho nao é uma doutrina da fala, mas de vida. Nao se pode assimil4-lo por meio da raz’o e da meméria, tinica e exclusivamente, pois sé se chega a compreendé-lo totalmen- te quando Ele possui toda a alma e penetra no mais profun- do do coragao.” Por isso, ele exerceu poderosa influéncia sobre a Europa e os Estados Unidos. Schaff chega a dizer que Calvino “de cer- 2 to modo, pade ser considerado o pai da Nova Inglaterra e da reptiblica americana”.°° John Knox, ex-aluno de Genebra, “delineou um sistema nacional de educac’o que prometia conduzir a Escécia ao bem-estar espiritual e material”,®! tendo a Biblia como tema principal de estudo e a gratuidade patrocinada pela Igreja. Em acordo com suas idéias, em 1646 0 parlamento escocés aprovou a criagio de uma escola para cada regiao, conforme indicagdo do presbitério, votando-se verba para salario dos professores. Houve uma cooperagao entre a Ipreja ¢ o Esta- do, estando a supervisdo das escolas ¢ professores entregue & Igreja. Esse sistema, tao bem-sucedido na Escécia, 36 viria sofrer alteragées significativas no século XIX. Em epitome, podemos dizer que o humanismo de Calvi- no era um humanismo cristocéntrico, caracterizando-se pela compreensdo de que o homem encontra a sua verdadeira esséncia no conhecimento de Deus. Conhecer a Deus signi- fica ter uma perspectiva clara de si mesmo; a rec{proca tam- bém é€ verdadeira: nao hd conhecimento genuino de Deus sem um conhecimento correto de si mesmo. A dignidade e a beleza do homem estio em ele ter sido criado 4 imagem e semelhanga de Deus, podendo, portanto, relacionar-sé com 0 seu Criador..No homem, a “sua imagem e gléria peculiarmente brilham”. O conhecimento de Deus deve conduzir-nos ao temor e & reveréncia, tendo a Deus como guia e mestre, buscando nele todo o bem. A AUTORIDADE INTERNA DAS ESCRITURAS Nao é a Igreja que autentica a Palavra por sua interpreta- 40, como a igreja romana sustentou em diversas ocasides; “um testemunho humano falfvel (como 0 da igreja) nado pode moldar o fundamento da divina fe”. E a Biblia que se au- tentica a si mesma como Palavra autoritativa de Deus, ¢ é ele mesmo quem nos ilumina para que possamos interpretd-la corretamente (SI 119.18). Por isso, o Espirito nao pode ser separado da Palavra. Somente pela operagao divina podere- mos reconhecer a sua origem divina bem como compreen- dé-la salvadoramente. “A suprema prova da Escritura se estabelece reiteradamente da pessoa de Deus nela a falar.” No capitulo IV da Confisséo gaulesa, redigida primariamente por Calvino e levada a puiblico em 1559, lemos: Nés sabemos que esses livros [das Escrituras] s40 canénicos, a regra segura de nossa fé (SI 19.9; 12.7), nao tanto pelo comum acordo e consentimento da Igreja quanto pelo teste- munho e persuasio interior do Espirito Santo. A Palavra de Deus direcionada ao homem revela a serie- ~ dade com que Deus nos trata: Sempre que o Senhor se nos acerca com sua Palavra, Ele est4 tratando conosco da forma mais séria, com o fim de mover todos os nossos sentidos mais profundos, Portanto, nao h4 parte de nossa alma que nao receba sua influéncia.** O BALBUCIAR DE DEUS EO TESTEMUNHO DO ESPIRITO Para Calvino, a “revelagao é um ato de condescendéncia divina”.*” Ele entendia que Deus, na sua Palavra, “se acomo- dava 4 nossa capacidade”,®® balbuciando a sua Palavra a nés como as amas fazem com as criancas. Ou seja: Deus adapta- se 4 linguagem humana visando ser compreendido. “Deus acomoda-se ao nosso modo ordindrio de falar por causa de nossa ignordncia, as vezes também, se me é permitida a ex- pressio, gagueja.”*? Resumindo: “em Cristo, Deus, por as- sim dizer, tornou-se pequeno, para acomodar-se 4 nossa compreensao”.“’ Portanto, quando lemos as Escrituras, “so- 23 mos arrebatados mais pela dignidade do contetido que pela graca da linguagem”."! Calvino observa, contudo, que os homens sempre procu- ram uma desculpa para a sua impiedade: Se Deus, acomodando-se a tacanha capacidade dos homens, fala num estilo humilde e acess{vel, esse método de ensino é desprezado como simples demais; porém, se ele se manifesta num estilo mais elevado, com vistas a imprimir maior auto- ridade a sua Palavra, os homens, com 0 intuito de eximir-se de sua ignorancia, dirdéo que ela é obscura demais. Como esses dois vicios sao por demais prevalecentes no mundo, o Esp{rito Santo assim tempera seu estilo, para que a sublimi- dade das verdades que ele ensina nao fique oculta daqueles que porventura sejam de uma capacidade mais débil, contanto que sejam de uma disposigao submissa e décil e tragam con- sigo um desejo solfcito de ser instrufdos.” Esses pontos tornam o homem inescusdvel ¢ realgam a relevancia das Escrituras para a vida crista. Calvino diz: Ora, primeiro, com Sua Palavra nos ensina e instrui o Se- nhor; entZo, com os sacramentos no-la confirma; finalmen- te, com a luz de Seu Santo Espirito a mente nos ilumina e abre acesso em nosso coracio & Palavra ¢ aos sacramentos, que, de outra sorte, apenas feririam os ouvidos ¢ aos olhos se apresentariam, mas longe estariam de afetar-nos o intimo.* Aqui temos um paradoxo: a Palavra acomodaticia de Deus permanece, entretanto, como algo misterioso para os que nao créem ou que desejam entendé-la por sua prépria sabedoria, pois os “tesouros da sabedoria celestial [acham-se fora] do alcance da cultura humana”.“‘ Todos somos incapazes de entender os mistérios de Deus até que ele mesmo por sua graca nos ilumine. “A Palavra de Deus é uma espécie de sa- bedoria oculta, a cuja profundidade a fragil mente humana nao pode alcangar. Assim, a luz brilha nas trevas, até que o Espirito abra os olhos ao cego.”* Portanto, quando o Espfri- to aplica a Palavra ao nosso coragao, ele produz a sua boa obra em nés, gerando a fé salvadora que se direciona para Cristo e para os feitos de sua redengao. O comentario de Romanos nao foge a este princfpio: o reconhecimento de que ¢ 0 Espirito quem deve nos guiar na compreens4o das Escrituras. E 0 conselho que o préprio Calvino legou no prefacio da edigao francesa das Jnstitutas, de 1541, permanece pata todas as suas obras também como princfpio avaliador de qualquer labor humano: “Importa em tudo quanto exponho recorrer ao testemunho da Escritu- ra, que aduzo para ajuizar da procedéncia e justeza do que afirmo”. Em outras palavras, a autoridade daquilo que dizia era relativa. A autoridade do tedlogo é decorrente de sua serie- dade para com a Palavra e interpretacio fidedigna. Somente as Escrituras sao absolutas. A teologia tem como propésito principal nos ajudar a compreender as Escrituras. O seu va- lor est4 na mesma proporco de seu auxflio na interpretacao da Palavra de Deus. Ainda que Calvino recorresse as inter- pretacdes dadas aos textos no decorrer da histéria da Igreja, o foco da autoridade estava nas Escrituras. Calvino sustentava que o mesmo Espirito que inspirou o registro das Escrituras nos convence da autoridade de sua Palavra, concedendo-nos discernimento espiritual. O teste- munho do Espirito é mais relevante ¢ eficaz do que qualquer argumento ou arrazoado humano. Comentando 1Corin- tios 2.11, interpreta: Paulo, aqui, pretende ensinar duas coisas: 1) que o ensino do evangelho sé pode ser entendido pelo testemunho do Espi- rito Santo; e 2) que a seguranga daqueles que possuem tal 2s testemunho do Espirito Santo € tao forte e firme, coma se 0 que créem pudesse realmente ser tocado com suas mios, ¢ isto em razao do fato de que o Espirito é uma testemunha fiel e confidvel. A Palavra de Deus jamais poderd ser recebida salvadora- mente sem o ensino do Espirito; ¢ ele quem de fato abre as Escrituras diante dos nossos olhos, nos capacitando a enxer- gar o Evangelho da gléria de Deus. Comentando o texto de 2Pedro 1.3, Calvino diz: ‘A causa eficar de fé nao é a perspicécia de nossa mente, mas a vocacéo de Deus. E ele [Pedro] nao se refere somente 4 vocago aparente, que ¢ em si mesma ineficaz; mas vocacdo interior, realizada pelo poder secreto do Espfrito, quando Deus nao somente emite sons em nossas orelhas pela voz do homem, mas por seu proprio Espfrito atrai para si intima- mente nossos coragées,” A autoridade da Palavra nado depende do testemunho de nenhum homem ou institui¢ao; antes, baseia-se na autorida- de divina do seu autor que nos fala por meio da Escritura: A credibilidade da doutrina se nao firma antes que se nos persuada além de toda dtivida de que seu autor é Deus. Destarte, a suprema prova da Escritura se estabelece reiteradamente da pessoa de Deus nela falar,** Portanto, nao é o testemunho interno do Espirito — sem duvida fundamental para a compreensao das Escrituras — que a tornam autoritativa; antes, a sua autoridade é proveni- ente da inspiracao divina que a produziu ¢ a preservou pelo Espirito. O Espirito ¢ a Palavra séo insepardveis. Sem a inspi- raggo do Espfrito nao haveria o registro da Palavra; sem a iluminag3o do Espirito jamais seriamos persuadidos de sua autenticidade e nunca poderfamos compreender salvadora- 26 mente a revelacao de Deus. Na Palavra temos uma ac3o retroalimentadora: o Espirito nos conduz a Palavra; a Palavra nos instrui sobre o Espirito. No entanto, nao nos enganemos. Calvino nao ignorava os argumentos em prol da autoridade biblica; cle simplesmen- te entendia que sem a iluminacao do Espirito esses argumen- tos, por mais razodveis que fossem (e ele os considerava convincentes), nao produziriam um conhecimento salvador. Em sfntese: sem o Espirito, nao haveria evidéncia objetiva que se tornasse persuasiva ao homem. Por isso, “o testemu- nho do Espirito é superior a todos os argumentos”.” Gerstner interpreta: O papel do Espirito Santo nao € alterar a evidéncia (de insatisfatéria para satisfatéria) mas, sim, mudar as atitudes dos homens, da resisténcia 4 verdade pata a submissao a ela. [...] Calvino nao ensina que o Espirito é a evidéncia em prol da inspiragao da Biblia. Tudo quanto faz é levar as pessoas a crerem na evidéncia.” Em resposta ao cardeal Sadoleto, Calvino diz: Has sido castigado pela injtiria que fizeste ao Espirito Santo, separando-O e dividindo-O da Palavra. [...] Aprende, pois, por tua prépria falta, que ¢ tao insuportdvel vangloriar-se do Espirito sem a Palavra, como desagradavel o preferir a Pala- vra sem o Espirito! DISC{PULO DA ESCRITURA NA ESCOLA DO ESPIRITO Calvino estava convencido de que ninguém podia “pro- var sequer o mais leve gosto da reta e sA doutrina, a nao ser aquele que se haja feito discfpulo da Escritura’;* e que “sé quando Deus irradia em nds a luz de seu Espirito é que a Palavra logra produzir algum efeito”.** Portanto, “o conheci- a7 mento de todas as ciéncias ndo passa de fumaga quando se- parada da ciéncia celestial de Cristo”. Dai o seu estilo in- confundivel, evitando discussées filoséficas e sutilezas gramaticais, fugindo sabiamente da aridez escoldstica, de cet- tos refinamentos exegéticos ou especulativos, de questdes pe- riféricas, bem como da elogiiéncia frivola, que quando muito servem apenas para revelar erudigao ou simpléria invengao, mas nao contribuem para esclarecer 0 texto e edificar 0 povo de Deus. Alids, 0 critério estabelecido por Calvino para ava- liar a doutrina é a sua edificagao para a Igreja. Isso nao signi- fica que ele achasse mds a retérica e a erudicao: A logiiéncia nao se acha de forma alguma conflitante com a simplicidade do Evangelho quando, livre do desprezo dos ho- mens, nao sé lhe dé o lugar de honra ¢ se poe em sujeicao a ele, mas também 0 serve como uma empregada a sua patroa.* No entanto, “para que possa haver elogiiéncia, devemos estar sempre em alerta a fim de impedir que a sabedoria de Deus venha sofrer degradacao por um brilhantismo forgado ¢ corriqueiro”.*° A elogiiéncia “é um dom muito excelente, mas que, quando se vé divorciado do amor, de nada serve para alguém obter o favor divino”.*” Em outro lugar, res- pondendo a uma possfvel pergunta referente 4 possibilidade de Paulo estar condenando a sabedoria de palavras como algo que se acha em oposi¢ao a Cristo (1Co 1.17), Calvino diz: Paulo nao seria tao irracional que condenasse como algo fora de propésito aquelas artes, as quais, sem a menor dtivida, so espléndidos dons de Deus, dons estes que poderfamos cha- mar de instrumentos para auxiliarem os homens no desempe- nho de suas atividades nobres. Portanto, nao ha nada de irreligioso nessas artes, pois sao detentoras de ciéncia saudé- vel, ¢ estio subordinadas a princfpios verdadeiros; ¢ visto que sao titeis ¢ adequaveis as atividades gerais da sociedade humana, ¢ indubitavel que sua origem est4 no Espirito, Além do mais, a utilidade que ¢ derivada e experienciada delas nao deve ser atribuida a ninguém, senao a Deus. Portanto, 0 que Paulo diz aqui nao deve ser considerado como um desdouro das artes, como sc estas estivessem agindo contra a religiao.™* A questdo estd em nao usar desses meios como sendo a forca do Evangelho, esquecendo-se de sua simplicidade que énos comunicada pelo Espirito: Nao devemos condenar nem rejeitar a classe de elogiiéncia que nao almeja cativar cristéos com um requinte exterior de palavras, nem intoxicar com deleites fiiteis, nem fazer céce- gas em seus ouvidos com sua suave melodia, nem mergulhar a Cruz de Cristo em sua vi ostentacio.” “O Espirito de Deus também possui uma eloqiiéncia pat- ticularmente sua.”® Continua: A elogiiéncia que esté em conformidade com o Espirito de Deus nao é bombéstica nem ostentosa, como também nao produz um forte volume de rufdos que equivalem a nada. Antes, ela é genufna e eficaz, e possui muito mais sincerida- de do que refinamento.“ Em outro lugar: E: A erudigao unida & piedade ¢ aos demais dotes do bom pas- tor s4o como uma preparagao para o ministério; pois, aque- les que o Senhor escolhe para o ministério, equipa-os antes com essas armas que sao requeridas para desempenha-lo, de sorte que Ihe nao venham vazios e despreparados.” O homem que mais progride na piedade é também o me- lhor discipulo de Cristo, eo tnico homem que deve ser tido 29 na conta de genuino tedlogo é aquele que pode edificar a consciéncia humana no temor de Deus”. Deve ser enfatizado que Calvino usou como ninguém de todas as ferramentas dispontveis no seu tempo para uma boa exegese, dispondo o seu material de forma clara, Iégica e sim- ples, sendo chamado, nao sem razao, de o principe dos expo- sitores. Calvino foi de fato o exegeta por exceléncia da Reforma. Em nossa interpretagdo, devemos nos limitar ao revelado: 30 Que esta seja a nossa regra sacra: ndo procurar saber nada mais sendo o que a Escritura nos ensina. Onde o Senhor fecha seus préprios ldbios, que nés igualmente impegamos nossas mentes de avangar sequer um passo a mais.“ Moises registra que foi acabada a terra e acabados os céus, com todo o exército deles (Gn 2.1). Que vale ansiosamente indagar em que dia, & parte das estrelas ¢ dos planetas, ha- jam também comegado a existir os demais exércitos celestes mais recénditos, quais sejam os anjos? Para nao alongar-me em demasia, lembremo-nos neste ponto, como em toda a doutrina da religiao, de que se deve manter a sé norma de modéstia ¢ sobriedade, de sorte que, em se tratando de cousas obscuras, ndo falemos, ou sintamos, ou sequer almejemos saber, outra cousa que aquilo que nos haja sido ensinado na Palavra de Deus. Ademais, impée-se, ainda, que no exame da Escritura nos atenhamos a buscar e meditar continua- mente aquelas cousas que dizem respeito a edificagao, nem. cedamos & curiosidade, ou a investiga¢ao de cousas intiteis. E, porque o Senhor nos quis instruir nado em questées frivo- las, mas na sdlida piedade, no temor do Seu nome, na verda- deira confianga, nos deveres da santidade, contentemo-nos com este conhecimento.®* Portanto, a elogiiéncia de Deus deve propiciar a nossa adoracao; 0 seu siléncio, 0 nosso reverente temor. Em outro lugar, Calvino comenta: “tudo o mais que pesa sobre nds ¢ que devemos buscar é nada sabermos sendo 0 que o Senhor quis revelar 4 Sua igreja. Eis 0 limite de nosso conhecimen- to”. Afinal, tentar ensinar fora das Escrituras é tolice, e 0 papel do mestre cristéo nao ¢ outro, sendo o de ensinar as Escrituras: “mestre ¢ aquele que forma e instrui a Igreja na Palavra da verdade”.‘’ Em outro lugar: “a tarefa dos mestres consiste em preservar e propagar as sas doutrinas para que a pureza da religido permanega na Igreja’.® “O alvo de um bom mestre deve ser sempre converter os homens do mun- do para que voltem seus olhos para 0 céu.”® Por outro lado, tudo o que o Senhor ensinou e fez regis- trar em sua Palavra é util e necessdrio para a sua Igreja. Co- mentando 0 texto de 2Timéteo 3.16, Calvino diz: “A Escritura € proveitosa.” Segue-se daqui que € errdneo usd- la de forma inaproveitavel. Ao dar-nos as Escrituras, o Senhor no pretendia nem satisfazer nossa curiosidade, nem alimentar nossa Ansia por ostentacdo, nem tampouco deparar-nos uma chance para invengées misticas e palavreado tolo; sua inten- ¢4o, ao contrario, era fazer-nos o bem. E assim, 0 uso correto da Escritura deve guiar-nos sempre ao que é proveitoso.”° O proveitoso tem a ver com o objetivo de Deus para o seu povo: que tenha uma vida piedosa e santa; seja maduro (per- feito). Por isso, Calvino conclui que “é quase impossfvel exa- gerar o volume de prejufzo causado pela pregacao hipécrita, cujo Unico alvo é a ostentacAo e o espetdculo vazio”.7! ‘Tratando da doutrina da predestinagdo, delimita o campo da sua teologia: A Escritura é a escola do Espirito Santo, na qual, como nada é omitido nao sé necessdrio, mas também proveitoso de co- 31 nhecer-se, assim também nada € ensinado senao 0 que con- venha saber,” Nas Jnstituigées, orienta e adverte aqueles que querem dis- cutir com Deus, limitando-o ao seu raciocinio. Conclui: “ora, nosso saber nao deve ser outra cousa senao abragar com bran- da docilidade e, certamente, sem restrig¢ao, tudo quanto foi ensinado nas Sagradas Escrituras”.”° “A fungao peculiar do Espirito Santo consiste em gravar a Lei de Deus em nossos coragées.””* E 0 Espirito quem nos ensi- na por meio das Esctituras; esta ¢ “a escola do Espirito Santo”,”* que é a “escola de Cristo”,’6 “escola do Senhor”;”” e 0 Espirito é o “Mestre”; “o melhor mestre”;”? é 0 “Mestre interior”.*° “O Espirito de Deus, de quem emana o ensino do evangelho, é © tinico genuino intérprete para no-lo tornar acessfvel.”*! E Ele que nos ilumina com a Sua luz para nos fazer entender as grandezas da bondade de Deus, que em Jesus Cristo pos- suimos. Tao importante ¢ 0 Seu ministério que com justiga podemos dizer que Ele éa chave com a qual sao abertos para nés os resouros do reino celestial, e que a Sua iluminago so os olhos do nosso entendimento, que nos habilitam a con- templar os mencionados tesouros. Por essa causa Ele € agora chamado Penhor e Selo, visto que sela em nosso coracao a certeza das promessas. Como também agora Ele é chamado mestre da verdade, autor da luz, fonte de sabedoria, conhe- cimento e discernimento.” Portanto, “se porventura desejamos lograr algum progresso na escola do Senhor, devemos antes renunciar nosso préprio entendimento e nossa prépria vontade.™ A ESCRITURA A LUZ DA ESCRITURA Calvino sustentava que a Escritura é a melhor intérprete de si mesma. Portanto, qualquer doutrina ou mesmo profe- 32 cia que nao se harmonize com a Escritura, 2 norma da fé, seré considerada falsa. Da prépria Escritura procedem os princ{pios de interpretagéo e os termos empregados: “das Escrituras deve buscar-se a regra precisa tanto do pensar quanto do falar, pela qual se pautem nao apenas os pensa- mentos todos da mente, como também as palavras da boca’. Em sua interpretagio e exposico Calvino procurava en- tender as passagens bfblicas & luz de toda a Escritura; a sua exegese, conforme expressio de Murray, é “teologicamente orientada”.** Calvino nao buscava algo novo; antes, desejava compreender a Palavra de Deus ¢ aplicd-la & sua vida e a Igreja. Deus se revelou na sua Palavra, para que possamos ser conduzidos a Cristo, aprendendo dele a respeito de si mes- mo, de nés e do significado de todas as coisas... Portanto, ele deseja nos ensinar. A teologia deve estar sempre a este servi- co: aprender e ensinar. Enquanto nao aprendermos a apren- der, ndo poderemos ser tedlogos! O tedlogo tem paix4o por ensinar, mas a sua paixdo primeira e prioritdria deve ser a de ouvir a voz de Deus nas Escrituras. O Verbo de Deus nas Escrituras é sempre criador; Deus fala por meio da sua Pala- yra; portanto, 0 trabalho do tedlogo é procurar ouvir a voz de Deus e proclama-la com fidelidade. Ou, como sumariou James Anderson, na introducao a tradugao inglesa do co- mentdrio de Salmos de Calvino, em 1845: “seu primeiro e gtande objetivo é descobrir a intengao do Espirito Santo”."* A Palavra de Deus ser sempre o elemento aferidor de toda a nossa alegada liberdade: O Senhor nos permite liberdade em relagao aos ritos exter- nos, para ndo concluirmos que o seu culto se acha limitado por essas coisas. Ao mesmo tempo, entretanto, Ele nao nos concedeu liberdade ilimitada ¢ descontrolada, mas construiu, por assim dizer, cerca em torno dela; ou, de algum modo, restringiu a liberdade que nos deu, de tal maneira, que so- mente a luz de sua Palavra é que podemos orientar nossas mentes sobre o que é correto.*” TEOLOGIA: UM COMENTARIO DAS ESCRITURAS Poderfamos indagar: por que comecar por Romanos? Calvino entende que nessa epistola temos uma “porta ampla- mente aberta para a sdlida compreensao de todo o restante da Escritura”.** Em outro lugar, acrescenta: “se porventura conseguirmos atingir uma genujna compreensao desta Ep{s- tola, teremos aberto uma ampl{ssima porta de acesso aos mais profundos tesouros da Escritura”."® Isso, porque ele consi- dera o assunto principal de toda a Epfstola a “justificagdo pela fe”. Nio deixa de ser interessante o fato de que Calvino, na medida em que escrevia os seus comentérios da Bfblia, am- pliava a sua Instituigao da religiao crista como resultado do seu aprofundamento biblico, tendo em vista também os no- vos questionamentos de seu tempo, Nesse sentido, a sua teo- logia foi uma obra apologética, como na realidade deve ser toda a teologia. Alids, a sua teologia nada mais era do que um esforgo por comentar as Escrituras; por isso sua obra pode ser correta- mente chamada de uma teologia biblica, certamente escrita por um tedlogo sistemdtico que tao bem sabia valer-se dos recursos da exegese e da hermenéutica, dispondo tudo isso de forma erudita e devocional. Por isso, a histéria dos co- mentarios biblicos de Calvino e a das sucessivas edig6es da Instituigéo se confundem e se completam. A sua exegese era teologicamente orientada, ¢ a sua teologia estava ampatada em uma sélida exegese bfblica. Portanto, nao obstante as diversas revisOes ¢ adigdes das Jnstitutas, 0 seu propésito permanecia o mesmo: “preparar e instruir os candidatos 4 Sagrada Teologia, que nao sé the te- 34 nham facil acesso, mas ainda possam nesta escalada avancar sem tropegos”.”! Na traducao francesa de 1541 — traducio que, com outros dos seus muitos e belos escritos, contribuiu para modelar essa lingua —, feita pelo préprio Calvino, no prefacio, ele diz que a sua obra poderia servir como uma cha- ve e entrada que a todos os filhos de Deus outorgue acesso a cor- reta e cabal compreensio da Santa Escritura.. No paragrafo anterior justificara: Redigi-a primeiramente em latim, para que pudesse servir a todos os estudiosos, de qualquer pais que fossem, entio, ao depois, almejando comunicar o que daf poderia advir de pro- veito a nossa gente francesa, traduzi-a também para nossa lingua. As Institutas foram logo traduzidas para diversos idiomas, sendo amplamente lidas: “nenhum livro seria mais lido du- rante o século XVI”, especula um historiador catélico. A jus- tificativa para essa enorme popularidade é-nos fornecida parcialmente pelo mesmo autor: “é que ele trazia para a re- forma o essencial do que ela esperava para ganhar fisionomia propria perante a Igreja catélica. Além disso, era a obra dum grande escritor”.” Warfield escreve, fazendo uma comparacao da Institui- ¢do com outros trabalhos: “E curioso que no Prélogo da Suma teolégica (c. 1266-1273), de Tomas de Aquino, ele diz: “E nossa intengao, na obra presente, ensinar as verdades da teligiéo crista de modo convincente a instrugao dos principiantes”. Apds falar das dificuldades encontradas pelos leitores nedfitos na leitura de obras de outros autores — basicamente, prolixidade e assuntos desinteressantes —, continua: “Esforgando-nos por evitar esses ¢ outros defcitos, tentaremos, confiantes no divino auxilio, expor, breve ¢ lucidamente, o que respeita 4 doutrina sagrada, na medida em que a matéria o comporta” (Tomas de AQuiNo, Suma teolégica, v. I, prdlogo, p. 1). O que Tucidides é para os gregos, ou Gibbon entre os histo- riadores ingleses do século XVIII, o que Platao é entre os filésofos, oua Ilfada entre os épicos, ou Shakespeare entre os dramas, ¢ 0 que as “Instituigées” de Calvino é entre os trata- dos teoldgicos.”® Na mesma linha, escrevera Cunningham, dizendo que as Jnstitutas ocupam um lugar semelhante ao Novum organum de Bacon e aos Principios matemdticos de Newton nas ciéncias fisicas.™ Durante 0 inverno de 1536-37, Calvino elaborou um catecismo, nao sendo constituido em forma de perguntas e respostas, escrito de modo que julgou acessfvel a toda Igreja. O seu objetivo era puramente didatico. Essa obra foi intitulada Instrugio e confissto de fé, segunda o uso da Igreja de Genebra, e traduzida para o latim em 1538. Posteriormente, Calvino a reviu — tornando a sua teologia mais acess{vel aos seus desti- natdrios: as criangas—~ e a ampliou consideravelmente, mu- dando inclusive a forma, passando, entao, a ser constituida de perguntas e respostas, com 373 questées. A nova edi¢ao foi publicada entre o fim de 1541 € 0 inicio de 1542, tor- nando-se com a Jnstituigéo um sucesso editorial. Em 1545, Calvino traduziu 0 Catecismo para o latim, visando ampliar 0 alcance aos seus ensinamentos, contribuindo desse modo para a maior unidade entre as Igrejas Reformadas. A partir de 1561, 0 Catecismo ganhou maior importancia, visto que des- de entio todo ministro da igreja deveria jurar fidelidade aos ensinamentos nele expressos e comprometer-se a ensind-los. A BREVIDADE E A CLAREZA NECESSARIAS Em 1539, Calvino, o jovem de 30 anos, podia tornar a fazer o que julgava determinado a sua vida: o estudo, a refle- x4o e a pregacdo. Depois de uma rdpida e turbulenta passa- gem por Genebra, de 1536 a 1538, agora, finalmente estava em Estrasburgo — a Antioquia da Reforma —, disposto a recomegar a sua vida pastoral e de estudo, tendo entao, como marco dessa nova fase, a redacio do seu comentirio do livro que considerava o principal das Escrituras: a epistola de Pau- lo aos Romanos. Este foi o seu primeiro comentdrio de um livro da Biblia, sobre o qual o seu sistema teoldgico est4 prin- cipalmente fundamentado; seu objetivo: 0 bem piblico da Igreja, como escreveu na carta dedicatéria. Expor e comentar a Palavra de Deus sempre foi, para Calvino, algo de extrema seriedade e prazer. A partir de Ro- manos ele comentard quase todos os livros da Biblia e no pulpito far4 também exposigio da maior parte dos livros das Escrituras, tornando-se um dos maiores e mais importantes exegetas de todos os tempos, sendo, nao sem razfo, alcunha- do de o exegeta da Reforma. “Seus comentarios tém resistido ao teste do tempo, e sempre pode ser consultado com pro- veito”,”> comenta Schaff. Ludwig von Diestel, considerado o melhor historiador de exegese do Antigo Testamento, ainda que de formacao liberal, admite que Calvino foi o “criador da genuina exegese”.°® De fato, ainda hoje Calvino continua sendo lido com entusiasmo e¢ proveito por todos aqueles que desejam obter uma interpretacao clara, simples ¢ fiel das Es- crituras. Em seus comentdrios encontramos profundidade exeg¢tica, firmeza doutrindria, objetividade e uma piedade que brota naturalmente de sua pena, como resultado de seu apego irrestrito ao texto sagrado. Sem dtivida, um dos aspec- tos da teologia de Calvino que a faz permanecer viva é a sua simplicidade bfblica, aliada a uma singeleza crista erudita. “Calvino é exegeta competente e erudito”, comenta Boanerges Ribeiro, no prefacio & tradugao brasileira do comentario de Salmos de Calvino. “E é crente em Jesus Cristo: sabe que qualquer texto da Palavra de Deus se entende no contexto de toda a Palavra de Deus.”” Na carta dedicatéria, dirigida a seu amigo de Basiléia, Simon Grynaeus — a quem chama de homem dotado de ex- celentes virtudes —, com quem discutira alguns anos antes sobre a melhor maneira de interpretar as Escrituras, Calvino conclufa, conforme também pensava Grynaeus, que A hicida brevidade [perspicua brevitas] constitufa a peculiar virtude de um bom intérprete. Visto que quase a tinica tare- fa do intérprete é penetrar fundo a mente do escritor a quem deseja interpretar, [ele] erra seu alvo, ou, no m{nimo, ultra- passa seus limites, se leva seus leitores para além do signifi- cado original do autor.” Anos mais tarde, em 1546, Calvino escreveria: “nao apre- cio as interpretagdes que s40 mais engenhosas do que sadias”.” A clareza ¢ a brevidade recomendadas por Calvino, mais do que virtudes, se constitufam para ele em princfpios decisivos de exegese. Mesmo tendo consciéncia de que 0 mundo pre- fere aqueles que torcem o sentido literal do texto, fazendo alegorias em vez de expor o genuino sentido da passagem, Calvino optou por uma interpretac3o que considerava ser a tinica biblica, visto que, para ele, “o genuino significado da Escritura € unico, natural e simples”;' daf a importancia de se entender o sentido das palavras e o contexto histérico ou circunstancia da passagem. Ele sustentava que competia ao intérprete entender o que o autor quis dizer ¢ o seu propési- to. E exemplifica isso quando comenta o salmo 8. Apés falar sobre trés possibilidades de interpretacdo de determinada palavra hebraica, conclui: “o elemento primordial a ser apre- endido é no que tange ao contetido do salmo e ao que cle visa”.!°! Calvino se insere, portanto, no método histérico-gra- matical. Desse modo, 0 que 0 norteia em seus comentdrios é a brevidade na interpretagao. Pois bem, foi sob essa bandeira que Calvino comentou Romanos, guiado também por uma 38 singular acuidade hermenéutica e exegética que lhe permiti- ram interpretar textos complexos com clareza, simplicidade ¢ fidelidade textual, nao deixando de, quando em vez, con- fessar a sua ignorancia, reconhecer como no destituida de fundamento uma posi¢ao diferente da sua, deixar a critério do leitor a escolha da melhor interpretagao apresentada, dei- xar a quest4o indecisa, seguir a interpretagao tradicional de outros intérpretes, ou de admitir ter mudado de opiniao. CONHECER PARA VIVER A doutrina nao é apenas para o nosso deleite espiritual e reflexivo; antes, exige de forma imperativa um compromisso de vida e obediéncia. Desse modo, “o fim de um tedlogo nao pode ser deleitar o ouvido, sendo confirmar as consciéncias ensinando a verdade e 0 que é certo e proveitoso”.'? O conhecimento de Deus e da sua Palavra nao visa satis- fazer a nossa curiosidade pecaminosa, mas, sim, conduzir- nos a ele em adoragao e louvor; o conhecimento de Deus estd associado a verdadeira piedade, que Calvino define como “reveréncia associada com amor de Deus que o conhecimen- to de Seus beneficios nos faculta”.'°> E “zelo puro e verdadei- ro que ama a Deus totalmente como Pai, o reverencia verdadeiramente como Senhor, abraca a sua justica e teme ofendé-lo mais do que a prépria morte”.! Ele, entao, per- gunta: “que ajuda, afinal, conhecer a um Deus com Quem nada tenhamos a ver?”.!®> A sua resposta é simples: 0 conhe- cimento de Deus deve valer-nos, “primeiro, que nos induza ao temor e a reveréncia; em segundo lugar, tendo-o por guia e mestre, que aprendamos a dEle buscar todo bem e, em recebendo-o, a Ele credité-lo”." Isso porque o conhecimento de Deus nao tem um fim em si mesmo: “o conhecimento de Deus no estd posto em fria especulagao, mas Lhe traz consi- go o culto”.""7 “O Ser essencial de Deus devemos adorar, nao 39 pesquisar com curiosidade.”'* Portanto, se 0 conhecimento de Deus nos conduz ao culto, nao podemos adorar e servir a um Deus desconhecido: A menos que haja conhecimento, nao ¢a Deus a quem ado- ramos, mas a um fantasma ou {dolo. Todas as boas inten- g6es, como sao chamadas, s4o golpeadas por esta sentenga, como por um raio; disto nés aprendemos que os homens nada podem fazer senao errar, quando sao guiados por sua propria opiniao sem a palavra ou mandamento de Deus.” A frente continua: “se desejamos que nossa religiéo seja aprovada por Deus, ela tem que descansar no conhecimento obtido de Sua palavra.”"!° O conhecimento verdadeiro do verdadeiro Deus tem tam- bém um sentido profildtico, inibe o pecado: “refreia-se do pecado nao pelo sé temor do castigo, mas porque ama e re- verencia a Deus como Pai, honra-O e cultua-O como Se- nhor e, mesmo que infernos nenhuns houvesse, ainda assim Lhe treme & s6 ofensa”.!!' E também traz como implicagéo necessdria a piedade e a santificagao: Deve observar-se que somos convidados ao conhecimento de Deus, nao aquele que, contente com va especulagao, sim- plesmente voluteia no cérebro, mas Aquele que, se é de nds retamente percebido e finca pé no coragao, haverd de ser sdlido e frutuoso.' Em outro lugar, acrescenta: Jamais o poderd alguém conhecer devidamente que nao apre- enda ao mesmo tempo a santificacao do Espirito. [...] A fé consiste no conhecimento de Cristo. E Cristo nao pode ser conhecido sendo em conjungao com a santificagao de Seu Espfrito. Segue-se, conseqiientemente, que de modo nenhum a fé se deve separar do afeto piedoso.”""* E Calvino resume: “o conhecimento de Deus é a genuina vida da alma”.'" A RESPONSABILIDADE DOS PASTORES A Igreja foi confiada a Palavra de Deus, a qual ela deve pre- servar em seus ensinamentos e prdtica (Rm 3.2; 1Tm 3.15). Calvino entendia que “a verdade, porém, sé é preservada no mundo através do ministério da Igreja. Dal, que peso de res- ponsabilidade repousa sobre os pastores, a quem se tem con- fiado o encargo de um tesouro tao inestimével!”.!"° “Devemos ser muito cautelosos, nao permitindo que algo (estranho) seja adicionado & integra doutrina do evangelho.”!" Escrevendo a Cranmer, provavelmente em julho de 1552, Calvino diz: “a s4 doutrina certamente jamais prevalecerd, até que as igrejas sejam mais bem providas de pastores quali- ficados que possam desempenhar com seriedade o oficio de pastor”.’!” Fiel 4 sua compreensao da relevancia da pregacio biblica, Calvino usou de modo especial 0 método de expor e aplicar quase todos os livros das Escrituras 4 congregacao. A sua mensagem se constitui num monumento de exegese, cla- reza ¢ fidelidade & Palavra, sabendo aplicd-la com maestria aos seus ouvintes. De fato, nao deixa de ser surpreendente o conselho de Jacobus Arminius, antigo aluno de Beza: “Eu exorto aos estudantes que depois das Sagradas Escrituras lei- am os comentarios de Calvino, pois cu thes digo que ele é incompardvel na interpretagao da Escritura”.''* A fecundidade exegética de Calvino tinha sempre uma preocupacao primordialmente pastoral. Para ele, o funda- mento da verdadeira teologia e da genufna exegese estava no oficio pastoral. Assim, o seu direcionamento ndo era simples- mente académico. Percebe-se que para Calvino 0 academi- cismo, por si sé, era irrelevante para a vida da Igreja. Notamos em suas obras que os pontos em que ele revela maior erudi- 40 — demonstrando conhecer bem o hebraico, 0 grego, o latim, os pais da Igreja etc. — visam sempre esclarecer deter- minada doutrina ou passagem biblica que tem pontos de debate ou que sao passfveis de interpretagées diferentes. No entanto, percebemos que a sua erudicéo é demonstrada em sua simplicidade; ou seja: falar de assuntos complexos de for- ma simples ¢ clara, isto sim, é profundidade. A convergéncia de sua interpretagao era a vida da Igreja, entendendo que as Escrituras foram dadas visando a nossa obediéncia aos mandamentos de Deus. Logo, conforme jé frisamos, a sua preocupacao estava longe de ser simplesmen- te académica. Ele entendia que “a pregacdo ¢ um instrumento para a consecucio da salvacdo dos crentes”,'!? e que, “embo- ra nao possa realizar nada sem o Espirito de Deus, todavia, através da operagao interior do mesmo Espirito, ela revela a ag4o divina muito mais poderosamente”.'° “O ‘Espirito’ esta unido com a Palavra, porque sem a eficdcia do Espirito, a ptegacdo do Evangelho de nada adiantar4, mas permane- cerd estéril.”!2! “Deus, a Si prescrevendo a iluminagao da mente e a renovag4o do coragao, adverte ser sacrilégio, se 0 homem a si arroga alguma parte de uma e outra dessas duas operacgoes.”'” A contribuigéo de Calvino nas diversas dreas do pensa- mento humano — economia, polftica, filosofia, ética — emerge, em geral, de seus sermées e comentarios biblicos. Ele nao tinha a pretensdo de revolucionar nenhuma dessas areas; antes, desejava interpretar as Escrituras, colocando-as diante do povo, a fim de que este pudesse entendé-la e coloc4- la em prdtica, tendo uma dimensao mais ampla da fé crista em todo 0 Ambito de nossa existéncia. O princ{pio orientador de sua teologia ¢ a gléria de Deus. Estima-se que Calvino, durante os seus trinta e cinco anos de ministério — pregando dois sermées por domingo e uma 42 vez por dia em semanas alternadas —, tenha pregado mais de trés mil sermées. A ORAGAO E A INTERPRETAGAO BIBLICA Em outro lugar, tratando da doutrina da eleicao, escreve- mos: esta doutrina deve ser estudada néo com espirito arma- do e defensivo, mas em oragdo, com o desejo sincero de aprender de Deus a sua Palavra, certos de que por meio des- se aprendizado poderemos usufruir de modo consciente as béngdos que ele reservou para 0 seu povo. O que se segue é que esse assunto é para ser tratado pelo povo de Deus; nao tém nenhum sentido debates académicos sem um coracao novo: a revelacao de Deus nao visa satisfazer a nossa curiosi- dade ou perguntas acidentais da nossa vida; Deus sempre trata do que é vital para esta existéncia e para o porvir. Quando yemos a abordagem de Calvino a esse assunto, percebemos que a sua preocupacio ¢ fortemente pastoral e nao especulativa. Nao deixa de ser instrutivo e revelador o fato de Calvino, na edicao final das Jnstitutas, de 1559, ter tratado desse assunto depois de um longo capitulo sobre a oragéo que, sozinho, é maior do que os quatro dedicados 4 doutrina da eleicao. De forma figurada, Calvino diz que “o coragao de Deus é um ‘Santo dos Santos’, inacessfvel a todos os homens”,!”° sen- do o Espirito quem nos conduz a ele. Calvino entendia que “com a ora¢do encontramos e desenterramos os tesouros que se mostram e descobrem & nossa fé pelo Evangelho”!4 e que “a oragdo é um dever compulsério de todos os dias e de todos os momentos de nossa vida’;!* e “os crentes genuinos, quan- do confiam em Deus, nao se tornam por essa conta negli- gentes A oracdo”.'*° Portanto, esse tesouro nao pode ser negligenciado como se “enterrado e oculto no solo!”.'”” “Ago- ra, quanto é necessdrio, e de quantas maneiras 0 exercicio da oracdo é util para nds, nao se pode explicar satisfatoriamente com palavras.”"* Aqui est4 o segredo da Palavra de Deus, segundo a percepgao de Calvino: estudo humilde e oragao, atitudes que se revelam em nossa obediéncia a Cristo. Schaff resume: “absoluta obediéncia de seu intelecto A Palavra de Deus, e obediéncia de sua vontade & vontade de Deus: esta foi a alma de sua religiao”.! “A oragdo tem pri- mazia na adorago € no servigo a Deus.”"*° Daf 0 seu conse- Iho: “a nao ser que estabelecamos horas definidas para a oragao, facilmente negligenciaremos a pratica.”'! No entan- to, devemos ter sempre presente 0 fato de que ¢ o Espirito “quem deve prescrever a forma de nossas oracdes”.'5? Ele observou que, na oragio, “a linguagem nem sempre é necesséria, mas a oracdo verdadeira nao pode carecer de in- teligéncia e de afeto de animo”,'* a saber: “o primeiro [afe- to], que sintamos nossa pobreza e miséria, e que este senti- mento gere dor e angustia em nossos animos. O segundo, que estejamos inflamados com um veemente ¢ verdadeiro desejo de alcancar misericérdia de Deus, e que este desejo acenda em nés 0 ardor de orar”."*4 O seu grande consolo e estimulo é saber que o Deus sobe- rano, de forma misteriosa a nés, utiliza-se de nossas oragdes na concretizacao de seus propésitos: “Deus responde aos ver- dadeiros crentes quando mostra através de suas operagdes que ele leva em conta suas stiplicas.”!° MOMENTOS FINAIS DE SUA EXISTENCIA Em 6 de fevereiro de 1564, Calvino, j4 muito enfermo, foi transportado para a igreja numa cadeira, pregando entao com dificuldade o seu tiltimo sermo; na ocasiao falou sobre a harmonia dos Evangelhos. A tosse ¢ 0 sangue que subia pela boca o impediram de concluir a mensagem. No dia de Pas- coa, 2 de abril, foi levado pela ultima vez de sua casa, na Rua do Canhio, a igreja; participou da ceia, recebendo o sacramen- 44 to das mfos de Beza, pregador e celebrante. Mesmo com a voz trémula, cantou com a congregacao o cantico de Simedo. Em 28 de abril de 1564, um més antes de morrer, Calvi- no convocou os ministros de Genebra A sua casa; tendo-os ao redor, despediu-se dizendo: A respeito de minha doutrina, ensinei fielmente e Deus me deu a graca de escrever. Fiz isso do modo mais fiel possfvel e nunca corrompi uma sé passagem das Escrituras, nem cons- cientemente as distorci. Quando fui tentado a requintes, resisti A tentag4o e sempre estudei a simplicidade. Nunca escrevi nada com édio de alguém, mas sempre coloquei fiel- mente diante de mim o que julguei ser a gléria de Deus.'* Na seqiiéncia, acrescentou: Esquecia-me de um ponto: pego-lhes que nao fagam mu- dangas, ncm inovem. As pessoas muitas vezes pedem novida- de. Nao que eu queira por minha prépria causa, por ambigao, a permanéncia do que estabeleci, e que 0 povo 0 conserve sem desejar algo melhor; mas porque as mudangas sao peri- gosas, ¢ As vezes nocivas,,.'37 Temos aqui, na primeira parte de sua despedida, a de- monstragao daquilo que anos antes Calvino redigira no Ca- tecismo de Genebra. Nas primeiras duas perguntas, lemos: Mestre: Qual é 0 fim principal da vida humana? Discipulo: Conhecer os homens a Deus Seu Criador. Mestre: Por que razao chamais este o principal fim? Discfpulo: Porque nos criou Deus e pds neste mundo para ser glorificado em nds, E é coisa justa que nossa vida, da qual Ele ¢ 0 comego, seja dedicada a Sua gléria.'** Em outro lugar: “sabemos que somos postos sobre a terra para louvar a Deus com uma sé mente e uma sé boca, e que esse é [0] propédsito de nossa vida”.' Cerca de trezentos anos depois, um erudito catdlico fran- cés, Ernest Renan, como um dos primeiros historiadores da Franga, revela a sua incompreensao diante da figura inquie- tante daquele personagem distante no tempo e nas idéias, mas que continuava vivo em seu pais e em quase todo mun- do ocidental. Assim, nos seus Estudos da histéria das religiges, revela sua perplexidade, denominando-o “o maior cristo do seu século”,"“ Apés a morte de Calvino, Beza escreveu: “agora que Calvino morreu, a vida ser4 menos doce e a morte menos amarga”.'41 CALVINO & CALVINISMO: ANOTAGOES FINAIS Na Franga e nos Paises Baixos, apesar das perseguigdes cada vez mais rigorosas, 0 calvinismo impés-se como o herdeiro do evangelismo. (Marc Venard)'” Calvino pertence incontestavelmente ao pequenissimo gru- po de mestres que, no decorrer dos séculos, moldaram com as suas maos 0 destino do mundo. (Daniel-Rops)'* Como bem sabemos, a Escritura ¢ infalfvel, mas nao a nossa interpretagdo; portanto, devemos buscar sempre nas Escri- turas o sentido pleno da revelacio. A teologia é uma reflexio interpretativa e sistematizada da Palavra de Deus. Nao existe teologia inspirada infalivelmente por Deus. A sua fidedigni- dade estar sempre no mesmo nivel da sua fidelidade & Es- critura, A relevancia de nossa formulacgao nao dependerd de sua beleza, popularidade ou significado para o homem mo- derno, mas sim na sua conformagao 4s Escrituras. O mérito de toda teologia est4 no seu apego incondicional e irrestrito a revelagao; a melhor interpretagio ¢ a que expressa o senti- do do texto & luz de toda a Escritura, ou seja, em conexio com toda a verdade revelada. Nao hd nada mais edificante e prdtico do que a verdade de Deus! A teologia reformada é uma reflex4o baseada na Palavra em submissio ao Espirito, buscando sempre uma compre- ensio exata do que Deus revelou e inspirou pelo Espirito e que agora nos ilumina pelo mesmo Espirito (Ef 1.15-21; S1119.18). Ea partir dessa compreensao que a teologia reformada passa a avaliar tudo o mais, como bem expressou J. I. Packer: “o calvinismo é uma maneira teocéntrica de pensar acerca da vida, sob a direc’ e controle da prépria Palavra de Deus”. O calvinismo! envolve uma nova cosmovisio, que afeta obviamente todas as dreas de nossa existéncia, nao ha- vendo escaninhos do ser e do saber onde a perspectiva teo- céntrica nao se faca presente de forma determinante em nossa epistemologia doutrindria e existencial. ‘Apesar de sabermos que a expresso calvinismo foi introduzida pelo polemista lucerano Joacquim Westphal (c. 1510-1574) para referit-se em especial aos con- ceitos teolégicos de Calvino (Cf. Alister E. McGrati, The intellectual origins of the European Reformation, p. 6), usamos o termo na sentido que permanece até os nossos dias como designativo da teologia reformada em conuaste com a luterana. (V.B. B. Warrtetp, Calvin and calvinism, v. 5, p. 353; ¢ W. S. Reid, “Tradigao Reformada’”, in: Walter A. ELwELL (ed.). Enciclopedia histérico-teoldgica da Igreja Cristi, v. 3, p. 562.) McGrath oferece-nos dados complementares sobre 0 uso da expresso em outro de seus valiosos livros, indicando que a palavra foi empregada pelos luteranos alemaes referindo-se ao Catecismo de Heidelberg (1563), que ha- via penetrado no até entao inabalavel territdtio luterano — lembremo-nos do ptincfpio predominante entao de que sua regido determina sua religido. Assim, a expresso queria indicar algo que era estrangeiro, estranho a fé luterana, era calvinista, (V. Alister E. McGrat, Reformation thought: an introduction, p. 9.) Barth esté correto quando nos diz. que “o ‘calvinismo’ é um conceito que devemos aos historiadores modernos. Quando nés o usarmos, tenhamos a certeza de que as Igrejas reformadas do século XVI, do século XVII, e mesmo as do século XVII, jamais se nomearam como sendo ‘calvinistas” (Karl Barth, em introdugio a obra: Jean Cavin, Textes choisis de Calvin, p. 10). A preocupagao dos reformadores era principalmente “a reforma da vida, da adoracdo e da doutrina A luz da Palavra de Deus”.' Dessa forma, a partir da Palavra, passaram a pen- sar acerca de Deus, do homem e do mundo! Calvino, de modo especial, era um intelectual, mas nao usava do pulpito ou de seus escritos para ostentar isso; pelo contrério, era freqiiente a sua preocupagao com a simplici- dade, e em nao tentar ultrapassar o revelado por meio de especulagdes pecaminosas: a Palavra é a escola do Espirito; é por intermédio dela que Deus nos fala. E Deus nos fala obje- tivando a nossa edificacao. Portanto, como jé vimos, Calvino insistia: Que esta seja a nossa regra sacra: néo procurar saber nada mais senao o que a Escritura nos ensina. Onde o Senhor fecha seus prdéprios ldbios, que nés igualmente impegamos nossas mentes de avangar sequer um passo a mais," Proceder assim ¢ “douta ignorancia”.'*” Isso porque “é estulto e temerdrio de cousas desconhecidas mais profunda- mente indagar do que Deus nos permita saber”.'“* O calvinismo, com sua énfase na centralidade das Escri- turas, ¢ mais do que um sistema teoldgico: é, sobretudo, uma maneira teocéntrica de ver, interpretar ¢ atuar na histéria. O cristianismo — conforme entende o calvinista— nao é uma forma de acomodago na cultura; antes, de formacio e de transformac4o por meio de uma mudanga de perspectiva da realidade, que redundaré necessariamente numa mudanga nos cAnones de comportamento, alterando sensivelmente as suas agendas e praxes. Portanto, a nossa fé tem compromis- sos existenciais inevitveis. Ser reformado nao é apenas um status nominal vazio de sentido, mas reflete a nossa fé em atos de formago e transformagao. 48 E urgentemente necessdrio que nao nos deixemos seduzir pelo fascinio da cultura paga que nos cerca. A forca da Igre- ja estd na Palavra de Deus. Nao importa o quanto nos jul- guemos fortes e imbativeis; se nos afastarmos da Palavra, nos enamorando das agendas e praxes contrdrias 4 Palavra, tom- baremos como Sansio diante de Dalila. Abraham Kuyper, interpretando 0 pensamento reforma- do, diz: Calvino abomina a religiao limitada ao gabinete, 4 cela ou a igreja. Com o salmista, ele invoca 0 céu e a terra, invoca todas as pessoas e nagdes a dar gldria a Deus. Deus esta pre- sente em toda vida com a influéncia de seu poder onipresente e Todo-Poderoso e nenhuma esfera da vida humana é conce- bida na qual a religido no sustente suas exigéncias para que Deus seja louvado, para que as ordenangas de Deus sejam observadas, ¢ que todo /abora seja impregnado com sua ora em fervente e continua oragao.'” Todavia, nesse estado de existéncia, nenhuma cultura é ou serd perfeita; haverd sempre, em maior ou menor grau, 0 estigma do pecado. O calvinismo consiste numa busca cons- tante de fidelidade a Deus; a transformagao cultural é ape- nas um resultado daqueles que tém os olhos firmados na Palavra, um coragao prazerosamente submisso a Deus e um comprometimento existencial no mundo, no qual vive e atua para a gléria de Deus. Com tais principios 0 calvinismo in- fluenciou as artes, a politica, a ciéncia, a economia, a litera- tura e outros diversos setores da cultura. Para Calvino, a pergunta condenatéria de Tertuliano a Filosofia nao fazia sen- tido, 0 cristianismo é uma cosmovisao que parte das Escritu- ras para o exame de todas as facetas da realidade. Para Calvino, nenhum tipo de ensino que levasse os homens a deixarem de se preocupar com qualquer coisa que afetasse 49 de maneira profunda a vida humana, até mesmo em suas Pteocupagées puramente humanas, poderia de forma algu- ma ser cristo.) A Palavra de Deus oferece-nos 0 escopo de nosso pensar e agir. Por meio dela poderemos ter uma real visio de Deus, de nés mesmos e do mundo. Portanto, uma cosmovisao re- formada é uma visdo que se esforga por interpretar a chama- da realidade pela éptica das Escrituras. Sem as Escrituras, permanecemos miopes para distinguir as particularidades do real, tendo uma epistemologia desfocalizada. Calvino usa de uma figura que continua atual: Exatamente como se dé com pessoas idosas, ou enfermas de olhos, e quantos quer que sofram de visio embagada, se pu- seres diante deles até mui vistoso volume, ainda que reco- nhegam ser algo escrito, mal poderao, contudo, ajuntar duas palavras; ajudadas, porém, pela interposigdo de lentes, co- megario a ler de forma mais distinta. Assim a Escritura, co- letando-nos na mente conhecimento de Deus de outra sorte confuso, dissipada a escuridéo, mostra-nos em di4fana clare- za o Deus verdadeiro.'** O calvinismo fornece-nos éculos cujas lentes tm o senso da soberania de Deus como perspectiva indispensdvel e ne- cessdria para ver, interpretar e atuar na realidade, fortale- cendo, modificando ou transformando-a, conforme a necessidade. Isso tudo num esforgo constante de atender ao chamado de Deus e viver dignamente o Evangelho no mun- do. Schaff comenta que “o senso da soberania de Deus forta- leceu os seus seguidores contra a tirania de senhores temporais, € os fez os campedes e promotores de liberdade civil e politi- ca na Franga, Holanda, Inglaterra e Escécia”.’* No entanto, mesmo com toda essa influéncia, 0 calvinismo nao moldou a cultura ocidental somente por meio das idéias, 50 mas principalmente por seus ideais que fizeram homens fiéis morrer pelo testemunho de sua fé. Como vimos, Os protestantes franceses, ao serem levados para a priséo ou para a fogueira, cantavam salmos com tanta veeméncia que foi proibido por lei cantar salmos, e aqueles que persistiam tinham sua lingua cortada. O salmo 68 era a Marselhesa huguenote.!> Como nos adverte Kuyper, a “vida que o Calvinismo tem pleiteado e tem selado, nado com I4pis e pincel no estidio, mas com seu melhor sangue na estaca e no campo de bata- tha”;!54 ou seja, a forga pratica da teologia reformada nao est4 simplesmente em seu vigor e capacidade de influenciar intelectualmente os homens, mas no que tem produzido na vida de milhées de pessoas, conduzindo-as, em submissao ao Espirito, a fidelidade biblica e a uma ética que se paute pelas Escrituras. A grande contribuigao do calvinismo nao se res- tringe aos manuais das mais variadas dreas do saber, mas cs- tende-se 4 integralidade da vida dos discipulos de Cristo que seguem essa petspectiva. Calvino, com sua vida e ensinamentos, contribuiu para forjar um tipo novo de homem: o reformado, que vive, no tempo, a plenitude do seu tempo para a gldria de Deus! Por- tanto, “o verdadeiro discfpulo de Calvino sé tem um cami- nho a seguir: nao obedecer ao préprio Calvino, mas Aquele que era o mestre de Calvino”. CRONOLOGIA 1509: Calvino nasce em 10 de julho, em Noyon. 1515: Morte de sua mie, Jeanne Lefranc. 1519: Morte de Leonardo da Vinci. 1521: Ainda crianga, Calvino recebeu um beneficio ecle- sidstico na catedral de Noyon. St 1523: Foi estudar no Collége de la Marche, em Paris (con- ceito tradicional, hoje sob controvérsia). 1524: Foi estudar no Collége de Montaigu. 1528: Obtém o grau de Mestre em Artes pela Universi- dade de Paris, Vai para Orléans estudar Direito. Morte de Albrecht Diirer. 1529: Resignou a capelania de La Gesine em favor do irmao mais jovem, Antoine. 1531: Obtém o grau de Bacharel em Direito. Morte de seu pai, Gérard Cauvin. Morte de Zuinglio. 1532: Publica a edigao comentada do livro de Séneca, De clementia. 1532-4: Durante esse perfodo, Calvino foi convertido. 1533: Nicolds Cop leu seu discurso de posse como reitor da Universidade de Paris (le de novembro). 1534: Calvino renuncia os seus beneficios eclesidsticos em Noyon. Publica a sua primeira obra teolégica, Psycho- pannychia (Sobre 0 sono da alma). Lutero conclui com ou- tros amigos a traducao da Biblia para o alemao. 1535: Prefacia o Novo Testamento traduzido para o fran- cés pelo seu primo Pierre Robert Olivétan. Os Conselhos de Genebra decidiram que o catolicismo nao seria mais a reli- giao de Genebra. 1536: Publica em latim a primeira edicdo das /nstitutas. De passagem por Genebra, Calvino é persuadido por Farel a permanecer ali. Morte de Erasmo. 1536-7: Elaborou em francés um Catecismo: Jnstrugio e confisséo de fé, segundo o uso da Igreja de Genebra. 1538: Calvino e Farel sio expulsos de Genebra. Calvino vai para Estrasburgo como pastor. 1539: Escreve a famosa Reéplica ao cardeal Sadoleto. Pu- blica em latim, de forma ampliada, a segunda edigao das Institutas. 1539-40: Publica seu primeiro Manual de Culto com- pleto em lingua francesa. 1540: Casa-se com a vitiva Idelette de Bure. O Conselho dos Duzentos resolve convidar Calvino a voltar a Genebra. Publica o seu primeiro comentario da Biblia: Romanos. 1541: O Conselho Geral de Genebra revoga o edito de banimento de 1538. Depois de insistentes pedidos, Calvino volta a Genebra. Publica a traducao francesa das Jnstitutas feita por ele mesmo. Publica 0 Pequeno tratado sobre a ceia do Senhor. 1541-2: Publica em francés um novo Catecismo, consti- tuido de 373 questées. 1543: Publica o panfleto Um inventdrio contra as reliquias. 1544; Publica A necessidade da Reforma da Igreja. 1545: Publica o panfleto Contra os libertinos. Traduz para o latim o Catecismo que fora publicado em francés entre 0 fim de 1541 e inicio de 1542. 1546: Publica os Comentarios de 1 e 2Corintios. Dedica o de 2Corintios ao seu antigo professor de grego, Melchior ‘Wolmar. Morte de Lutero. 1547: Publica 0 panfleto Antidote contra 0 Conctlio de Trento. 1548: Publica os Comentarios de Galatas e Efésios. 1549: Morte da esposa de Calvino, Idelette de Bure. Dedica 0 seu comentério da epistola de Tito a seus amigos Farel e Viret. 1550: Publica seu Comentdrio da primeira epistola aos Tessalonicenses, dedicando-o ao mestre de gramatica e reté- rica, Maturinus Corderius. 1551: Morte de Martin Bucer. 1552: Publica 0 Tratado sobre a predestinagéo eterna de Deus. 1553: Morte de Rabelais. 1557: Publica o Comentério dos Salmos. 1559: Organizacéo da Academia de Genebra. Publica a edicdo definitiva das Institutas em latim. Torna-se cidadao de Genebra. 1560: Traduz para o francés a edigao definitiva das Insti- tutas (1559). Morte de Ph. Melanchton. Possfvel morte do compositor francés Loys Bourgeois, Nascimento de Jacobus Arminius, 1561: Morte de Melchior Wolmar. Nascimento de Francis Bacon. 1562: Morte de Pedro Mértir Vermigli. 1563: Fim do Concilio de Trento (4 de dezembro). 1564: Morte de Calvino (27 de maio). Morte de Miche- langelo e de Maturinus Corderius. Nasce Galileu Galilei. 54 A ABNEGACAO (v. tb. SUBMISSAO; OBEDIENCIA) “Se ndo cumprirmos com todos os deveres do amor, nun- ca poderemos praticar uma negacio real do Eu.”! “A negacado de néds mesmos, que tem sido tao diligente- mente ordenada por Cristo aos seus apdstolos desde o prin- cipio, terminard dominando os desejos de nossos coracées. Esta negacao de nés mesmos néo deixard lugar para o orgu- tho, a arrogancia, a vangléria, a avareza, a licenciosidade, o amor & luxtria, ao luxo, ou qualquer outra coisa nascida do amor ao ‘Eu’.”? ACAO SOCIAL “Portanto, ao fazer o bem a nossos irmaos € mostrar-nos humanitdrios, tenhamos em mente esta regra: que de tudo quanto o Senhor nos tem dado, com o que podemos ajudar nossos irmaos, somos dispensadores; que estamos obrigados a dar conta de como o temos realizado; que nao hd outra maneira de dispensar devidamente 0 que Deus pés em nos- sas mAos, que se ater 4 regra da caridade. Daf resultard que nao somente juntatemos ao cuidado de nossa prépria utili- dade a diligéncia em fazer bem ao nosso préximo, sendo que, inclusive, subordinaremos nosso proveito ao dos demais.”* 55 No entanto, essa ajuda nao poderd ser com arrogancia; antes, deve ser praticada com amor, prontidao, humildade, cortesia e simpatia. Calvino constata com tristeza: “quase nin- guém é capaz de dar uma miserdvel esmola sem uma atitude de arrogincia ou desdém. [...] Ao praticar uma caridade, os ctist&os deveriam ter mais do que um rosto sorridente, uma expressio amdvel, uma linguagem educada. Em primeiro lugar, deveriam se colocar no lugar daquela pessoa que ne- cessita de ajuda, e simpatizarem-se com ela como se fossem eles mesmos que estivessem sofrendo. Seu dever é mostrar uma verdadeira humanidade e misericérdia, oferecendo sua ajuda com espontaneidade e rapidez como se fosse para si mesmos. A piedade que surge do coragao fard com que se desvanega a arrogancia e o orgulho, e nos prevenird de ter- mos uma atitude de reprovacao ou desdém para com o po- bre e o necessitado”. “Ainda que a liberdade dos fi¢is com respeito As coisas ex- ternas nao deva ser limitada por regras ou preceitos, sem duvida deve regular-se pelo princfpio de se regalar 0 m{ni- mo possivel; e, ao contrario, que temos de estar bem atentos para cortar toda superfluidade e toda ostentacao va de abun- dancia — devem estar longe da intemperanga! —, e guar- dar-se diligentemente de converter em impedimentos as coisas que se lhes tém dado para que lhes sirvam de ajuda.”° “Nosso amor deve ser visivelmente estendido a toda a raga humana. Uma vez, porém, que os domésticos da fé nos sao especialmente recomendados, devern eles receber nosso es- pecial cuidado. Como 0 amor, quando movido a fazer o bem, age em parte em consideracio a Deus e em parte em consi- deragéo A nossa comum natureza, segue-se, pois, que quanto mais perto estd alguém de Deus mais digno é ele de nosso auxilio. Alias, quanto mais reconhecemos alguém como 56 filho de Deus, tanto mais devemos cercd-lo com nosso amor fraternal.”¢ “Nossa comum humanidade nos torna devedores a todos; mas estamos obrigados aos crentes por um parentesco mais estreito, o qual Deus santifica entre nés,”” ADAO “Agora nao nascemos tais como Adio fora inicialmente criado, sendo que somos a semente adulterada do homem degenerado e pecaminoso.”* “Addo, em sua queda, foi despojado de sua justiga ori- ginal, sua razdo foi obscurecida, sua vontade, pervertida, e que, sendo reduzido a este estado de corrup¢do, trouxe filhos ao mundo semelhantes a ele em cardter. Se porventu- ra alguém objetar, dizendo que essa geragéo se confina aos corpos, e que as almas jamais poderao derivar uns dos outros algo em comum, eu responderia que Adao, quando em sua criagdo foi dotado com os dons do Espirito, nao man- tinha um carter privativo ou isolado, mas que era o repre- sentante de toda a humanidade, que pode ser considerado como tendo sido dotado com esses dons em sua pessoa; ¢ deste conceito necessariamente se segue que, quando ele caiu, todos nés, juntamente com ele, perdemos nossa integridade original.”? ADOGAO “Com que confianga, de outra sorte, Pai chamaria alguém a Deus? Quem a isto de temeridade prorromperia, que a si usurpasse a honra do Filho de Deus, salvo se houvéssemos sido em Cristo adotados por filhos da graca, Cristo, que, como seja o verdadeiro Filho, dado nos foi de Si préprio por irmAo, para que o que préprio tem Ele de natureza nosso se faga por beneficio da adogao, se com fé segura abragamos tao grande benevoléncia?”"? Calvino insistiu no ponto de que o pecador nfo pode par- ticipar dos beneficios salvadores de Cristo, a menos que en- tre em comunhio com ele. “Por meio da fé, Cristo nos é comunicado, através de quem chegamos a Deus, e através de quem usufrufmos os beneficios da adogao,”"! “Aos olhos de Deus sé somos verdadeiramente gerados quando somos en- xertados em Cristo, fora de quem nada é encontrado senao morte.””? A eleigao em Cristo nos liga a ele de forma indisso- luvel; por isso, tudo 0 que temos e somos é em Cristo (Ef 1.3,75 Rm 8.1). Nao ha beneficio salvador a ser aplicado fora de Cristo. O nosso consolo ¢ alegria é que estamos definitiva- mente ligados a ele. “Se acaso tivermos a pretensdo de ser mais que filhos e herdeiros de Deus, teremos que subir mais alto que Cristo. Mas se temos nele o nosso limite extremo, nao estaremos pro- vocando Sua ira maxima, se buscarmos fora de Cristo o que j4 obtivemos nele, sendo que sé o podemos obter nele? Além disso, visto que Cristo é a sabedoria eterna do Pai, a verdade imutdvel, o conselho inabaldvel, nao devemos acreditar que 0 que Ele nos declara com Sua boca possa diferir um 4tomo que seja da vontade do Pai, a qual buscamos conhecer, An- tes, Ele nos manifesta fielmente qual ¢ a vontade do Pai, des- de o princfpio e para sempre.”" ADORAGAO (v. tb. cuLTo) “Todos sabem que existe um Deus e que devemos cultud- lo; mas tal é 0 vicio e a ignor4ncia que reinam em nés, que desse confuso conhecimento passamos imediatamente para um idolo, ¢ assim 0 adoramos no lugar de Deus. E até mes- 58 mo no culto devido a Deus, nos desviamos, particularmente na primeira taébua da lei.” AFLICAO “Quando, pois, a fraude, a astticia, a traigao, a crueldade, a violéncia e a extorso reinam no mundo; em suma, quando todas as coisas sdo arremessadas em total desordem e escuri- dao, pela injustiga ¢ perversidade, que a fé sirva como uma lampada a capacitar-nos para visualizarmos o trono celestial de Deus, e que essa visdo nos seja suficiente para fazer-nos esperar pacientemente pela restauracao das coisas a um me- lhor estado.”" “Portanto, seja de que ponto nossas afligdes venham, apren- damos a volver instantaneamente nossos pensamentos para Deus e reconhecé-lo como Juiz que nos intima, como culpa- dos, a comparecer diante de seu tribunal, j4 que, de nossa propria iniciativa, nao antecipamos seu juizo.”!® “As pessoas se véem téo incomodamente atormentadas sob suas afligdes, que nao conseguem imediatamente uma visdo direta e nitida de seus pecados, a fim de que, desse modo, se produza a conviccio de que mereceram a ira divina.””” “Esta é a vantagem primordial das aflicdes, ou seja, en- quanto nos tornam conscientes de nossa miséria, nos estimu- lam novamente para suplicarmos o favor divino.”"* Calvino, comentando a respeito da pedagogia das aflicdes, exorta: “os homens so incapazes de sentir seus pecados a menos que sejam levados pela forga a conhecet-se por si mes- mos. Por isso, vendo que a prosperidade nos embriaga de tal maneira, e que quando estamos em paz cada um se adula em seus pecados, temos que sofrer pacientemente as afligdes de Deus. Porque a aflicgao é a auténtica mestra que leva os ho- mens ao arrependimento para que se condenem eles mes- 59 mos diante de Deus e, sendo condenados, aprendam a odiar aqueles pecados nos quais anteriormente se banhavam”.!” ALEGORIA Criticando 0 uso alegérico que os tedlogos romanos fazi- am das Escrituras na tentativa de provar determinada tese, Calvino diz: “o segundo argumento eles extraem da mesma classe de fonte, a saber, de uma alegoria. Como se as alegorias tivessem grande forca para provar qualquer doutrina! Bem que cu gostaria que elas fossem suficientes, se eu nao tivesse melhor recurso para comprovar a doutrina. Dizem eles que, depois de haver ressuscitado Lazaro, o Senhor ordenou a Seus discipulos que Ihe descobrissem 0 rosto e 0 desatassem”.” “As alegorias ndo devem ultrapassar os limites da norma da Escritura que se lhes antepée, tao longe est4 de que bastem de si mesmas para servirem de base a quaisquer doutrinas.”?! Calvino considera a interpretagao alegérica como o “mais danoso etro”.” Por meio dela tornamo-nos oleiros arbitrdrios, manipulando o texto, dando-lhe a forma que imaginarmos. ALEGRIA “Quando Deus esparge alegria em nossos coragées, 0 re- sultado deve ser que nossos lébios se abram para entoar seus louvores,”” “Se a alegria que os homens experimentam e nutrem é sem Deus, 0 resultado dessa alegria por fim serd destruicao, e sua hilaridade se converterd em ranger de dentes. Cristo, porém, se introduz no monte Sido com seu evangelho a en- cher o mundo com genuina alegria e felicidade eterna.”* “Para fazer os coragdes dos santos rejubilar-se, o favor di- vino é 0 tinico sobejamente suficiente.””* 66 » 26 “A alegria do Espfrito é inseparavel da fé. “E possivel que nao vivamos totalmente livres do sofrimen- to, nao obstante é necessdrio que essa fé regozijante se erga acima dele e nossa boca se abra em cAntico por conta da alegria que est4 reservada pra nés no futuro, embora ainda nao seja experimentada por nés.””” ALIENACAO (v. th. PECADO) “Como a vida espiritual de Adao era 0 permanecer unido e ligado a seu Criador, assim também o dEle alienar-se foi- Ihe a morte da alma.””* “O apéstolo agora declara que os efésios viviam alienados, nao s6 dos simbolos externos, mas de tudo quanto se fazia necessdrio & salvago € a felicidade dos homens.” “Como a morte espiritual nao é outra coisa seno o estado de alienacao em que a alma subsiste em relagao a Deus, jé nascemos todos mortos, bem como vivemos mortos até que nos tornamos patticipantes da vida de Cristo.”* “Quando de seu estado original decaiu Adio, nao hd a minima duvida de que por esta defecgAo se haja alienado de Deus. Pelo que, embora concedamos nao haja sido nele ani- quilada e apagada de todo a imagem de Deus, foi ela, toda- via, corrompida a tal ponto que, o que quer que reste, é horrenda deformidade.”*! “Pelo pecado estamos alienados de Deus.””” “Tao logo Adio alienou-se de Deus em conseqiiéncia de seu pecado, foi ele imediatamente despojado de todas as coi- sas boas que recebera.”** Todos os homens estao “totalmente alienados”** de Deus. 6I ALMA “E a alma que possui o poder do entendimento.”*> AMBICAO (v. tb. INVEJA; COBICA) “A ambicao é a mae da inveja. E sempre que a inveja esti- ver no comando, ali também surgirao violéncia, confus6es, contendas e os demais males que Paulo enumera aqui.”** “Todo crente deve sentir desejos de manter-se afastado da falsa ambigao e da busca inadequada de grandezas e honras.”5? “FE da inveja que nascem as disputas, as quais, uma vez inflamadas, se prorrompem em seitas perigosas. Além do mais, a ambicdo é a mae de todos estes males.”* AMOR “Eles manterao seus dons sob controle, enquanto 0 amor gozar de um lugar de proeminéncia em seu relacionamento rec{proco.”” A elogiiéncia “é um dom muito excelente, mas que, quan- do se vé divorciado do amor, de nada serve para alguém ob- ter o favor divino”.” “Onde o amor governa e floresce, edificaremos muitissi- mos uns aos outros,”“" “O amor que Deus nutre por nds é sem paralelo.”” “Todos quantos desejam engajar-se nos deveres do amor devem sentir-se preparados para uma vida de muito sacrifi- cio. [...] Nosso amor deve ser visivelmente estendido a toda a raga humana.”4# 62 “Que outra coisa poderd Deus encontrar em nés, que o induza a amar-nos, a nao ser aquilo que ele j4 nos deu?”“ Calvino trata também da forma como devemos dar esmo- las: “quase ninguém é capaz de dar uma miser4vel esmola sem uma atitude de arrogancia ou desdém. [...] Ao praticar uma caridade, os cristaos deveriam ter mais do que um rosto sorridente, uma expressdo amdvel, uma linguagem educada. Em primeiro lugar, deveriam se colocar no lugar daquela pessoa que necessita de ajuda, e simpatizarem-se com ela como se fossem eles mesmos que estivessem sofrendo. Seu dever é mostrar uma verdadeira humanidade e misericérdia, ofere- cendo sua ajuda com espontaneidade e rapidez como se fos- se para si mesmos. A piedade que surge do coragdo fard com que se desvanega a arrogancia e o orgulho, e nos prevenird de termos uma atitude de reprovacao ou desdém para com 0 pobre e o necessitado”.*° “Nao hd nada no mundo inteiro que nos faga cair em desespero, seja o que for e seja qual for a oposicdo que se nos faa, se estivermos plenamente persuadidos de sermos ama- dos por Deus.” “Onde o amor nao reina, também nao existe edificagao para a Igreja, sendo mera dispersao.”"” “Deus jamais encontrar4 em nés algo digno do seu amor, senfo que ele nos ama porque ¢ bondoso e misericordioso.”“* ANJOS “Os anjos sao despensciros e ministradores da divina be- neficéncia para conosco. E, por isso, a Escritura refere que eles montam guarda pela nossa seguranga, assumem a nossa defesa, dirigem os nossos caminhos, exercem solicitude para que nao nos acontega algo de adverso.”” 63 “Ora, ainda que da diversidade de nomes concluamos que hé vdrias ordens, todavia, investig4-los mais minuciosa- mente, fixar seu ntimero ¢ determinar suas hierarquias nao seria mera curiosidade, e, sim, também temeridade {mpia e perigosa.”*° “E evidente que Deus emprega seus anjos de diferentes maneiras, pondo um sé anjo sobre varias nagdes e também varios anjos sobre um sé homem. Nao hd necessidade de ser- mos exigentes e escrupulosos inquirindo sobre o modo exato em que ministram juntamente para nossa seguranga; basta que, conhecendo pela autoridade de um apéstolo o fato de serem eles designados como ministros sobre nés, descanse- mos satisfeitos com o fato de que estéo sempre atentos a sua incumbéncia. Lemos em outra parte sobre sua prontidao em obedecer As ordens divinas e executd-las; e isso deve contri- buir para o fortalecimento de nossa fé, visto que Deus faz uso de seus esforcos para nossa defesa.”>! “Eles foram criados para realcar a gléria de Deus por to- dos os meios possiveis.”>? Discorrendo sobre hierarquia, ntimero e forma dos anjos, Calvino conclui: “lembremo-nos de que nos devemos guar- dar, seja de exagerada curiosidade em perquirir, seja de ex- cessiva ousadia no falar”.** APOSTASIA Calvino resume o pecado contra o Espirito Santo com a palavra apostasia, um abandono consciente e deliberado da fé crista. Como ele mesmo define, “a pessoa que apostata é alguém que renuncia a Palavra de Deus, que extingue sua luz, que se nega a provar o dom celestial e que desiste de participar do Espfrito. Ora, isso significa uma total rentincia de Deus”.* No entanto, acrescenta: “mas se alguém se ergue novamente de sua queda, podemos concluir que, por mais gtavemente tenha ele pecado, [...] nao é culpado de aposta- sia’. Logo, essa pessoa nado cometeu 0 pecado descrito como imperdodvel. Portanto, “os eleitos se acham fora do perigo de apostasia final, porquanto o Pai que thes deu Cristo, seu Filho, para que sejam por ele preservados, é maior do que todos, e Cristo promete (Jo 17.12) que cuidard de todos eles, a fim de que nenhum deles venha a perecer”,** APOSTOLO “O apostolado de Paulo era algo para o louvor de Deus, porquanto ele foi transformado de inimigo em servo.”*” ARREPENDIMENTO “Assim como a fé nao pode existir sem a esperanca, sendo que, contudo, a fé e a esperanga s4o coisas diferentes, assim também, semelhantemente, o arrependimento e a fé, embo- ra entretecidos por um lago que nao se pode desfazer, me- lhor ser4 uni-los que confundi-los.”* “Arrependimento significa que nos retiramos de nés mes- mos € nos convertemos a Deus, e, tendo abandonado a nossa primeira forma de pensar e de querer, assumimos uma nova.”*? “O arrependimento é uma verdadeira conversao da nos- sa vida para servir a Deus e pata seguir o caminho por Ele indicado. Procede de um legitimo temor de Deus, no fingi- do, e consiste na mortificagao da nossa carne e do nosso ve- lho homem, e na vivificagio do Espirito.” “Os homens sao incapazes de sentir seus pecados a menos que sejam levados pela forca a conhecer-se por si mesmos. Por isso, vendo que a prosperidade nos embriaga de tal ma- neira, e que quando estamos em paz cada um se adula em seus pecados, temos que sofrer pacientemente as afligdes de Deus. Porque a afligdo é a auténtica mestra que leva os ho- mens ao artependimento para que se condenem cles mes- mos diante de Deus e, sendo condenados, aprendam a odiar aqueles pecados nos quais anteriormente se banhavam.”*! Por meio da regeneracao, Deus “cria de novo sua imagem em seus eleitos”.” Definindo arrependimento, Calvino es- creve: “o arrependimento é uma regeneragdo espiritual cujo objetivo é que a imagem de Deus, obscurecida e quase apa- gada em nés pela transgresséo de Addo, seja restaurada. [...] Assim, pois, mediante essa regeneragdo, somos restabeleci- dos na justica de Deus, da qual tinhamos sido despojados por Adao. Pois a Deus agrada restabelecer integralmente to- dos os que Ele adota na heranga da vida eterna”. “O arrependimento nao est4 no poder do homem.”™ ARTE Respondendo a uma pergunta referente a possibilidade de Paulo estar condenando a sabedoria de palavras como algo que se acha em oposicao a Cristo (1Co 1.17), Calvino diz: “Paulo nao seria tao irracional que condenasse como algo fora de propésito aquelas artes, as quais, sem a menor divi- da, sao espléndidos dons de Deus, dons estes que poderfa- mos chamar de instrumentos para auxiliarem os homens no desempenho de suas atividades nobres. Portanto, nao hé nada de irreligioso nessas artes, pois so detentoras de ciéncia sau- davel, e estéo subordinadas a princ{pios verdadeiros; e visto que sao titeis e adequdveis as atividades gerais da sociedade humana, é indubitdvel que sua origem est4 no Espirito. Além do mais, a utilidade que é derivada e experienciada delas nao deve ser atribuida a ninguém, sen’o a Deus. Portanto, o que Paulo diz aqui nao deve ser considerado como um desdouro 66 das artes, como se estas estivessem agindo contra a religiao”. ASCENSAO “Por sua ascensao ao céu, Cristo tomou posse do dominio que lhe fora dado pelo Pai, para que ordenasse e governasse todas as coisas pelo exercicio de seu poder.” “A doacao do Espirito assim anuncia a exaltaco divina de Cristo & destra do Pai. E a expressio priblica de sua coroacio.”” “Ao termos em mente a ascensao, nao devemos confinar nossa viséo ao corpo de Cristo, mas nossa atengdo é direcionada para o resultado e fruto dela, ao sujeitar cle céu e terra ao seu governo.”® “Por sua ascensfo ao céu, a gléria de sua divindade foi ainda mais ilustrativamente exibida, e ainda que nado mais esteja presente conosco na carne, nossas almas recebem nu- trigéo espiritual de seu corpo e sangue, e descobrimos, nao obstante a distancia de lugar, que sua carne é real comida, e seu sangue, yerdadeira bebida.”® ATEISMO (vy. tb. SENTIMENTO RELIGIOSO) “Os prdéprios impios s4o para exemplo de que vige sem- pre na alma de todos os homens alguma nogao de Deus.” Observando que “no coragao de todos jaz gravado o sen- so da divindade”,”! Calvino argumenta que a tentativa hu- mana de negar a Deus nada mais é do que uma revelacio do “senso da divindade que, tao ardentemente, desejariam ex- tinto”.”* Conclui que ¢ imposstvel haver verdadeiro ateismo. “Sabemos, alids, que todos os homens possuem algum senso de religiao impresso em seus coragées, de modo que ninguém ousa desvencilhar-se publica ou totalmente de seu culto.””* or “Nao hd estupidez mais brutal do que conscientemente ignorar a Deus.” AUTO-EXAME “Tudo quanto os filésofos tém inquirido sobre 0 summum bonum (supremo bem) revela estupidez e tem sido infrutifero, visto que se limitam ao homem em seu ser intrinseco, quan- do é necessdrio que busquemos felicidade fora de nés mes- mos. O supremo bem humano, portanto, se acha simples- mente na uniao com Deus. Nés 0 alcangamos quando levamos em conta a conformidade com sua semelhanga.”” B BATISMO. (v. tb. SACRAMENTO; Sf[MBOLO) “Batismo € 0 sinal de iniciacao pelo qual somos recebidos a sociedade da Igreja para que, enxertados em Cristo, seja- mos contados entre os filhos de Deus. Com efeito, o batismo foi-nos dado por Deus para este fim, 0 que ensinei [As institutas (1985-9), IV.14.1] ser comum a todos os mistérios, primeiro, para que servisse 4 nossa fé perante Ele, segundo, para que servisse 4 confissio nossa perante os homens.”’ “Finalmente, este proveito também nossa fé recebe do batismo: que nos atesta seguramente nao sé termos sido en- xertados na morte e na vida de Cristo, mas ainda assim uni- 68 dos ao préprio Cristo que sejamos participes de todas as Suas cousas boas.”* “Se é préprio trazerem-se as criancas a Cristo, por que nao também serem recebidas ao batismo, simbolo de nossa prépria comunhio ¢ associagao com Cristo? Se delas € 0 rei- no dos céus, por que se lhes negar4 o sinal pelo qual como que se lhes abre 0 acesso A Igreja, de sorte que, nela adotadas, sejam arroladas por herdeiras do Reino Celeste? Quo ini- quos haveremos nés de ser, se enxotemos aquelas a quem Cristo convida a Si, se espoliemos aquelas a quem exorna de Seus dons, se excetuamos aquelas a quem Ele préprio recebe graciosamente? Ora, pois, se queremos deslindar quanto do batismo esteja longe 0 que Cristo fez ali, em quanto maior apreco, entretanto, teremos o batismo, pelo qual se nos atesta que as criangas estao incluidas no pacto de Deus, que a aco de recebé-las, o abrago, a imposigao de mfos, a orag4o, com que o préprio Cristo presente declara nao sé serem Suas as criangas, mas também serem elas por Ele santi- ficadas?”? “E 0 Espirito de Deus quem nos regenera e nos trans- forma em novas criaturas; visto, porém, que sua graca é invisivel e oculta, no batismo nos é dado um simbolo visi- vel dela.” BENCGAO (v. th. Dons) “Os profetas, para demonstrar melhor a bondade de Deus, usaram os beneficios terrenos como figuras, como imagens representativas, mas, entretanto, quiseram com esses quadros elevar os corac6es acima da terra e dos elementos deste mun- do e deste século corruptivel, ¢ induzi-los a meditar na felici- dade da vida espiritual.”° 69 “Quando ele graciosamente nos concede todas as coisas, o des{gnio para o qual ele faz isso este: pata que sua bonda- de se faca conhecida e enaltecida.”® “Quanto mais numerosas forem as béngaos que espera- mos de Deus, muito mais ainda sua infinita liberalidade exceder4 sempre a todos os nossos desejos € nossos pensa- mentos.”” “As vezes sucede que nosso préprio coragdo nos sugere motivo de desesperanga quando comegamos a concluir que Deus nos rejeitou, uma vez que nao continua a nos conceder os mesmos beneficios que em sua benevoléncia se dignou conceder a nossos pais. [...] Francamente admito que, quan- to mais meditamos nos beneficios que Deus tem concedido a outros, mais profunda se torna a tristeza que experimenta- mos quando ele nao nos alenta em nossas adversidades, A fé, porém, nos conduz a outra conclusao, a saber, que devemos crer de coraco que no devido tempo também experimenta- remos algum lenitivo, visto que Deus continua imutavelmente o mesmo,”* “Os hipdcritas se vaem geralmente inflados com a pros- peridade, como se merecessem a mercé divina por suas boas obras, e assim se fazem mais empedernidos em seu desdém para com Deus.”° Calvino argumenta: “aqueles a quem Deus tem poupado nesta vida receberao sobre si a aplicagao de um castigo mais severo, visto que tém adicionado sua rejeic¢ao do convite pa- ternal de Deus a suas demais perversidades. Ainda que todos os favores divinos sejam inumerdveis provas de sua paternal bondade, todavia, visto que as vezes ele tem diferentes obje- tivos em vista, os impios se equivocam ao vangloriar-se de sua prosperidade, como se fossem os bem-amados de Deus, ao mesmo tempo que este paternal e liberalmente os sustenta”.'° a “O primeiro princfpio a considerar é que, se os dons de Deus sao dirigidos ao mesmo propédsito pata o qual foram criados e destinados, nao podem ser utilizados equivoca- damente.”” “Se desejamos refrear nossas paixdes, devemos recordar que todas as coisas nos tém sido dadas com o propésito de que possamos conhecer e reconhecer 0 seu autor.”! “Um verdadeiro cristéo nao deverd atribuir nenhuma prosperidade a sua prépria diligéncia, trabalho ou boa sorte, mas antes ter sempre presente que Deus é quem prospera e abengoa.”'? “Os crentes devem ter sempre em mente o fato de que tudo que comprcende e rodeia nossa vida depende tinica e exclusivamente da béngao do Senhor. As vezes pensamos que podemos alcangar facilmente as riquezas e as honras com nossos prdprios esforgos, ou por meio do favor dos demais; porém, tenhamos sempre presente que estas coisas nao sao nada em si mesmas, e que nao poderemos abrir caminho por nossos prdéprios meios, a menos que o Senhor queira nos prosperar.”"4 “Ora, essa é uma tentaco muito grave, ou seja, avaliar alguém o amor e o favor divinos segundo a medida da pros- peridade terrena que ele alcanga.”!* BIBLIA (v. tb. EVANGELHO; LEI) “Visto que Deus se comunicou por Sua Palavra de Vida a todos os que Ele recebeu por Sua graca, disso devemos infe- rir que os fez participantes da vida eterna. Eu digo que na Palavra de Deus ha tal eficdcia de vida que a sua comunica- cao é uma segura e certa vivificagao da alma. Entendo por comunicagao nao a geral e comum, que se propaga por céus € terra e sobre todas as criaturas do mundo. Porque, con- quanto esta vivifique todas as coisas conforme a sua respecti- va natureza diversa, todavia nao livra nada nem ninguém da corrup¢ao. Mas a comunicacao a que me refiro é especial, € por esta a alma dos crentes ¢ iluminada no conhecimento de Deus e de algum modo ¢ ligada a Ele.”'* “A genuina conviccao que os crentes tém da Palavra de Deus, acerca de sua prépria salvagao e de toda a religiao, nao emana das percepgées da carne, ou de argumentos humanos e filoséficos, e, sim, da selagem do Espirito, o que faz suas consciéncias mais seguras e todas as dividas removidas.”!” “Nada é mais solicitamente intentado por Satands do que impregnar nossas mentes, ou com duvidas, ou com menos- prezo pelo evangelho.”'* “Aquele que a prega [a Palavra] descobrird que a ninguém a pregou em vao. [...] Se porventura alguém presume que a Palavra de Deus ecoa no vazio, ao ser proclamada, esse tal esté fazendo uma grande confusao. Essa Palavra é algo vivo e cheio de poder secreto, a qual nado deixa nada no homem que nao seja tocado. A suma de tudo isso é que tao logo Deus abra seus santos ldbios, todos os nossos sentidos também de- vem abrir-se para receber a sua Palavra, porque nao faz parte de sua vontade permitir que suas palavras sejam semeadas em vao, nem tampouco fenegam ou desaparecam no solo da vida, senao que desafiem eficazmente as consciéncias huma- nas, até que as tragam jungidas ao seu dominio. Ele, pois, dotou sua Palavra com tal poder, que [ela] perscrute cada drea de nossa alma, para revelar os escrutinios dos pensamen- tos, para decidir entre as afeigdes e para manifestar-se como juiz.”!? “E uma {mpia e danosa invengio tentar privat 0 povo co- mum das Santas Escrituras, sob o pretexto de serem elas um mistério oculto, como se todos os que o temem de coragao, seja qual for seu estado e condigéo em outros aspectos, nao fossem expressamente chamados ao conhecimento da alian- ga de Deus,””° “O Espirito Santo nao costuma inspirar os servos de Deus a pronunciar palavras bombdsticas nem a langar sons vazios 21 no ar. “Elimine-se 0 evangelho, e todos permaneceremos maldi- tos e mottos a vista de Deus. Esta mesma Palavra, por meio da qual somos gerados, passa a ser leite para nos criar, bem como alimento sélido para a nossa nutrigéo continua.” “Deus nos deu sua Palavra na qual, quando fincamos bem as tafzes, permanecemos inamoviveis; os homens, porém, fazendo uso de suas invengdes, nos extraviam em todas as diregdes.” “S6 sao dignos estudantes da lei aqueles que se chegam a ela com uma mente disposta ¢ se deleitam com suas instru- gGes, ndo considerando nada mais desejavel e delicioso do que extrair dela o genuino progresso. Desse amor pela lei procede a constante meditagao nela.”™ “Deus sé € corretamente servido quando sua lei for obe- decida. Nao se deixa a cada um a liberdade de codificar um sistema de religiao ao sabor de sua prépria inclinacao, sendo que o padrao de piedade deve ser tomado da Palavra de Deus.” “A Escritura outra coisa nao é senao a exposi¢do da lei.””* “E chocante blasfémia afirmar que a Palavra de Deus é falfvel até que obtenha da parte dos homens uma certeza emprestada.”?” “A Palavra do Senhor é semente frutifera por sua prépria natureza.”*8 “A Escritura é proveitosa.’ Segue-se daqui que é erréneo usd-la de forma inaproveitdvel. Ao dar-nos as Escrituras, o Senhor ndo pretendia nem satisfazer nossa curiosidade, nem alimentar nossa Ansia por ostentag4o, nem tampouco depa- rar-nos uma chance para inveng6es misticas e palavreado tolo; sua intengSo, ao contrdrio, era fazer-nos o bem. E assim, o uso correto da Escritura deve guiar-nos sempre ao que é pro- veitoso.””” “Com efeito, se refletimos quao acentuada é a tendéncia da mente humana para com o esquecimento de Deus, quio gtande a proclividade para com toda sorte de erro, quao pro- nunciado o gosto de a cada instante forjar novas ¢ fantasiosas religides, poder-se-4 perceber quao necessdria haja sido tal autenticacao escrita da celeste doutrina, para que nao deperecesse pelo olvido, ou se dissipasse pelo erro, ou fosse da petulancia dos homens corrompida.”” “A Escritura é a escola do Espfrito Santo, na qual, como nada é omitido nao sé necessdrio, mas também proveitoso de conhecer-se, assim também nada ¢ ensinado senao o que con- venha saber.”>! “Os filésofos sao ambiciosos e, por conseguinte, objetivam uma clateza extraordindria e uma engenhosidade habil; po- rém a Escritura tem uma bela preciséo e uma certeza que excede a todos eles. Os fildsofos com freqiiéncia demonstram presung’o, porém o Espirito Santo tem um método diferen- te (direto e sincero), o qual ndo deve ser negligenciado.”*” BOAS OBRAS “Se é questo de avaliar as obras segundo a sua dignidade, dizemos que elas nao sao dignas de ser apresentadas a Deus. 74 Isso porque nfo existe ninguém no mundo que tenha algu- ma coisa em suas obras em que se possa gloriar diante de Deus.” “Uma recompensa se encontra reservada para as boas obras, sim, mas nado com base nos méritos, e, sim, com base na livre e espontdnea generosidade divina, e mesmo essa gra- ciosa recompensa das obras nao ocorre sendo depois de ser- mos recebidos na graca por meio da misericérdia de Cristo. [...] Nao é propriamente nossas obras em si mesmas que Deus considera, ¢ sim sua graga em nossas obras.”** “Diz ele [Paulo] que, antes que nascéssemos, as boas obras haviam sido preparadas por Deus; significando que por nos- sas préprias forgas ndo somos capazes de viver uma vida san- ta, mas sé até ao ponto em que somos adaptados e moldados pelas maos divinas. Ora, se a graga de Deus nos antecipou, entao toda e qualquer base para vangléria ficou eliminada.”* “E indubitdvel que a ndés compete cultivar a unidade da forma a mais séria, porque Satands est4 bem alerta, seja para arrebatar-nos da Igreja, ou para desacostumar-nos dela de maneira furtiva. Essa unidade ser um fato, caso ninguém procure agradar a si préprio mais do que lhe é direito; ao contrario disso, se todos tivermos um sé e 0 mesmo alvo, a saber: estimularmo-nos uns aos outros ao amor, nao permiti- remos que a emulago floresga, exceto no campo das boas obras. Certamente que 0 menosprezo direcionado a algum irmao, a rabugice, a inveja, a supervalorizacdo de nds mes- mos, bem como outros impulsos nocivos, claramente demons- tram, ou que o nosso amor é gélido ou que realmente nao existe,”%° “Sabemos nao haver nenhuma de nossas obras que, a vis- ta de Deus, seja considerada perfeita ou pura e sem qualquer mdcula de pecado.”°” “Sempre que se enaltece o favor divino para com os ju- deus, em conseqiiéncia de haver ele amado a seus pais, este principio deve perenemente ser mantido em mente, a saber, que com isso se invalidam todos os méritos humanos.”?* BONDADE (v. th. GRACA; MISERICORDIA) “Quando ele graciosamente nos concede todas as coisas, o designio para o qual ele faz isso é este: para que sua bonda- de se faca conhecida e enaltecida.”” “Embora Deus, por algum tempo, venha a subtrair de nés todo sinal de sua benevoléncia, e aparentemente nao leve em conta as misérias que nos afligem, nos esquecendo como se Ihe féssemos estranhos e nao seu préprio povo, devemos lutar corajosamente até que, livres dessa tentagio, cordial- mente apresentemos a ora¢do que é aqui registrada, rogando a Deus que, retornando A sua maneira anterior de nos tratar, ele uma vez mais comece a manifestar sua benevoléncia para conosco ¢ a tratar-nos de uma forma mais graciosa.”* “Davi nao podia descobrir nenhuma outra causa pela qual pudesse valer-se da paternidade divina, sendo que Deus é bom, e desse fato segue-se que nao hd nada que induza Deus a receber-nos em seu favor senao seu préprio beneplacito.”*" “Embora a bondade divina As vezes se mantenha oculta e, por assim dizer, sepultada da vista humana, ela jamais pode- 14 ser extinta.”” “E indubitavel que a nés compete cultivar a unidade da forma a mais séria, porque Satands esté bem alerta, seja para arrebatar-nos da Igreja, ou para desacostumar-nos dela de maneira furtiva. Esta unidade ser4 um fato, caso ninguém procure agradar a si préprio mais do que lhe é direito; ao 76 contratio disso, se todos tivermos um s6 ¢ 0 mesmo alvo, a saber: estimularmo-nos uns aos outros ao amor, nao permiti- remos que a emulagio floresga, exceto no campo das boas obras. Certamente que 0 menosprezo direcionado a algum irmao, a rabugice, a inveja, a supervalorizagao de nés mes- mos, bem como outros impulsos nocivos, claramente demons- tram, ou que o nosso amor é gélido ou que realmente nao existe.””? “Sabemos nao haver nenhuma de nossas obras que, & vis- ta de Deus, seja considerada perfeita ou pura e sem qualquer macula de pecado,” “Sempre que se enaltece o favor divino para com os ju- deus, em conseqiiéncia de haver ele amado a seus pais, este principio deve perenemente ser mantido em mente, a saber, que com isso se invalidam todos os méritos humanos.”4 C CANON “Aquelas [epistolas] que o Senhor quis que fossem indis- pensdveis a sua Igreja, ele as consagrou por sua providéncia para que fossem perenemente lembradas. Saibamos, pois, que © que foi deixado nos é suficiente, e que sua insignificincia nao é acidental; senao que o canon da Escritura, 0 qual se encontra em nosso poder, foi mantido sob controle através do grandioso conselho de Deus.”! CARNE (v. tb. DESEJOS CARNAIS; PECADO; DEPRAVAGAO TOTAL) “O Senhor prontamente e ao mesmo tempo encoraja nossa fé e subjuga nossa carne. Ele deseja que nossa fé permanega serena € repouse como se estivesse em seguranga num sdlido abrigo. Ele exercita nossa carne com varias provas a fim de que ela no se precipite na indoléncia.”” “Os desejos que agitam o homem carnal sao como ondas impetuosas que se chocam umas contra as outras, atremes- sando o homem de um lado para outro, de modo tal que ele muda e vacila a todo instante. Todos quantos se entregam aos desejos carnais experimentam tal desassossego, porque no existe estabilidade senao no temor de Deus.”? CASTIGO (v. tb. pisciPLina) “Os eleitos, tanto quanto os réprobos, esto sujeitos aos castigos tempordrios que pertencem somente a carne. A di- ferenga entre os dois casos est4 unicamente no resultado; pois Deus converte aquilo que em si mesmo é um emblema de sua ira em meios de salvacao de seus préprios filhos.”4 CATOLICA “Ademais, essa companhia é chamada catélica, ou univer- sal, porque nao ha apenas dois ou trés na igreja, mas, ao con- trdtio, todos os eleitos de Deus esto de tal forma unidos ¢ ligados em Cristo que, como dependem de uma sé Cabega, também sao incorporados num sé corpo, entrelacados como verdadeiros membros. E realmente formam muito bem um s6, ¢ assim, com uma mesma fé, esperanca e amor, eles vivem do mesmo Espirito de Deus, ¢ s4o chamados, nao somente para [receberem] uma mesma heranca, mas também para [desfrutarem] uma mesma comunh4o com Deus e com Jesus Cristo.”> CIENCIA “O conhecimento de todas as ciéncias ndo passa de fuma- ¢a quando separado da ciéncia celestial de Cristo.” COBIGA (v. th, AMBIGAO; INVEJA) “Nossa cobica é um abismo insacidvel, a menos que seja ela restringida; e a melhor forma de manté-la sob controle é nfo desejarmos nada além do necessdrio imposto pela pre- sente vida; pois a razdo pela qual nao aceitamos esse limite est4 no fato de nossa ansiedade abarcar mil e uma existén- cias, as quais debalde sonhamos sé para nés.”” COMUNHAO (v. th. UNIAO) “E indubitdvel que a ndés compete cultivar a unidade da forma a mais séria, porque Satands est4 bem alerta, seja para arrebatar-nos da Igreja, ou para desacostumat-nos dela de maneira furtiva. Esta unidade serd um fato, caso ninguém procure agradar a si préprio mais do que lhe é direito; ao contrario disso, se todos tivermos um sé e o mesmo alvo, a saber: estimularmo-nos uns aos outros ao amor, nao permiti- remos que a emulagao floresga, exceto no campo das boas obras. Certamente que o menosprezo direcionado a algum irmao, a rabugice, a inveja, a supervalorizagdo de nés mes- mos, bem como outros impulsos nocivos, claramente demons- tram, ou que 0 nosso amor é gélido ou que realmente nao existe.”* 79 “Unicamente aquele que recebeu o verdadeiro conheci- mento de Deus por meio da palavra do evangelho pode che- gar a ter comunhao com Cristo”,? conclui Calvino. CONFIANGA (v. tb. ESPERANGA; FE) “Nao hé nenhuma paz genufna e sdlida que seja desfruta- da neste mundo senfo na atitude repousante nas promessas de Deus. Os que nao langam mao delas podem ser bem- sucedidos por algum tempo em abafar ou expulsar os terro- res da consciéncia, mas sempre deixarao de desfrutar do genuino conforto intimo.”!” “Nada é mais incongruente com a vera e sincera oracdo a Deus do que oscilar e pasmar como fazem os pagios, em busca de algum socorro no mundo, ¢ ao mesmo tempo nos esque- cendo de Deus ou nfo recorrendo diretamente & sua guarda e protecao.”"! “Sempre que nossas mentes se agitam e caem em perple- xidade, devemos trazer 4 meméria a seguinte verdade: sejam quais forem os perigos e apreensdes que porventura nos amea- cem, a seguranca da Igreja que Deus estabeleceu, por mais dolorosamente abalada ela seja, por mais poderosamente as- saltada, jamais poderd ser demasiadamente enfraquecida e envolvida em ruina.””? Calvino observa que “as pessoas erram clamorosamente na interpretacdo da Escritura, deixando inteiramente suspensa a aplicagao de tudo quanto se diz acerca do poder de Deus ¢ em nfo descansar certas de que ele ser4 também seu Pai, uma vez que fazem parte de seu rebanho e sao participes de sua adogao”.'* Descrevendo a confianga de Davi, a sua fé em meio a te- mores, Calvino diz: “a verdadeira prova de fé consiste nisto: 80 que, quando sentimos as solicitagdes do medo natural, pode- mos [resistir a elas] e impedi-las de alcancarem uma indevida ascendéncia. Medo e¢ esperanga podem parecer sensagées opostas e incompativeis, contudo é provado pela observacio que esta nunca domina completamente, a ndo ser quando exista af alguma medida daquele. Num estado de tranqiiili- dade mental nao hd qualquer espaco para o exercfcio da es- peranga”.'4 “Deus ndo frustra a esperanga que ele mesmo produz em nossas mentes através de sua Palavra, e [...] ndo costuma ser mais liberal em prometer do que em ser fiel na concretizagao do que prometeu.”'° “Como o poder de Deus ¢ infinito, entéo concluem que ele serd invencfvel contra todos 0$ assaltos, os ultrajes, as maqui- nagGes e as forgas do mundo inteiro. Alids, a menos que atri- buamos a Deus tal honra, nossa coragem ird a pique constantemente. Portanto, aprendamos, quando surgirem os perigos, a nao medir a assisténcia divina pelo padrao huma- no, mas desdenhemos de todo e qualquer terror que porven- tura se ponha em nosso caminho, visto que todas as tentativas que os homens engendram contra Deus so de pouca ou nenhuma eficdcia.”' CONFISSAO “Quanto & primeira espécie, embora a Escritura nao de- signe ninguém em especial sobre quem devéssemos aliviar as nossas culpas e nos deixe em liberdade para escolhermos en- tre os crentes quem melhor nos parega para a ele nos confes- sarmos, todavia, como os pastores devem estar acima dos demais para o exercicio dessa fung4o, melhor ser4 que os busquemos para isso. Digo que eles sao mais idéneos que os demais crentes porque, por dever de oficio, s4o constituidos RL por Deus para nos ensinar a vencer o pecado e a certificar- nos da bondade de Deus, ¢ assim nos consolar e fortalecer. Portanto, que cada crente, quando se sentir em tal perplexi- dade de consciéncia que nao possa se sair bem sem a ajuda de outrem, tenha isso em consideracdo e nao negligencie o remédio que the é oferecido por Deus. O caso é que, dessa forma, ele se anima e se livra do escriipulo, confessa-se parti- cularmente ao seu pastor e dele recebe consolag4o. Pois ¢ seu oficio consolar e fortalecer o seu rebanho pela doutrina do Evangelho, tanto em particular como em publico. Entre- tanto, é sempre necessdrio usar os meios poss{veis para que as pessoas nao fiquem presas e nao sejam colocadas sob ne- nhum jugo quanto as coisas sobre as quais Deus as deixa em liberdade.”!” CONHECIMENTO (v. tb. FE) “Ponderem, por uns poucos instantes, aqueles a quem isto se afigura dspero, quo tolerdvel lhes seja a impertinéncia, quando, porque lhes excede & compreensio, rejeitam maté- ria atestada de claros testemunhos da Escritura e inquinam de vicio 0 serem a publico trazidas cousas que, a ndo ser que houvesse reconhecido serem proveitosas de conhecer-se, Deus jamais haveria ordenado fossem ensinadas através de Seus Profetas e Apdstolos. Ora, nosso saber nao deve ser outra cousa senao abracar com branda docilidade e, certamente, sem restricdo, tudo quanto foi ensinado nas Sagradas Es- crituras.”'® E “impossfvel que alguém invoque a Deus sem um prévio conhecimento dele. [...] A menos que sejamos dirigidos pelo conhecimento de Deus, é impossivel que sinceramente pro- fessemos a verdadcira religiao”.' 82 “O conhecimento dos santos nunca é suficientemente puro, sendo que alguns problemas turvam seus olhos, ¢ a obscuridade os impede a que vejam com clareza.”” “Enquanto o Senhor nao os abrir, os alhos de nosso co- racio sao cegos.””! “Para que o set humano se aproxime de Deus, deve antes elevar-se acima de si préprio e do mundo. Eis a raz4o por que os sofistas recusam admitir que podemos sentir-nos se- guros na gtaca de Deus.”” “Por essa causa, alguns dos filésofos antigos chamaram, nao sem raz40, ao homem, microcosmos, que quer dizer mundo em miniatura; porque ele é uma rara ¢ admirdvel amostra do grande poder, bondade e sabedoria de Deus, e contém em si milagres suficientes pata ocupar nosso enten- dimento se nao desdenharmos considerd-los.”* “A verdade é aquele puro e perfeito conhecimento de Deus, 0 qual nos livra de todo e qualquer erro e falsidade. Devemos considerar que nao hé nada mais miserdvel do que vagar ao longo de toda a nossa vida como ovelhas perdidas.”™ “O nosso presente conhecimento de Deus é deveras obs- curo e débil em comparacéo com a gloriosa viséo que tere- mos de Cristo em seu ultimo aparecimento.”” “Até que sejamos iluminados no genuino conhecimento do Deus tinico, haveremos de sempre servir aos fdolos, com cuja dissimulagao podemos encobrir nossa falsa religido. O legitimo culto divino, portanto, deve ser precedido por um sélido conhecimento.””* Calvino entendia que o homem encontra a sua verdadei- ra esséncia no conhecimento de Deus. No entanto, o conhe- cimento de Deus est4 associado & verdadeira piedade, que Calvino define como “reveréncia associada com o amor de 83 Deus que o conhecimento de Seus beneficios nos faculta”.”” Ele, entao, pergunta: “que ajuda, afinal, conhecer a um Deus com Quem nada tenhamos a ver?”.”* A sua resposta é sim- ples: o conhecimento de Deus deve valer-nos, “primeiro, que nos induza ao temor e & reveréncia; em segundo lugar, ten- do-o por guia e mestre, que aprendamos a dEle buscar todo bem e, em recebendo-o, a Ele credité-lo”.”” Isso porque o conhecimento de Deus nao tem um fim em si mesmo: “o conhecimento de Deus nao est4 posto em fria especulacio, mas Lhe traz consigo 0 culto”.*” O conhecimento verdadei- ro do verdadeiro Deus tem também um sentido profilatico, inibe o pecado: “refreia-se do pecado nao pelo sé temor do castigo, mas porque ama e reverencia a Deus como Pai, hon- ra-O e cultua-O como Senhor c, mesmo que infernos ne- nhuns houvesse, ainda assim Lhe treme & sé ofensa”.?! Resume: “o conhecimento de Deus ¢ a genuina vida da alma”. Se o conhecimento de Deus nos conduz ao culto, nao podemos adorar e servir a um Deus desconhecido: “a menos que haja conhecimento, nao é a Deus a quem adoramos, mas a um fantasma ou idolo. Todas as boas intengdes, como sio chamadas, sao golpeadas por esta sentenga, como por um raio; disto ndés aprendemos que os homens nada podem fa- zer sendo errar, quando sao guiados por sua prépria opiniao sem a palavra ou mandamento de Deus”. “Se desejamos que nossa religiao seja aprovada por Deus, ela tem que des- cansar no conhecimento obtido de Sua palavra.”* “E propriedade da fé por diante de nés aquele conheci- mento de Deus nao confuso, mas distinto, o qual nao nos deixa cm suspenso ¢ A deriva, como o fazem as supetstigdes € seus adeptos, os quais, bem o sabemos, esto sempre introdu- zindo alguma nova divindade, todas falsas e intermindveis.”>° BA “Os bens terrenos, 4 luz de nossa natural perversidade, tendem a ofuscar nossos olhos ¢ a levar-nos ao esquecimento de Deus, e portanto devemos ponderar, atentando-nos es- pecialmente para esta doutrina: tudo quanto possu{mos, por mais que pareca digno da maior estima, nao devemos permi- tir que obscureca o conhecimento do poder e da graga de Deus,”° “O conhecimento de Deus é a genufna vida da alma.”*” “O homem, com toda a sua astticia, é tao estipido para entender por si mesmo os mistérios de Deus, como um asno é incapaz de entender a harmonia musical.” “$6 conhecemos verdadeiramente a Deus em nossa alma quando nos rendemos a Ele, quando nos submetemos 4 Sua autoridade e quando os Seus preceitos ¢ mandamentos re- gulam todos os pormenores da nossa vida.”® “Conhecer as ordens de Deus é graca.”* “Unicamente aquele que recebeu 0 verdadeiro conheci- mento de Deus por meio da palavra do evangelho pode che- gar a ter comunhdo com Cristo.”4" “Deve observar-se que somos convidados ao conhecimento de Deus, nao aquele que, contente com va especulagao, sim- plesmente voluteia no cérebro, mas Aquele que, se é de nds retamente percebido e finca pé no coragao, haverd de ser sdlido ¢ frutuoso,”” “Se o caminho para Deus sé é aberto para a fé, segue-se que todos quantos se encontram fora da fé nado podem agra- dar a Deus.”#” “BE evidente, & luz desse fato, que os homens cultuarao a Deus inutilmente, se porventura nao observarem o modo cofreto; e que todas as religi6es que nao contém o genuino 85 conhecimento de Deus sao nao sé fiteis, mas também perni- ciosas, visto que todas aquelas que nao sabem distinguir Deus dos idolos esto sendo impedidas de se aproximarem dele. Nao pode haver religido alguma onde nao reine a verdade. Se um genuino conhecimento de Deus habita os nossos co- rages, seguir-se-4 inevitavelmente que seremos conduzidos a reverencid-lo e a temé-lo. Nao € possfvel ter genufno co- nhecimento de Deus exceto pelo prisma de sua majestade. E desse fator que nasce o desejo de servi-lo, e daqui sucede que toda a vida é direcionada para ele como seu supremo alvo.”“4 “Jamais 0 poderé alguém conhecer devidamente que nao apreenda ao mesmo tempo a santificacdo do Espirito. [...] A f€ consiste no conhecimento de Cristo. E Cristo nao pode ser conhecido sendo em conjungao com a santificagao de Seu Espirito. Segue-se, conseqiientemente, que de modo nenhum a fé se deve separar do afeto piedoso.”” “Nao podemos compreender plenamente a Deus em toda a sua grandeza, mas [...] hd certos limites dentro dos quais os homens devem manter-se, embora Deus acomode & nossa tacanha capacidade toda declaracgao que ele faz de si mesmo. Portanto, somente os estultos € que buscam conhecer a es- séncia de Deus.” “As cousas que o Senhor deixou recénditas em secreto nao perscrutemos, as que pds a descoberto nao negligencicmos, para que nao sejamos condenados ou de excessiva curiosida- de, de uma parte, ou de ingratidao, de outra.”” “Tudo o mais que pesa sobre nés e que devemos buscar é nada sabermos sen4o o que o Senhor quis revelar a sua igre- ja. Eis o limite de nosso conhecimento.”* “O conhecimento de todas as ciéncias nao passa de fuma- ga quando separado da ciéncia celestial de Cristo.” BG CONSELHO “Nao hd nada pior no conselho fraternal do que um espi- rito azedo e arrogante, pois ele nos leva a desdenhar e a sen- tir enfado por aqueles que se acham em erro, € nos leva a ameagé-los com o ridfculo em vez de corrigi-los. A aspereza também, seja em palavras, seja em expressio, priva nosso con- selho de seus efeitos. Ainda quando excedamos em esp{rito humanitdrio e em cortesia, jamais seremos as pessoas certas para ministrar conselhos, a nao ser que cultivemos muita sa- bedoria e adquiramos muita experiéncia.”®? COOPERAGAO (v. tb. UNIAO) “A ajuda muitua, que as diferentes partes do corpo ofere- cem umas As outras, nao é considerada pela lei da natureza como um favor, mas, sim, como algo Idgico e normal, cuja negativa seria cruel.”%! CORACAO “Deve observar-se que somos convidados ao conhecimento de Deus, nao aquele que, contente com va especulago, sim- plesmente voluteia no cérebro, mas aquele que, se é de nds retamente percebido e finca pé no coragao, haverd de ser sdlido e frutuoso.”* “O evangelho nao é uma doutrina da fala, mas de vida. Nao se pode assimilé-lo por meio da razao e da meméria, tinica e exclusivamente, pois sé se chega a compreendé-lo totalmente quando Ele possui toda a alma e penetra no mais profundo do coragao. [...] Os cristéos deveriam detestar aqueles que tém o evangelho nos ldbios, porém nao em seus coragées.”*> “Pode acontecer que o homem desempenhe seus deveres de acordo com suas melhores habilidades, porém, se seu co- rag4o no esté naquilo que faz, lhe falta muito para chegar & sua meta.”*4 CRIACAO “Existe diante de nossos olhos, em toda a ordem da natu- reza, os mais ricos elementos a manifestarem a gldria de Deus, mas, visto que somos inquestionavelmente mais poderosamen- te afetados com o que nés mesmos experimentamos, Davi, neste salmo [SI 8.1], com grande propriedade, expressamente celebra o favor especial que Deus manifesta no interesse da humanidade. Posto que este, de todos os objetos que se acham expostos 4 nossa contemplagao, ¢ 0 mais nitido espelho no qual podemos contemplar sua gléria.”* “Nas coisas que ele criou, Deus, portanto, mantém diante de nés nitido espelho de sua esplendorosa sabedoria. Em re- sultado, qualquer individuo que desfrute de pelo menos uma mintiscula fagulha de bom senso, e atenta para a terra e ou- tras obras divinas, se vé aturdido por candente admiracao por Deus. Se os homens chegassem a um genuino conheci- mento de Deus, pela observacdo de suas obras, certamente que viriam a conhecer a Deus de uma forma sabia, ou da- quela forma de adquirir sabedoria que lhes é natural e apro- priada.”*6 “O mundo foi originalmente criado para este propdsito, que todas as partes dele se destinem A felicidade do homem como seu grande objeto.”*” A fé é que deve dirigir a nossa compreensio a respeito da criagéo. Calvino conclui: “é tao-somente pela fé que chega- mos a entender que o mundo foi criado por Deus”.** 88 “Em toda a arquitetura de seu universo, Deus nos impri- miu uma clara evidéncia de sua eterna sabedoria, munifi- céncia e poder; e embora em sua prépria natureza nos seja ele invisfvel, em certa medida se nos faz visivel em suas obras. O mundo, portanto, é com razéo chamado o espelho da di- vindade, nao porque haja nele suficiente clareza para que os homens alcancem perfeito conhecimento de Deus, sé pela contemplacao do mundo, mas porque ele se faz conhecer aos incrédulos de tal maneira que tira deles qualquer chance de justificarem sua ignor4ncia. [...] O mundo foi fundado com esse propésito, a saber: para que servisse de palco a glé- ria divina.”*? CRISTIANISMO “A aqueles que pensam que os fildsofos tém um sistema melhor de conduta pego que nos mostrem um plano mais excelente que obedecer e seguir a Cristo.” CRUZ (v. tb. REDENGAO; SACRIFICIO) “Se Paulo tivesse usado a acuidade de um fildsofo e a lin- guagem pomposa em seu trato com os corfntios, o poder da Cruz de Cristo, no qual a salvacao dos homens consiste, teria sido sepultado, porque ele nao poderia nos alcangar dessa manceira.”*! “A cruz de Cristo triunfa sobre o diabo, a carne, 0 pecado ea maldade nos corag6es dos crentes somente quando estes ele- vam seus olhos para contemplar o poder de sua ressurreicio.”” “Com toda verdade se pode dizer que [Cristo] nao so- mente passou toda sua vida em perpétua cruz e aflicéo, mas que toda ela nao foi sendo uma espécie de cruz continua.” “Toda a sua vida [de Cristo] foi uma cruz perpétua.”™ CULTO (v. tb. ADORAGAO) Comentando Deuteronémio 12.32, “Apliquem-se a fa- zer tudo o que eu lhes ordeno; nao acrescentem nem tirem coisa alguma”, Calvino diz: “nesta pequena cldusula ele ensi- na que nao hd outro servigo considerado licito por Deus a nao ser aquele que Ele deu Sua aprovagdo na Sua palavra, e que a obediéncia é a mae da piedade; é como se ele tivesse dito que todos os modos de devogio sao absurdos e infetados com superstigao, quando nfo sao dirigidos por esta regra’.© Em outro lugar insiste na necessidade de sermos obedientes a Deus se quisermos apresentar-lhe um culto agradavel: “Deus sé é corretamente servido quando sua lei for obedecida. Nao se deixa a cada um a liberdade de codificar um sistema de religiao ao sabor de sua prdpria inclinacéo, sendo que o pa- drao de piedade deve ser tomado da Palavra de Deus”. “Portanto, em nosso curso de acao, deve-se-nos ter em mira esta vontade de Deus que Ele declara em Sua Palavra. Deus requer de nés unicamente isto: o que Ele preceitua. Se in- tentamos algo contra o Seu preceito, obediéncia nao é; pelo contrdrio, contumdcia e transgressio.”” Comentando o segundo mandamento, Calvino diz: “por- tanto, o fim deste mandamento é que Deus nao quer que Seu legitimo culto seja profanado mediante ritos supersticio- sos. Pelo que, em sintese, Ele nos recambia e afasta totalmen- te das insignificantes observancias materiais que nossa mente bronca, em razao de sua crassitude, costuma inventar quan- do concebe a Deus. E, dat, nos instrui a Seu legitimo culto, isto é, ao culto espiritual e estabelecido por Si Préprio. Assi- nala, ademais, 0 que é o mais grosseiro defeito nesta trans- gressio: a idolatria exterior”. 90 “O genuino culto de Deus nao pode ser preservado em toda sua integridade enquanto a vil profanacao de sua glé- ria, que é a insepardvel acompanhante da superstigao, nao for completamente erradicada.”® “Visto, porém, que a invocagao a Deus é a parte principal do culto divino, as vezes ela é expressa como sendo toda a religiao ou todo o culto devido a Deus,””° “Todas as formas de culto sio defectivas e profanas, a menos que Cristo as purifique pela aspersdo de seu sangue.””! “Todo o culto prescrito pela lei nao era nada mais do que um quadro que prefigurava o espiritual em Cristo.””” “Sao falsas e esptirias todas as formas de culto que os ho- mens permitem a si mesmos inventar, movidos por sua inge- nuidade, mas que sao contrdrias ao mandamento de Deus. Quando Deus estabelece que tudo deve ser feito em conso- nancia com sua norma, nao nos é permitido fazer qualquer coisa diferente. Estas duas cldusulas significam a mesma coi- sa: Otha que facas tudo segundo 0 modelo; e: Vé que nao fagas nada além do modelo (Ex 25.40]. E assim, ao enfatizar a nor- ma que estabelecera, Deus nos profbe afastar-nos dela, mes- mo que seja um minimo. Por essa raz4o, todas as formas de culto produzidas pelos homens caem por terra, bem como aquelas coisas a que chamam sacramentos, e contudo nao tém sua origem em Deus.”” “Até que sejamos iluminados no genuino conhecimento do Deus tinico, haveremos de sempre servir aos fdolos, com cuja dissimulagio podemos encobrir nossa falsa religiao. O legftimo culto divino, portanto, deve ser precedido por um sélido conhecimento.””* “Todos os idolos devem transformar-se em nulidade, visto que nfo representam nada no seio dos piedosos. Aqueles que nao cultuam o verdadeiro Deus, por mais que multipliquem as modalidades de seus cultos, por mais que os ataviem com toda sorte de ceriménias, continuarao sem Deus! Porquanto adoram o que nfo conhecem,””> “Sabemos, alids, que todos os homens possuem algum senso de religido impresso em seus coragées, de modo que ninguém ousa desvencilhar-se publica ou totalmente de seu culto.””* Calvino, fazendo alusio ao encontro do Senhor com a mulher samaritana, conclui que “jamais culto algum haja agra- dado a Deus a nao ser aquele que contemplasse a Cristo”.” “Pudéssemos imaginar os homens vindo ao mundo no pleno exercicio da raz4o e jufzo, seu primeiro ato de sacrifi- cio espiritual seria 0 de agao de gracas.””* “Os homens se dispéem naturalmente & exibi¢ao exterior da religiio, e, medindo Deus segundo a propria medida de- les, imaginam que alguma atengao para as ceriménias consti- tui a suma de seu dever.”” “Deus sé aceita a aproximagao daqueles que 0 buscam com sincero coragio e de maneira correta.”®° “Toda verda- deira religido estard arruinada, a menos que Deus seja 0 tini- co invocado.”*! “Hf inerentemente em todos os homens uma forte e in- delével convicgao de que devem cultuar a Deus. Indispon- do-se em ador4-lo de maneira pura e espiritual, torna-se compulsério que inventem como substitutivo alguma apa- réncia quimérica; e por mais claramente sejam persuadidos da vaidade de tal conduta, persistem até ao fim, porquanto se esquivam da peremptéria rentincia do servigo divino. Con- seqiientemente, os homens se encontrarao sempre devota- dos a ceriménias até que sejam trazidos ao conhecimento daquilo que constitui a religiao verdadeira e aceitdvel.”” 92

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