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O artista como curador RicarDo assunto deste texto é mesmo um tema pertinente & presente edicao do Panorama: o transito do artista através de fungdes que ultrapassam a sua posicio como simples produtor de obras de arte, D recuo no tempo pode parecer dema- siado, mas a condicdo de ser um artista tem sido extremamente fluida, desde o abando- no dz artesania e virtuosismo como condi- 6es « priori para a produgao da obra (encon- tramos ainda em Mario de Andrade uma in- sisténcia muito grande neste ponto) e sua inser¢io numa ordem econémica de merca- do (sempre marcada por contradigdes e con- flitos|- transformagdes que remontam ao inicic da era moderna ~ até as discussdes acerca da morte do sujeito (do autor, do ar- tista.) durante a euforia estruturalista, che- gando a0 conceitualismo e aos experimen- talismos diversos com sua dupla insisténcia em especificidade e desaparecimento. Ha muites décadas, os contornos do que pode ou nio ser uma obra de arte dissolveram-se por completo, traco que se acirra no pés 1945 com a positivagio da fiiria negativa e iréni- a das vanguardas histéricas. Percebe-se logo que ser (ou no) um artista nao é algo de que se possam exigir limites rigidos ou absolutos, revelando-se mais como um tran- sito, um certo deslocamento através das coi- BasBAUM sas combinado com a produgao de um espa- 60 particular de problemas (0 lugar do “poé- tico”, que Bataille associa ao “mal”, um determinado formular de questdes em que objetos, situacées, eventos e uma certa con- figuracdo do sensivel estao envolvidos: este individuo (ou coletivo, claro) insere-se (é in- serido: trata-se de uma atribuigéo que ne- cessariamente envolve alteridade) numa tede de dinémicas e num contorno deespa- cialidade em que se movimenta, deflagran- do toda uma economia prépria deste con- junto de operacdes. Assim postos, os limites que jogam com a determinagao e a identi- dade do artista nao mais se configuram em simples problema de cruzamento de frontei- ras (entrar e sair), mas sim enquanto deli- neadores de uma figura de espacial:dade que acaba conduzida a vivenciar estes atra- vessamentos a partir de uma possivel sin- gularidade de insergio: escapar das deter- minagées de um campo ou mesmo amplifi- car sua atuacao a partir de uma deliberada mistura de linhas de identidade marcam também a seu modo o territério do artista e suas realizacdes ~ traco muito claro em al- gumas das mais importantes trajetérias ar- tisticas do século XX, em suas superposigoes entre arte e ciéncia, literatura, filosofia, pedagogia etc, Seria interessante comentar algumas impressées de tais estratégias de superposicio a partir da experiéncia da in- ‘ven¢io e produgao de exposigdes -o campo das agdes identificadas como “curadoria”. Nao se trata de “ser artista todo o tem- po", ainda que Andre Breton tenha nos lem- brado que o artista trabalha também dor- mindo, mas considerar certa ordem de cit- cunstincias em meio ao desempenho de fungdes variadas, sem deixar de prestar atencao a determinado elenco de questdes: certamente 0 artista guarda como tesouro sua proximidade com a obra, exibindo os- tensivamente um perfil cir rmanobras da produgao, No hé como elimi nara mistura com 0 trabalho que o singula- riza, com o qual estabelece compromissoea partir do qual aparece sintomaticamente contaminado, a arrastar ou buscar afinida des e ressondincias deste contagio: como ele- ‘mento antipoda, apresenta-se uma perma: nente ansia por alteridade que ao mesmo tempo desperta e desmobiliza 0 processo das contaminagées, tornando clara uma di ensio de permanente relatividade e frag- mentacio de qualquer gesto e resultado. Como se para o artista existisse a constante demanda peta instauragae de um centro, a partir do qual tudo gravita de modo centri- peto e centrifugo: perceber a relatividade de sua prépria posigio central é algo que custa muito caro a qualquer poética e todo 0 ar- tista se cerca de variados cuidados rituais neste deslocamento. Se hoje este gestofigu- ra como ferramenta importante ~ saber per- ceber e habitar 0 espaco de mediagoes em que se constroem as nodes do “eu"e do “ou- tro* ~ € certamente como sintoma de uma época em que se nota claramente a transi- toriedade das regiées centrais, sua efemeri- dade e condigio de continuo deslocamento, sta movimentagio para fora de sino dei- se com as ‘xa de ser uma condigio do proprio exercicio do gesto poético, que foge do loop narcisico e busca hospedagem no corpo do outro ~ es- pectador, audiéncia, piblico...~ mas que também pode ser encontrada no elenco de praticas daqueles artistas que se inscrevem na tradigao de hibridizacao junto a posticas alheias, em que buscam as singularidades da alteridade conforme se manifestam atra- -vés de seu proprio jogo de corpo: 0 exercicio de atividades — institucionalizadas em mai- ‘or ou menor grau ~ de interlocucio informal e producio critica, por exemplo, ou de agen- ciamento de trabalhos e curadoria. Tais ar- tistas de algum modo colocam-se como atra- vessadores a partir de quem miltiplas alte- ridades vém a se constituir discursiva ou espacialmente - mas 0 decisivo acaba sen- do mesmo a (feliz) impossibilidade de anu- lamento da propria poética, cuja presence produz o tempero caracteristico desta ex- pressividade hibrida e miltipla: falar do ‘outro sempre através de si mesmo é falar de si através do outro, Dai ndo ser simples co. incidéncia ou “acidente lirico” o fato de mui- tos dos principais criticos de arte serem po- tas, escritores inventores de linguagem: na inevitével explicitagdo de sua condicao de proximidade para com a palavra é que se passam as manobras e operacdes verdadei- ramente intersignicas em que volumes de sentides e camadas de jufzos sio manusea- dos - espacos que incorporam transcriagoes imagem/palavra em que aquele que escre- ve igualmente transparece enquanto usina de maquinacdes posticas. Se o lugar do agenciamento critico tem sido explicitado como regiao de invengio de linguagem - espago em que a discuss cri- tica se aproxima de sua dimensao poética, sob o efeito de “poéticas em entrelagamen- ‘o que se passa no caso do possivel "jogo EAD ANTE Ho MASH: FEUATCASCONTEMPORANEAS curatorial", quando a aco de agenciamen- t0 6 voltada especificamente para a constru- de exposicdes? Na perspectiva até aqui desenvolvida, 0 artista como curador situa~ se inicialmente a partir de um nao-aniqui- Jamento - quase uma afirmacao, talvez dos pardmetros de seu préprio fazer. Entretan- to,a perspectiva af colocada afasta-se de um simples agenciamento discursivo, para in- corporar a dimensao da realizecao de um evento: 0 ntimero de variaveis envolvidas aumenta enormemente (mas um evento pode ter qualquer dimensio, micro ou ma- cro), uma vez que ha neste caso a experién- ia direta do confronto com as obras, seja de que jeito for. Neste tipo de trabalho ha em geral maior presenca do aparelho instituci- onal, pela obrigatoriedade das condicdes de produgio e organizacao do evento, tornan- do inevitavel um enfrentamento burocrati- cocom questes organizacionaise financei- ras: pode ser tentador afastar-se das especi- ficidades de linguagem proprias deste setor mas no hé como eliminé-tas, jé que signifi- cam mesmo cuidar das dimensoas de viabi- lidade da exposicio em seus miiltiplos com- promissos e em seu jogo econdmico. Ainda que a légica de producdo da arte contempo- ranea tenha ha muito assumide uma rele- ao esclarecida nos termos de sua insergio no fluxo do capital, esta é uma questo em que sempre se encontrar um fio de tens absolutamente insoltivel, no choque entre diferentes utilizagdes do tempo e na admi- nistragdo dos resultados. Talvez se possam indicar pistas deste antagonismo através das figuras do “puiblico” e do “espectador’ enquanto que o primeiro é caracteristica- mente definido através de ntimecos (“quan- tos visitantes?") ou estatisticas classificaté rias (“de que faixa etaria, idade ou classe social?"), 0 segundo revelaria um persona- gem singularizado em contato direto com a obra, envolvido em um proceso de fruicio sensorial. Em termos ideais, uma exposicao ou evento bem-sucedido seria aquele em que o individuo entra enquanto “ptiblico” e sai "espectador”, transformado pela experi- 8ncia, tocado pela obra de arte - e tocando- a. No balango destas duas posicoes extremas estariam envolvidas questoes acerca da fun cionalidade da arte e sua busca por resulta dos “em tempo real’: enquanto o contador checa o balango para auferir as contas em busca do saldo positivo ou crescente, ansio- 50 por transmiti-lo ao patrocinador, o poeta contabilizaria a conquista de questées cuja conclusio permanece em aberto, problemas no sentido de uma proximidade com os flu- x0s da vida e da existéncia, tragos de senso- rialidade e percep¢do em atualizacao atra- vés da experiéncia do aqui e agora, Ainda que nenhuma dicotomia se expresse no mundo real de modo tao linear, estes dois pélos estabelecem demandas-chave do evento, cada qual exercendo seu magnetis- ‘mo e posicionando os personagens durante © processo, indicando o perfil da realizacao através da énfase nesta ou naquela direcao (que fique claro: nao existem apenas duas, mas a combinatéria das possibilidades en- volvidas nas linhas de fuga do binarismo simplificador, atingindo-se sempre condi- ‘es reais complexas). E interessante perceber, nesse sentido, o gesto do artista David Medalla ao conceber a London Biennale 2000, intitulando-se seu “presidente e fundador”: 0 projeto consistiu na construgao de um evento “totalmente ge- rado por artistas”, que utilizando a marca de uma “bienal” imprimisse um funciona- mento completamente diverso do esperado ‘em uma situaco com esta caracteristica, de ‘modo a desenvolver um modelo mais orga- sas coutentnondntas nico e menos burocratizado e hierarquizado. Claro que se trata mesmo de um comenté- rio critico ao gigantismo de um certo tipo de evento de arte contemporinea, mas ha ain- da a vontade de construir uma intervencao neste debate, ao tornar exeqiiivel um outro formato de atuacdo. Se as linguagens da arte j4 incorporam em suas criticas uma inteli- géncia do circuito - estratégias, mediagées, construgdo de imagem, manobras politicas etc. - a London Biennale 2000 constréi sua presenga a partir de um aproveitamento desta possibilidade: ao deslocar seus habi- tuais procedimentos poéticos (“funciona- lizando-os" de outro modo) para a adminis- tragdo de um acontecimento artistico cole- tivo ~na passagem das atribuigdes do artis- ta para aquelas de “presidente e fundador” (curador?) -Medalla contamina a linguagem do dirigente institucional com a mesma di- ‘mensio erética e sedutora que imprime em seus trabalhos; porém aqui ela desliza para outro de maneira diversa, solicitando-o nao enquanto espectador, mas reconhecendo nele a competéncia para o desenvolvimen- to de jogos de linguagem sofisticados legi- timando-o como parte do tecido da arte con- temporanea. 0 interesse mobilizado pelo evento inventado por Medalla decorre do sucesso desta operacio de superposicao de papéis e redirecionamento postico, que tan- to reposicionaram um evento de dimensao coletiva em um formato Agile aberto quanto adicionaram uma outra camada de sentido a0 seu préprio trabalho. Dentro do Ambito desta mostra - Pano- rama 2001 ~ a questo se apresenta com al- ‘gumas nuances proprias, e é evidente que ‘tomou parte mesmo de seu projeto de cons- truco: é inegavel a atengao dispensada a esta situagio de atravessamento de papéis, desde a presenga entre 0s curadores de al- guém que nfio exerce a atividade em tempo integral e possui uma trajetéria de interven go no circuito enquanto artista, até o con- vite para a participagio na exposi¢go de uma série de nomes cujo percurso ¢ marcado por este tipo de transito. Também o interesse em relagao aos projetos coletivos de artistas em que a posigao de um artista-agenciador fica absolutamente explicita ~revela as pistas de uma investigagdo em curso em torno do lu} gar do artista e suas atribuigdes, limites e linhas de fuga. Quando se olham de perto as corganizacdes coordenadas por artistas, um aspecto que imediatamente vem & tona éa desconformidade, para a maioria de seus membros, a0 modelo da “carreira” artistica ~ © chamado modelo “de sucesso”, indicando como deve ser o “artista bem-sucedido” (no se trata de uma imposigao, mas de um mo- delo que se percebe hegeménico, também sujeito @ mudancas e transigSes), parece nao admitir lugar (s6 a custa de muita insistén- cia e persisténcia) para estes trajetos que inventam e acumulam outros percursos frente ao circuito; talvez esta comparacao possa ser mais produtiva se olharmos essas diferencas em termos de modelos de espa: cialidade, em que a posicao deste ou daquele papel é percebida em seus espacos de mo- vimentacio, deslocamento e mapeamento. A mecanica do circuito nao é inocente ou natural, claro, e, mais do que isso, eviden- cia-se francamente- nao ha nenhuma novi- dade neste enunciado ~ em sua premiagao imediata outorgada através do estimulo aos formatos de “carreira” que consagram a cur- to prazo o artista individual produtor de objetos de comercializacao nao-problemiti- cca: este 6 um dado que pertence a uma es- pécie de Iégica estrutural do sociocapital e que permeia mesmo diversas camadas do real - tanto estruturas quanto corpos. Mais, ravncas conemronineas uma vez, fugindo de qualquer esquematis- ‘mo, um olhar mais curioso deve trazer a tona trajetérias que tragam diversas outras espa- Cialidades, em que o artista emerge em po- sigdes de hibridizagdes poéticas variadas e constrdi insercdes de identidade na deriva ~ em suas linhas de fuga - de carreirismos ligeitos e automatizados: isto se d& com cer- teza no tracado proposto por estes artistas- agenciadores que se organizam em pélos de proposicao e fomentacao de atividades de arte contempordnea ~ Alpendre, Grupo Ca- melo, Agora/Capacete, Torredo, Linha Imagi- néria, por exemplo. Além da disponibilida- de para refletr sobre suas escolhas poéticas e de linguagem numa matriz que contem- pla 2 recepcao e acolhida do outro a atua- ‘Gao critica que comentamos inicialmente ~ estes artistas tém ainda que administrar a dimensao politica de seus deslocamentos e atitudes, conscientes de como esta sua ago de agenciadores influi na trama de contatos que constituem o circuito de arte~ portas se abrem e se fecham a partir deste jogo (mais uum a ser conduzido..), que influidiretamen- tena recepcao de sua prépria produgdo (que afinal é um dos itens bésicos na legitimagao de seu “estar” dentro do circuito). Talvez um primeiro balango que se pos- sa fazer da presenca de diversas estratégi- as coordenadas por artistas no atual mo- mento da arte brasileira, assim como da atuagao, consciéncia e consisténcia de di- ferentes e variados artistas que negociam suas presencas no circuito a partir de uma caracterizacao muito menos estreita de seus papéis enquanto “produtores de arte’, deva passar pela percepcao de que esta em ‘curso um outro arranjo poético da cultura ~ um periodo de invencfo de estruturas de pertencimento e narrativas legitimadoras: ha um desejo de escrever (ou reescrever) inscrigdes, deslocar certos acomodamentos para um arranjo mais dinamico e produti- vo, movimentar e reinventar mecanismos € circulagdes, Quando o postico se aproxi- ma deste modo do jogo institucional (do qual nao deveria realmente se afastar), for- sando sua presenca junto as demandas mais formais e pesadas da economia, buro- cracia e hierarquia politica e social, é sin- toma e sinal de que alguma agudeza de preparagao e delicadeza de pensamento esto sendo reivindicados como ferramen- tas necessarias ~ menos idealizadas e mais, préximas das lutas do dia-a-dia. Nao é por aacaso que manobras antagénicas, de gran- de porte ~ sempre sob a aura de alguma srandiosidade desmesurada ou truculéncia na conducao do proceso -, esto em curso no presente momento enquanto estratégi- as ligadas a construcao de uma possivel realidade da arte brasileira para exporta- ‘do: tal antagonismo entre “presenca insi- nuante do poético” versus “grandiosidade Drutalista do jogo econémico-institucional” somente confirma a importancia do sinto- ‘ma e aponta como o primeiro termo da di- cotomia a se faz significative e decisivo no quadro da atualidade. Um momento assim agrega ainda importancia por indicar mo- idade e potencialidade de transforma- ‘so, mas nao enquanto jogo utépico e sim como resultado de dinamicas imediatas, em rocesso de ebuli¢ao e de conquista de efi- ciéncia, a0 seu modo. Existe uma expresso de cunho modernista que entretanto guar- da importante atualidade: “cada vitéria do artista é uma derrota para a sociedade" ~ no se trata aqui de um confronto (hoje in- génuo) entre aristocracia cultural e piblico burgués banalizado, mas sim de uma fun- ‘so do poético que nao se deve perder de vista, portadora de um horizonte de resul- tados que néo se contabilizam em cifras, ‘mas em intensidade perceptiva, desnatu- ralizacao e questionamentos. E sempre in- teressante quando se percebe a arte a se aparelhar com um tecido poético-institucio- Notas 1. Ver Baudelaire de Georges Batile, em A Literatura co Mal, Pesto Alegre, LUPM, 1585, 20 parigrafo nical da carta convite excita por Da vid Medalla paras London Biennale 2000 dizi -A Bi ‘nal de Londres serd inteitamente ealzada por artis- tas. Estard aberta para qualquer artista de qualquer Juger do mundo. Néo haverd restrgio de idade, sexo (ginore),nacionalidade ou aca, Um artista pode par tipar da biena simplesmente envisndo tres copias— nal que incorpora em sua pratica dimen- ‘sdes nao-discursivas de linguagem; tais si- tuagdes nao sao freqientes, de modo que, quando ocorrem, merecem atengio eum olhar cuidadoso, para mim em meu endereco em Bracknell - de uma fotografia (no tamanho aproximado de um carto-poe: tal de si mesmo (a (ou de wma pessoa préxima) por tando uma fecha (de qualquer tamanio ov materia) Inserita com a6 palavras "Bienal de Londres 2000" ‘seuproprio nome (a fotografia deve ser trad em ren te estdtua de Eros em Piceadilly Circus, Londres). "io hi tara de inserga0-Text integral deponivel en hupy/wworlondonbiennalecorg.

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