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CIRANDAS INFANTIS (letra e notas filolégicas e lin- guisticas) MARTINZ DE AGUIAR Notala inicial. — Oferecendo 4 leitura as CIRAN- DAS INFANTIS, devo antepor-lhes algumas breves pa- lavras explicativas. Recolhi-as diretamente dos labios das nossas crean- gas, que as cantam 4 noite nas calcadas. Mas, para estudo completo, niio me contentei com um sé apanhado; eu proprio fiz varios e, para o salutar efeito da com- paragao, pedi a um nao pequeno nimero de alunas que me dessem outros, mas sem corregio dos erros que por- ventura encontrassem, e sem a preocupagéo sequér de me apresentarem coisa compreensivel. Eu queria que pusessem para o papel o que elas préprias cantavam ou ouviam cantar, tal qual, sem a mais leve idéa antecipa- da, fosse embora o resultado um verdadeiro disparate. E’ obvio — 0 alvo a que eu mirava, e, se algumas das minhas colaboradoras nao satisfizeram plenamente os meus rogos, as outras, entretanto, a éles se submeteram integralmente, como terao os leitores ocasiao de verifi- ear. Assim, volta cf, bom cavaleiro foi escrito por uma volta cabo, cavaleiro; 6 o vira, é o vira foi grafado por outra Elvira, Elvira, etc. Acertada afinal a versio mais comum, era essa que eu me punha a estudar, tendo, po- rém, sob os olhos as demais variantes, que muitas ve- zes encerravam a chave do enigma. N&o fui movido por intuitos prépriamente folcléri- cos, e por isso nao procurei fazer a continuade compa- 4 Revista TRIMENSAL rag&o das nossas cirandas com as do extremo norte, do centro ou do sul do Pais, nem com as portuguesas. O que em especial tentei foi concorrer para o descurado exame da lingua popular, e em geral sé com o fim de mostrar divergéncias ou mutagdes de linguagem é que entrei na comparagao de textos. Ciranda. — Mas que significa ciranda? Primeira- mente, ndo passa de uma espécie de urupema, de uma pe- neira retangular de bordos de madeira e fundo de tela oy arame, prépria para jocirar-se cal, areia, gr&os, etc. De ciranda formou-se o verbo cirandar (cf, cast. zaranda e zarandar ou zarandear), joeirar com ciranda. O mo- vimento, porém, com que se agita ésse instrumento, faz saltar ou andar & roda, lembrando o saracoteio de um bai- lado, o que dentro déle esté a limpar-se. Por isso, por natural fenémeno linguistico, ciramda veio a significar também “danca popular”, segundo Candido de Figuei- redo, ou “danca popular de roda”, segundo Jaime de Séguier, e cirandar dar voltas, andar de um lado para outro, dancar de roda. Essa idéa de danca, vamos des- cobri-la até na literatura. Manuel Ribeiro, o grande eseritor, autor insigne de uma meia ddzia de obras pri- mas, do que ha de melhér em lingua portuguesa, escreve naquela gema de alto prego que é “A Planicie Heréica”: “__., ia a motnha, cada vez mais fina, dancando em arneiros, cirandas e joeiras — e o oiro aparecia, luzia, coalhava, fazia-se monte.” Pg. 105. Morais (2.* ed.) ainda n&o regista a significacao fi- gurada. Também nfo a da Joao Ribeiro, a despeito da sua recentidade. E Jaime de Séguier nao menciona, para o verbo, o valor de dangar de roda, que achamos em Candido de Figueiredo. Dois exemplos, que pode- riam ser multiplicados, um literario e o outro popular, vio mostrar, entretanto, as duas significacdes figura- das de cirandar: “Nos Cardeais cirandava a maita dos algarvios, er folguedos e despiques, depois de bem fartinhos e com o ventre tirado de misérias, que a adiafa do lavrador fora de respeito.” “A Plan. Her.”, pg. 127. bo InsTITUTO DO CEARA 5 Nesta citagao, que de propésito alonguei para evi- tar dividas, cirandar quer dizer claramente dar voitas, andar 4 roda, andar de um lado para outro, O segundo exemplo nos é fornecido pela tradigio popular: “Ciranda, cirandinha, “vamos todos cirandar; “vamos dar a meia volta, “volta e meia vamos dar.” Esta quadra é de inestimavel valor explicativo, por que encerra a palavra eiranda (danca), até personifica- damente, em referéncia ao conjunto dos dancantes; por que tem cirandar como dan¢ar de roda, e por que, ao mesmo tempo, mostra o liame ideal que existe entre os dois significados trépicos: “vamos dar a meia volta, vol- ta e meia vamos dar”. Demais, postula a resolugéo de um problema: que é cirandinha? Candido de Figueiredo responde-nos: “danga, o mes- mo que ciranda.” E Jo&o Ribeiro, mais amplamente: “eanto e danga popular, ronda graciosa, com, certa mtu- sica que Ihe & prépria”. Nao posso infelizmente concordar. Pelo menos, no norte do Brasil 6 de todo o ponto inveridico que ciran- dinha e ciranda se equivalham. E’ bem verdade que rolinha o mesmo é para nés que réla, o que jad se havia dado no portugués geral com passarinho, sinonimizado com passaro e dando os derivados passarinhada (por passarada ou passaredo), passarinhar, passarinhagem, passarinheiro. E’ outro o caso da cangio lidica. ci randinha é um diminutivo de carinho, como amorzinho e bonitinho. No mesmo Portugal, porém, parece-me que sé sera verdadeira a afirmacio dos dois ilustres le- xieégrafos se estendermos a equipoléncia de diminuti- vos e positivos a quase todos, senio todos, os nomes substantivos da lingua portuguesa. Constituem preci- samente os diminutivos.um dos pontos de diferenciagio 6 REvisTA TRIMENSAL entre o falar do Brasil e o do Portugal de hoje. Para americanos, essa férma flexiva tem o seu valor préprio ou ent&o indica carinho, depreciacio, intensidade e, po- pularmente, porgao (um pouco, um tanto, algum, um bo- cado, um pedago). Entre peninsulares se emprega nes- Ses casos, € noutros que nos sao completamente ininte- ligiveis. Se folhearmos as primeiras cem pAginas do j& citado romance “‘A Planicie Herdica”, em que se acha representado muito da linguagem pictérica do sul da ve- Ilha metrépole, se as folhearmos apenas, mesmo sem lé-las e procurando 4s pressas, afastada a intengao de fazer estatistica, toparemos com setenta diminutivos, quase um por pagina, alguns dos quais, como carvanito, colchanito e bordanito, até morfologicamente nos causam surpresa. Grande ntimero déles, nés os substituiriamos por positivos, na impossibilidade de sentir-Ihes qualquér diferenga. Nao é de admirar que cirandar passasse a ter os dois significados tropolégicos. | Fenémeno idéntico é o que se verifica com crivar, joeirar, peneirar e ralar, de- rivados de crivo, joeira, peneira e ralo, instrumentos to- dos irmanados ou aparentados com a ciranda. Crivo, diz Candido de Figueiredo, 6 um “conjunto de orificios numa superficie’, é um “utensilio culindrio, de félha, com muitos orificios, para separar de um li- quido as substancias intteis”. De crivo, o verbo crivar, passar pelo crivo, e, figuradamente, as expressées crivar de facadas, de dividas. Joeira é uma peneira para trigo. O derivado joei- rar tem, a par do valor préprio, o de separar o bom do mau (como o joio do trigo), de escolher, de examiner com atencao. A peneira € o tipo dos utensilios similares. Serve para separar a parte mais fina de uma substancia da mais grossa. Passou trépicamente a significar chuviseo, as- sim como ciranda danga. O derivado peneirar ajuatou ao seu sentido o de saracotear e chuviscar. Ralo é o instrumento que serve para triturar queijo, milho, etc. Para isso, é necessdrio friceiona-los. Dai, po INSTITUTO po CEARA 7 o verbo ralar valer também por atormentar, aporrinhar, amofinar. Aplicou-se o nome de ciranda 4 cantiga que acom- panha a danga, por ser uma inseparavel da outra; e che. mei-lhe infantil, por que é de creangas que aqui se trata. Um grupo delas retine-se A noite nas calcadas, isto 6, nos passeios, nas partes laterais da rua destinadas aos pedestres, ou ainda no calcamento, isto é, no leito, na parte mediana da rua destinada aos veiculos, fazem uma roda, ligadas pelas maos, e, em toada meio gritante, a regirar, a bater palmas, a sapatear, a mover-se em sa- racoteios rapidos, a colubrejar e a saltitar, desfiam, du- rante longas horas 4s vezes, quantas cancdes coreogra- ficas teem de memoria. A ciranda d4-se mais geralmente o nome de ronda, do francés ronde. Mas, além do que adotei, as préprias eangdes nfo apresentam outro sendo o de roda: “Apareca em seu lugar, “olé, olé, Milunguinha, “pra roda dancar.” A lingua. — A revezes, deparam-se-nos composigées em que, pela sua origem evidentemente literdria, a lin- gua 6 a mesma dos livros. Mas, em geral, é caracteris- ticamente popular, cheia de exclamagées, de silabas pu- ramente neumaticas, de palavras truncadas ou incom- preensiveis, de perissologias, de interjeic6es inventadas, de aliteracSes, de homofonias, de repetigdes de vocdbu- los, de contragées violentas, de alongamentos anormais, de sentidos nao de todo expressos e até ilégicos. Sera estudada & medida que o for cada ciranda. Devo notar, porém, desde ja, alguns esquemas sintaticos que sao ti- picos: a) falta do objeto, direto ou indireto, pronominal: “Meu senhor, eu vendo fléres “e ninguém quér me comprar.” 8 REVISTA TRIMENSAL “Que oficio dar a ela? “Dou o oficio de costureira.” b) infinitivo inflexivo, seja qual for o sujeito: “para nés se ajoelhar” “para nés se levantar” “para nés dancar” ¢) emprégo do infinitivo, nao sé pelo imperativo, mas também pelo indicativo: “escolher (=escolhei) a que quisér” “Que oficio dar (—dais) a ela?” d) persisténcia da terceira pessoa se nos verbos pro- nominais: “para nés se ajoelhar, para nés se levantar”. e) uso parco do artigo: “derradeiro ficar&” f£) emprégo da preposigao em com os verbos de mo- vimento: “Va na casa do Sr. Chiquinho,” g) uso do sujeito eu, do infinitivo, por me, com os verbos causativos: “nao deix’ eu voltar pra casa” Os ritmos. —— E’ a redondilha maiér que predomina nas cirandas, como em toda a poesia popular. Mas hé composigdes em redondilha menér e em versos de seis e de quatro silabas. A metrificacio nem sempre é per- feita, encontrando-se versos com falta ou superabundan- cia de silabas métricas: vo InstTiruTo po CEaRA 9 “Dai-me um beijinho (4), “apertado abraco (5).” “Bracgos curtos (3), “de orango-tango (4); “pernas cumpridas (4), “de frango... frango... (4)” “Onde mora a La-Condessa (7), “lingua de ponta de lanceta (8)? “—4Que quereis com 4 La-Condessa (7), “que por ela perguntais (7) ?” “Somos filhas do rei (6), “somos netas da rainha (7): “senhor reis mandou dizer (7) “que se escondesse na pedrinha (8).” Essa dissimetria obriga muitas vezes os cirandantes a apressar muito a voz, de modo que da em resultado contragées forgadas, ou a relenté-la demasiado, tendo- se entéc o aparecimento de hiatos. O Demavé é uma composigio de quartetos que teem sete silabas nos trés primeiros versos e cinco no ultimo: “Eu sou pobre, pobre, pobre, “demavé, mavé, mavé, “eu sou pobre, pobre, pobre, “demavé dé-cé!” Eis, porém, que, a quebrar a harmonia, l4 vem um octossilabo — “dou 0 oficio de costureira” ~~, que determina um apoio na primeira silaba de cos- tureira. 10 REvisTA TRIMENSAL Pelo contrario, na mesma ciranda, o verso “Que oficio dar a ela?” obriga a pronunciar um qué bem claro, formando-se as- sim um hiato. E’ 0 mesmo caso do Vira: “Meninas, vamos ao vira, “qué o vira é coisa boa.” Na Danga da Carrapeta, o verso “menina, me d&é um abraco” oferece a contragaéo de d& e um numa s6 silaba: “menina, me daé-um abraco” As vezes, o apoio musical fora da silaba ténica da em resultado uma modificacio sintatica. Pela constru- cio fraseolégica mesma do Carneirinho, vé-se que a sua forma primitiva foi “Carneirinho, carneir&o, “., .meirfio, ...neirao, “olha pro céu, olha pro chao, “|. .neirfio, ...neirio.” A misica requeria apoio na altima silaba de olha, e o resultado foi olh&, que, sem significagio, foi substi- tuido por olhais: “Carneirinho, carneirao, “|. meirao, ...neirao, “olhais pro céu, olhais pro chao, “...mneirio, ...neirio.” po InsTiTuTO po CEARA 11 Em alguns casos, a ciranda nfo é prépriamente can- tada, mas declamada num tom musical, se me expresso bem. E’ o que verificamos a respeito da Menina Ga- lante: “Aonde vais assim, “bela menina, “menina galante?” As rimas. — Rima em geral, consoantemente, o se- gundo verso com o quarto. Mas é muito comum a ri- ma toante: amarelo e céu, prata e cara, etc. Noutras ocasides nenhuma rima existe, e encontramos, por exem- ple, amor correspondendo a chapéu. A Constanga com- preende trés estrofes: na primeira rimam bem-querer c fartei; na scgunda, cacheados ec cidade; na terceira, es- colherel e abracarei. $6 nesta houve rima verdadeira, isto é: rima consoante. A Casinha de Bambf, de ni- mero de estincias muito variado, &, por via de regra, cantada com cinco, das quais uma é o estribilho. A pri- meira e a segunda teem rima consoante, a terceira e a quarta toante, ¢ a quinta nenhuma rima tem. A FLOR O’ flor, 6 linda flor, 6 flor, vem ca! ©’ flor, 6 linda flor, olé, olé, olé, old Senhora dona Maria, entre dentro desta roda, diga um, verso bem bonito, dé adeus e va embora. 12 REvIsta TRIMENSAL —— Atirei... nao atirei... Atirei, cafu no chao; atirei naquele ingrato, na raiz do coragiio. VAarias observagdes nos sugere esta ciranda. — Em primeiro lugar, devemos explicar olé, ol4, que é pronun- ciado 6lé, 614, quando entretanto sabemos que o natural é 6lé, 614. Havia no portugués antigo a interjeicéo sim- ples hou e a composta houlé, de que encontramos di- versos exemplos em Gil Vicente. Ambas sio ainda hoje vivazes no Cearé, Portanto, 614 é um arcaismo que nés conservamos em pleno vigor. A semelhanca de houla deve-se ter formado houlé, cujo é, aberto, deve ter pas- sado a 6, fechado, por estar em contacto com um diton- go fechado (ou). E’ uma acomodagéo vocilica progres- siva. — Outro exemplo de acomodac&o vociflica ou me- tafonia nos oferece a palavra senhora, que deviamos proferir com o fechado, como em Portugal, pois é femi- nino de senhor, e entretanto proferimos com o aberto: senhéra. Os nossos filélogos ainda nao acharam a ra- zao désse fato, e alguns, conto Joo Ribeiro, que é dos maiores, teem aventurado a idéa de que talvez na lingua antiga j4 se pronunciasse como entre nés. Basta aten- tar em que em nenhum ponto de Portugal persiste, dia- letalmente embora, essa prontincia, para pér em divida a opinido do ilustre mestre, tanto mais quanto a foné- tica brasileira explana satisfatoriamente 0 caso. A ex- pressio Nossa-Senhora tem em certas frases um acento enfatico na silaba no, como, por exemplo, na exclamacio minha N66é6ssa-Senhora! Esse 0, assim prestigiado, in- fluiu no o de senhéra, tornando-o de fechado em aberto. Depois, generalizou-se a prontincia senhéra, com o aber- to. Igual explicacéo tem a passagem de amér a améor e de Déus 2 Déus na conhecida frase —. uma esmola pel? amér de Déus! —, com que os pedintes nos batem & porta. Sébre a palavra esmola recai o acento enfati- co (uma esmddéla!), e o o assim acentuado contagiou © seu timbre aberto a amor e a Deus, — Entre dentro. po INSTITUTO DO CEARA 13 Pleonasmo comum, como outros, no antigo portugués. — Bem bonito. E’ muito do agrado do povo o super- lativo feito com o advérbio bem. E j& houve quem ta- chasse de galacismo tao belo uso! Pobre ciéncia! — Atirei... nio atirei... Linguagem hesitativa muito po- pular. No verso seguinte vem a afirmiacg&o positiva: atirei. Como veremos adeante, ha, porém, casos em que nado esté expressa a afirmacgio, mas o periodo continia como se o estivesse. Ha a variante — atirei e atirei, / atirei naquele chio;/ atirei naquele braco/ da raiz do coragéo —-, que nenhum interésse apresenta, TRES! TRES! Trés! Trés! Passara! Derradeiro ficara! Se no for o de deante, ha de ser o de detras! Variante: Tras, tras passaras. Derradeiro, ficaras! Que néo for o de deante, ha de ser o de detras! O terceiro verso também se diz o que for o de deante. Qual das duas versdes é a primitiva? Ambas sfo rigo- rosamente corretas, mas a primeira tem de certo a pri- mazia, pois mais se aproxima da versdo francesa, Ie pont- levis: ‘Par trois fois on passera, / Mais 4 la derniére passe, / Par ceux sous qui l’on passe, / Qui sera pris restera”. Harquevaux et Pelletier, 200 Jeux d’ Enfants, pg. 110. — Derradeiro ficaré. No antigo portugués era frequente a omissio do artigo, como o demonstra esta passagem, da lenda do rei Leir: “E casou a filha mayor com o duque de Cornoatha, e casou a outra com rrey 14 Revista TRIMENSAL de Scocia, e niio curou da meor”. E’, pois, um arcais- mo, que ainda vigora no seio do nosso povo. — Que nao for. Que por se- E’ muito vulgar, Encontra-se tam- bém na literatura. DOMINE Por esta rua, dominé, passeou meu bem, dominé; serd por mim, dominé, ou por alguém? dominé. O passarinho, dominé, caiu no Iago, dominé. Dai-me um beijinho, dominé, apertado abrago, dominé. Esta cancgéo é€ uma das mais mimosas de toda a cc- lecio. O estribilho dominé, provavelmente apoiado no latim dominus, mostra talvez a sua origem erudita. — Alguém est4 por alguma outra pessoa. —— Passarinho o mesmo é que pissare, mas aqui se refere ao “meu bem”. Diz a cirandante, com leve e terna ironia, que o seu bem. se Ihe rendeu; pede-lhe por isso um beijinho e um abraco. — Beijinho. Diminutivo de carinho. Em Por- tugal, abusa-se do diminutivo. Nao lhe sentimos a fér- ¢a, por exemplo, neste trecho de Manuel Ribeiro: “Tra- zem-me p’la mao, e arrimado a éste bordanito, dou as minhas voltitas, com muito custo, porque as pernas sic bo InstiruTo po Card 15 dois trambolhos.” Bordanito, com um pouco de boa von- tade, ainda se compreende, mas voltitas!... Ha de ha- ver quem diga que se esté em face de um diminutivo de intensidade... DEMAVE —- Eu sou pobre, pobre, pobre, demavé, mavé, mavé, eu sou pobre, pobre, pobre, demavé dé-cé! — Eu sou rica, rica, rica, demavé, mavé, mavé, eu sou rica, rica, rica, demavé dé-cé! — Quero uma de vossas filhas, demavé, mavé, mavé, quero uma de vossas filhas, demavé dé-cé! —- Escolher a que quisér, demavé, mavé, mavé, escolher a que quisér, demavé dé-cé! ~— Eu quero a Marianita, demavé, mavé, mavé, eu quero a Marianita, demavé dé-cé! — Que officio dar a ela? demavé, mavé, mavé... que oficio dar a ela? demavé dé-cé! 16 REvISTA 'TRIMENSAL — Dou o oficio de engomadeira, demavé, mavé, mavé, dou o oficio de engomadeira, demavé dé-cé! — Este offcio nio me agrada, demavé, mavé, mavé, @ste officio nfo me agrada, demavé dé-cé! — Dou o oficio de costureira, demavé, mavé, mavé, ‘dou o officio de costureira, demavé dé-cé! — Este oficio nfo me agrada, demavé, mavé, mavé, @ste oficio nado me agrada, demavé dé-cé! ~- Dou o oficio de pianista, demavé, mavé, mavé, dou o oficio de pianista, demavé dé-cé! — Este officio j4 me agrada, demavé, mavé, mavé, éste oficio jé me agrada, demavé dé-cé! — Eu de pobre fiquei rica, demavé, mavé, mavé, eu de pobre fiquei rica, demavé dé-cé! — E eu @e rica fiquei pobre, demavé, mavé, mavé, e eu de rica fiqueit pobre, demavé dé-cé! po INsTITUTO Do CEaRA 17 Cantada, esta ciranda é de um efeito surpreendente. Tanto pode a arte! Ha as variantes jé-mavé, mavé, mavé e jé-mavé dé-ci, jé-mavé jé-cé. Precisamente es- tas variantes mostram que as silabas melédicas que cons- tituem o segundo e o quarto versos de cada estrofe nao sao mais do que um estribilho francés (je m’en vais, m’en vais, m’en vais; je m’en vais d’ici), que as crean- cas transformaram. E’, pois, de origem erudita esta ci- randa. — Pobre, repetido. E’ popular e literaria a re- petic&io intensiva. Nao se circunscreve ao portugués; é um fato indo-europeu. -—- Escolher a que quisér. O in- finitivo escother, pelo imperativo, determinou a inflexi- bilidade de quisér. — Que oficio dar a ela. Dar nio é, como poderia parecer a algum incauto, uma transforma- gio fonética de das. A passagem déste fonema a r 86 se efetua, e plebtamente, antes de m: as miios, ar miios; faz mal, far mak E’ um dos muitos casos, que apare- cem no portugués antigo, de infinito com valor de forma verbal pura. O CRAVO EF A ROSA O Cravo brigou com a Rosa debaixo de uma latada; 9 Cravo saiu ferido, a Rosa espedacada. A Rosa ficou doente, o Cravo foi visité-la; a Rosa deu um desmaio, o Cravo pés-se a chorar. — Mangueira, me dé uma manga; limoeiro, me d4 um limfo, para tirar esta noda que est4 no meu coragao. Variantes: debaixe de uma cereada, defronte de nossa casa; para tirar esta nédoa, — Espedacada. Des e es 18 REVISTA TRIMENSAL substituem-se comumente, sendo esta a forma preferida pelo povo, que chega a usar esbilitar por debilitar, como se houvesse desbilitar. — Me d4 uma manga. A coloca- cio do pronome, que tanta celeuma levantou nos arraiais dos gramaticos, parece que afinal foi considerada resol- vida, Mas niooesta. Primeiramente, quiseram solver 2 pendéncia apenas dentro do campo da sintaxe. Depois, hA poucos anos sémente, levaram a questio para o domi- nio da fonética. Cessaram entio as disputas. A verdade, porém, é que tanto erraram uns como os outros. O fe- némeno obedece a um complexo de fatores (sintatico, maAuntico, histérico, analégico, fonético, estético), dos qui um atua em tal frase, outro noutra, vindo 4s vezes a entreajudar-se e entrebater-se. No estudo que tenho em preparo sébre a lingua da Academia Cearense, debalo exaustivamente o assunto. Na frase dada, a colocacio do pronome foi determinada pelo fator histérico. —- Nada. Forma antiga de nédoa, popular entre nés. Os dicio- narios referem neda a nota e nédoaz a notula. Refiro ambas as formas ao diminutivo latino, por que a absor- peaéo do o é normal, — Cerecada. Em lugar de terreno fechado por sebe, usa-se muito entre nos do. O feminino cercada, s6 0 conheco dest: ean sentido mostra claramente que latada é a férma primi- tiva e boa. Cereada pederia dentro e nao debaixe. — Defronte de nossa casa. Este verso enseja duas anota- g6es: a) defronte ec em frente dizem a mesma coisa; mas, quando se trata, por exemplo, de duas casas de esquina que se opdem pelo vértice, s6 se usa entre nds, e com razio, defronte; b) a nossa linguagem familiar usa parcimoniosamente o artigo antes do possessivo, na que ainda uma vez se aproxima do antigo portugués. MATATIRA -— No salao dancei, matatira tirarei, - bo INSTITUTO DO CEARA 19 com as meninas bonitinhas, matatira tirarei. ~— Meu castelo é tao belo! matatira tirarei! —- O meu é melhor, matatira tirarci. —- Que de mim quereis? matatira tirarei... -—— Eu quero a Carmelita, matatira tirarei. Temos aqui mais um exemplo de estribilho puramen- te neumatico, isto 6: formado de silabas que nao teem Significagdo e apenas servem para acompanhar o ritmo musical. Lembra o francés: J’ai six beaux gateaux / Ma tant’lire, lire, lire, / J'ai six beaux g&teaux, / Ma tant’lire, lire, lo”. Claude Augé, Les Chants de l’En- fance, pag. 55. Tera sido calcado no francés o nosso estribilho? © meu velho e distinto amigo dr. Mozar Pinto, tao sapiente e modesto, comunica-me que sempre atribuiu a uma acomodagdo do francés o primeiro verso da nossa ciranda. Para éle, no sali dancei nao é senio nous allons danser. A hipdétese merece estudo. — Tira- rei nada tem com o verbo tirar, € um agrupamento de silabas melddicas. A LA-CONDESSA —— Onde mora a La-Condessa, lingua de ponta de lanceta? - Que quereis com a La-Condessa, que por ela perguntais? 20 RevIsTA TRIMENSAL — Sr. Reis mandou dizer que das filhas que tivesse mandasse uma para éle casar com ela. — Eu ni&o dou as minhas filhas no estado em que elas tio, nem por ouro, nem por prata, nem por sangue de Alaga&o. —. Tao alegre que viemos e tao triste que voltemos, pelas filhas da La-Condessa, que nenhuma nés trouxemos. —Volta ca, bom cavaleiro, para ser homem de bem; entra aqui neste convento, escolhe a melhér que tem. —— Esta fede, esta cheira, esta come pao de feira; esta mesmo & que ev queria, para ser minha companheira. —- Senta aqui, bela menina, a coser e a bardar, que do céu ha de cair uma agulha e um dedal, palmatéria de marfim para as mfos te castigar. Variantes: lingua de Franga e de lanceta; de Fran- ga, dor de lanceta, flor de laneeta, dois de lanceta. Das trés filhas que tivesse, das suas filhas que tivesse. Mandas- se uma para com éle casar, para casar com éle. No es- tado que elas tio, em que el’estio. Nem por sangue de alazio, de Aragio. Tio triste que voltamos / e tio alc- gre que viemos. As filhas da La-Condessa, / nenhuma po InstiTUTO po CeaRd at delas nao trouxemos. Volta, volta, cavaleiro; volta cabo, cavaleiro. Escolher a que convém, a melhér que te con- vém. Esta fede e esta cheira. Esta mesma 6 que eu queria; esta aqui 6 que eu queria, que eu quero. Para o sr. Reis castigar. E’ a ciranda que maior nimero de variantes oferece. — La-Condessa. La é a forma antiga do artigo feminino, ainda hoje usado com a preposicio per (pelo) e, entre portugueses, com o advérbio preposi- cional mais (mailo, malo), Também no Ceara jf o ouvi mais de uma vez dos labios dos nossos matutos. Per- dida a nogéo do seu valor, passou a formar com condessa uma espécie de nome composto e de novo foi empregado, mas na forma a. — Reis. Plural tomado como singular, a semelhanga de filhés. Em meio de frase é sempre reis o que usa o povo; em pausa, reis ou rei. E’ muito co- nhecida a expressio dia de reses (por reises), com que até gente educada se refere ao dia dos reis magos. ~— No estado em que elas tio. A forma aferética tar é antiga e geral no dominio do portugués. — Nem por san- . gue de Alagio. Da-se aqui um fato interessante. A versio primitiva e verdadeira é sangue de Arag&o, em referéncia 4 antiquissima e poderosa fidalguia do ex- reino de Aragio. As nossas creancas, nig 'o compreen- dendo, substituiram (atracio homonimica) Aragie por alaziio, palavra que designa o cavalo de cor de canela. Depois, operou-se um cruzamento entre Arago e alaziio, surgindo a forma Alagiio, que nada diz, mas é atualmen- te a de maior uso na ciranda, ~—- Viemos. Alguns pro- fessores ensinam, que, indo-se, para exemplo, visitar um amigo que completa anos, nfo se lhe pode dizer vim aqui para, etc., mas venho aqui. Ambas as férmas so cor- retas, Quando se diz venho, tem-se em mente a reali- zagio presente daquilo para que se veio; quando se diz vim, tem-se em mente a realizaciéo ja verdadeiramente passada do verbo vir. © que nos compete, aos profes- sores de verndculo do Ceara, é fazer com que os nossos alunos deixem o hdbito, que trouxeram dos tempos da infancia, de empregar o pretérito viemos pelo futuro viremos, confusiio que s6 se d&, entretanto, nesta pessoa. 22 REVISTA ‘FRIMENSAL Até individuos que se presumem educados dizem: — Nos viemos amanhé. Este mau costume é que é preciso erra- dicar quanto antes. -—- Woltemos. O baralhamento da terminagio amos (am4mos) com a terminagio emos (co- memos) é apenas da lingua plebéa. O que 6 comum é amos, isto é: Amos, com a, nao aberto, mas nasal. EH’ © wmico exemplo que aparece nas cirandas. Eu o atribuo & atracgéo rimica de trouxemos, talvez ainda facilitada por viemos. Estou certo de que a forma primitiva é a que d4 a variante: “Tao triste que voltamos / e tio ale- gre que viemos”. Note-se que voltamos é um pretérito, como viemos e trouxemos. O embaixador, desenganada pela condessa, considera j& tudo no passado. — Volta ca, bom cavaleiro. Varias das minhas colaboradoras me deram volta cabo, cavaleiro. A linguagem enfatica, em que se inclue a linguagem cantada, esta, por efeito da propria énfase, sujeita a modificagdes consideraveis. Aqui em Fortaleza, cantam todos agora uma modinha, em que ha o verso namoro e hei de namorar, que muitas pessoas transformam em namorei de nomorar, verdadeiro “non- sens”, por causa da pronuncia enfatica de hei. Ha meses, antes de se divulgar o sorvete solidificado, passava pelas ruas um menino que apregoava: — Sérv dyfbaeAxit Isto é: sorvete de abacaxi. O verso da ciranda divide-se em duas partes ritmicas: volta c& / bom cavaleiro, Bom é, portanto, proclitico. Dai, passar a bu e ser tomado como silaba final da palavra anterior, com a qual forma- va nova palavra, perfeitamente conhecida das creangas. — Convento est4 aqui no sentido antigo, mais préximo do latim, de mera reuniéo. Entra aqui neste convento, isto é: entra aqui nesta sala onde est&o reunidas as mi- nhas filhas. —- Escothe a melhér que tem. O sujeito de tem é convento. Mas, além de serem sindénimos ter e haver, esta frase e outras do mesmo esquema concorre- ram para que se usasse ter, como haver, nas frases em que se podem pér os verbos existir e dar-se. E nao é um brasileirismo,

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