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Revista Critica de Ciéncias Sociais CLAUDINO FERREIRA Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra Centro de Estudos Socials A Exposic¢ao Mundial de Lisboa de 1998: contextos de produgao de cultural! um mega-evento Partindo da ideia de que a Exposi¢ao Mundial de Lisboa é uma manifesta- ¢40 cultural complexa, este artigo procura desenvolver um conjunto de finhas de discussao sociolégica em tomo da produgao do evento e da sua_articulagao. com os universos sooiais, culturais e politicos mais amplos em que se insere. Centrando tualizagao do evento: a insercao da Expo'98 no movimento histérico de organizagao das. Exoosi¢des interna- cionais; as condigbes politicas © cul turais em que 0 projecto da Exposi- $20 Mundial surge @ se desenvolve am Portugal; 0 papel dos profissio- nais, das competéncias especializa- das’ e dos processos técnicos que {@ atengao nos contexios, nos proces- SoS @ Nos agentes da sua produga 0 artigo aborda trés niveis de conte, concorrem para a exacugao do pro- jecto e para a modelacéo do seu cor- tetido. Expo’98 é uma manifestacao cultural complexa Como em todas as outras grandes exposigées internacionais, nela se cruzam agentes, interesses e racionalidades culturais diversos, heterogéneos e, por vezes, mesmo contradit6rios; nela se revelam tensdes entre influéncias e condicionalismos de natureza internacional e designios de cariz nacional e local; nela se exercem miultiplas mediagdes entre o mundo da cultura e as esferas da politica, do mercado, do planeamento urbano; finalmente, nela se projectam interesses e objectivos e se produzem efeitos que vao muito para além do seu resul- 1 Este ensaio apoia-se nas pesquisas que tém vindo a ser desenvolvidas a respeito da Expo’98 em dois projactos de investigagao em curso no Centro de Estudos Sociais, sob patrocinio da Fundagao para a Ciéncia e a Tecnologia, sobre os temas gerais «A sociedade portuguesa perante os desafios da globali- zago» e «Culluras urbanas € Imagens das cidades». Quero expressar aqui 0 ‘meu agradecimento a Carlos Fortuna, pelos portinentes comentarios e suges- tOes que fez a este artigo e pelo apoio que tem dado a investicagao que estou fa conduzir. A Paula Abrou © Paulo Peixoto agradogo igualmanto os comenta- rios a este texto @ a Teresa Lello 0 apoio na tradugao da epigrate. Nest Junho 1998 1. Introdugao Festas da paze ostentacao do pro- gresso — a exalta- (40 das primoiras exposipdes univer- sais vai-se esfu- mando no século XX. [...] Sord que esta mudanga vem dar razao aqueles que, ao longo de varias goragées, tém anunciado o fim das exposicdes universais? Para comegar, nao pode- mos esquecer as transformagées 43 44 Claudino Ferreira que, desde o século passado, a organi- zago destas mani: festacdes tem softido [...]. De local que acolhia produ- tos, a exposipéo tor- nou-se, ela prépria, um produto, (Schroeder-Gude- hus e Rasmussen, 1992: 7) tado mais efémero e mais directamente visivel: a grande feira de cultura e lazer oferecida a fruigao dos visitantes. A Expo’98 é, simultaneamente, uma forma de oferta cultu- ral plurifacetada, um instrumento de politica cultural e um espago de circulagao de sentidos e representagdes acerca do mundo, das nagoes, da vida colectiva. Mas nestas suas voca- g0es, de cariz mais estritamente cultural, projectam-se igual mente interesses de outra natureza — politica, diplomatica, econémica, urbanistica —, atribuindo @ exposigao uma ampli- tude e um conjunto de ambigdes que transcendem a sua materialidade imediata. Acresce ainda que a organizagéo de uma Exposicao Mundial é feita no equilibrio instavel entre duas ordens de condicionantes: por um lado, a tradigao e as regras que inspiram e normalizam internacionalmente a orga- nizagao deste tipo de eventos; por outro lado, os interesses locais e nacionais que noles se jogam. ‘A Exposigao Mundial de Lisboa é assim o resultado de um processo dinamico e complexo, feito de miiltiplos compro- missos e negociagdes, de variadas mediagGes e circunstan- cialismos. Por isso mesmo, a compreensao de um evento desta natureza nao pode circunscrever-se ao espaco e ao tempo da sua duracao efémera. Pelo contrario, um dos princi- pais desafios que a complexidade da Expo’98 coloca a inves- tigagdo sociolégica 6 0 de procurar situd-la no tempo ¢ nas circunstancias que a geraram e Ihe deram forma, surpreen- dendo os compromissos em que a sua producdo assenta e detectando as dinamicas culturais, sociais e politicas que nela se reflectem. Num ensaio recente, Sharon Macdonald sugere que uma das principais vocagées da investigacao sobre os museus e as praticas expositivas deve ser a de procurar desvendar e compreender 0 lado menos visivel das exposigdes: os pres- supostos, as légicas, as opgdes, 0s compromissos, as contin- géncias que conduzem ao resultado final dado a ver ao publico. Nas suas palavras, as exposigSes sao em geral apresentadas ao publico «como algo fechado em caixas transparentes», isto é, «como objectos que estado ali para serem admirados e entendidas em si mesmos [...], como afir- magdes inequivocas mais do que como produtos de proces- sos © contextos particulares» (Macdonald, 1998: 2). E, no entanto, nestes contextos e processos que reside uma das principais chaves para a compreensao, quer dos contetidos finais de uma exposigao, quer dos seus significados mais amplos. Daf o apelo da autora para que o estudo destas manifestagdes recuse fechar-se numa visao internalista e se esforce por relacionar os contetidos expositivos com os pro- cessos sociais, culturais e politicos que presidem a sua pro- dugao. E em consonéncia com esta perspectiva que me propo- nho, neste artigo, fazer uma abordagem exploratéria sobre a realizacao da Expo'98, desenvolvendo algumas linhas de reflexao © hipdteses de trabalho em torno dos contextos, dos agentes e dos processos subjacentes a produgao do evento2, Procurarei reflectir, respectivamente, sobre os trés niveis contextuais em que se revelam as varias logicas de produgao do evento e se manifestam os factores que lhe conferem complexidade: em primeiro lugar, 0 contexto mais geral do movimento das Exposiges Internacionais e a insergao da Expo'98 nesse movimento; em segundo lugar, as condigdes politicas e sécio-culturais que, no plano nacional, enquadram ‘© surgimento do projecto e a detinigao das orientagdes estra- tégicas que conduzem a sua organizagao; em terceiro lugar, os contextos da execugao do projecto, ou seja, 0 papel dos profissionais, das competéncias € dos processos que concor- rem, no plano técnico e organizacional, para a produgao dos contetidos da exposicao A primeira questo a considerar remete para a insergéo da Expo’98 no movimento das Exposigées Internacionais® e, 2 Para esse efeito, apoio-me em algumas das hipoteses de trabalho e dos resuttados provisorios da investigacdo sobre a Expo'98 referida na nota 1. Essa invastigagao tem como objectivo principal compreender as ldgicas e os proces- 808 de produgao do evento, procurando relacionar esta manitestagao especi fica com as transformacdes mais globais que se observam quer na estrutura- 40 da esfera cultural em Portugal, quer no movimento intemacional de organ zacéo de Exposigées Universais e Mundial ® Utilizo aqui a designagdo Exposigdes Intemacionais para me referir a0 conjunto das exposigdes 8s quais 6 atribuido o estatuto de universais, mundiais, ou intemacionais @ que Se enquadram no espirito expositivo consagrado pela =Convengao de 1928» ¢ tutelado internacionalmente, desde aquele deta, pelo Bureau International des Expositions (BIE). A criagao do BIE em 1928 e a assi- natura (entéo por 40 paises) daquela Convengao, veio estabelecer uma base institucional e um conjunto de normas regulamentadoras que visavam enqua- drar a organizagéo das muitas exposigdes que, desde meados do século XIX, reivindicavam para si o estatuto de universais ou intemacionais. Estas exposi- goes eram assumidas como manifestagdes nao estritamente comerciais & industriais, incorporando uma vocapao humanista @ pedagégica: a de se const tuirem como montras da cultura e da civilizagao universal, como espacos de divulgago das conquistas tacnolégicas, cientificas e culturais da humanidade. De 1928 para ca, 0 reconhecimento internacional deste estatuto passou a estar dependente do BIE, que foi desenvolvendo uma série de critérios de classifice- (940 das Exposigdes Intemacionais, distinguindo diferentes tipos de eventos em A Exposi¢ao Mundial do Lisboa de 1998 45 2. AExpo’98 de Lisboa eo movimento das Exposigées Internacionais 46 Claudino Ferreira portanto, para os contextos mais amplos em que se enquadra a sua realizac&o. Tanto na sua configuragao como nos seus objectives, como ainda nas circunstancias politicas e culturais que originaram a sua organizacao, a Expo'g8 reflecte as ten- déncias gerais que tem marcado, nas ultimas décadas, a evolugao das Exposigdes Internacionais. Importa, por isso, langar um breve olhar sobre estas tendéncias, comegando por discutir 0 sucesso de que estes mega-eventos continuam a gozar hoje em dia, mau grado o desgaste que cerca de um século e meio de historia exerceu jd sobre eles. De facto, a persisténcia das Exposigdes Internacionais e a sua resisténcia secular a uma morte ha muito anunciada, 6 um dos aspectos que mais interrogagdes tem suscitado entre 0s seus estudicsos e comentadores’. Nascidas na segunda metade do século XIX como mostras massificadas de produ- tos € tecnologias produtivas, rapidamente as Exposicdes Internacionais se tornaram manifestagGes de grande sucesso, consagrando-se como instrumentos privilegiados de difuséo das novidades nos dominios da tecnologia, da cién- cia, da cultura e do lazer; de atracgao das massas para a sociedade do consumo; de competigao emulatéria, nos pla- nos politico e econdmico, entre as nagdes © as cidades desenvolvidas (Benedict, 1983; Williams, 1982). Ao longo do século XX, porém, a sua capacidade de surpreender e mara- fungo da sue abrangéncia tematica, da sua duracdo, da sua area exposiiva e do Seu modelo de organizacao dos contaticas. A tegulamentagao actualmente em vigor no Ambito do BIE distingue, por exerplo, Exposigdes Universais, como a de Sevilha de 1992, ¢ Exposigdes Especializadas, como a de Lisboa de 1998. Apeser das diferengas que as distinguem, ¢ que remetem para os cri: térios atras referidos, umas e outras devem, pretensamente, orientar-se polos objectives enunciados no Protocolo que, em 1972, rectificou'a «Convengao de 1928»: 0 de contribuir para a «educacao do pubblico, fazondo o inventario dos meios de que o homem dispde para Satistazer as necessidades de uma civil zaGao e pondo em destaque, em um cu mais sectores da actividade humana, os progressos realizados ou as perspectivas de futuro» (‘Protocolo de 30 de Novembro de 1972», apud/ Galopin, 1997: 82). Para um balanco da histéria das Exposigoes internacionals, ct. Galopin (1997), Schroeder-Gudehus ¢ Rasmus: sen (1992); Findling e Pelle (1990). * Ao longo da sua historia, e sobretudo durante o século XX, a realizagao de Exposigdes Internacionais suscitou sempre muitas perplexidades € criticas, tanto nos meios intelectuais, como nos meios politicos e empresariais. JA em 1900, a realizagao de uma das mais emblemdticas exoosigdes de sempre — a Exposigéio Universal e Intamacional de Paris — suscitou amplos debates publi- cos, em que se questionavam nao sé a pertinéncia dos pesados investimentos envolvides, mas também a utiidade deste tipo de marifostagdos num mundo que parecia jd nao ter lugar para elas (cf. Le Livre des Expositions Universelles, 1983). Curiosamente, 0 tom das criticas © dos debates pliblicos que a Expo'9é tem suscitado entre nds nao @ muito diferente daquele que envolveu quer a exposigao parisionse, quer a generalidade das Exposigées Intermacionais do século XX. vilhar 0 mundo foi-se dissipando, face ao desenvolvimento dos novos meios de comunicagao a escala planetaria. Como se dissipou também a sua importancia enquanto forum da inovagao e da concorréncia tecnolégica, industrial e comer- cial & escala global (Benedict, 1983). No entanto, elas persistem e parecem ser capazes de reinventar a cada momento as razdes da sua existéncia. Entre as varias justificagdes para esta persisténcia encontra- -se a hipétese sustentada por Brigitte Schroeder-Gudehus e Anne Rasmussen (1992): a de que as Exposigoes Internacio- nais se transformaram num produto. Um produto em torno do qual se constituiu um mercado internacional, cujo funciona- mento movimenta anualmente elevados fluxos financeiros e sustenta 0 processo de profissionalizagao de um amplo sec- tor de especialistas da organizagao de exposigées, feiras e saldes internacionais. Mas trata-se aqui de um produto muito especial que, para além de sustentar um mercado em expansao global, é tam- bém utilizavel para efeitos culturais © politicos de grande impacte. Esse produto exerce uma forte atracgao principal- mente sobre os paises e as cidades que se encontram em processos de conquista ou de reforgo de notabilidade na cena internacional. Com efeito, o que parece observar-se, sobretudo a partir da segunda metade do século XX, 6 que as Exposigées Intemacionais foram sofrendo um processo de gradual periferizagao geografica e politica. Hoje, sao cada vez menos as grandes capitais politicas, econémicas e cultu- rais que se propdem organizar estes mega-eventos. Pelo contrario, so cada vez mais cidades centrais de paises semiperiféricos ou cidades periféricas de paises centrais que se entregam a estes projectos®. E nestes lugares que as Exposigdes Internacionais se revelam actualmente um recurso valioso, quer enquanto instrumentos de politica cultu- ral e urbana, quer enquanto pretexto para a promogao e a valorizacao internacional do pais e da cidade organizadores. ® Esta tendéncia é observavel sobretudo apés a 2¢ Guerra Mundial. Desde entéo para c4, ocorreram Exposigées Universais (ou de «19 categoria», na classificagao mais antiga do BIE) em Bruxelas (1958), Montreal (1987), Osaka (1970) e Sevitha (1992). A préximna, programada pata 2000, decorrera em Han- over. No que se refare as Exposicdes Especializadas, estas t8m-se sitvado quase sempre em cidades relativamente marginais no contexto dos rankings internacionais de cidades. As mais recentes realizaram-se em Vancouver (1986), Brisbane (1988). Plovdiv (1891), Genova (1992), Taejon (1993) e Lis- boa (1998) (cf. Galopin, 1997). Desde ha muito tempo que nenhuma das gran- des capitais que marcaram historicamente o tom das grandes Exposi¢ées Uni- versais (como Londres, Paris ou Nova lorque) assumem esta empresa. ‘A Exposigéo Mundial de Lisboa de 1998 47 48 Claudino Ferreira No novo alento que esta periferizacao trouxe as Exposigoes Internacionais, reside também um dos factores determinantes da sua persisténcia e do seu sucesso contemporaneos. A periferizagdo das Exposigdes Internacionais ¢ a sua transformag&o num produto utilizavel para fins diversos, reflectem-se, naturalmente, tanto na sua forma @ no seu con- tetido, como no seu estatuto € nos seus efeitos. Estes refle- xos fazem-se sentir hoje, sobretudo, na tensao entre a voca- Ao internacionalista e cosmopolita que subjaz ao espirito o cial das Exposigdes Internacionais e os interesses localistas que nelas sao investidos, A este respeito, Tony Bennett (1995) argumenta que as Exposicdes Internacionais sempre foram concebidas na tensao entre duas temporalidades dis- tintas e muitas vezes conflituais: a temporalidade universal e difusa da Modemidade, retoricamente concebida como pro- jecto sem fronteiras; e a temporalidade local e especifica dos paises e das cidades que as organizam, delimitada pola sua histéria © os sous projectos particulares. No século XIX, a articulagao entre estas duas temporalidades sustentava-se na atitude imperialista e hegeménica dos pioneiros na organi- zagao de Exposigdes Internacionais: os paises centrais do mundo capitalista industrial e, nalguns casos, colonial. Con- cebidas como modelos miniaturizados da civilizagao humana, como narrativas globais da ordem universal, as Exposigdes Universais representavam a coincidéncia entre a temporali- dade das nagées organizadoras e a temporalidade universal da humanidade, retoricamente formulada em consonancia com 0 projecto hegeménico e progressista das nacées capi- talistas mais desenvolvidas (Bennett, 1995; Greenhalgh, 1988). Ao longo do século XX, porém, a articulagao entre aque- las duas temporalidades nas Exposigées Internacionais tor- nou-se mais dilematica. Por um lado, tanto no plano simbd- lico, como no plano politico, as Exposigdes Internacionais so hoje menos o contexto da localizagao do global (entenda-se de um projecto global ¢ hegeménico), do que o lugar da glo- balizag&o do local (ou, para ser mais preciso, da aspiragao a globalizagao do local)®. Neste sentido, elas sao essencial- © Um outro aspecto da manifestagéo das dinamicas de localizacao e glo- balizagdo nas Exposicdes Internacionais prende-se com 0 modo como nelas se inscrevem as ligicas do mercado e, sobretudo, as ldgicas de actuagao das muttinacionais. Neste plano, as Exposigées Intemacionais sao espacos profun damente marcados pela globalizacao econémica. Nesse mesmo sentido, como demonstrou Penelope Harvey (1996) a propésito da Expo'92 de Seviha, mente ocasides de afirmagao internacional dos paises ou das cidades que as albergam, o que se revela na propria forma como os objectives internacionais do evento (por exemplo, o tema central da exposicao) sao formulados de maneira a valorizar os anfitrides. Por outro lado, as Exposigées Internacionais sao também projectadas como instrumentos de modernizagao econémica ¢ cultural das regides que as acolhem, como catalisadores de efeitos induzidos, programados sobretudo em obediéncia a interesses locais. Isto ndo impede, todavia, que a organiza- Gao destes mega-eventos seja feila numa tensa negociagao entre condicionantes locais e internacionais e que estas se reflictam nao s6 na filosofia e na retdrica dos eventos, mas também na sua materialidade. Basta pensar que o sucesso das exposigdes esta totalmente depondente da adesao da comunidade internacional, para perceber a natureza dos equilibrios que moldam nao sé a sua organizagao, mas tam- bém o seu contetido. E precisamente no contexto destas linhas evolutivas que a realizaco da Expo'98 deve ser, em primeira instancia, compreendida. Ela surge da confluéncia entre as transforma- des observadas no enquadramento intemacional das gran- des exposigdes © um conjunto de condigdes politicas e cultu- rais que, no interior do pais, criam espago para o desenvolvi- mento de iniciativas desta natureza, E sobre estas Ultimas ‘que me debrugarei no ponto seguinte. Antes, porém, gostaria de salientar duas questdes. A pri- meira prende-se com as circunstancias em que Lisboa con- seguiu inscrever no BIE uma exposigao, num perfodo em que, no Ambito dos acordos e das normas negociadas entre cs paises membros daquela entidade, se procurava refrear ao maximo a proliferag&o de Exposigdes Intemacionais. Visava-se entao evitar 0 seu excessivo desgaste e aliviar os elevados custos que a presenga nos miltiplos eventos repre- sentava para 0s paises participantes’. Tal como a Republica as Exposi¢des Intemacionais sao também o lugar de uma complexa articulagao ‘entre 0 Estado-Nagao, a cultura 2 0 mercado, em que o lacal ¢ © global se fun- dem em formatcs Complexos e diversiticados. Por outro lado. cs eleitos da glo- balizagdo fazem-se iguaimente sentir nos impactos que as tecroiogias de infor- magao e da cultura visual exercem nos mocelos expositivos destas manifesta- 95es culturais, aspecto que esté relacionado com a consolidaggo do mercado internacional @ a profissionalizag3o dos organizadores de mega-eventos a que me referi atrés, Esta questao sera retomada mais adiante. " Dasde a década de 60 até aos nossos dias, foram sendo negociadas no Ambito do BIE uma série de medidas com 0 objectivo Ge criar regras de period- A Exposigao Mundial de Lisboa de 1998 49 50 Claudino Ferreira da Coreia (que organizou Taejon’93), Lisboa conseguiu ladear esta orientagdo politica, aproveitando uma série de excepgdes normativas criadas no BIE com o objectivo de «facultar aos paises de dimensdes mais modestas ou em vias de desenvolvimento» a oportunidade de também eles organizarem exposigdes (Galopin, 1997: 68-69). A segunda questao remete para a maneira como a Expo- sigéo Mundial de Lisboa foi estruturando 0 seu tema geral — «Qs oceanos, um patrimonio para o futuro» — num compro- misso entre os interesses locais e as orientagdes que presi- dem ao enquadramento internacional do evento. Foi em parte em fungdo deste compromisso que, da comemorag3o das descobertas portuguesas, se passou ao tema mais genérico dos oceanos, tema aparentemente mais capaz de concitar a adesao da comunidade internacional e de conferir originali- dade ao evento de Lisboa. Neste sentido, alias, a Expo'98 assume a ambigao de, também ela, contribuir para a reinven- go da razao de ser das Exposigdes Internacionais, afir mando-se, no plano retérico, como 0 ponto de partida para um nova concepeao do papel destes eventos. Nas palavras de Anténio Mega Ferreira, o principal responsavel pela sua concepeao, a Expo'98 propée-se inaugurar uma «filosofia de terceira vaga», sustentada no principio de que «as Exposi- gdes Internacionais poderiam transformar-se em ocasides festivas onde se projectassem, através do tratamento espec- tacular e didactico dos temas, novas perspectivas politicas, econémicas e culturais de resolugao dos problemas mun- diais» (A. M. Ferreira, 1996: 11). Nesta formulagao, a Exposi- go Mundial de Lisboa parece querer, de uma sé vez, justifi- car-se retoricamente a si prépria e ao movimento em que pre- tende inserir-se. Fé-lo secundarizando as motivacgdes comer- ciais das exposigdes e reinventando a sua modernidade cul- tural ao concebé-las como fora politicamente neutrais para debate dos grandes temas mundiais. Esta filosofia parece vir actualizar 2 intuicdo de Tony Bennett, de acordo com a qual «as Exposigoes Internacionais [...], como eventos idealizados cidade que ampliassem o perfado de tempo entre a realizagao de duas exposi- 808, dando expresso as muitas (2 por vezes muito contraditérias) pressoes Que 0s paises membros daquele organismo faziam para conter a proliferacao de Exposig6es Internacionais. Na década de 80, 0 espirito predominante no BIE relativamente a esta materia era especialmente restrtivo, embora os vatlos «protocolos» criados com 0 objectivo de levar a pratica essa contengdo se tenham revelado frequantemente pouco eficazes, como o demonstra a realiza~ (gd0 de duas exposigdes em 1992 (Sevilha e Génova) e de uma em 1993 (Tae- jor). Voja-se, a este respeito, o balan¢o feito por Marcel Galopin (1997) que apenas aguardam um pretexto para acontecer, so obri- gadas a procurar fora de si as ocasides para a sua propria encenacao» (Bennett, 1995: 209) O segundo aspecto que me proponho discutir prende-se com 0 contexto € as condigdes locais do surgimento e desen- volvimento do projecto da Exposicao Mundial de Lisboa. Situ- ando a discussao no plano das decisées estratégicas e da definigao dos objectives e dos contomos gerais do evento, procuro aqui interrogar 0 modo como se criam as condigdes politicas © sécio-culturais favordveis & manifestagao em Por- tugal das tendéncias atrés enunciadas. Vale a pena, a este respeito, atentar nas circunstancias do nascimento do projecto. A Expo'98 nasceu, em 1989, de um programa de comemoragao da viagem de Vasco da Gama a india, concebido no seio da Comissao Nacional para a Comemoragao dos Descobrimentos Portugueses®, Foi na sequéncia da actividade desenvolvida no Aambito desta Comissao e do trabalho programatico e conceptual levado a cabo por um grupo restrito de personalidades que aquele objectivo comemorativo inicial se converteu num projecto mais ambicioso de organizagao de uma Exposigao Mundial sobre 0s oceanos, que 0 Governo aceitaria patrocinar, assu- mindo-se como entidade tutelar e promotora do evento. O desenvolvimento do projecto mobilizaria ainda em seu torno os poderes municipais de Lisboa e Loures e uma série de personalidades oriundas de diversos meios profissionais (@ nomeadamente dos meios culturais, intelectuais, politicos ¢ da administragao publica), que assumiriam a condugdo da Expo'9s. A Expo’98 surge, assim, como um produto dos dinamis- mos gerados nesse espago ambiguo da transicao entre o Estado e a sociedade civil, que, beneficiando da acgao patro- cinadora e reguladora do proprio Estado, cria condigdes para a cooperacao entre as iniciativas publica e privada®. E nesse ® Veja-se, a este respeito, 0 testemunho de Antonio Mega Ferreira (1998). $ No modo como se gerou ¢ desenvolvau sob 0 patrocinia e 2 regulacdo do Estado, a Expo’g8 é, em carta medida, tum produto daquilo que Boaventura de Sousa Santos (1990) designa por «sociedade civil secundéria~. Com efeito, ‘em tomo da sua realizacao abre-se um amolo espaco de oportunidades para a iniciativa da sociedade civil. Mas as condigdes para a geragao dessas oportun- dades dependiem, em larga medida, da intervengo do Estado, quer enquanto entidade tutelar @ legitimadora do projecto (e dos organismos que 0 concebem © operacionalizam: a Comissao Nacional para a Comemoragao dos Descobri- A Exposi¢ao Mundial de Lisboa de 1998 3. Contextos politicos e socio-culturais do projecto da Exposicao 51 Mundial 52 Claudino Ferroira espago que se negoceiam © se estabelecem os arranjos insti- tucionais e os mecanismos de mediagao entre os organismos publicos os agentes privados, o sector cultural e os secto- res politico e econdmico, os actores institucionais e os acto- res individuais, arranjos em que viria a assentar a concretiza- Ao do projecto. E nesse espago também que a projecto se desenvolve © ganha autonomia, tornando-so, ele préprio, potenciador da criaga0 de um novo espago piiblico, onde se abrem oportunidades para a iniciativa de alguns sectores da sociedade civil. Neste contexto, o papel do Estado revela-se crucial, fundamentalmente, pela sua acgao reguladora e mediadora. Dos multiplos compromissos estabelecidos entre estes diversos tipos de agentes, resultou um modelo de exposigao assente num equilibrio, por vezes precdrio, entre trés voca- ges principais: uma vocagao cultural, uma vocagao urbanis- tica e uma vocagao estratégica. No que se refere aos dois primeiros aspectos, a Exposigaéo Mundial foi concebida, desde a sua origem, como um projecto de intervengao cultu- ral e urbanistica, com impactes sobretudo a escala local da cidade de Lisboa e da sua area metropolitana, mas que se repercutem igualmente a escala nacional. Por um lado, seja pela sua propria natureza como espago tematico de exposi- go e espectéculo para fruigdo das massas, seja pela sua oferta cultural complementar®, a Exposigéo Mundial foi pro- gramada como um evento marcante no panorama cultural portugués. Pretendia-se que ela fosse capaz nao sé de mobi- lizar as energias criativas da comunidade artistica nacional, mas também de proporcionar ao pUblico portugués 0 con- tacto com alguma da oferta internacional no dominio das artes, do lazer e da recreagdo, sobretudo daquela que se apoia na utilizagdo das novas tecnologias da imagem e da informagao. Por outro lado, a Expo'98 assumiu também um ambicioso programa urbanistico": a requalificagéo da zona mentos Portugueses, primeiro, e a empresa Parque Expo'98, depois), quer enquanto mediador dos multiplos interesses, publicos e privados, que nele se manifestam ‘© Retiro-me aqui, em particular, aos do's festivals inserides no programa de actividades da Expo'98 e que, pela sua prépria natureza, co dirigam a um pablico ‘elativamente mais restrito: 0 «Festival dos 100 Dias» € 0 «Merguiho no Futuro». 1T Sobre os prossupostes, os objectivos © os projectos do plano do urbani: zagao da Zona de Intervencao da Expo'98. ver Luis Vassalo Rosa (1996 e 1998). Vejam-se iguaimente os trabalhos de Vitor Matias Ferreira e da equipa por ele dirigida, onde se oferece uma andlise sociolégica da evalucao e dos impactes deste plano de urbanizagao (V. M. Ferreira, 1996 e 1997; Castro et al, 1994; Castro et al, 1997) oriental de Lisboa e a sua reconverséo num espaco urbano multifuncional, marcado por uma vocagdo essencialmente cultural e Ididica, assente no papel estruturante atribuido aos equipamentos que ali permanecerao apés a exposigao: 0 Oceanario, 0 Pavilhéo Multiusos, as novas instalagbes da FIL, 0 Teatro Camées, 0 Pavilhao da Realidade Virtual, os Pavilhdes de Portugal e do Conhecimento dos Mares Concebida como um mega-projecto cultural e urbanistico, a Expo’98 seria igualmente investida de uma vocagao estra- tégica: a de promover internacionalmente Lisboa e Portugal. E sobretudo sobre este aspecto, em que cultura e politica se interpenetram de forma mais vincada, que quero ainda debru- car-me aqui, retomando as linhas de discussao enunciadas atras. Nos discursos dos responsaveis pelo evento (seja dos responsdveis politicos, seja dos responsaveis pela concep- go € gesto do projecto), a Expo’98 surge como uma afirma- gao inequivoca da modernidade do pais e da sua capital: um duplo programa de celebragao interna da modemizagao do pais e de promogao externa de Portugal e Lisboa’. Mas mais do que constatar este cardcter celebratério e estraté- gico, ha que discutir em que moldes e sob que circunstancias a Exposig&o Mundial 0 assume. A questao é que a Expo’98 representa, nao apenas uma afitmagao da modernidade do pais e de Lisboa, mas, muito especialmente, uma afirmagao da sua modernidade cultural, colocada por esta via ao sorvigo de objectives politicos, estratégicos e urbanisticos. A realiza- cdo da Expo'98 reflecte, assim, a importancia crescente que a cultura tem vindo a ganhar em Portugal, quer enquanto ins- trumento de revitalizagdo da vida urbana e de reconversao das imagens das cidades, quer enquanto vector da promogao do pais e das suas cidades no contexto da competitividade 2 Nesta vocagdo, a Expo'96 actualiza um dos tragos mais marcentes da tradi¢ao das Exposigbes Intamnacionais, em que se manifesta a sua dimensao mais ritualistica: 0 de se constituirem como espagos de competigao simbslica © politica entre as nacées (Benedict, 1983). Camo assinalam Brigitte Schroecer- “Gudehus @ Anne Rasmussen (1992), a retorica da afirmagae nacional nas ExposigSes Intermacionais j4 nao se manifesta hoje em termos de «alérian, como no século passado, mas antes de «telacdes publicas». No entanto, seja sob uma ou outta formula, o reforante nacional permanece como uma das pedras de toque destes eventos publicos e do seu enquadramento intemnacio- nal. A este respeito, veja-se por exemplo o ostudo do Penelope Harvey (1996) sobre a Expo'92 de Sevilha, onde se demonstra que, apesar de @ exposicao propor leituras desconstrutivas sobre 0 Estado-Nagao, este se mantém como um dos elementos centrais do discurso expositivo e do aparato simdolico em que assenta 0 event. A Exposigao Mundial de Lisboa de 1998 53 54 Claudino Ferreira internacional (Fortuna, 1995 e 1997; Silva, 1995 e 1997; V. M. Ferreira, 1997). Neste contexto, os grandes eventos cultu- rais tém assumido uma relevancia muito especial, nas déca- das mais recentes, no quadro das politicas culturais, quer & escala urbana, quer @ escala nacional. Neste sentido, e de acordo com a hipdtese de trabalho que aqui se pretende sugerir, a Expo'98 deve ser interpretada como parte integrante de um ciclo de grandes iniciativas cul- turais, em que se incluem iguaimente a Europalia de 1991 e as Capitais Europeias da Cultura: Lisboa 1994 e Porto 2001". Este ciclo de iniciativas resulta de acgdes articuladas, ainda que pontuais, entre os poderes central e locais, sob pressao e apoio de algumas franjas das elites nacionais e tegionais. O investimento na promogao destas manitestagdes 6 em larga medida assumido como uma forma de conquistar maior visibilidade, protagonismo e valorizagao simbélica para 0 pais e as suas principais cidades no contexto internacional, e mais concretamente na Europa", Mas também, sobretudo 8 Com a utlizagdo da nogdo de ciclo de grandes iniciativas culturais pro: tendo salientar aqui as potencialidades heuristicas da analise comparada entre um conjunto de eventes que, apresentando algumas linhas de continuidade entre si, sobretudo no que toca ao seu caracter estratégico € politico aos modelos culturais que definem (assentes na légica da grande dimensao e da pluridimensionalidade cultural), parecem refiectir uma das orientagdes que tem marcado a evolugéo das politicas culturais ¢ urbanas em Portugal nos ultimos anos. Neste sentido, scb esta nocéo poderemos igualmente incluir a candida- tura de Portugal a organizagéo do Campeonato Europeu de Futebol em 2004. Uma outra questo a analisar em relacdo com esta, mas que nao é possivel desenvolver no espago limitado deste ensaio, é a da articulagao entie este ciclo @ um outro: o das Comemoragées dos Descobrimentos Portugueses, do qual nasceu a propria Expo's, como referi atras. +f Valo a pena salientar que esta forma de investimento em manifestagSes culturais com vista a promocao politica € simbdlica do pais no exterior encontra antecedentes e ramificagSes em outras iniciativas patrocinadas pelo Estado. Estou a pensar, por exemplo, nas participagces do pais nas Exposicoes Inter- nacionais mais recentes (Sevilha’92, Génova’s2 e Taejcn'93), ou no proteg nismo de Portugal na Feira de Frankfurt em 1997. Entre os trabalhos que tem discutido @ importancia deste tipo de eventos na promogao da imagem de Por- tugal e na definicao de novos modelos culturais, destaque-se a reflexdo de Eduarda Dionisio. Na sua perspectiva, este tipo de empreendimentos, conside- rados como «sinais exteriores de cultura, deixam marcas profundas na paisa- gem cultural portuguesa, entre as quais é de destacar o facto de relorgarem um conceito de cultura que exclui ou marginaliza 0 que no coincide com os modelos culturais que criam: a cultura, por seu Intermédio, torna-se uma imensa montra do Pais.» (Dionisio, 1994: 483). Naturalmente, 0 outro lado desta discussao, aqui apenas sugerido, € o da articulagao entre este modelo de acodo cultural, assente nos grandes eventos e na sua projecgao mediditica, @ as condigdes de apoio a iniciativas culturais de cardcter local e de dimensao mais recuzida, como sejam por exemplo as associagdes © 2s cooperativas locais ou as acrées de animacao cultural na esfera piblica urbana, discutidas, entre outros, por Augusto Santos Silva (1995) e José Madureira Pinto (1985). © no que se refere A Expo’98, de obter beneficios de natureza cultural, diplomatica e econémica mais amplos, que mobili- zam interesses de varios sectores sociais. Este é um aspecto em que Portugal parece acompanhar tendéncias mais globais, observaveis sobretudo no contexto europeu. Como tém demonstrado numerosos estudos, a rea- lizagdo destes mega-eventos tem assumido, sobretudo nas cidades e nas sociedades europeias menos desenvolvidas, uma importancia crucial como instrumento de politicas publi- cas nos dominios cultural ¢ urbanistico. A par de outros pro- cessos de revitalizagao cultural das cidades, a organizacao, pontual ou sistematica, de grandes eventos visa, nao sé a ampliagéo temporaria da oferta cultural, mas também um conjunto mais amplo de efeitos: dinamizagao das economias locais; desenvolvimento do turismo cultural; requalificagao urbana e obten¢&o de novas infra-estruturas para as cidades anfitrias; promogao da imagem intema e extema das cidades € dos paises e afirmagao dos seus recursos materiais e sim- bélicos no contexto da competigao internacional (Bianchini e Parkinson, 1993; MacGregor e¢ Pimlott, 1990; Fortuna, 1997)'5. Este ultimo aspecto é particularmente relevante nos casos dos eventos ptiblicos que se inserem em circuitos internacionais e dos paises e cidades que, ocupando uma posi¢&o relativamente periférica no contexto da concorréncia internacional, encontram nestas manifestagdes, como salien- tei atras, oportunidades Unicas para afirmar o seu cosmopoli- tismo e, por essa via, negociar a sua aproximag&o a uma posig&o mais central'®, No caso especifico de Portugal e da Exposig&o Mundial de Lisboa, nesta filosofia de intervengao cultural no espago que esta aqui em causa é 0 equilibrio entre estes dois tipos de acgao cultural na configuragao da paisagem cultural portuguesa © os efeitos que sobre ola vira a exercer 0 ciclo de grandes iniciativas culturais atras reterido, sobretuco se este vier a encontrar condigdes para se prolongar em novas ¢ igualmente marcantes manitestagoes (como parece sugerit a candidatura portuguesa 20 Campeonato Europeu de Futebol). Este ¢ um aspecto sobre o qual a investiga 40 socialégica devera manter uma atengao muito especial durante os provi- mos anos, & medida que os seus efeiios se forem manifestando de forma mais © Sobre 0 outro lado desta queslao, isto é, sobre os resultados efectivos, ro plano urbanistico, da intervencao na cidade com base na ocasiao proporcio- nada pela realizacao de grandes eventos, veja-se a interessante reflexéo de Francesco Indovina (1996). ¥© para uma retiexao mais circunstanciada sobre os impactes culturals € Uurbanisticos das ExposigSes Internacionais @ outros mega-eventos, por um laco, @ das Capitais Europeias da Cultura, por outro lado, ct.. respectivamente, Maurice Roche (1992) ¢ Eris Corijn e Sabine van Praet (1997) A Exposipao Mundial de Lisboa de 1998 55 56 Claudino Ferreira piblico urbano convergem nao sé os poderes publicos, mas também alguns segmentos das elites culturais, das classes dirigentes e do mundo empresarial’?. Importa, no entanto, ter em atengao que esta 6 uma convergéncia instavel e precdria, feita de compromissos circunstanciais, e que, nesse sentido, atesta também algumas das (in)capacidades que pautam o planeamento cultural em Portugal. Nesta alianga temporaria que se forja em torno da realizagao da Expo’98, podemos detectar, ndo s6 a capacidade de realizagao do pais, como salientam os seus responsaveis, mas também as limitagoes do Estado, do mercado e da sociedade civil, incapazes do, por si s6, promover a dinamizagao da cultura ou a implemen- tag&io de politicas culturais de uma forma auténoma, consis- tente e continuada. Neste sentido, o ciclo de grandes iniciati- vas culturais acima referido surge no tanto como um plano concertado de acgao a longo prazo, mas mais como o resul- tado de um conjunto acumulado de iniciativas e de entendi- mentos pontuais, gerados nesses espagos de mediacao entre o Estado ¢ a sociedade civil em que os diferentes tipos de agentes, sejam eles individuais, colectivos ou institucio- nais, estabelecem compromissos provisérios em torno de interesses comuns e, por essa via, compensam mutuamente as respectivas incapacidades. E na articulagao destes interesses heterogéneos e nos compromissos negociados entre os diferentes tipos de agen- tes que intervém, directa ou indirectamente, nas tomadas de deciso, que se vao delineando as linhas estratégicas que conduzem a evolugao do projecto da Exposigao Mundial. Nao surpreende, por isso, que, ao longo do trajecto percorrido entre 1989 e a abertura da exposi¢ao, se tenham observado flutuagdes de varia ordem na orientagao politica e na defini- go das prioridades do projecto, em virtude da importancia e do protagonismo que em cada momento foram assumindo determinados interesses especificos. Apenas a titulo ilustrativo, pensemos no moda como em certas ocasiées a componente urbanistica do projecto se sobrepés & sua componente expositiva, sendo noutros momentos suplantada por ola. Ou na forma sempre instével como foi sendo gerido 0 equilibrio entre o objective da con- 1 Esto neste titimo caso tanto as empresas que obtém na Exposicao Mundial novas oportunidades de negécio, como aquelas (sobretudo as grandes empresas e as multinacionais) que, através da léaica do patrocinio, encontram ali um espavo privilegiado para a promogae da sua Imagem e 0 marketing dos seus produtos © servigos. tengo financeira (e do auto-financiamento) e 0 objectivo de fazor da exposigao uma demonstragao cultural e Itidica de alta qualidade. Ou ainda na tensdo entre o esforgo programa~ tico para garantir a maxima fidelidade ao tema dos oceanos nos contetdos expositivos do evento e a pressao para asse- gurar a participagaéo do maior numero possivel de paises, independentemente da sua capacidade para garantir essa fidelidade'®. Ou, finalmente, nos dificeis compromissos que presidiram definigao do modelo de representagao das dife- rentes regides do pais na exposig¢éo © que acabaram por conduzir ao actual Pavilhao do Territério, recusando a légica da representacao autonoma de cada regiao’?. A produgao da Expo’98 nao se esgota, todavia, no plano das decisées estratégicas. Pelo contrario, a forma final, os contetidos substantivos e os significados postos a circular na exposigéo dependem em larga medida do trabalho concep- tual € técnico realizado por profissionais e especialistas que fazem a intermediagao entre os niveis superiores de decisao, onde se definem as opgdes politicas e estratégicas mais gerais, e os niveis inferiores de execugéo”°, onde se conver- tem os projectos em obra acabada. A acco e o papel destes profissionais na organizagao da Exposic¢ao Mundial 6, do ponto de vista sociclégico, um dos aspectos mais interessan- tes que 0 evento encorra. Ha varias questdes a ponderar a este respeito*’. Em pri- 18 Nesta caso especifico, o resultado paradoxal foi que a organizagao da Expo'98 conseguiu um importante triunfo politico ao obter um numero recorde de participantes (paises © organizagdes internacionais), mas nao evitou que uma parte deles tenna apresentado pavilhoes que so muito remotamente man- uma relagéo com o tema central da exposigéo. "9 Neste ulfimo caso, as tensdes entre as orientagdes da Expo'98, as intengdes do Governo ¢ as pressGes das autarquias ¢ das regides coabaram por conduzir de um projecto inicial que previa pavilhdes para as varias regioes do pais ao projecto final de um drico pavilhao, onde e representatividede regio: nal so traduz na apresentacao de projectas tecnolagicas e culturais inovadores ou dotados de potencielidades modernizadoras para o pais ou para uma dada regio. 20 Naturalmente, também os inlervenientes nestes Ultimos niveis sao agentes da produgio do evento: as empresas que exacutam as obras (os edifi- cios, Os arranjos de exieriores e interiores, etc.) € os varios tipos de funciona- rios © trabelhadores que realizam taroias oxecutivas. Estes agentes, porém, dada a natureza meramente executiva da sua acoao, estao fora do émbito ana~ itico que este artigo protende cobrir e que se centra na definigao estratégica, concepcao 2 planeamento da Exposigao Mundial. 21 Desenvolvo neste ponte algumes linhas de problematizagao sustenta- das nos resultados provisorios da investigacdo que tem vindo a ser realizada acerca da Expo'96 (cl. notas 1 e 2). Esta investigagao inclui, entre outros dispo- A Exposicao Mundial de Lisboa de 1998 4. Agentes e processos da concepcao e execucao do evento 57 58. Claudino Ferreira meiro lugar, a organizacao de uma Exposicao Internacional 6 uma empresa complexa, que implica a mobilizagao e forma- ¢ao0 de know-how especializado e o concurso de um vasto e diversificado conjunto de profissionais. Sao eles que assegu- ram as diversas tarefas que a organizagao de uma manifesta- cao desta natureza exige: concepgao dos contetidos expositi- vos e dos programas culturais; organizagdo e planeamento dos espagos e das actividades que decorrem no recinto da exposicao; elaboragao de projectos urbanos e arquitecténi- cos; planeamento, gest’o ¢ administragao geral do projecto; promogao do evento e relagdes pibblicas. Importa, por isso, discutir antes de mais o recrutamento e as condicdes de adaptagao destes profissionais ao projecto da Exposigao Mundial. No Ambito dos muiltiplos processos de recrutamento e for- macao de pessoal que a organizagao da Expo’98 envolve, ha um aspecto particular a reter aqui: a mobilizagao de um con- junto de profissionais que actuam nas areas da intermedia- 40 e promogao cultural e que s40 chamados a desempenhar fungdes cruciais nos dominios da concepgao, elaboracao e gestao de projectos e de contetdos expositivos. Neste aspecto particular, a aposta politica e cultural na realizagao da Expo’98, atras discutida, parece encontrar condigées favo- raveis nas recomposigdes que atravessam a esfera cultural portuguesa na viragem da década de 80 para a década de 90. Esta recomposigo relaciona-se com dois factores que estao intimamente associados. Por um lado, 0 crescimento das classes médias urbanas e escolarizadas, e em especial «aquelas que estdo ligadas a profissées intelectuais e de enquadramento, ou [...] a posigdes mais subalternas do ter- ciario, mas associadas ao tratamento da informagao» (Silva, 1998: 209). Por outro lado, a expansao dos servicos de infor- magao e das industrias culturais, e em especial do sector da comunicagao social??, bem como de sectores de actividade que se situam em zonas de fronteira com o mundo da cultura, como sejam o marketing e a publicidade. A estes processos esta associado o desenvolvimento de um heterogéneo grupo de profissionais que, operando em sitivos analiticos, um conjunto de entrevistas a profissionais envolvidos na pre- paracao e moniagem do evento € dos seus contelidos, onde se procura explo- Tar nao 86 as concepgaes € os critérios que guiam o seu desempenho profis- sional, mas também as_suas trajectérias profissionais e 0 lugar que nelas ‘ocupa a passagem pela Exposigao Mundial 2 Sobre as transformacdes e o desenvolvimento recente do sector da ‘comunicagao social em Portugal, cf. Oliveira (1995). areas especificamente culturais ou de fronteira com a cul- tura®3, actuam, regular ou pontualmente, como intermediarios e promotores culturais. Trata-se, naturalmente, de um grupo de contornos imprecisos, e ainda muito pouco estudado do ponto de vista sociolégico*4, que inclui quer segmentos espe- cializados em actividades de intermediagao ¢ organizagao cultural muito especificas, quer segmentos de profissionais flexiveis, que circulam entre diversos tipos de actividades, adaptando continuamente as suas competéncias. E nesles meios profissionais que é recrutada uma parte dos quadros, dos técnicos, dos colaboradores e dos consultores que inte- gram quer a complexa estrutura organizacional da Parque Expo’98, quer as equipas responsaveis pela produgao do pavilhdes e espectaculos?®. Em segundo lugar, alguns destes profissionais participam regularmente na organizacéo de eventos e iniciativas de caracter cultural e llidico, sustentando a criagao e consolida- 0 de redes que tendem a especializar-se neste tipo de acti- vidade. Estas redes parecem operar sobretudo a escala naci- onal, mostrando no entanto uma tendéncia crescents para integrar circuitos internacionais. Estes circuitos n&o sé ali- mentam a actividade de agentes culturais que trabalham a titulo individual, como criam também o espaco para a emer- géncia, 0 desenvolvimento ¢ a consolidagao de um novo sec- tor empresarial de assessoria 4 produgao de eventos e pro- jectos culturais e ludicos®® 23 importa saliontar aqui as seguintes areas: produedo de espectaculos de eventos artisticos e de lazer, gestao de inslituigdes culturais, consultoria, critica ¢ divulgagao cultural, comunicagao social, publicidade, marketing, rela- Ges piiblicas, design, arquitectura, pianeamento urbano. 24 A investigagao realizada em Portugal sobre este tipo do profissionais que actuam no dominio da intermediagao cultural é ralativamente escassa @ encontia-se ainda em processo de desenvolvimento. Entre os estudos disponi veis, centrados em sectores muito especiticos deste universo heterogéneo, vejam-se os trabalhos de Alexandre Melo (1993) sobre os galerisias, de Vitor S. Ferreira (1995) sabre os criticos de arte, de Luis Garcia e José Castro (1993) sobre os jornalistas, ou, num contexto de problematizagao relativamente distinto, de Maria de Lourdes Lima dos Santos (1998) sobre os mecenas © 0 mecenato cultural. 5 Refiro-me aqui especialmente as componentas da Expo'98 que, embora constituindo parte da representagao portuguesa na exposicdo, So da respon- sebilidade de entidades externas & Parquo Expo'98: astéo neste caso, enire outros, os PavilhGes de Portugal, do Territorio, dos Acores, da Madeira, do ICEP, das Comunidades Portuguesas. 2 E de notar que alguns dos consultores, técnicos ¢ colaboradores da Expo'96 e das empresas de consultoria e projectos que nela estéo envolvidas participaram igualmente em outros eventos a que ja me reteri aqui: a Capital Europeia da Cultura em Lisboa em 1994, a Feira de Frankiurt de 1997, a repre- sentagio portuguesa nas mais recentes Exposicdes Internacionais. Também a A Exposigao Mundial de Lisboa de 1998 59 60 Claudino Ferreira Esta 6, alias, uma das principais dinamicas que se tém gerado em torno das Exposigdes Universais e de outros mega-eventos similares, como os grandes festivais interna- cionais de arte, cultura e lazer, os Jogos Olimpicos, os Cam- peonatos Internacionais de Futebol, as grandes feiras e saldes comerciais e industriais. Estes mega-eventos consti- tuem ocasides privilegiadas para a actividade de novos sec- tores profissionais. Por um lado, € no plano internacional, eles alimentam, como referi atras, a actividade de um grupo crescente de profissionais especializados, que prestam servi- Gos e exportam competéncias e tecnologias a escala de tado 0 globo (Schroeder-Gudehus e Rasmussen, 1992). Por outro lado, e no plano local, eles criam 0 espaco para o desenvolvi- mento e a internacionalizagao de novas areas de especiali- dade © de novos profissionais que actuam nos dominios da intermediagao cultural. Neste sentido, a Expo’98 é exemplar, jé que, pela sua dimens&o e o seu caracter internacional, cria um amplo mer- cado para a actividade dos agentes culturais portugueses e abre canais que facilitam 0 seu acesso aos circuitos interna- cionais. Mas nela intervém igualmente algumas das empre- sas e dos profissionais estrangeiros que operam rogular- mente no mercado internacional. Reportando-me apenas &s componentes da exposigao que sao da responsabilidade da organizagao portuguesa, o contributo destes profissionais na Expo’98 é observavel (e nalguns casos marcante) em varias areas da produgao do evento: na concepgao geral da exposigao, no planeamento de espacos e actividades, na elaboracao de projectos de con- tevidos para pavilhdes tematicos?”. A Expo’98 6 assim tam- Capital Europeia da Cuttura a realizar no Porto om 2001 @ as proximas Exposi- Oes Internacionais consttuem ocasides em que alguns destes protissionais ¢ empresas projectam intervir. Esta é, no entanto, uma linha de investigagéo a explorar, em que importa analisar 0S processos de protissionalizagao € esp2- cializagdo deste tipo de agentes, as logicas de formagao e teconversdo de compaténcias que neste campo se geram, os processos de intemacionalizagao @ de integracao nos circvitos e nos mercados globais que se criam em torno deste tipo de actividades, as filosofias de intervengo cultural © a articulago entre diversos modelos de cullura que se manifestam nas suas praticas como intermediarios e promotores culturais 27 Em termos gerais, praticamente todos os pavilhdes tematicos @ unida- des de programagao cultural da responsabilidade da Parque Expo'98 recorro- ram a consultores estrangeiros. Refiram-se, a titulo de exemplo, cs servigos de consultoria prestedos pela empresa espanhola Ingenia (recrutada na sequéncia do seu trabalho na Expo’92 de Seviina), que acompanhou desde o inicio a con- cepeao ¢ 0 planeamento de praticamente todas as componentes do projecto Expo'98; @ concepgao ® produgao dos contetidos do Pavilhio da Realidade bém o lugar da transferéncia e do intercdmbio de competén- cias e saberes técnicos especializados. Este é, porventura, um dos aspectos em que mais vincadamente se manifestam na exposi¢éo as dinamicas de globalizacao e internacionali- zago da cultura. Em terceiro lugar, e como sugeri acima, este conjunto de profissionais desempenha um papel fundamental na elabora- gao dos modelos expositivos e dos contetides da Exposigao Mundial. Actuando como gatekeepers (Hirsch, 1990), sd eles que procedem a seleccao dos artistas e dos produtores culturais que elaboram os contetidos da exposigéo, bem como a negociagao dos objectives e dos critérios conceptuais @ estéticos a que estes devem obedecer. Em consequéncia, estes profissionais so investidos de um elevado poder sim- bélico e cultural, que se manifesta no sé no espago limitado da exposigao, mas também fora dele. Por um lado, a sua actividade determina nao apenas o contéudo da exposigao, mas também as agendas culturais da cidade e do pais durante 0 periodo de realizagao do evento. Por outro lado, e dada a importancia que os grandes eventos como a Expo'98 ou as Capitais Europeias da Cultura tem vindo a assumir no panorama cultural portugués, eles desempenham um papel fundamental na definig&o dos modelos culturais dominantes e nos processos de transformagao da oferta cultural na socie- dade portuguesa. De acordo com a hipdtese de trabalho que aqui se pro- cura explorar, estes profissionais contam-se entre os princi- pais responsaveis por alguns dos processos que mais tém contribuido para a transformagao da paisagem cultural portu- guesa: a difuszo, no nosso pais, das novas tecnologias do espectaculo © a sua articulagao com formas de criagao artis- tica mais convencionais; a combinagao de infiuéncias locais e globais na produgao cultural nacional ¢ a sua interpenetragaio crescente; 0 aprofundamento dos cruzamentos entre formas e niveis de cultura tradicionalmente distintos. Deste ponto de vista, a Expo'98 tem efectivamente funcionado como um laboratorio para experiéncias de didlogo e confrontacao entre modelos culturais diferenciados. Isto pode observar-se, entre Virtual pela empresa canadiana Innovitech; ou 0 trabalho de concepgao e pro- gramagao do espactaculo do Pavilhdo da Utopia, realizado por Philippe Genty @ Francois Contino (que tera igualmente projectos na Exo0'2000 de Hannover). Um outro vector da importacéio de tecnologia e know how, que nao cabs explo- rar aqui, relere-se 20s artistas estrangeifos convidados a integrar a programa- go cultural da Expo'98 e as empresas estrangeiras chamadas a oxocutar bras e contetidos de Pavihdes A Exposigaio Mundial de Lisboa do 1998 61 62 Claudino Ferreira outros aspectos, na combinagao entre técnicas museolégicas tradicionais e estratégias expositivas baseadas nas novas tecnologias da informagao e do espectaculo (como por exem- plo no Pavilhao do Conhecimento dos Mares) ou na adapta- go de produgdes artisticas de cariz erudito ou vanguardista a contextos mais lUdicos e massificadas, como acontece fre- quentemente nos palcos da Exposigao Mundial. Em quarto lugar, importa finalmente reflectir sobre a hete- rogeneidade e a polissemia do discurso expositivo e do con- teudo cultural da Exposig¢ao Mundial. Produto, por um lado, do desempenho de um conjunto heterogéneo de profissio- nais, que projectam nas suas praticas interesses, concep- gdes e modelos de referéncia cultural diversificados, e, por outro lado, da cooperagao (ou da controntagao) entre diver sas areas de competéncia e especializagao técnica, a exposi- go €, nas suas varias componentes, um objecto cultural a que muito dificilmente se pode restituir coeréncia e uniformi- dade. Nela se observa, pelo contrario, uma permanente con- frontagao de linguagens e de entendimentos acerca do seu tema, dos seus objectivos, das suas mensagens, das suas técnicas expositivas, dos seus publicos-alvo. Vale a pena assinalar dois exemplos a este respeito. O primeiro refere-se ao tratamento do tema geral da exposigao. Aqui, é de salientar o contraste entre, por um lado, a énfase sistematica que, na generalidade dos pavilhdes tematicos, 6 colocada na mensagem ecoldégica e nos problemas da pre- servacao e da gestao dos oceanos, e, por outro lado, a abor- dagem turistica, paisagistica e comercial que a maioria dos pavilhdes n&o tematicos (incluindo alguns pavilhdes portu- gueses) fazom do mesmo tema. O segundo exemplo reporta-se as imagens e as represen- tacdes de Portugal na exposicao. Neste dominio, observa-se uma razodvel diversidade entre, por exemplo, a visao cosmo- polita @ universalista que o Pavilhao de Portugal oferece acerca do pais, da sua histéria e do seu povo; a mensagem mais economicista e localista apresentada pelo Pavilhao do ICEP; e a mensagem politica proposta pelo Pavilhao do Terti- trio que, ao decorar a sua frontaria com enormes rostos de mulheres anénimas, pretende salientar o papel das mulheres na sociedade portuguesa e apelar a reflexdo sobre a discrimi- nagao de que estas sao alvo em muitos sectores. Nestes trés casos, em que se seleccionam apenas fragmentos de um vasto discurso expositivo, as diferengas de abordagem devern-se nao so a diversidade das entidades que cada pavi- Iho representa (respectivamente, 0 Comissariado de Portu- gal tutelado pelo Governo, o ICEP e o Ministério do Equipa- mento, do Planeamento e da Administragéo do Teritorio), mas também as concepgées politicas e estéticas dos profissi- onais responsaveis pela concep¢ao dos pavilhdes. No modo como € dada a ver e a fruir aos seus visitantes, a Expo'98 apresenta-se, antes de mais, como uma grande feira e um gigantesco espectaculo de cultura e lazer. Como todas as ExposigGes Intemacionais mais recentes, a Expo'98 6, na sua aparéncia imediata, um espaco pliblico fortemente estetizado e Itidico. No seu interior, a arte e a cultura dissemi- nam-se numa «estética da ilusao e da fantasia» e 0 conhaci- mento e a pedagogia fragmentam-se sob a légica da «dis- tracg4o llidica» e do «entretenimento efémero», concebidos para impressionar e estimular os sentidos (De Cauter, 1993). Estes tragos da sua aparéncia derivam, em larga medida, do facto de a Expo’98 ser um evento fortemente dominado pela cultura visual e pelas tecnologias mediaticas, que esto omni- prosentes nao sé no desenho geral do recinto expositivo, mas também na generalidade dos pavilhdes. Este aspecto confere-Ine uma dimensdo espectacular e Iidica que, asso- ciada a logica do consumo de massas que atravessa a expo- sig&o, faz dela uma festa e um espaco de distraccao. Mas importa nado esquecer que, no ambito mais geral do projecto da Exposigao Mundial, a dimensdo festiva e especta- cular, particularmente visivel no territorio demarcado em que circula 0 visitante, combina-se, em varias modalidades e com multiplos efeitos, com as suas restantes vocacées: artistica, cientifica, didéctica, urbanistica, politica e ostratégica. E, neste sentido, a festa 6, como procurei mostrar ao longo deste artigo, 0 resultado de um complexo conjunto de proces- sos que mobilizam, em contexios sociais, culturais e politicos especificos, uma série de agentes e de interesses cuja acgao 6 determinante na produgao do resultado final do evento. Como vimos, na sua organizagao manitestam-se multiplas mediagdes entre dinamicas culturais locais e globais, ensaiam-se estratégias culturais e politicas mais abrangen- tes, reflectem-se processos de profissionalizagdo e de con- quista de novos espacos de actuagao para agentes especiali- zados que operam no dominio da cultura e da intermediagao € promogao cultural. Além disso, a Exposi¢ao Mundial é tam- bém terreno de lutas e conflitos sociais, politicos e simbdli- A Exposigéo Mundial de Lisboa de 1998 5. Conclusao 63 64 Claudino Ferreira cos, que se forjam em torno quer dos objectives e dos recur- sos mobilizados pelo evento, quer dos seus contetidos e das suas mensagens, quer, finalmente, dos seus prolongamentos © aproveitamentos futuros. ‘A realizagao do evento encerra, assim, uma complexi- dade que a anélise sociolégica nao deve deixar escapar. Em consequéncia, e como sugere Sharon Macdonald (1998), o olhar do observador nao deve deixar-se fixar excessivamente na «caixa transparente» sob cuja forma a exposigao se apre- senta na sua duragao efémera. Pelo contrario, esse olhar deve procurar igualmente identificar e problematizar as rela- ges que vinculam o evento a sociedad e ao contexto histo- rico que 0 produz, e fazé-lo no apenas de um ponto de vista local, mas também de um ponto de vista global. Isto é tanto mais valido quanto as Exposigdes Internacio- nais, ao apresentarem-se como modelos miniaturizados do mundo e do estado das suas relacées, reflectem de forma particularmente intensa algumas das transformagées cultu- rais @ simbdlicas que atravessam 0 mundo contemporaneo. Entre outros autores, Lieven de Cauter (1993) vé na predomi- nancia que assumem hoje nestes mega-eventos a cultura do consumo, o prazer Itidico e a estimulagdo sensorial, um sinal da desintegracao dos sistemas representacionais que carac- terizavam a Modemidade. Na perspectiva, mais vincada- mente filosofica, deste autor, as Exposigdes Internacionais contemporaneas saa marcadas pelo «culto da distracgéo», do «presentismo» e do «efémero», bem como por um modelo de representagao do mundo que fomenta uma experiéncia da realidade fragmentaria, descontinua e virtual. Nestas suas caracteristicas, elas reflectem a faléncia dos sistemas repre- sentacionais moderos, que ofereciam uma visdo realista e ordenada do mundo e da realidade. Em ultima andlise, a tese de de Cauter é a de que as mudangas verificadas nestes eventos ao longo do século XX atestam de certa maneira o «desaparecimento de um sistema representacional coerente» e a sua substituic&o por uma ordem representacional cadtica e fragmentada. O que me parece interessante reter desta tese s&o preci- samente as pistas que ela langa sobre as virtualidades anali- ticas que as Exposigdes Internacionais encerram. Neste sentido, mais do que ver nas ExposigGes Internacionais os sintomas de um colapso dos sistemas representacionais modernos, parece-me interessante observar, nao s6 no seu contetido, mas também no seu processo de produgao, os multiplos reflexos das dinamicas sociais, culturais e politicas que estao na base da transformagao e recomposigao desse mesmos sistemas € dos novos sentidos para que apontam. ™ Setembro de 1998 A Exposigao Mundial de Lisboa de 1998 65 66 Claudino Ferreira Referéncias Bibliograficas Benedict, Burton Bennett, Tony Bianchini, Franco; Parkinson, Michael (orgs.) Castro, Alexandra etal. Castro, Alexandra etal. Corin, Eric; Praet, Sabine van De Cauter, Lieven Dionisio, Eduarda Ferreira, Antonio Mega Ferreira, Antonio Mega Ferreira, Vitor Matias Ferreira, Vitor Matias otal. Ferreira, Vitor Sérgio Findling, John; Pelle, Kimberly (org.) Fortuna, Carlos 1983 1995 1993 1994 1997 1997 1993 1994 1996 1998 1996 1997 1995 1990 1995 Fortuna, Carlos (org.) 1997 Galopin, Marcel Garcia, Luts; Castro, José Greenhalgh, Paul 1997 1993 1988 The Anthropology of World's Fairs. San Francisco's Panama Pacific Intemational Exposition of 1915. London/Berkeley, The Lowie Museum of Anthropology.

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