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A CRIANCA SURDA LINGUAGEM E COGNICAO NUMA PERSPECTIVA SOCIOINTERACIONISTA ii CapftuLo 1 DEFINICOES E CONCEITOS LINGUAGEM, LINGUA E FALA Os termos linguagem, lingua, fala e signo sao utilizados por diversos autores com diferentes sentidos. Na area da surdez, em alguns contextos, estes termos ganham conotagées diferentes das utilizadas usualmente em outras dreas de conhecimento. E impres- cindivel, para uma boa compreensao das idéias que serao expostas neste livro, a elaboracgao de uma revisao conceitual. Os conceitos linguagem, lingua, fala e signo lingiiistico foram primeiramente sistematizados por Saussure, em 1916. Saussure é considerado o pai da Lingiiistica. Foi este autor que sistematizou os estudos lingtiisticos, e com base nele a Lingiiistica passou a ser reconhecida como ciéncia. Posteriormente, diversos autores presta- ram novas contribuigées. Saussure (1991) diz que a linguagem é formada pela lingua e fala. A lingua é tida como um sistema de regras abstratas composto por elementos significativos inter-relacionados. Este sistema é auto- suficiente, 6 um todo em si, e seus elementos devem ser estudados por suas oposig6es. Assim, temos que a palavra menina se opde a palavra menino devido a terminagao a, que é uma marca de género. A lingua, para Saussure, é 0 aspecto social* da linguagem, ja que é compartilhada por todos os falantes de uma comunidade 3. O termo social utilizado por Saussure se refere apenas a condigéo de a lingua ser compartilhada por toda a comunidade lingiiistica, nao tendo o indi- viduo condigdes de modificd-la. 17 A _CRIANCA SURDA lingiiistica e foi considerada pelo autor o objeto de estudos da Linguistica. A fala, na visado de Saussure, é 0 aspecto individual da lingua- gem, sao as caracteristicas pessoais que os falantes imprimem na sua linguagem. Saussure nao considerou a fala como o objeto de estudos da Lingiiistica e por isso nao a enfatizou em seus estudos. Anogao de linguagem e fala para Vygotsky (1989a, 1989b) difere bastante das nogGes de Saussure. Fazer uma andlise conceitual dos termos utilizados por Vygotsky nao é uma tarefa facil. Primeiro por- que as tradugGes da obra do autor do russo para 0 inglés utilizam 0 termo language tanto para linguagem quanto para lingua, ja que na lingua inglesa nao ha diferenciagao entre estes termos. Além dessa indiferenciagéo houve também uma grave confusao de termos no titulo da obra Thought and Language, sendo corrigida posteriormen- te no capitulo correspondente, inserido na coletanea de sua obra, para Thinking and Speech. As tradug6es para o portugués sao retra- dugGes das edigdes americanas, por isso, nestas, 0 erro também se manteve. Em muitas situag6es é dificil analisar 0 conceito — lingua, linguagem ou fala - que o autor emprega para esses termos. Em segundo lugar, esta andlise conceitual é dificil pelo fato de o pré- prio autor nao ter explicitado claramente os conceitos utilizados, como fez Saussure e Bakhtin. Uma importante nogao de Vygotsky € o fato de perceber a lin- guagem nao apenas como uma forma de comunicagao, mas tam- bém como uma fungao reguladora do pensamento. O conceito de fala se refere a linguagem em agao, a produgao lingiifstica do falante no discurso. Vygotsky cita trés tipos de fala: social, egocéntrica ¢ interior. Provavelmente, 0 autor utiliza o termo fala e nao linguagem, pois se refere a produgao do individuo. A fala tem uma conotagao de acao e envolve o contexto. A distingao entre linguagem e fala nao é muito clara, ao menos nas tradug6es. O importante é ter a nogao de que o termo fala nao se refere ao ato motor de articulagdo dos fonemas e sim a produgao do falante que deve ser sempre analisada na relagao de interagao, no didlogo. O termo linguagem tem um sentido bastante amplo, lin- guagem é tudo que envolve significagao, que tem um valor semidtico e nao se restringe apenas a uma forma de comunicagao. E pela 18 DEFINICOES E CONCEITOS linguagem que se constitui o pensamento do individuo. Assim, a lin- guagem esta sempre presente no sujeito, mesmo nos momentos em que este nao estd-se comunicando com outras pessoas. A lingua- gem constitui 0 sujeito, a forma como este recorta e percebe o mundo ea si proprio. Bakhtin (1990) considera a significagao um aspecto bastante importante da lingua, ressaltando que a enunciagao s6 ganha sen- tido no contexto social na qual estd inserida. O autor percebe a lingua numa situagao de didlogo constante. A corrente comunicativa é ininterrupta, toda enunciagao estd relacionada com as enuncia- ces anteriores e posteriores a ela. Bakhtin critica a visdo de lingua utilizada pela corrente ideolé- gico-lingiifstica Objetivismo Abstrato, corrente esta representada principalmente por Saussure. O autor diz que esta corrente se preo- cupou apenas com 0 aspecto lingiiistico normativo, que é sempre igual e comum a todos os falantes, mas nao é suficiente para 0 didlogo. Bakhtin acrescenta o aspecto contextual e social* para 0 estudo do enunciado. O autor diz que o falante de uma lingua nao a reconhece como um sistema de normas abstratas e sim como um conjunto de signi- ficagdes dadas em um determinado contexto. A lingua, como um sistema de formas que remetem a uma norma, nao passa de uma abstragao, que sé pode ser de- monstrada no plano teérico e pratico do ponto de vista do deciframento de uma lingua morta e de seu ensino. (p. 108) Para o falante, a lingua nao é representada pelos aspectos normativos. Estes s6 sao percebidos em situagGes de conflito ou du- vida. A lingua, as significagdes, na concepcao de Bakhtin, que con- verge com a idéia de Vygotsky, constitui a consciéncia do individuo. 4. O termo social utilizado por Bakhtin se refere a realidade politico- econdmica e cutural na qual os membros da sociedade estao inseridos, ou seja, todas as relacdes existentes entre os participantes da sociedade. 19 A_CRIANCA SURDA Nao é a atividade mental que organiza a expressdo, mas ao contrario é a expresso que organiza a atividade mental, que a modela e determina sua orientagao. (p. 112) A lingua, para o autor, é 0 elo de ligagao entre 0 psiquismo e a ideologia, que formam uma relacao dialética indissoltivel. A cons- ciéncia necessita da ideologia para desenvolver-se; por outro lado, a ideologia é criada com base nas relagées entre os individuos. A lingua (0 didlogo), é o instrumento que permite ao individuo rece- ber a ideologia de sua comunidade e também lhe permite atuar nessa comunidade interagindo e expondo suas idéias. Apos fazer a critica ao Objetivismo Abstrato e também a outra corrente ideolégico-lingiiistica, o Subjetivismo Idealista, Bakhtin formula seu ponto de vista em relacao a lingua e define cinco pro- posig6es: 1. Osistema estdvel normativo é apenas uma abstragao cienti- fica. Esta nao da conta da realidade concreta da lingua. 2. A lingua constitui um processo de evolugao ininterrupto que se realiza pela interagao dos locutores. 3. As leis da evolugao lingiiistica nao sao leis da psicologia individual, sao leis sociolégicas. 4. Acriatividade da lingua... nado pode ser compreendida in- dependentemente dos contetidos e dos valores ideoldégicos que a ela se ligam. 5. Aestrutura da enunciacao é uma estrutura puramente so- cial. A enunciac4o como tal sé se torna efetiva entre os fa- lantes. O ato de fala individual (no sentido estrito do termo individual) é uma contradictio in adjecto. A distingao entre social e individual muda de enfoque na teoria de Bakhtin, j4 que o individuo constitui-se socialmente e influencia o meio social por meio de sua fala, suas interagdes. Na teoria de Bakhtin nao se faz o recorte proposto por Saussure que separa lin- gua e fala, social e individual. 20 DEFINICOES E CONCEITOS Para Bakhtin a fala, as condigdes de comunicagao e as es- truturas sociais estéo também indissoluvelmente ligadas. Tanto 0 contetido a exprimir como sua objetivagao externa sao criados a partir de um tinico e mesmo material - a expressao semistica. (Freitas; 1994, p. 138) Existem muitas semelhangas entre as nogoes de linguagem para Vygotsky e lingua para Bakhtin. Freitas utiliza o termo linguagem quando explicita as teorias de ambos autores. E realmente provavel que os autores estejam referindo-se ao mes- mo conceito. No entanto, sera utilizado neste livro o termo lingua, seguindo a terminologia utilizada no livro de Bakhtin Marxismo e filosofia da linguagem, para significar um sistema semistico, criado e produzido no contexto social, dialégico, em contraposi¢ao a ou- tros cédigos que também podem ser considerados uma forma de linguagem, a linguagem artistica, musical e outras que nado com- portam uma lingua. No decorrer desta obra, quando for utilizado 0 termo lingua no sentido que Saussure atribui, isto é, um sistema de regras abstratas compostas por elementos significativos inter-relacionados, o leitor verd escrito lingua, e para representar lingua no sentido de Bakhtin, ou seja, um sistema semi6tico, criado e produzido no contexto social e dialégico, servindo como elo de ligacao entre psiquismo e ideolo- gia, ser utilizado o termo lingua,. O termo linguagem se referira a qualquer tipo de linguagem, aquelas que utilizam uma lingua ou nao, como a linguagem musical. Nos termos linguagem e lingua, estd incluida também sua funcao de constituigao do pensamento, da consciéncia, definidos por Vygotsky e Bakhtin, que no termo lingua, esta excluido. O termo fala sera utilizado para referir-se 4 produgao de linguagem pelo falante nos momentos de didlogo e também nos didlogos egocéntrico e interior, ou seja, fala egocéntrica e fala interior. SIGNO. Saussure definiu 0 conceito de signo lingiiistico. O signo para o autor é composto por duas partes, 0 significado, que é 0 conceito, e o significante, que é a imagem actistica. 21 A_CRIANCA SURDA Osigno lingiiistico segue alguns principios: a arbitrariedade, a linearidade, a mutabilidade e a imutabilidade. A arbitrariedade se refere ao fato de a relagdo entre os compo- nentes do signo - significado e significante — ser arbitraria. Nao ha uma relacao a priori entre estes elementos. A linearidade se refere ao significante, 4 imagem actistica, que se desenvolve no tempo, sendo portanto linear. A mutabilidade se refere ao fato de as linguas, salvo as linguas mortas, estarem em processo de constante mudanga. O uso da lin- gua inevitavelmente a leva a sofrer mudangas continuas. Estas mudangas nao se referem somente ao significante. Qualquer mu- danga leva sempre a um deslocamento da relacao entre significado e significante. O conceito de mutabilidade estd ligado 4 evolucgado da lingua como um fato social, transcendendo ao individuo. Estas mudangas se dao no tempo. Uma lingua é radicalmente incapaz de se defender dos fa- tores que deslocam, de minuto a minuto, a relacgao entre significado e significante. E uma das conseqiiéncias da arbi- trariedade do signo. (Saussure; 1991, p. 90) A imutabilidade refere-se ao fato de a lingua ser imposta aos membros da comunidade, sem que estes possam, individualmente, modificd-la. Nem 0 individuo nem a massa falante pode escolher qual significante deseja utilizar para expressar um conceito. A rela- ¢do entre significado e significante é estdvel. Saussure faz quatro consideragdes que determinam a imutabilidade do signo: 1. Cardter arbitrario do signo — para modificar uma norma ou até um simbolo € necessdrio que existam argumentos justifi- cando esta modificagao. No caso da lingua nao existem ar- gumentos, jd que a relagao entre os elementos do signo é arbitraria, nao é baseada em nenhum critério. 2. Amultidao de signos necessarios para constituir uma lingua. 3. Ocardter demasiado complexo do sistema. 4. Aresisténcia da inércia coletiva a toda renovagao lingiiistica. 22 DEFINICOES E CONCEITOS Vygotsky, contrariando 0 conceito de signo de Saussure, diz que este nao é imutavel. A relagao entre significado e significante nao é estdvel, estdtica, tal como Saussure definiu. O significado difere no decorrer do desenvolvimento do individuo. Uma nogao fundamental da teoria de Vygotsky é a evolucao do significado. A aquisigao da linguagem para este autor nao termina quando a crianga pode dominar as estruturas lingitisticas, j4 que os significados continuam evoluindo. Por exemplo, a palavra ir- mao para uma crianga pode representar seu prdprio irmao, mais tarde esta crianga poderd utilizar esta palavra de forma mais am- pla, representando as pessoas que sao filhas dos mesmos pais. Vygotsky introduz, além do significado, a nogao de sentido. O sentido é um aspecto particular do signo por ser formado com base nas relagées interpessoais vivenciadas pelo individuo e da sua his- téria. O sentido depende da histéria do individuo e do contexto no qual o didlogo ocorre, ele nao preexiste. O significado entao é uma parte mais estavel do signo. Os falan- tes podem-se comunicar por compartilharem significados. No en- tanto, o sentido atribuido as palavras séo sempre inéditos, j4 que este é particular e emerge na interagao verbal. Bakhtin também considera diferente a nogao de significado e sentido, sendo que utiliza os termos significagao e tema da enun- ciacgdo para definir estes conceitos. Bakhtin diferencia os conceitos de signo e sinal. O sinal alcan- ¢aria apenas a significacao (significado) do enunciado, seu aspec- to bdsico, jé 0 signo alcanga o tema da enunciag¢ao (sentido). O autor ressalva que o falante nativo nao percebe o componente de sinalidade na lingua. Apenas no inicio da aprendizagem de uma lingua estrangeira, 0 individuo percebe este traco de sinalida- de, substituindo-o mais tarde, quando domina a lingua, pelo signo. A nogao de imutabilidade do signo é descartada por Bakhtin. Para ele, 0 que é imutdvel é 0 sinal, que é um elemento da lingua. O sinal é incapaz de sobreviver 4s mudangas freqiientes e inevitaveis da lingua que é utilizada em determinada realidade social e econé- mica. A mudanga de um sinal representa sua substituigdo por ou- tro sinal. As mudangas do signo revelam as mudangas histéricas e culturais vividas por seus falantes. 23 A CRIANCA SURDA Bakhtin, referindo-se 4 multiplicidade de significagdes que uma palavra comporta, diz: [...] se um complexo sonoro qualquer comportasse uma tinica significagao inerte e imutavel, entdo esse complexo nao seria uma palavra, nao um signo, mas apenas um sinal. A multiplicidade das significagGes é o indice que faz de uma palavra uma palavra. (1990, p. 10) Percebe-se entao, por um lado, a diferenga de enfoque entre Saussure e por outro lado Vygotsky e Bakhtin. Neste livro, quando for utilizado 0 termo signo, este nao deve ser entendido como uma palavra que possui uma relacao direta e estavel entre significado e significante, e sim como uma palavra que, sendo marcada pela his- téria e cultura de seus falantes, possui intimeras possibilidades de sentidos, sendo estes criados no momento da interagao, dependen- do do contexto e dos falantes que a utilizam. E importante também a nogao que os significados, além dos sentidos que nao existem a priori, modificam-se no decorrer da vida do individuo, dependen- do de suas vivéncias e relagdes interpessoais que determinarao seu desenvolvimento cognitivo. SURDEZ Diversos termos utilizados no estudo da surdez sao iguais a termos utilizados na lingiiistica e na psicologia, no entanto eles tém uma conotagao bastante diferente. O termo sinal utilizado para designar os elementos lexicais da lingua de sinais nao deve ser confundido com o sinal que Bakhtin se refere em oposi¢ao ao signo. O sinal, ou seja, o item lexical da lingua de sinais, é um signo lingitistico da mesma forma que as palavras da lingua portuguesa. O termo fala - que na drea da surdez é comumente utilizado para designar a enuncia¢ao produzida pelo sistema fonador — nao pode ser confundida com o conceito de fala para Vygotsky. Assim, sempre que me referir ao primeiro conceito de fala utilizarei o termo 24 DEFINICOES E CONCEITOS oralizacao, que deve ser entendido em oposigao a sinalizagéo, que €a fala (no sentido de Vygotsky) produzida pelas maos. Assim temos: Lingua, (Saussure) — sistema de regras abstratas composto por elementos significativos inter-relacionados. Lingua, (Bakhtin) — sistema semiético criado e produzido no contexto social e dialégico, servindo como elo de liga¢gao entre o psiquismo e a ideologia. Linguagem — cédigos que envolvem significagado nao precisando necessariamente abranger uma lingua. Fala (Vygotsky) — produgao da linguagem pelo falante nos mo- mentos de didlogo social e interior, pode utilizar tanto o canal audiofonatério, quanto 0 espaco-viso-manual. Oralizagao — utilizagéo do sistema fonador para expressar pa- lavras e frases da lingua.. Sinalizagao — fala produzida pelo canal viso-manual. Sinal — elemento léxico da lingua de sinais. Signo — elemento da lingua, marcado pela historia e cultura de seus falantes, possui intimeras possibilidades de sentidos, sendo estes criados no momento da interacao, dependendo do contexto e dos falantes que o utilizam. Apés a definigao desses conceitos, essenciais para a compreen- sao do contetido que sera apresentado no decorrer deste livro, jé é possivel dar inicio ao estudo e andlises aqui propostos. Serao relata- das entao, com 0 objetivo de contextualizagao, a histéria dos sur- dos e as filosofias educacionais vigentes atualmente. CapiTULo 2 BREVE RELATO SOBRE A EpucaGAO DE SURDOS Conhecer a histéria, bem como as filosofias educacionais para surdos, é 0 primeiro passo para iniciar um estudo mais aprofunda- do que tem como objetivo relacionar a exposigao ao meio social, a linguagem e a qualidade de interagGes interpessoais ao desenvol- vimento cognitivo da crianga surda. A histéria pode também servir de suporte para analisar criticamente as conseqiiéncias de cada filosofia no desenvolvimento dessas criangas. Apesar de este tépico nao ter como objetivo desenvolver um es- tudo aprofundado das questées histéricas, faz-se necessdria uma descrigao da histéria da surdez para contextualizar as praticas educacionais e clinicas vigentes no momento. A idéia que a sociedade fazia sobre os surdos, no decorrer da histéria, geralmente apresentava apenas aspectos negativos. Na antigiiidade os surdos foram percebidos de formas variadas: com piedade e compaixao, como pessoas castigadas pelos deuses ou como pessoas enfeitigadas, e por isso eram abandonados ou sacri- ficados. Até mesmo na biblia pode-se perceber uma posigao negati- vaem relagao a surdez. A condigao sub-humana dos mudos era parte do cédigo mosaico e foi reforgada pela exaltagao biblica da voz e do ouvido como a tinica e verdadeira maneira pela qual o ho- mem e Deus podiam se falar (‘no principio era o verbo’). (Sacks; 1989, p. 31) 27 A_CRIANCA SURDA A ccrenga de que o surdo era uma pessoa primitiva fez com que a idéia de que ele nao poderia ser educado persistisse até 0 século XV. Até aquele momento eles viviam totalmente 4 margem da sociedade e nao tinham nenhum direito assegurado. A partir do século xvi tem-se noticias dos primeiros educadores de surdos. Segundo Reis (1992), Fornari relata que “Cardano foi o primeiro a afirmar que o surdo deveria ser educado e instruido, afirmando: ‘éum crime nao instruir 0 surdo-mudo’”. Os educadores, assim como atualmente, criaram diferentes metodologias para ensinar os surdos. Alguns se baseavam apenas na lingua oral, ou seja, a lingua auditiva-oral utilizada em seu pais, como 0 francés, 0 inglés etc. Outros pesquisaram e defenderam a lingua de sinais, que é uma lingua espaco-visuo-espacial criada através de geracdes pelas comunidades de surdos. Outros ainda criaram cédigos visuais, que nao se configuram como uma lingua, para facilitar a comunicagao com seus alunos surdos. Até hoje exis- tem diversas correntes com diferentes pressupostos em relacao a educacao de surdos. Ainda no século XVI, na Espanha, 0 monge beneditino Pedro Ponce de Leon (1520-1584) ensinou quatro surdos, filhos de no- bres, a falar grego, latim e italiano, além de ensinar-lhes conceitos de fisica e astronomia. Ponce de Leon desenvolveu uma metodolo- gia de educagao de surdos que incluia datilologia (representagao manual das letras do alfabeto), escrita e oralizagao, e criou uma escola de professores de surdos. Em 1620, Juan Martin Pablo Bonet publicou, na Espanha, 0 livro Reduccion de las letras y artes para ensenar a hablar a los mudos, que trata da invengao do alfabeto manual de Ponce de Leon. Em 1644 foi publicado o primeiro livro em inglés sobre a lingua de sinais Chirologia, de J. Bulwer, que acreditava ser a lingua de sinais uni- versal e seus elementos constitutivos icénicos. OO mesmo autor pu- blicou em 1648 o livro Philocopus, em que afirma ser a lingua de sinais capaz de expressar 0s mesmos conceitos que a lingua oral. Em 1750, na Franga, surge Abade Charles Michel de L’Epée, pes- soa bastante importante na histéria da educagao dos surdos. L'Epée se aproximou dos surdos que perambulavam pelas ruas de Paris, 28 BREVE RELATO SOBRE A... aprendeu com eles a lingua de sinais e criou os “Sinais Metédicos”, uma combinacao da lingua de sinais com a gramatica sinalizada francesa. O Abade teve imenso sucesso na educagao de surdos e transformou sua casa em escola publica. Em poucos anos (de 1771 a 1785), sua escola passou a atender 75 alunos, numero bastante elevado para a época. L’Epée e seu seguidor Sicard acreditavam que todos os surdos, independentemente do nivel social, deveriam ter acesso a educagao, e esta deveria ser publica e gratuita. Nessa mesma época, no ano de 1750, com as idéias de Samuel Heinick, na Alemanha, surgem as primeiras nogdes do que hoje constitui a filosofia educacional Oralista, filosofia que acredita ser 0 ensino da lingua oral, e a rejeicao a lingua de sinais, a situagao ideal para integrar o surdo na comunidade geral. Heinick foi o fun- dador da primeira escola publica baseada no método oral, ou seja, que utilizava apenas a lingua oral na educagao das criangas sur- das. Sua escola tinha nove alunos. As metodologias de L’Epée e Heinick se confrontaram e foram submetidas a andlise da comunidade cientifica. Os argumentos de L'Epée foram considerados mais fortes e, com isso, foram negados a Heinick recursos para ampliagao de seu instituto. O século xvii € considerado o periodo mais fértil da educagao dos surdos. Nesse século, ela teve grande impulso, no sentido quan- titativo com o aumento de escolas para surdos, e qualitativo, j4 que, pela lingua de sinais os surdos podiam aprender e dominar diver- sos assuntos e exercer varias profissdes. Sacks relata que: Esse perfodo que agora parece uma espécie de época durea na histéria dos surdos testemunhou a rdpida criagao de escolas para surdos, de um modo geral dirigidos por pro- fessores surdos, em todo 0 mundo civilizado, a saida dos surdos da negligéncia e da obscuridade, sua emancipacao e cidadania, a répida conquista de posigdes de eminéncia e responsabilidade — escritores surdos, engenheiros surdos, filésofos surdos, intelectuais surdos, antes inconcebiveis, tornaram-se subitamente possiveis. (1989, p. 37) 29 A_CRIANCA SURDA Em 1815, Thomas Hopkins Gallaudet, professor americano interessado em obter mais informagées sobre a educagao de sur- dos seguiu para a Europa. Na Inglaterra, encontrou-se com a familia Braidwood, que utilizava apenas a lingua oral na educa- ¢ao de surdos, e na Franca com o Abade L’Epée, que utilizava o método manual. Os Braidwood se recusaram a ensinar a Gallaudet sua metodo- logia em poucos meses, assim, restou-lhe a op¢ao pelo método ma- nual. Em 1817, acompanhado de Laurent Clerc, um dos melhores alunos do Abade L’Epée, Gallaudet fundou a primeira escola per- manente para surdos nos EUA, que utilizava como forma de comu- nicagao em salas de aula e conversas extra-classe um tipo de francés sinalizado, ou seja, a uniao do léxico da lingua de sinais francesa com a estrutura da lingua francesa, adaptado para 0 inglés. Surge entao uma metodologia que mais tarde sera utilizada na filosofia da Comunicagao Total (Ramos e Goldfeld, 1992). A partir de 1821, todas as escolas puiblicas americanas passa- ram a mover-se em diregao a American Sign Language (ASL), que sofreu muita influéncia do francés sinalizado. Em 1850, a ASL, e nao 0 inglés sinalizado, passa a ser utilizada nas escolas, assim como ocorria na maior parte dos paises europeus. Nesse periodo, houve uma elevagao no grau de escolarizagao dos surdos, que po- diam aprender com facilidade as disciplinas ministradas em lin- gua de sinais. Em 1864 foi fundada a primeira universidade nacional para surdos, Universidade Gallaudet’. Em razao dos avangos tecnoldégicos que facilitavam a aprendi- zagem da fala pelo surdo, a partir de 1860 0 método oral comega a ganhar forga. Diversos profissionais comegaram a investir no aprendizado da lingua oral pelos surdos, e neste entusiasmo sur- giu a idéia, defendida por alguns profissionais até hoje, de que a lingua de sinais seria prejudicial para a aprendizagem da lingua oral. Surgiram entao opositores a lingua de sinais, que ganharam forca a partir da morte de Laurent Clerc, em 1869. 5. Atualmente, além desta universidade existe apenas a Tsukuba College of Technology, no Japao. 30 BREVE RELATO SOBRE A... O mais importante defensor do Oralismo foi Alexander Graham Bell, o célebre inventor do telefone, que exerceu grande influéncia no resultado da votagao do Congresso Internacional de Educado- res de Surdos, realizado em Milao, no ano de 1880. Nesse congres- so, foi colocado em votagao qual método deveria ser utilizado na educagao dos surdos. O Oralismo venceu e 0 uso da lingua de si- nais foi oficialmente proibido. E importante ressaltar que aos pro- fessores surdos foi negado o direito de votar. Naquele momento, a educagao dos surdos deu uma grande revi- ravolta em sentido oposto a educagao do século XVIII, quando os surdos e a sociedade perceberam as potencialidades dos surdos pela utilizagao da lingua de sinais. Naquele momento acreditava- se que o surdo poderia desenvolver-se como os ouvintes aprenden- do a lingua oral. O aprendizado dessa lingua passa a ser 0 grande objetivo dos educadores de surdos. No inicio do século XX a maior parte das escolas em todo 0 mun- do deixa de utilizar a lingua de sinais. A oralizagdo passou a ser 0 objetivo principal da educagao das criangas surdas, e, para que elas pudessem dominar a lingua oral, passavam a maior parte de seu tempo recebendo treinamento oral e se dedicando a este apren- dizado. O ensino das disciplinas escolares como histéria, geogra- fia e matematica foram relegados a segundo plano. Com isso, houve uma queda no nivel de escolarizagao dos surdos. O Oralismo dominou em todo o mundo até a década de 1970, ano em que William Stokoe publicou o artigo “Sign Language Structure: An Outline of the Visual Communication System of the American Deaf”, demonstrando que a ASL é uma lingua com todas as caracteristicas das linguas orais. Baseado nessa publicacao surgiram diversas pesquisas sobre a lingua de sinais e sua aplicagaéo na educagao e na vida do surdo, que, aliadas a uma grande insatisfagao por parte dos educadores e dos surdos com o método oral, deram origem A utilizagao da lingua de sinais e de outros cédigos manuais na educagao da crianga sur- da. Naquela década, Dorothy Schifflet, professora e mae de surdo, comegou a utilizar um método que combinava a lingua de sinais em adicdo 4 lingua oral, leitura labial, treino auditivo e alfabeto ma- 31 A_CRIANCA SURDA nual. Ela denominou seu trabalho de Total Aproach, que pode ser traduzido por Abordagem Total. Em 1968, Roy Holcom adotou o Total Approach, rebatizando-o de Total Communication, dando origem a filosofia Comunicagao Total, que utiliza todas as formas de comunicagao possiveis na educacgao dos surdos, por acreditar que a comunicagao, e nao a lingua, deve ser privilegiada. A Universidade Gallaudet, que ja utilizava o in- glés sinalizado, adotou a Comunicagao Total e se tornou o maior centro de pesquisa dessa filosofia. A partir da década de 1970, em alguns paises como Suécia e Inglaterra percebeu-se que a lingua de sinais deveria ser utilizada independentemente da lingua oral. Ou seja, em algumas situag6es, osurdo deve utilizar a lingua de sinais e, em outras, a lingua oral e nao as duas concomitantemente como estava sendo feito. Surge entao a filosofia bilingiie, que a partir da década de 1980, e mais efetivamente na década de 1990, ganha cada vez mais adeptos em todos os paises do mundo. NO BRASIL Em relagao ao Brasil, temos informagGes de que em 1855 chegou aqui o professor surdo francés Hernest Huet, trazido pelo impera- dor D. Pedro II, para iniciar um trabalho de educagao de duas crian- ¢as surdas, com bolsas de estudo pagas pelo governo. Em 26 de setembro de 1857 é fundado o Instituto Nacional de Surdos-Mudos, atual Instituto Nacional de Educagao dos Surdos (Ines), que utilizava a lingua de sinais. Em 1911, no Brasil, o Ines, seguindo a tendéncia mundial, esta- beleceu o Oralismo puro em todas as disciplinas. Mesmo assim, a lingua de sinais sobreviveu em sala de aula até 1957, quando a diretora Ana Rimola de Faria Doria, com assessoria da professora Alpia Couto proibiu a lingua de sinais oficialmente em sala de aula. Mesmo com todas as proibig6es, a lingua de sinais sempre foi utili- zada pelos alunos nos patios e corredores da escola. No fim da década de 1970 chega ao Brasil a Comunicagao Total, apés visita de Ivete Vasconcelos, educadora de surdos na Universi- 32 BREVE RELATO SOBRE A... dade Gallaudet. Na década seguinte comega no Brasil 0 bilingiiis- mo, com base nas pesquisas da professora lingiiista Lucinda Ferreira Brito, sobre a lingua brasileira de sinais. No inicio de suas pesquisas, seguindo o padrao internacional de abreviagao das lin- guas de sinais, a professora abreviou esta lingua de Lingua de Si- nais dos Centros Urbanos Brasileiros (LSCB) para diferencid-la da Lingua de Sinais Kaapor Brasileira (LSKB), utilizada pelos indios Urubu-Kaapor no Estado do Maranhio. A partir de 1994, Brito pas- sa a utilizar a abreviacao Lingua Brasileira de Sinais (Libras), que foi criada pela propria comunidade surda para designar a LSCB. Atualmente, essas trés abordagens convivem no Brasil, e pode- se dizer que todas tém relevancia e representatividade no trabalho com surdos. As diferentes abordagens causam muitas discérdias e muitos conflitos entre os profissionais que as seguem. Podemos perceber que no decorrer da histéria essas divergéncias sempre ocorreram, e que em dois momentos, nos anos 1750 e 1880, as dife- rentes metodologias foram colocadas em discussao, definindo uma abordagem considerada a melhor e que, conseqiientemente, deve- ria ser utilizada em todas as Institui¢gGes. Hoje, em alguns paises do mundo como a Venezuela, existe uma filosofia adotada oficial e obrigatoriamente em todas as escolas puiblicas para surdos (no caso, a filosofia bilingiie), mas, como no Brasil, a maioria dos paises convive com essas diferentes visdes sobre os surdos e sua educagao, acreditando que a verdade tinica nao existe e, portanto, todas as abordagens seriamente estudadas devem ter espago. FILOSOFIAS EDUCACIONAIS PARA SURDOS ORALISMO O Oralismo ou filosofia oralista visa 4 integragao da crianga surda na comunidade de ouvintes, dando-lhe condigées de desen- volver a lingua oral (no caso do Brasil, o portugués). A nogao de linguagem, para varios profissionais dessa filosofia, restringe-se 4 lingua oral, e esta deve ser a tinica forma de comunicagao dos surdos. A CRIANCA SURDA Para que a crianga surda se comunique bem é necessdrio que ela possa oralizar. O Oralismo percebe a surdez como uma deficiéncia que deve ser minimizada pela estimulagao auditiva. Essa estimulacao possib’ litaria a aprendizagem da lingua portuguesa e levaria a crianga surda a integrar-se na comunidade ouvinte e desenvolver uma per- sonalidade como a de um ouvinte. Ou seja, 0 objetivo do Oralismo é fazer uma reabilitagao da crianca surda em diregao 4 normalidade, a “nao-surdez”. Para alcangar seus objetivos, a filosofia oralista utiliza diversas metodologias de oralizacgaéo: verbo-tonal’, audiofonatéria, aural, acupédico etc. Essas metodologias se baseiam em pressupostos ted- ricos diferentes e possuem, em alguns aspectos, praticas diferentes. O que as une é 0 fato de acreditarem que a lingua oral é a tinica forma desejavel de comunicagao do surdo e se dedicarem ao ensino desta lingua as criangas surdas, rejeitando qualquer forma de gestualizacao, bem como as linguas de sinais. A metodologia audiofonatéria, também conhecida como Perdoncini, é bastante utilizada no Brasil, possui maior material bibliografico em portugués e é uma grande defensora do Oralismo. Por apresentar essas caracteristicas, essa metodologia é bastante utilizada como representante do Oralismo. A maior parte das metodologias baseadas no Oralismo utiliza como embasamento te6rico lingiiistico o Gerativismo de Noam Chomsky. Seguindo as idéias desta teoria, Couto afirma que “nao é possivel ensinar a linguagem, mas apenas dar condigées para que esta se desenvolva espontaneamente na mente, a seu proprio modo” (1991, p. 16). A autora afirma também que por meio da audi¢ao as criangas ouvintes imitam seus interlocutores e assim descobrem as regras gramaticais da lingua, que vao permitir-lhes chegar as transformag6es e organizar seus pensamentos para expressé-los. 6. A metodologia verbo-tonal foi criada seguindo os pressupostos do oralismo, no entanto, atualmente no Brasil grande parte dos centros de reabili- tacdo ligados a esta metodologia ja aceitam e utilizam a lingua de sinais. 34 BREVE RELATO SOBRE A... Ao explanar sobre 0 respaldo tedrico da abordagem oralista multissensorial, Nogueira confirma a importancia da inferéncia de regras gramaticais no aprendizado da lingua. Baseada na Gramatica Gerativa Transformacional, a indu- gao de regras significa que através da exposigao a crianga é capaz de induzir as regras de sua lingua, espontaneamen- te, compreender e construir sentengas novas com sentidos légicos. (1994, p. 27) Em relagao a crianga que nao recebe estimula¢ao precoce, Couto diz que ela comegard a se comunicar por gestos, 0 que prejudicard o aprendizado da oralizagao. A crianga deve receber um atendimen- to precoce “antes que uma linguagem gestual venha suprir as difi- culdades de comunicagcao oral” (Couto, s/d, p. 18). Esta idéia é compartilhada por todos os profissionais oralistas, receosos com a possibilidade de a crianga surda utilizar a lingua de sinais ou qualquer comunicagao gestual. A maioria desses auto- res nao reconhece que a lingua de sinais é realmente uma lingua e a considera prejudicial para 0 aprendizado da lingua oral, seu maior objetivo. Osurdo que consegue dominar as regras da lingua portuguesa e consegue falar (oralizar) é considerado bem-sucedido. O Oralismo espera que, dominando a lingua oral, 0 surdo esteja apto para inte- grar-se 4 comunidade ouvinte. Porém, Leal, Palmeiro e Fernandez (1985) afirmam que esta integragao ainda nao foi alcangada pela maioria dos surdos em nossa comunidade. As autoras acreditam que essa dificuldade ocorre devido a utilizagao da linguagem gestual por parte dos surdos. Nao é possivel saber a que linguagem gestual as autoras se referem, mas o artigo comprova que a realidade no Brasil é que somente uma pequena parte dos surdos consegue domi- nar razoavelmente o portugués, e é quase impossivel encontrar um surdo congénito que domine a lingua portuguesa como um ouvinte. As criangas surdas geralmente nao tém acesso a uma educa¢ao especializada e é comum encontrarmos em escolas ptiblicas e até particulares, criangas surdas que estao hd anos freqiientando estas 37 BREVE RELATO SOBRE A... plificagao da gramatica de duas linguas em contato, no caso, 0 portugués e a lingua de sinais). A Comunicagio Total recomenda o uso simultaneo destes cé- digos manuais (que tém como objetivo representar de forma es- pago-viso-manual uma lingua oral) com a lingua oral. Esta comunicagao simultanea é possivel pelo fato de estes codigos manuais obedecerem 4 estrutura gramatical da lingua oral, ao contrdrio das linguas de sinais, que possuem estruturas pr6- prias. A Comunicacao Total denomina esta forma de comunica- ¢ao de bimodalismo e é um dos recursos utilizados no processo de aquisicado da linguagem pela crianga e na facilitagao da co- municagao entre surdos e ouvintes. A lingua de sinais nao pode ser utilizada simultaneamente com 0 portugués, pois nao temos capacidade neuroldégica de processar simultaneamente duas lin- guas com estruturas diferentes. Ciccone afirma ser importante a preservacao da lingua de sinais, porém, como educadores, quando nos deparamos com es- pagos bdsicos de simbolizagao interditados em razao da diferenga, temos julgado de prioritaria importancia a ur- géncia de alternativas capazes de impedir que familiares corram um sério risco de apenas serem meros observado- res no decurso histérico do ‘des-envolvimento’ de seus fi- lhos... ndo nos importando julgar modos, ou formas, temos endossado a pratica de jogos simbélicos, que prestem como matrizes de significagdes, quer para palavras sinalizadas, quer para palavras oralizadas. (p. 77) A Comunicagaéo Total acredita que o bimodalismo pode minimizar 0 bloqueio de comunica¢ao que geralmente a criancga surda vivencia, evitando assim suas conseqiiéncias para o desen- volvimento da crianga e possibilitando aos pais ocuparem seus pa- péis de principais interlocutores de seus filhos. A Comunicagao Total acredita que cabe a familia decidir qual a forma de educagaio que seu filho tera. Esta decisdo nao cabe ao profissional que lida com a crianga. 41 BREVE RELATO SOBRE A e movimentos corporais, nado possui uma das fontes de informacao mais rica da lingua oral: monitorar sua propria fala e elaborar sutilezas através da entonacao, volume de voz, hesitagdo, assim como extrair da produgao de seu interlocutor sutilezas através da entonagao, volume de voz, etc. (pp. 79-80) A lingua de sinais seria a tinica lingua que o surdo poderia dominar plenamente e que serviria para todas as suas necessida- des de comunicagao e cognitivas. Brito (1993) afirma que, se a crianga surda nao for exposta a lingua de sinais desde seus primeiros anos de vida sofrerd varias conseqiiéncias. Sao elas: a) Este (0 surdo) perde a oportunidade de usar a lingua- gem, sendo o mais importante, pelo menos um dos princi- pais instrumentos para a solucao de tarefas que se lhe apresentam no desenvolvimento da agao inteligente; b) 0 surdo nao ha de recorrer ao planejamento para a solu- gao de problemas; c) n4o supera a a¢gao impulsiva; d) nao adquire independéncia da situacao visual concreta; e) nao controla seu préprio comportamento e o ambiente; £) nao se socializa adequadamente. (p. 41) No Brasil existe um hiato entre a quantidade de pesquisas so- bre o bilingiiismo e a lingua de sinais que vem sendo realizadas ea utilizagao do bilingiiismo que, na pratica, ainda nao foi implanta- do. Sao raros os programas televisivos em lingua de sinais, nao temos intérpretes em locais necessdrios como hospitais, repartig6es ptiblicas etc. e a lingua de sinais ainda nao é reconhecida oficial- mente como uma lingua no Brasil. Em relagao a educagao publica, é muito raro encontrarmos esco- las que utilizem a lingua de sinais em sala de aula. O que ocorreem muitos casos é que os alunos conversam entre si pela lingua de sinais, mas as aulas sao ministradas em portugués, por professores 45 SOCIOINTERACIONISMO E SURDEZ... qual estd inserido. O autor explicita também o papel do meio social e da lingua e a importancia das interagées verbais e do didlogo na constituigao da consciéncia humana. Aborda também as diferen- ¢as culturais que sao refletidas nas linguas e o poder que estas podem exercer no sentido até de exploragao sobre individuos de classe socioeconémicas mais baixas. Por fim, o autor aborda as no- ges de tema e significagao e explica a necessidade de estudar os aspectos lingitisticos baseado em didlogos em seu contexto social, pois somente no contexto social as palavras ganham um sentido. Estas nogées de Bakhtin nos levam a questdes extremamente complexas no estudo da aquisi¢ao da linguagem de criangas sur- das, modificando uma visao mais estatica de lingua, isolada de seu contexto social, que ainda é muito utilizada no estudo da surdez. CONSCIENCIA E IDEOLOGIA Bakhtin, criticando o subjetivismo-idealista, aponta que o obje- to de estudo deste é 0 ato da fala, visto como criagao individual, andloga a criacao artistica, ou seja, aquilo que é produzido indivi- dualmente pelo falante. As leis desta teoria seguem as leis da psico- logia individual. O autor destaca Wilhelm Humboldt como um dos representantes mais notérios desta corrente. As idéias da filosofia oralista deixam transparecer em alguns momentos esta visao de lingua, j4 que desconsideram a importan- cia das relagdes interpessoais e do contexto social no trabalho de aquisigao da linguagem de criangas surdas. Bakhtin demonstra seu pensamento contrdrio ao subjetivismo idealista com estas palavras: “a consciéncia humana nao sé nada pode explicar, mas, ao contrario, deve ela prépria ser explicada a partir do meio ideolégico e social” (Bakhtin; 1990, p. 35). O objeto de estudo nas pesquisas sobre aquisicao da linguagem deve, entao, ser deslocado do interior da crianga surda para suas relacGes interpessoais e para o meio social da qual esta participa. Em relagao ao objetivismo-abstrato, o autor cita Ferdinand de Saussure como 0 principal representante dessa corrente e diz que seu objeto de estudo centra-se no sistema lingiifstico, ou seja, nos 49 SOCIOINTERACIONISMO E SURDEZ como apresenta, j4 que nao tem impedimentos fisicos para adquirir a linguagem (lingua,). A resposta para essa questdo deve ser procurada, como nos mos- tra Bakhtin, no meio social e nao no préprio individuo surdo ou na sua impossibilidade de ouvir. Este individuo nao é responsdvel por todas as suas dificuldades, ao contrario, ele possui as capacidades organicas necessdrias para constituir-se enquanto um individuo no sentido social dessa palavra. Essa constitui¢ao nao ocorre facilmente porque a sociedade, num passado recente, proibiu o surdo de utilizar a lingua de sinais, e com isto tentou dilacerar, além de uma lingua, uma cultura prépria. Atualmente, mesmo os surdos que jd nao sofrem esta proibi¢ao, ainda nao tém, em sua maioria, acesso a um grupo social que utili- ze esta lingua, ficando assim marginalizados por questées sociais e nao individuais ou bioldgicas. Partindo, entao, da nossa realidade atual, podemos estudar e agir a favor da comunidade de surdos, no sentido de entender e estimular a lingua de sinais. Muitos estudiosos e também os pr6- prios surdos estao empenhados em ensinar e divulgar esta lingua. Ja foram realizadas descrig6es das linguas de sinais em varios pai- ses. No Brasil existem diversas pesquisas sobre a Lingua Brasileira de Sinais (Libras) . Para realizar pesquisas sobre esta lingua é necessdrio contextualizd-la, compreender todos os valores que esta carrega, entender as limitagGes que os surdos foram obrigados a enfrentar e que a histéria desta comunidade é uma histéria muito particular, formada de preconceitos, marginalizagao e proibigdes, como foi vis- to no Capitulo 2. A Libras e a comunidade que a utiliza trazem nela marcas espe- cificas. Bakhtin diz que o contetido e a forma do signo ideolégico estao indissoluvelmente ligados. As linguas de sinais apresentam caracteristicas bastante préprias, além do contetido e da situagao s6cio-histérica, devido ao fato de ser uma lingua espago-viso-ma- nual e utilizar aspectos espaciais diferentes das linguas orais. As caracteristicas de um falante de Libras e um falante de lin- gua portuguesa sao bastante diferentes. Uma questao que comega a ser discutida atualmente é a questao da cultura dos surdos, ou seja, 53 SOCIOINTERACIONISMO E SURDEZ A natureza do préprio desenvolvimento se transforma do bioldgico para o sécio-histérico. O pensamento verbal nao é uma forma de comportamento natural e inato, mas é determinado por um processo histérico cultural e tem pro- priedades e leis especificas. (1989b, p. 44) Seguindo entao estas idéias, confirmamos a necessidade de analisar e priorizar as quest6es sociais em detrimento das questées bioldgicas, jé que, apesar de Vygotsky dizer que existem duas li- nhas de desenvolvimento, a linha natural nao exerce um papel re- levante ou decisivo na constitui¢éo do pensamento. Pode-se concluir que, para Vygotsky, a relacaéo entre pensamen- to e linguagem, apesar de independentes em suas origens, é uma relagao de interdependéncia, na qual a linguagem determina, mo- dela a maior parte do pensamento — 0 pensamento verbal -, sendo entao indispensavel para o desenvolvimento deste. A dificuldade ao acesso de uma lingua que seja oferecida natural e constantemente leva a crianga surda a um tipo de pensamento mais concreto, jd que é pelo didlogo e aquisi¢ao do sistema conceitual que ela pode-se desvincular cada vez mais do concreto, internalizando conceitos abstratos. A aprendizagem tardia de uma lingua, como é 0 caso de muitos que aprendem a Libras na adolescéncia ou na fase adulta, nao possibilita a reversao total deste quadro. A gravidade desta situagao é melhor percebida quando se sabe que, mesmo em atividades que nao exigem a presenga da lingua- gem, 0 pensamento é totalmente orientado por esta. Bakhtin diz: A palavra acompanha e comenta todo ato ideoldgico. Os processos de compreensao de todos os fenémenos ideol6- gicos (um quadro, uma pega musical, um ritual ou um com- portamento humano) nao podem operar sem a participagao do discurso interior. Todas as manifestagdes da criagao ideolégica — todos os signos nao verbais - banham-se no discurso e nao podem ser totalmente isoladas nem total- mente separadas dele. (1990, p. 38) 57 SOCIOINTERACIONISMO E SURDEZ. mo. Seu objetivo era analisar qual a importancia das condigGes so- cioeconémicas sobre o desenvolvimento da percep¢ao, generaliza- cao e abstragdo, deducao e inferéncia, raciocinio e solugdo de problemas, imaginacao, auto-andlise e autoconsciéncia. Ele chegou a conclusées muito interessantes. Os grupos de pes- soas analfabetas e sem convivio social de trabalho possuiam uma maneira de classificar, generalizar e raciocinar bastante diferente das pessoas alfabetizadas. Eles tinham um pensamento concreto, formado de acordo com situag6es vivenciadas. Por exemplo, eles classificavam as cores e formas geométricas de acordo com os obje- tos que utilizavam, nao percebendo as figuras geométricas enquan- to tal e sim como objetos conhecidos. A generalizagao e a abstracao também foram feitas de forma di- ferente pelos analfabetos. Eles nao percebiam necessidade em com- parar e agrupar objetos em termos abstratos e subordinados a categorias especificas. Em vez disso, lidavam com o agrupamento como se fosse uma tarefa pratica e nao teérica. Estes sujeitos apre- sentavam muita dificuldade em interpretar conceitos generaliza- dos, como ferramentas, mobilia etc. e de agrupar as palavras que pertencem a estes universos. Eles agrupavam estes objetos de acor- do com sua utilizagao (ex.: madeira, serra, martelo) e nao de acordo com a classificagao légico-abstrata. Em todos os testes, nas dreas j4 mencionadas, Luria percebeu um predominio do pensamento concreto, pratico, por parte dos analfa- betos, em oposi¢ao a uma forma de pensamento mais abstrata e légi- ca por parte dos individuos que freqiientaram escolas por pequenos periodos ou trabalhadores que trabalhavam coletivamente, pois as necessidades comunicativas que surgem no planejamento do traba- lho exercem impacto explicito sobre o pensamento desses individuos. Esta pesquisa, de muita relevancia para a psicologia, mostra a influéncia e determinagao do fator socioeconémico e da linguagem (lingua,) no desenvolvimento da consciéncia humana, e confirma mais uma vez que a consciéncia nao é um dom inato, mas, ao con- trério, as condigGes sécio-hist6ricas e econémicas é que determi- nam e modelam a forma como a consciéncia se constitui. Voltando 4 questao da crianga surda com atraso de linguagem, surgem logo questées em relagao aos seus pensamentos se, assim 61 SOCIOINTERACIONISMO E SURDEZ... No interior do tema, a enunciagao possui uma significagao que é formada por elementos de enunciacao que sao reiterdveis e idén- ticos cada vez que sao repetidos. Esses elementos sao abstratos, arbitrdrios, convencionais. Eles nao tém sentido quando estao descontextualizados, mas sao parte indispensdvel da enunciagao. O tema é 0 estdgio superior da capacidade lingitistica de signifi- car. A significagao corresponde ao estdgio inferior. A significagao corresponde a uma palavra enquanto tracgo de uniao entre os interlocutores, ou seja, é um elemento da enunciagéo comum aos interlocutores, considerando que eles falam a mesma lingua. Conclui-se que para Bakhtin a nogao de lingua, nao se resume a um conjunto de regras gramaticais, normativas, uma abstragao, portanto, como define Saussure. O dominio da lingua, - sistema de regras abstratas compostas por elementos significativos inter-rela- cionados — atinge a significagao, mas nao chega ao tema da enun- ciagao. Ja a lingua, emerge baseada no contexto comunicativo, das relagées sociais, atingindo o tema da enunciacao. Ea lingua, e nao a lingua, que constitui a consciéncia. Pode-se fazer uma correspondéncia entre os conceitos de signi- ficado e sentido para Vygotsky, e significagao e tema para Bakhtin. Para ambos, existe um aspecto estavel e arbitrario da palavra, que seria o significado para Vygotsky e significagao para Bakhtin, e um aspecto nao estavel, que necessita do didlogo contextualizado e dos interlocutores para emergir, que seria 0 sentido ou tema. Este é considerado, pelos autores, 0 aspecto primordial na comunicagao verbal, na fala e na compreensao desta. A compreensiao de que a lingua nao é formada por signos que representam diretamente a relacao entre significado e significante é muito dificil para os surdos que recebem estimulacao apenas na lingua oral. Este é um ponto muito delicado, pois é sabido que o surdo nun- ca poderd aprender a lingua oral de forma totalmente espontanea como os ouvintes, e é apenas no didlogo espontaneo que surge 0 sentido. Outra questao é que os aspectos extraverbais como a entonagao e o volume de voz influenciam diretamente na formacao do sentido e obviamente o surdo nao tem acesso a estas nuances da lingua oral. As criangas ouvintes, aos poucos, percebem as mudan- 65 SOCIOINTERACIONISMO E SURDEZ... Um conceito s6 aparece quando os tracos abstraidos sao sintetizados novamente, e a sintese abstrata dai resultante torna-se o principal instrumento do pensamento. (Vygo- tsky; 1989b, p. 68) Pode-se citar mais uma vez, a pesquisa de Luria na Asia Central para exemplificar esta questao. Luria apresentava quatro palavras para o grupo de pessoas analfabetas, sendo que trés palavras fa- ziam parte de uma mesma categoria, como as ferramentas, e a quar- ta palavra referia-se a algum objeto que é utilizado no trabalho com as trés primeiras palavras, como madeira. Luria pedia para que as pessoas dissessem qual destas palavras nao fazia parte do grupo. Os informantes demonstraram nao conseguir pensar de forma abs- trata e respondiam que os quatro objetos nao poderiam ser separa- dos, pois eles eram utilizados em conjunto. Mesmo quando Luria tentava auxiliar perguntando quais objetos faziam parte do grupo das ferramentas, as pessoas pareciam nao conseguir dissociar a madeira das ferramentas, demonstrando estarem presas ao racioci- nio concreto e vivencial, sem a possibilidade de analisar estes obje- tos fora do contexto em que sao utilizados de forma légica e abstrata. Pode-se fazer uma analogia entre os surdos com atraso de lingua- gem e estes individuos analisados por Luria. Os conceitos possuem uma medida de generalidade. Cada con- ceito é uma generalizagao, e a relacao entre eles é uma relacao de generalidade. Na fase dos complexos, a crianga nao percebe esta relagao de generalidade, assim ela pode considerar, por exemplo, que rosa e flor estao no mesmo nivel de generalizacao, nao percebendo a hie- rarquia que existe entre estes dois conceitos. Apenas no nivel mais avangado de pensamento o individuo é capaz de perceber as relagdes de generalidade entre os conceitos, formando seu sistema conceitual. Neste nivel, 0 individuo é capaz de elaborar novos conceitos, independentes da situagao concreta. Ele cria conceitos novos pelos conceitos j4 conhecidos. O surgimento de conceitos generalizados, tais como mobilia, roupa, moradia, é um avan¢o muito grande no desenvolvimento 69 SOCIOINTERACIONISMO E SURDEZ... contato com a lingua utilizada por eles e conseqiientemente a rece- ber informacGes. A aprendizagem e o desenvolvimento, entao, estao inter-relacio- nados desde os primeiros dias de vida da crianca. A aprendizagem estd sempre um pouco adiante, proporcionando o desenvolvimento. E dbvio, e Vygotsky nao nega, que existe uma relagao entre 0 nivel de desenvolvimento e a capacidade potencial de aprendiza- gem. E légico que existem limites maturacionais para o desenvol- vimento infantil. Ninguém espera que um bebé resolva questdes complexas de matematica, por mais que seja estimulado para tal. O que é importante é que a aprendizagem direciona e impulsiona o desenvolvimento, ou seja, o desenvolvimento nao segue o fator bioldgico natural, ao contrario, ele esté intimamente relacionado as formas s6cio-histéricas as quais a crianga estd exposta, desde o seu nascimento. As respostas para as questées do desenvolvimento devem ser pro- curadas fora da crianga, no meio social, nas relacdes que ela cria. E com base nas relagées sociais que a crianga aprenderd e para onde o seu desenvolvimento seguir. Os adultos, e em primeiro lugar os pais, tm um papel determinante no desenvolvimento da crianga. Como foi dito anteriormente, as fungdes mentais surgem primeiro no nivel interpessoal, ou seja, de acordo coma relacao entre a crianga e 0 adulto (principalmente os pais, jd que eles sao as pessoas que cui- dam da crianga e que exercem o papel de mediadores entre a crianga € as pessoas com quem ela nao convive intensamente). Vygotsky cita o exemplo de filhos de surdos para explicar a im- portancia da aprendizagem no desenvolvimento. Tal como um filho de surdos-mudos, que nao ouve falar a sua volta, continua mudo apesar de todos os requisitos inatos necessdrios ao desenvolvimento da linguagem e nao desenvolve as fungdes mentais superiores ligadas a lingua- gem, assim todo o processo de aprendizagem é uma fonte de desenvolvimento que ativa numerosos processos, que nao poderiam desenvolver-se por si mesmo sem a apren- dizagem. (1988, p. 115) 73 SOCIOINTERACIONISMO E SURDEZ deiras em criancas surdas. No inicio do desenvolvimento, como foi mencionado, as brincadeiras parecem iguais, mas é bastante relevante questionar se elas tém o mesmo significado para crian- cas surdas e ouvintes. Nos termos de Leontiev, se essas brincadei- ras realmente representam a mesma atividade para criangas surdas e ouvintes. Leontiev diferenciou atividade e acao. A atividade tem como objetivo ela prépria, por exemplo, ler um livro tendo como objetivo a leitura do livro em si. A acgao tem como objetivo a atividade na qual estd inserida, por exemplo, ler um livro com o objetivo de pas- sar na prova. A brincadeira é uma agao lidica. Nas brincadeiras, como em qualquer situagao, os surdos que sofrem atraso de linguagem tém dificuldade em compreender con- tetidos mais amplos e também de planejar. Pode-se questionar se em alguns momentos o que é uma ago para uma crianga ouvinte pode ser uma atividade para a crianga surda. A agao ltidica é caracterizada também por sua operagio, isto é, os meios pelos quais a agao ¢ realizada. A operacao no entanto nem sempre corresponde a agao nas brincadeiras. A acao, por exemplo, pode corresponder a um cavalo, e a operagao ao cabo de madeira que a crianga utiliza para brincar de cavalo. A operagao segue as necessidades do objeto utilizado, a crianga montard no cabo de madeira conforme as possibilidades anatémicas deste cabo e nao como num cavalo de verdade. A imaginacao surge da disparidade entre a acdo e a operacao. Como um cabo de madeira nao é na verdade um cavalo ea crianga precisa adaptar-se a realidade do cabo de madeira, ela comega a usar a imaginagao e a ac4o continua baseada em um cavalo real. Nao é a imaginagao que determina a agao, mas sao as con- dig6es da acao que tornam necessdria a imaginagao e dio origem a ela. (Leontiev; 1988, p. 127) Nas agGes, em geral, o significado e 0 sentido se correspondem. Na brincadeira, sao diferentes. No exemplo anterior, 0 sentido seria o de cavalgar e o significado deslocado para 0 cabo de madeira. A 77 SOCIOINTERACIONISMO E SURDEZ... que, no inicio do desenvolvimento da espécie humana, a comu- nicac¢ao era feita pelos gestos. Com a evolucao da espécie, o sistema fonador passou a ser utilizado para a comunicagao. Realmente, este sistema parece ser ideal para a comunicagao, pois possibili- ta uma maior liberdade para os membros superiores exercerem qualquer atividade no momento da fala, e atualmente é bastante pratico para a comunicac¢o a distancia, por meio do telefone e do radio, por exemplo. Porém, como afirmam diversos autores, em relagao a qualidade comunicativa e constituigao do pensamento, as mdos (e todo 0 es- quema corporal) podem executar com perfeigdo o mesmo papel que 0 sistema fonador, por meio das linguas de sinais. Podemos questionar, entao, por que a surdez causa tantas con- seqiiéncias se o surdo tem um canal (viso-manual) tao competente quanto o canal auditivo-oral para comunicar-se. Chegamos a con- cluséo de que o problema do surdo nao é organico e sim social, cultural. A nossa realidade (do Brasil e da maioria dos paises), como nos mostra o histérico da educagao de surdos (ver Capitulo 12), é que as criangas surdas nao tém contato com a lingua de sinais desde pequenas, e como nao podem adquirir a lingua oral num ritmo semelhante ao das criangas ouvintes, elas, na esmaga- dora maioria das vezes (se é que nao podemos afirmar, sempre), sofrem atraso de linguagem. Vygotsky, em todo o seu trabalho sobre deficiéncia, ressalta que os problemas da surdez sao decorrentes das questées socioculturais e que a educagéo dessas criancas deve ter como objetivo a minimizagao destes danos. E totalmente evidente que toda a gravidade e todas as limi- tagdes criadas pela deficiéncia nao tém sua origem na defi- ciéncia por si mesma, mas sim nas conseqiiéncias, nas complicagdes secundarias provocadas por esta deficiéncia. A surdez por si mesma poderia nado ser um obstdculo tao Ppenoso para o desenvolvimento intelectual da crianga sur- da, mas a mudez provocada pela surdez, a falta de lingua- gem é um obstdculo muito grande nesta via. Por isso, é na linguagem como nticleo do problema onde se encontram 81 SOCIOINTERACIONISMO E SURDEZ. a linguagem devora como um parasita todos os demais aspectos da educacao, se converte em objetivo préprio, por isto perde sua vitalidade, a crianga surda [...] nao apren- de a falar, a utilizar a linguagem como um meio de comuni- cago e de pensamento [...] A luta da linguagem oral contra amimica, apesar de todas as boas inten¢gdes dos pedagogos, como regra geral, sempre termina com a vitéria da mimica, nao porque precisamente a mimica, desde 0 ponto de vista psicoldgico, seja a linguagem verdadeira do surdo, nem porque a mimica seja mais facil, como dizem muitos pedagogos, mas sim porque a mimica é uma linguagem verdadeira em toda a riqueza de sua importancia funcional ea prontincia oral das palavras, formadas artificialmente, estd desprovida da riqueza vital e é sé uma cépia sem vida da linguagem viva. (1989c, p. 190) Vygotsky diz que a necessidade de oferecer uma educagao po- litico-social 4 crianga surda — seu objetivo — ficou prejudicada devido a dificuldade lingitistica dessas criangas. No principio se pensava que a solucao para o desenvolvimento natural da lingua- gem era uma educagao social. S6 mais tarde percebeu-se que a propria educacao politico-social necessita indispensavelmente do desenvolvimento lingiifstico como uma de suas premissas psico- ldgicas fundamentais e teve como solugao a utilizagao da lingua de sinais, [...] com cuja ajuda a crianga surda péde assimilar uma sé- tie de postulados, pensamentos, informagées, sem os quais © contetido de sua educagao politico-social seria absoluta- mente inttil e ineficaz. (1989c, p. 190) Ramos ressalta que foi Vygotsky quem iniciou a oposic¢ao ao oralismo na Russia, filosofia que dominava desde 1870, e diz tam- bém que ele foi um dos primeiros autores do mundo a considerar a lingua de sinais um sistema lingiifstico especifico. A CRIANCA SURDA Esta situagao é de extrema importancia, e é preciso mais uma vez ressaltar que a crianga surda (portadora de surdez severa e/ou profunda) nao tem condig6es de adquirir a lingua oral apenas pelo didlogo. Ela necessita sempre de terapia fonoaudioldgica que possa oferecer estimulagao sistematizada da lingua oral. Por mais que se tente contextualizar o ensino da lingua oral para criangas surdas, ela seré sempre artificial, pois a crianga sur- da nao tem o principal sensor necessario a aquisi¢ao desse tipo de lingua. Por isso, quando se diz que a crianga surda deve aprender a lingua oral de forma natural e contextualizada, deve-se compreen- der que esse aprendizado serd sempre artificial, sistematico, po- dendo, no entanto, procurar ser 0 mais natural e contextualizado possivel, tanto na terapia, criando situagdes que provoquem a ne- cessidade de um didlogo, quanto em casa, com a familia dialogan- do 0 maximo possivel com a crianga e utilizando os recursos do contexto que possam ajuda-la a compreender 0 que é dito. O atendimento baseado no Oralismo, isto é, o aprendizado da lingua oral de forma sistematizada e ao longo de muitos anos, nao garante o pleno desenvolvimento da crianga surda e nem sua inte- gracdo 4 comunidade ouvinte, ja que apenas 0 dominio dessa lin- gua, em hipGtese alguma possibilita a equiparacao entre pessoas surdas e ouvintes. A maior falha do Oralismo é a utilizagao de um conceito bastante simplista de lingua. Lingua, para esta filosofia, é um conjunto de regras abstratas que tem como fungao a comunicagao, ou seja, uma concepcao Saussuriana. Atualmente, como ja foi dito, existem outras concepgoes de lingua que englobam, além das regras normativas, os falantes e 0 processo discursivo. Esses elementos da lingua,, fundamen- tais, nao sao relevados pelo Oralismo, o que resulta em uma con- cepgao acerca de pessoa surda e de desenvolvimento infantil bastante limitada. O processo de aprendizagem da lingua, oral pela crianca surda € bastante diferente da internalizagao da lingua, por uma crianga ouvinte. Essas diferencas sao determinantes, pois, como foi visto anteriormente, é pelo processo de internalizagao de uma lingua que se desenvolve o pensamento, a cognic¢ao da crian¢a. 90 A_CRIANCA SURDA tos concretos e presentes. A utilizagdo de gestos e mimicas contra- ria os pressupostos da filosofia oralista. Pelas observagGes que tenho realizado no contato com surdos e familiares e também baseada no artigo de Pereira, posso supor que a grande maioria das familias de criangas surdas utiliza gestos espontaneos para comunicar-se com os filhos. Pereira cita pesquisas de Feldman, Goldin-Meadow e Gleitman que relatam um desenvolvimento de comunicagao gestual mais complexa por parte das criancgas surdas expostas apenas ao Ora- lismo que a de seus pais. Esses autores atribuem este fato a uma capacidade inata do ser humano para a aquisi¢ao da linguagem. No entanto, independentemente da conclusao desses autores, que nao é compartilhada nesta obra, pode-se perceber que os pais desta pesquisa, mesmo recebendo orientagao da filosofia oralista, comu- nicam-se por meio de gestos com as criangas surdas. Pereira pesquisou por trés anos a relagao entre criangas sur- das expostas 4 educagao oralista e suas maes. Ela verificou que as maes priorizam a comunicagao oral, mas utilizam gestos e procu- ram compreender os gestos utilizados por seus filhos. E conclui que o desenvolvimento da comunicagao gestual nao se deve a dons inatos da crianga e sim 4 interagao entre a crianga e seus pais, colegas e outros. Nas situacées de bloqueio de comunicag¢ao, nao sé as criangas surdas sentem-se angustiadas, seus pais também se sentem defi- cientes por nao conseguirem transmitir a seus filhos surdos tudo © que gostariam. A necessidade de comunicagao entre pais e fi- lhos provoca, na maioria das vezes, a utilizagao de gestos e mimi- cas por parte desses. Na visao do Oralismo, 0 surdo é um deficiente que precisa a qualquer custo aprender uma lingua que possibilite sua aceitagao na comunidade geral. Essa visao acarretou (e ainda acarreta) mui- tos problemas em nivel de auto-imagem para os surdos. Por um lado, os que conseguiram, por meio de muito esforgo, dominar a lingua oral e perceberam que esse dominio nao garantiu necessa- riamente sua participagao ativa na comunidade ouvinte, por apre- sentarem dificuldades na articulagao da fala e, sobretudo, por terem crescido sem o suporte lingiiistico necessdrio, tornaram-se, alguns 96 ANALISE CRITICA DAS FILOSOFIAS Estes elementos da lingua estao ausentes nos cédigos visuais uti- lizados em conjunto com a lingua oral pelos profissionais da Comu- nicagao Total e nao permitem 4 crianga exercer uma comunicagao mais complexa, além de nao servir como instrumento do pensamento e de internalizagao de uma cultura, que é determinante na forma¢gao da subjetividade da crianga. O objetivo da utilizagao desses cédigos que acompanham a lingua oral é facilitar a aprendizagem dessa lin- gua. Os cédigos nao podem exercer as fungdes de uma lingua,, assim podemos considerar que a crianga surda exposta a este tipo de esti- mulagao nao tem contato com uma lingua, que possa ser adquirida naturalmente, como a lingua de sinais. Alguns autores, como Brito, até, consideram a Comunicagao Total uma variacao do Oralismo. No caso das linguas sinalizadas, que sao linguas artificiais cria- das de acordo com o léxico da lingua de sinais e das estruturas sintdticas da lingua oral, a situacgao é diferente. A Comunicacgéo Total valoriza a criagao dessa lingua, j4 que, ao contrario das lin- guas de sinais, ela pode acompanhar a fala oral’. As linguas sinali- zadas podem possuir a maioria dos elementos constitutivos das linguas, mas nao possuem o elemento “produto cultural”, jé que nao sao criadas na comunidade de falantes. Impor ao surdo uma lingua artificial, criada por profissionais para aproximar a lingua de sinais da lingua oral, nao é a melhor solucao para o desenvolvi- mento da crianca surda e muito menos para a preservacao de uma cultura que surgiu espontaneamente e que deve, portanto, ser res- peitada e valorizada como todas as outras. Conclui-se, entao, que a Comunicagao Total valoriza a comunicagao e a interagao entre sur- dos e ouvintes, mas nao as caracteristicas histéricas e culturais das linguas de sinais que estao presentes de forma subliminar em todas as situacao de comunica¢do em que os falantes participam. Bakhtin ressalva varias vezes a questao histérica e cultural das linguas. A Libras carrega caracteristicas marcadas pela histéria dos 9. A Lingua de Sinais nao pode ser utilizada concomitantemente com a lingua oral por ambas possuirem estruturas diferentes. Quando um individuo tenta utilizar as duas linguas ao mesmo tempo, inevitavelmente uma lingua é prejudicada e o falante passa a utilizar um pidgin. 103 DESCRIGAO DE UM CASO André, ao contrario, conseguiu contar as histérias, porque compre- endeu e memorizou com aparente facilidade os pontos relevantes. André utiliza provavelmente a memoria mediada pela lingua- gem. Esse tipo de mem6ria é utilizada inclusive em atividades apa- rentemente nao-verbais, como no video do Pluto, que é mudo. André s6 conseguiu compreender esse video gracas a sua visao de mundo ea forma de generalizar especifica de sua cultura. André relatou toda a histéria na seqiiéncia correta, atendo-se aos dados significativos para o desenlace do enredo. Mostrou ter compreendido bem a histéria e também uma boa capacidade de reconta-la. Exemplo: Pq, - Do Pluto. Como é que foi a histéria do Pluto? A- Ado Pluto, (.?.) €que... Pq, - Fala alto. A-O Pluto e aquela cadelinha foram (.?. - 0 som da voz é abafado por barulho externo). Pq, - Fala alto. Pera ai, pera at, deixa passar 0 caminhdao. A-E sentiram o cheiro é, de salsicha. Pq,-E ai? A- Afeles foram atrds dele, ai a cadelinha viu os cachorrinhos, cha- mou 0 Pluto pra ir ver, pra ficarem... Pq, - Essa cadelinha é 0 que dos cachorrinhos? A-Mée. Pq, - Ah, mde dos cachorrinhos. Que que ela é do Pluto? A-E; namorada, né? Pq, - Namorada do Pluto. Td; e ai continua, ai chamou pra ver os cachorrinhos, e ai? A- Pra ficar é, tomando conta do cachorrinho. At foi ld buscar salsicha pros... foi ld no cach... ali, ali (.?.), at todos os cachorros satram, 0 Pluto teve que colo... 0 Pluto teve que colocar todos Id na casinha. Pq, - Foi facil? A- Nao, foi muito dificil. 151 CONCLUSAO criagéo de cédigos e linguas artificiais independentes do meio socioeconémico e cultural. O bilingitismo é a melhor opgao educacional para a crianga sur- da, pois a expde a uma lingua, de facil acesso, a lingua de sinais, que pode evitar o atraso de linguagem e possibilitar pleno desen- volvimento cognitivo, além de expor a crianga a lingua oral, que é essencial para seu convivio com a comunidade ouvinte e com sua propria familia. A educagao baseada no bilingiiismo parte do didlogo, da con- versa¢ao, como ocorre com criangas ouvintes, possibilitando a in- ternalizacdo da linguagem e o desenvolvimento das funcdes mentais superiores. Hoje, no Brasil e especificamente no Rio de Janeiro, talvez esteja- mos passando por um periodo de transigao entre as idéias oralistas ea liberdade de utilizagao da Libras. O bilingiiismo, sendo bem uti- lizado, ou seja, expondo a crianga surda a comunidade que utiliza a Libras e possibilitando a aquisi¢ao dessa lingua por meio didlogos, somada 4 estimulacao sistematica dos residuos auditivos e da lin- gua oral, pode oferecer iguais condi¢Ges de aprendizagem e desen- volvimento para criangas surdas em comparacao com as ouvintes. A relacdo entre pais ouvintes e filhos surdos ainda 6 um ponto dificil, pois a crianga surda pequena nao tem condigées de adquirir a lingua e cultura de seus pais espontaneamente, como as crian¢as ouvintes. No entanto, como foi dito no decorrer do livro, a educagao bilingiie e bicultural é a que mais propicia condi¢Ges de proximida- de entre as criangas surdas e seus pais ouvintes. A anilise das interages de Gustavo e sua familia confirmou a necessidade de uma boa estimulagao lingiiistica, com interagdes dialdgicas, para o desenvolvimento cognitivo. A dificuldade comu- nicativa de Gustavo provocou uma série de conseqiiéncias no seu comportamento e na esfera cognitiva, como nas brincadeiras, capa- cidade de abstracao e outras. Embora a pesquisa empirica tenha-se restringido a um caso, ele nao deve ser percebido como isolado. Ao contrario, Gustavo pode ser considerado uma crianga surda privilegiada por pertencer a classe média do Rio de Janeiro, receber tratamento fonoaudiolégico de qualidade, ter uma familia esclarecida que permite e estimula o 165

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