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Solidariedade e Interesse:: Motivações e Estratégias na Cooperação Internacional para o Desenvolvimento
Solidariedade e Interesse:: Motivações e Estratégias na Cooperação Internacional para o Desenvolvimento
Solidariedade e Interesse:: Motivações e Estratégias na Cooperação Internacional para o Desenvolvimento
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Solidariedade e Interesse:: Motivações e Estratégias na Cooperação Internacional para o Desenvolvimento

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O livro Solidariedade e interesse: motivações e estratégias na cooperação internacional para o desenvolvimento apresenta os resultados de mais de uma década de pesquisas de Carlos R. S. Milani sobre como os Estados utilizam a cooperação como ferramenta de suas respectivas políticas externas. Contando também com sua experiência de gestor de projetos internacionais no âmbito da Unesco durante mais de oito anos, o autor apresenta a Cooperação Internacional para o Desenvolvimento (CID) como "campo político" das relações internacionais. Ademais, analisa como a CID tem cumprido papel de amortecedor das tensões internacionais e integrado, em distintos momentos históricos, os processos de negociação e reconstrução da ordem mundial. Assim foi no pós-Segunda Guerra, quando a agenda do desenvolvimento e da cooperação recebeu grande impulso de institucionalização pelos Estados Unidos, graças à competição ideológica entre capitalismo e comunismo, acirrada pelos processos de descolonização. Também ao final da Guerra Fria, agências bilaterais e multilaterais depositaram muitas esperanças nos chamados "dividendos da paz" que resultariam do que se imaginava poder poupar com a redução dos programas de desarmamento e dos orçamentos militares. Os "dividendos da paz", beneficiariam, assim, esforços internacionais para o desenvolvimento de países africanos, latino-americanos, asiáticos e do Leste Europeu. E agora, na aurora do século XXI, a cooperação Sul-Sul, a cooperação triangular, os fundos público-privados e os mais diversos arranjos institucionais da CID passam a ocupar o centro dos interesses da política internacional, uma vez que muitas potências regionais e emergentes, dentre as quais estão a China, a Índia, a África do Sul, o Brasil e a Turquia, têm passado a utilizar mais intensamente e de modo estratégico essa ferramenta em suas agendas de política externa, disputando territórios e solidariedades no espaço mundial e reivindicando mudanças nos padrões de relacionamento entre o Ocidente e o chamado "Sul geopolítico".
LanguagePortuguês
Release dateJul 28, 2020
ISBN9786555238945
Solidariedade e Interesse:: Motivações e Estratégias na Cooperação Internacional para o Desenvolvimento

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    Book preview

    Solidariedade e Interesse: - Carlos R. S. Milani

    Editora Appris Ltda.

    1ª Edição - Copyright© 2018 do autor

    Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.

    Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98.

    Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores.

    Foi feito o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nºs 10.994, de 14/12/2004 e 12.192, de 14/01/2010.

    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO CIÊNCIAS SOCIAIS

    A Glaci Pinto Sanchez e Alonço da Cunha Viana Júnior.

    Prefácio

    Ao decidir somar, e não contrapor, solidariedade e interesse no título de seu novo livro, Carlos Milani já anuncia um não desprezível aspecto de sua abordagem: o reconhecimento de que não somente é possível pensar na coexistência entre ambos, mas também a presença de distintas concepções e interpretações sobre o lugar e o significado da solidariedade no terreno dos interesses. Dessa forma, Milani aponta para a dimensão dos interesses no campo da Cooperação Internacional para o Desenvolvimento (CID) – interesses políticos, econômicos, estratégicos; e agrega à discussão sobre solidariedade as dimensões moral, econômica e política que buscam justificá-la.

    Essa visão é fruto da perspectiva central da qual parte o autor, a de que a CID se constitui como um campo político e, nesse sentido, necessariamente, permeado por relações de poder – em que inúmeros atores competem por legitimidade, reconhecimento e recursos materiais (p. 23). Esse é, sem dúvida, o eixo em torno do qual se desenvolve a narrativa do livro: a visão da CID como um espaço de embates, de disputa política entre distintas visões a seu respeito. Nesse sentido, cooperar é, nesse diapasão, um exercício político.

    A certa altura, Milani afirma também que, apesar de

    [...] bastante institucionalizado e complexo na construção de discursos, visões de mundo, conceitos e práticas, o campo político da CID não resultou na constituição de um regime internacional nos moldes dos Direitos Humanos ou da proteção ambiental, por exemplo. (p. 23).

    Essa é uma distinção cardinal na sua narrativa e sobre ela gostaríamos de nos deter.

    Ao contrário dos regimes internacionais citados acima, que se pretendem globais no sentido de instituir um conjunto de regras, normas e processos decisórios institucionalizados com vistas à regulação em uma determinada questão, na cooperação internacional o exemplo mais próximo é o próprio Comitê de Assistência ao Desenvolvimento (CAD, da OCDE), cuja membresia é restrita aos doadores tradicionais, nos moldes mais de um clube do que um regime. Os novos doadores que surgem com densidade e impacto na transição do século XX para o XXI não aderiram às normas deste clube, mas também não se organizaram em uma ação coordenada no campo da cooperação internacional.

    Há ainda uma característica que distingue os atores no universo da cooperação, qual seja, a desigualdade da condição respectiva de doador e receptor. Uma institucionalização dessa desigualdade em um regime internacional seria praticamente a reinstituição da condição colonial, condição de origem de uma parte substancial dos atuais receptores.

    A CID, dirá Milani, constitui-se num campo político, ou seja, um universo social particular e relativamente autônomo […], no âmbito do qual os agentes se reconhecem com base em uma divisão diferenciada de capitais disponíveis (capital simbólico, econômico, cultural e social) (p. 99). E o que isso significa? Ou, por outra, o que isso implica tanto em termos epistemológicos, como ontológicos? A nosso ver, essa perspectiva permite, em primeiro lugar, reconhecer diferentes práticas políticas como exercícios de cooperação. Em outras palavras, o significado da CID não seria mais definido tão somente pela instância que, nos dias de hoje, reúne o conjunto mais institucionalizado de regras e normas de cooperação, o CAD da OCDE. Nesse sentido, afirmar a existência de um regime de CID seria, como que por extensão, atribuir ao CAD, enquanto sua forma mais institucionalizada, sua gestão e autoridade. Já fora desse universo, é possível atribuir a diferentes exercícios de CID, em suas distintas cores e formas, o atributo da legitimidade. Em outras palavras, é possível ser prestador ou cooperante, mesmo que não se adira às determinações do CAD.

    Dito isso, uma questão em particular deve ser sublinhada e nela reside, a nosso ver, a origem da visão, a um só tempo, mais plural e mais crítica adotada neste livro. Trata-se do lugar de fala do autor. E aqui não nos referimos em particular a sua experiência pretérita como funcionário de um organismo internacional ou a sua inserção acadêmica atual. O que aqui gostaríamos de frisar é seu lugar de fala como um acadêmico do Sul geopolítico. Essa condição realiza-se ao registrar inúmeros fatos e visões sobre o tema ausentes de tantas publicações sobre a constituição e desenvolvimento da CID. Mas, principalmente, é a perspectiva do Sul da qual fala Carlos Milani que faz com que ele conceba a CID como um campo político desenvolvendo argumentação consistente em favor desta obra, assim como a entenda como uma das dimensões da política internacional.

    No seu conjunto, o livro oferece ao leitor uma inestimável contribuição sobre a história da CID, seus debates e implicações práticas. No primeiro capítulo, sem descuidar das contradições e reveses, o autor nos oferece um panorama sobre a CID entendida como parte da política internacional e não como um epifenômeno desta. Por isso mesmo, em vez de simplesmente oferecer uma visão sobre o contexto em que a CID se desenvolveu, essa é apresentada como parte desse mesmo contexto, por sua vez detonadora de outros processos. De fato, esse é um dos pontos altos da narrativa de Milani, entender a CID como uma das dimensões da política internacional, um dos seus elementos constitutivos.

    O mesmo ocorre no capítulo seguinte em que as organizações multilaterais direta ou indiretamente envolvidas com a CID são apresentadas. Aqui novamente o autor afasta-se da mera listagem e nomeação das inúmeras organizações, para enfrentar o problema de como sua constituição e funcionamento – suas normas, práticas e ideologias – impactam politicamente na sua atuação no campo da cooperação.

    Há um aspecto curioso na origem da cooperação internacional no âmbito multilateral, e do próprio conceito de desenvolvimento. Ambos nasceram no pós-guerra, no bojo do processo de descolonização. Mais uma vez, o autor nos aponta a marca de origem da desigualdade entre doadores e receptores da cooperação ainda que racionalizada no âmbito das organizações internacionais. Mas, simultaneamente, num raciocínio dialético, Milani argumenta que a existência de diferentes organismos multilaterais de cooperação internacional abre espaços de voz e protagonismos para os países em desenvolvimento, potenciais receptores da cooperação, em agendas originalmente exclusivas dos países desenvolvidos.

    No capítulo 3, em que é analisado o papel da cooperação bilateral, em uma perspectiva comparada, o raciocínio dialético é novamente acionado. Ainda que a forma bilateral seja aquela que potencialmente tende a criar maior dependência entre doadores e receptores, a diversidade de doadores, com diferentes políticas de cooperação e, mais significativamente, a emergência de novos doadores oriundos do mundo em desenvolvimento geram mais opções aos potenciais receptores, aumentando seu poder de barganha na relação com eventuais doadores.

    Por fim, o capítulo 4 em que examina o lugar da CSS nas agendas da política externa brasileira, o autor mais uma vez inova ao introduzir a hipótese da busca da graduação como ferramenta analítica para melhor interpretar essa dimensão da inserção internacional do País. O capítulo não apenas nos fornece uma visão abrangente da cooperação para o desenvolvimento exercida pelo Brasil, como apresenta dois estudos de caso quase paradigmáticos na cooperação brasileira: no campo da educação, um dos setores onde o País tem uma longa e larga experiência, e no Haiti, segundo o próprio autor, uma das mais ricas em resultados, mas também atravessada por importantes dificuldades e contradições (p. 284).

    Nesse capítulo, Milani propõe uma discussão bastante pertinente para se pensar a questão da cooperação da perspectiva dos países do Sul. O autor recusa os argumentos polares: de um lado, o País repetindo os mesmos vícios dos doadores tradicionais na busca da maximização de seus interesses próprios. De outro, a visão da cooperação como exemplo da solidariedade brasileira em função da condição comum de país do Sul. Ainda que a distância e a semelhança entre doadores e receptores diferenciem os respectivos regimes simbólicos dos doadores do Norte e do Sul, a cooperação brasileira não está isenta de contradições, inerentes a sua condição política em que o poder está presente. As tensões público-privadas, o risco de cooptação por agentes do mercado, a falta de transparência em decisões que envolvam grandes empresas nacionais, a baixa participação de atores da sociedade civil, por exemplo, são riscos intrínsecos a qualquer política pública no contexto democrático. Explicitar essas contradições parte de um processo que é político por natureza, contribui para o aperfeiçoamento das práticas e para ampliar a prestação de contas da política de cooperação internacional como ocorre com todas as políticas públicas. A partir da análise de Milani, fica claro que enquadrar a postura brasileira como uma manifestação apenas da solidariedade ou, contrariamente, do interesse próprio, é uma forma de despolitizar a política de cooperação internacional. Apesar de suas tensões e contradições, retroceder em tudo o que já foi feito até agora pela cooperação brasileira significa a destruição de um patrimônio construído ao longo de anos de trabalho e dedicação dos agentes da cooperação.

    Outro ponto a destacar é o poder de análise e de síntese do autor. Sua larga experiência como professor, entretanto, não seria suficiente para explicar esse êxito. Trata-se, a nosso ver, de um talento da sua parte ao buscar reunir, em categorias e grupos, os principais aspectos do tema estudado, dessa forma não apenas alcançando êxito em resumir o argumento, mas principalmente em o conceder maior consistência.

    Por fim, as questões para debate propostas pelo autor são, na realidade, agendas de pesquisa que Milani, generosamente, oferece aos pesquisadores interessados no tema. Além disso, refletem a inquietação intelectual do autor e sua indiscutível capacidade de pensar criticamente as relações internacionais contemporâneas, combinando a perspectiva da economia política global com as escolhas dos agentes envolvidos na cooperação internacional no Norte e no Sul. A integração entre restrições estruturais, próprias do funcionamento do sistema capitalista que a todos engloba, com os desafios inerentes às escolhas dos atores na cena internacional constitui o enquadramento da reflexão do autor.

    Rio de Janeiro, 10 de julho de 2018.

    Leticia Pinheiro e Maria Regina Soares de Lima

    Professoras e pesquisadoras do IESP-UERJ

    LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    Sumário

    INTRODUÇÃO

    CAPÍTULO 1

    HISTÓRICO, INSTITUCIONALIZAÇÃO E RELAÇÕES DE PODER

    INTRODUÇÃO AO CAPÍTULO

    1.1 OS PRIMEIROS PASSOS DA INSTITUCIONALIZAÇÃO

    1.2 DAS CRISES DOS ANOS 1970 À IDEOLOGIA DO ESTADO MÍNIMO NOS ANOS 1980

    1.3 OS ANOS 1990 E A TRANSIÇÃO PARA O SÉCULO XXI

    1.4 TIPOLOGIA DOS ATORES, MODALIDADES E FLUXOS FINANCEIROS

    1.5 REGIME, SUBSISTEMA INTERNACIONAL OU CAMPO POLÍTICO?

    QUESTÕES PARA DEBATE

    CAPÍTULO 2

    ORGANIZAÇÕES MULTILATERAIS: NORMAS, PRÁTICAS E IDEOLOGIAS

    INTRODUÇÃO AO CAPÍTULO

    2.1 COOPERAÇÃO MULTILATERAL VERSUS COOPERAÇÃO BILATERAL: O PAPEL DO CAD DA OCDE

    2.2 O GRUPO BANCO MUNDIAL

    2.3 NAÇÕES UNIDAS: AGÊNCIAS, PROGRAMAS E FUNDOS

    2.4 UNIÃO EUROPEIA: POTÊNCIA NORMATIVA NO CAMPO DA CID?

    QUESTÕES PARA DEBATE

    CAPÍTULO 3

    ESTADO E POLÍTICA EXTERNA: O PAPEL DAS AGÊNCIAS BILATERAIS DE COOPERAÇÃO

    INTRODUÇÃO AO CAPÍTULO

    3.1 COOPERAÇÃO ENTRE ESTADOS E AGENDAS DE POLÍTICA EXTERNA

    3.2 AGÊNCIAS BILATERAIS NA COOPERAÇÃO NORTE-SUL

    3.2.1 Estudo de caso: a Usaid

    3.3 AGÊNCIAS BILATERAIS DE COOPERAÇÃO EM PAÍSES EM DESENVOLVIMENTO

    3.3.1 Os casos do México e da Turquia: a Amexcid e a Tika

    QUESTÕES PARA DEBATE

    CAPÍTULO 4

    POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA E COOPERAÇÃO SUL-SUL

    INTRODUÇÃO AO CAPÍTULO

    4.1 POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA: O SUL É O NOSSO NORTE?

    4.2 ESTUDO DE CASO: A CSS BRASILEIRA EM EDUCAÇÃO

    4.3 ESTUDO DE CASO: A CSS BRASILEIRA NO HAITI

    4.4 TENSÕES PÚBLICO-PRIVADAS NA CONSTRUÇÃO DE UMA POLÍTICA PÚBLICA DE COOPERAÇÃO 

    QUESTÕES PARA DEBATE 

    CONCLUSÃO

    REFERÊNCIAS

    INTRODUÇÃO

    CAPÍTULO 1

    CAPÍTULO 2

    CAPÍTULO 3

    CAPÍTULO 4

    CONCLUSÃO

    INTRODUÇÃO

    O argumento central deste livro está ancorado na premissa de que a cooperação internacional para o desenvolvimento (CID) é um campo político fundamental das relações internacionais. Embora nunca tenha sido uma agenda prioritária da política internacional, a CID esteve permanentemente presente nas diferentes configurações contemporâneas da ordem internacional: (a) no pós-Segunda Guerra, período histórico em que recebeu grande impulso de institucionalização pelos Estados Unidos graças à competição ideológica entre capitalismo e comunismo, competição esta acirrada pelos processos de descolonização; (b) ao final da Guerra Fria, quando tantas esperanças foram depositadas nos dividendos da paz que beneficiariam esforços multilaterais para o desenvolvimento de países africanos, latino-americanos, asiáticos e do Leste Europeu; (c) na aurora do século XXI quando potências emergentes têm passado a utilizar mais intensamente essa ferramenta em suas respectivas agendas de política externa e a reivindicar mudanças nos padrões de relacionamento entre países desenvolvidos do Ocidente geopolítico e demais países em desenvolvimento.

    É bem verdade que, muito antes da institucionalização da CID nos anos pós-1945, ainda no âmbito dos impérios coloniais, promover o desenvolvimento das colônias já era recurso semântico empregado para camuflar relações de dominação social e cultural, e de exploração econômica. Educar, ilustrar, humanizar e civilizar eram eufemismos para processos de domesticação e imposição de modelos embutidos na relação colonial. Embora as relações entre metrópoles e colônias, de um lado, e as modalidades de cooperação entre Estados soberanos, de outro, sejam jurídica e formalmente distintas, argumento que as noções de cooperação internacional e desenvolvimento são verdadeiros avatares contemporâneos de práticas relacionadas à empresa colonial e que, como veremos no primeiro capítulo, suas reencarnações têm acompanhado a própria história do sistema interestatal capitalista e do projeto pretensamente universal de modernização de sociedades consideradas atrasadas.

    É intrigante pensar que, desde 1945, os montantes efetivamente gastos com a CID tenham sido tão pouco relevantes quando comparados aos fluxos do comércio internacional de armamentos, aos orçamentos militares das principais potências mundiais, às estimativas existentes sobre os fluxos financeiros derivados da evasão fiscal, ou ainda à economia internacional movimentada pelas drogas ilícitas e os mais diversos tipos de tráficos transnacionais. Hoje, em termos de montantes financeiros anualmente dispendidos, a CID aproxima-se de US$ 150 bilhões, quando somadas as diferentes modalidades de cooperação (Norte-Sul, Sul-Sul, triangular etc.). Ou seja, não é graças à materialidade econômica e financeira que a CID adquiriu relevância histórica, institucional e política nas relações internacionais. Surpreende seu grau de institucionalização, por exemplo, no que diz respeito à criação de agências bilaterais: não somente os países-membros da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), como também muitos países de renda média estabeleceram uma agência especificamente voltada para temas de cooperação recebida e prestada, tais como Brasil (desde 1987), Chile (1990), Turquia (1992), Colômbia e México (ambos desde 2011).

    Tampouco é em função apenas dos orçamentos públicos das agências bilaterais e multilaterais que a cooperação técnica, educacional, em saúde, em agricultura ou na construção de infraestruturas tenha chamado tanto a atenção de acadêmicos e pesquisadores, responsáveis políticos, diplomatas, empresários e operadores econômicos, lideranças de organizações da sociedade civil, ativistas dos Direitos Humanos e militantes dos mais diversos movimentos sociais. As distintas modalidades de cooperação governamental frequentemente apresentam interfaces não muito transparentes com outras formas de financiamento público e privado, mas igualmente com projetos e investimentos de grandes corporações transnacionais. Nesta obra, aponto algumas pistas de pesquisa sobre essas relações, contudo o foco prioritário de minha análise recai sobre a cooperação enquanto prática institucional e política dos Estados. Estes são aqui considerados atores-chave das relações internacionais pensadas enquanto ordem social, cujas distintas configurações históricas resultam da dialética entre suas dimensões material (econômica e tecnológica) e imaterial (simbólica e normativa). Parafraseando Pierre Bourdieu, a ordem internacional tem suas fontes de legitimação em um conjunto de recursos de capital simbólico, a exemplo das normas consubstanciadas nos distintos regimes internacionais (por exemplo, Direitos Humanos, meio ambiente, comércio), das regras diplomáticas e do arcabouço normativo construído por Estados e organizações intergovernamentais em torno da CID.¹

    Isso posto, como definir a cooperação internacional para o desenvolvimento? Veremos ao longo deste livro que a semântica da CID inclui em seu campo vários termos e conceitos correlatos: ajuda oficial para o desenvolvimento (AOD), cooperação técnica entre países em desenvolvimento (CTPD), cooperação Norte-Sul (CNS), cooperação Sul-Sul (CSS), entre outros. Enquanto campo de práticas, a CID inclui doações e subvenções públicas e privadas (oriundas de Estados, agências multilaterais, organizações não governamentais, empresas e fundações), créditos e financiamentos que geram dívidas, perdão parcial ou total de dívidas externas e, de modo cada vez mais frequente, as parcerias público-privadas internacionais e os fundos com múltiplos financiadores. Embora haja heterogeneidade de motivações entre os atores da CID que seria importante reconhecer, eles muito frequentemente adotam e difundem valores bastante semelhantes dentro desse campo de conceitos e práticas: no Norte e no Sul evoca-se a solidariedade, a corresponsabilidade e a promoção de objetivos comuns de desenvolvimento internacional (por exemplo, os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável) como justificativa política para os projetos concebidos e implementados.² Isso não significa, porém, que a defesa dos próprios interesses estratégicos não se encontre entre as principais motivações dos atores da cooperação do Norte e do Sul.

    Neste livro, a CID é considerada um campo político – portanto, necessariamente, permeado por relações de poder – em que inúmeros atores competem por legitimidade, reconhecimento e recursos materiais, articulando três dimensões principais: (1) a capacidade de agência dos Estados e, a seguir, das corporações transnacionais e dos atores não governamentais; (2) um conjunto de normas geradas e difundidas (ou, em alguns casos, prescritas) por organizações internacionais; (3) a crença compartilhada de que a promoção do desenvolvimento em bases solidárias seria a melhor solução para as contradições e as desigualdades geradas pelo capitalismo no plano internacional. Nessa definição de CID, inserem-se tanto as práticas tradicionais e históricas de países do Norte, quanto as experiências emergentes de países como China, Índia, Turquia, Brasil ou México.

    Apesar de ser bastante institucionalizado e complexo na construção de discursos, visões de mundo, conceitos e práticas, o campo político da CID não resultou na constituição de um regime internacional nos moldes dos Direitos Humanos ou da proteção ambiental, por exemplo. No entanto, tem envolvido inúmeros Estados e sociedades que oferecem programas e financiamentos, Estados e sociedades que os recebem e, ponto fundamental, uma miríade de mediadores que desempenham papel relevante na difusão das agendas, na legitimação dos ideários, cooperando na implementação de projetos, na definição de mecanismos de monitoramento e controle, mas também, embora menos frequentemente, na organização de protestos contra as práticas e os discursos hegemônicos. Cada ator apresenta-se nesse campo político com identidade, preferências, interesses e objetivos próprios, podendo agir com base em motivações políticas, econômicas, de segurança nacional, por razões humanitárias, ambientais ou morais. O conjunto das relações entre os três tipos de atores (doadores, beneficiários e mediadores) também é reflexo da economia política internacional, ou seja, das assimetrias e hierarquias existentes entre o centro e a periferia, entre o Norte e o Sul da ordem internacional.

    Metodologicamente, ao colocar dentro do campo político da CID as definições de AOD, ajuda pública e privada, ajuda e assistência internacional (do inglês, foreign aid), cooperação Sul-Sul ou ainda cooperação brasileira para o desenvolvimento internacional (Cobradi, como define o Ipea nos relatórios publicados em 2010, 2013 e 2016), eu poderia incorrer no risco metodológico da extensão conceitual (conceptual stretching), como diria Giovanni Sartori. Dito de outro modo, ao buscar incluir definições tão diversas dentro de um único campo conceitual, eu poderia provocar sua ampliação e esgarçamento a tal ponto que o conceito de CID enquanto campo político perderia sua função hermenêutica, não mais permitindo, assim, uma leitura rigorosa da realidade pesquisada.³ No entanto, para evitar esse viés, meu objetivo é também apresentar uma genealogia desses termos, buscando comparar as realidades institucionais e as práticas políticas por detrás dos conceitos adotados por atores que, de fato, são agentes normativos e, em alguns casos, prescritivos no campo da CID. Como espero demonstrar ao leitor ao longo dos capítulos que seguem, quem define os conceitos, em que contexto e com quais finalidades também são questões indispensáveis do debate que apresento.

    Ao definir a CID como campo político, estou menos preocupado com a distinção clara das fronteiras entre interesses comerciais, financeiros e humanitários, e mais estimulado a analisar como, na prática dos projetos implementados e na construção de uma retórica diplomática oficial, tais interesses relacionam-se uns aos outros, podendo apoiar-se mutuamente ou, em muitos casos, contradizer-se. Nesse conceito de campo político ainda incluo a própria produção de conhecimentos sobre cooperação e desenvolvimento. O conhecimento é instrumento central na definição das relações de poder, quer para a legitimação, quer para a crítica das fronteiras entre o ideário e as práticas dos atores da CID.

    Este livro consolida resultados de muitos anos de pesquisa teórica e empírica sobre o campo da CID, com entrevistas conduzidas com ativistas, diplomatas, funcionários públicos (nacionais e internacionais), colegas pesquisadores e professores universitários em países como África do Sul, Argentina, Cabo Verde, Canadá, China, Espanha, Estados Unidos, França, Guiné-Bissau, Índia, Inglaterra, México, Moçambique e Turquia. Também traz reflexões oriundas de uma prática, qual seja: a de funcionário internacional na Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco). A experiência profissional no Setor de Ciências Sociais e Humanas da Unesco, em Paris, entre 1994 e 2002, foi um primeiro momento de contato direto com agentes e acadêmicos de diferentes países trabalhando nesse campo profundamente político. Ali tive a oportunidade de representar a Unesco em reuniões do Comitê de Assistência para o Desenvolvimento (CAD) da OCDE, participar de negociações de projetos e financiamentos com governos e agências multilaterais, fazer avaliações de projetos implementados pela Unesco em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), acabando de algum modo também por reproduzir uma prática da qual, somente anos mais tarde, pude me distanciar e conquistar o estranhamento crítico necessário ao ofício acadêmico.

    O livro que ora apresento analisa um objeto de pesquisa cuja institucionalização é raramente contada na perspectiva crítica de um pesquisador do Sul. No Brasil e em língua portuguesa, a produção acadêmica sobre o tema também apresenta lacunas importantes. De fato, existem muitos artigos, livros organizados sob a forma de coletânea (em alguns dos quais eu inclusive estive envolvido) e relatórios publicados por grupos de pesquisa, organizações da sociedade civil e instituições políticas, porém livros autorais em língua portuguesa e publicados no Brasil ainda são raros. Em 1994, Jacques Marcovitch organizou a primeira coletânea sobre o tema no Brasil, reunindo textos de analistas e profissionais que atuaram no campo da CID. Em 2006, Reginaldo Moraes publicou livro na área de Relações Internacionais em que traz importantes contribuições para o entendimento das relações de poder que atravessam a história do desenvolvimento principalmente no pós-Segunda Guerra. Em 2010, Márcio Lopes Corrêa, funcionário da Agência Brasileira de Cooperação (ABC), publicou livro que apresenta reflexões sobre as práticas da cooperação na perspectiva brasileira e da própria Agência. Também em 2010, João Márcio Mendes Pereira publicou obra específica sobre o papel político e intelectual do Banco Mundial, fruto de sua brilhante tese de doutorado em História na Universidade Federal Fluminense.

    Portanto, ao publicar este livro, dialogo com muitas das ideias dos autores mencionados anteriormente, visando a contribuir para preencher essa lacuna na área de Relações Internacionais e a estimular o debate com quem estuda e pesquisa temas relativos à CID no Brasil, mas também com quem trabalha em projetos de cooperação e difusão internacional de políticas públicas. No capítulo 1 apresento um histórico sobre o lugar da CID nas relações internacionais. No capítulo 2 analiso o papel das organizações multilaterais, tais como ONU, União Europeia, Banco Mundial e bancos de desenvolvimento. No capítulo 3 discuto a função estratégica que as agências bilaterais desempenham na política externa dos principais Estados no Norte e no Sul. No capítulo 4, examino as relações entre política externa e CSS.

    País preponderante em sua região em função de critérios demográficos, econômicos e territoriais, o Brasil tem desempenhado papel político de relevo na América Latina e no Caribe, mas igualmente no seu entorno estratégico que engloba os países da costa atlântica no continente africano. No plano global, a participação do Brasil em inúmeros organismos internacionais, o grande número de embaixadas e delegações que lhe garante padrão de presença diplomática internacional inigualável quando comparado a outros países em desenvolvimento, mas também sua filiação a distintas coalizões (Fórum Ibas, Grupo Brics, G-20 financeiro) e comunidades de afinidade histórico-cultural (a exemplo da CPLP), inter alia, fazem com que o País seja frequentemente chamado a cumprir a função de mediador (bridge diplomacy ou diplomacia de pontes) nas negociações multilaterais comerciais, ambientais e de desenvolvimento. Como será detalhado no capítulo 4, no campo específico da cooperação, o Brasil não se apresenta como Estado-doador, nem aceita os critérios e as normas do CAD da OCDE. O governo brasileiro tem reiteradamente afirmado que não doa e sim coopera. Entretanto quem não faz doações e afirma cooperar estaria reivindicando que status e desempenhando que papel no campo político da CID? Essa é uma das questões-chave que alimentaram a reflexão e o desenvolvimento do quarto e último capítulo deste livro.

    Não poderia fechar esta introdução sem fazer meus sinceros agradecimentos aos colegas e estudantes com os quais muito debati sobre esses temas nos últimos anos. Do período em que trabalhei na Unesco e lecionei no Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences Po) guardo vivas as lembranças de trocas intelectuais com Bertrand Badie, Ali Kazancigil e Germán Solinís. De minha feliz passagem pela UFBA, onde ajudei a fundar o Labmundo-Bahia, ainda me lembro das longas e prazerosas conversas com Elsa Kraychete e com meus orientandos. Aos meus colegas do Iesp e do grupo de pesquisa Labmundo, também agradeço pelas trocas frutíferas e pelos vários debates que tivemos, principalmente no âmbito da disciplina Cooperação Internacional para o Desenvolvimento. Um agradecimento especial às minhas colegas e amigas Enara Echart, Leticia Pinheiro e Maria Regina Soares de Lima, com quem desenvolvi tantos projetos de pesquisa nos últimos anos, entre os quais menciono o grupo de trabalho do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso) sobre Cooperação Sul-Sul e Modelos de Desenvolvimento na América Latina. Também agradeço aos meus orientandos no Iesp, que têm participado ativamente do desenvolvimento de muitos projetos de pesquisa. Niury Novacek (com a supervisão sempre cuidadosa de Rubens Duarte) ficou responsável pela confecção das imagens e Priscilla Kreitlon pela revisão dos capítulos 1, 2 e 3: a esses pesquisadores do Labmundo o meu muito obrigado. Finalmente, este livro não teria sido possível sem os apoios financeiros recebidos para a implementação de inúmeros projetos de pesquisa do CNPq, da Faperj e da Capes, inclusive para poder passar todo o ano de 2017 na Universidade da Califórnia, em Berkeley, onde pude dialogar com os colegas Ruth Berrins Collins (do Departamento de Ciência Política), bem como Harley Shaiken e Beatriz Manz (do Center for Latin American Studies, Clas). Em Berkeley concluí a redação deste livro.

    CAPÍTULO 1

    HISTÓRICO, INSTITUCIONALIZAÇÃO E RELAÇÕES DE PODER

    INTRODUÇÃO AO CAPÍTULO

    A fim de contar a história do que hoje é designado como cooperação internacional para o desenvolvimento (CID), poderíamos adotar distintos pontos de partida, diferentes perspectivas intelectuais, e buscar seus antecedentes em experiências muito distantes da atualidade. Uma das primeiras formas de cooperação internacional documentada na história teria sido realizada no ano de 226 a.C. por várias nações capitaneadas por Ptolomeu III, do Egito, com o objetivo de prestar ajuda alimentar e assistência às vítimas do terremoto na cidade de Rodes.⁵ No caso latino-americano, poderíamos iniciar essa história a partir do século XVI, quando começaram a ser difundidos modelos de educação superior nas principais colônias espanholas, com a fundação de universidades em Santo Domingo (1538), Lima (1551), Córdoba (1613), Havana (1721), entre outras. É bem verdade que, em ambos os casos, a noção de internacional, assim como a de cooperação, precisam ser problematizadas: quer porque ainda não existiam Estados nacionais nos tempos de Ptomoleu III, quer porque a fundação de universidades na América Latina respondia a estratégias desenvolvidas no bojo de relações entre a metrópole espanhola e suas colônias.

    No entanto, ainda no caso da América Latina, porém já no período pós-independência de muitos Estados nacionais, foi também no setor da educação que, entre os anos 1820 e 1835, foram implementados projetos de escolas com estudantes-monitores na Guatemala, em Cuba, no México e em Porto Rico. Fundamentados nas experiências desenvolvidas em Cádiz, na Espanha, tais modelos e métodos educativos haviam sido criados pelos ingleses Andrew Bell e Joseph Lancaster (monitorial schools), e já se encontravam disseminados em algumas das colônias britânicas, como em Madras (hoje Chennai), no Sul da Índia.⁶ No campo da ciência e da tecnologia, o século XIX latino-americano também é profícuo em expedições e prospecções que ilustram uma dinâmica de cooperação internacional de fundamental importância.⁷

    Nos Estados Unidos, eventos ocorridos durante o século XIX ilustram as hesitações então presentes no seio do Legislativo quanto a conceder e financiar programas de ajuda emergencial a populações de países menos desenvolvidos. Tal foi o caso da resposta negativa do Congresso norte-americano em prover ajuda alimentar à Irlanda durante a crise de produção da batata, com base no argumento de que a caridade por meio de fundos governamentais deveria se restringir aos limites da sociedade nacional. Também poderíamos lembrar a decisão do Congresso de votar positivamente o Act for the Relief of the Citizens of Venezuela (1812) ou ainda a primeira forma de ajuda alimentar norte-americana, em 1896, sob a coordenação do Ministério da Agricultura. Tais hesitações do Congresso dos Estados Unidos da América (EUA), entre enviar ou não ajuda humanitária internacional, dissiparam-se a partir do século XX. O governo dos EUA, em 1918, decidiu enviar para a Europa cerca de seis milhões de toneladas de alimentos; em 1933, aprovou, por meio da Agricultural Adjustment Act, subvenções aos seus produtores a fim de assegurar envios sistemáticos a diferentes partes do mundo, e não mais exclusivamente em situações emergenciais. Além disso, em meados dos anos 1930 e logo após a Segunda Guerra Mundial, concedeu assistência técnica a países latino-americanos no campo do desenvolvimento.⁸ No caso brasileiro, em particular, a cooperação negociada pelo governo de Getúlio Vargas com os EUA foi um dos fatores importantes do processo brasileiro de industrialização, com a criação da Companhia Siderúrgica Nacional em Volta Redonda.⁹ A

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