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Capitulo 1 Itinerarios da investigagao Devemos realizar um ato de violéncia: obrigar 0 mundo a levar em considerago questdes as quais tem sido inconsci- ente e rejeitar ou evitar que esta inconsciéncia do mundo faca dele algo distante e incomunicado para nés. O intento de comunicar contraviré seu propésito. Neste processo de conversdo forgada reproduziremos a es- peranga da comunicagao mais remota. (Zicmun Bauman) Pensar a comunicagao na América Latina é cada dia mais uma tarefa de envergadura antropolégica. Pois 0 que ai esta em jogo nao sao s6 deslocamentos do capital e inovages tecnolégicas, mas profundas transformagées na cultura coti- diana das maiorias: mudangas que trazem a superficie estra- tos profundos da meméria coletiva ao mesmo tempo em que movimentam imagindrios que fragmentam edes-historicizam. Mudangas que nos confrontam com uma acelerada desterrito- rializagdo das demarcagées culturais e com desconcertantes hibridizagdes nas identidades. E, por mais escandaloso que arega, é um fato que as massas na América Latina estao se 20 [ANOS 1990: PENSAR A SOCIEDADE DESDE A COMUNICACAO incorporando & modernidade nao pela mao do livro, nao se guindo 0 projeto ilustrado, mas desde os formatos e os géne- ros das indtistrias culturais do audiovisual. E essa transfor- magio da sensibilidade, a partir néo da cultura letrada mas das culturas audiovisuais, nos coloca alguns graves desafios. Comecando pelo de aceitar que as maiorias possam se apro- priar da modernidade sem deixar sua cultura oral, transfor- mando-aem uma oralidade secundaria, isto é, gramaticalizada pelos dispositivos e pela sintaxe do radio, do cinema e da tele- visio. O desafio que essa transformagio cultural implica dei- xa obsoletos tanto os modos populistas como os ilustrados de analisar e valorizar. Porém, a ndo ser que, fechando os olhos, acreditemos poder deter 0 movimento do social, nos seré muito dificil continuar chamando de inculta uma sensibilidade que desafia nossas nogGes de cultura e de modernidade, e desde a qual esto se transformando os modos de ver, de imaginar e de narrar, de sentir e de pensar. Esse ¢ 0 cenério no qual se estabelecem hoje as relagdes entre comunicacdo e cultura: 0 da desestruturacdo das comunidades e da fragmentacao da experiéncia, o da penda da autonomia do cultural e da mescla arbitraria das tradigdes, o da emergéncia de novas culturas que desafiam tanto a sistemas educativos incapazes de se en- carregar do que os meios macigos significam e so cultural- mente, como a politicas culturais dedicadas ainda majoritaria- mente a difundir e conservar. 1. Comunicagao: campo académico e projeto intelectual A dificil e nunca consolidada constituigao disciplinaria do es- tudo da comunicagao, que tantas desvantagens tem acarreta- doa seus praticantes, é precisamente a condigao de possibili- INERARIOS DA INVESTGAGAO au dade de seu novo desenvolvimento. Nao ter tido a possibili- dade na América Latina de ter se convertido em uma “ciéncia normal”, como diria Kuhn, é 0 que agora proporciona a movi- mentagdo necesséria para continuar perseguindo seu objeto e gerando socialmente sentido sobre a producio social do sentido (...) conservando o impulso critico e utépico que tem caracterizado a este campo na América Latina. (Rat. FUENTES) No processo de construgao e apropriagao tedrica docam- po da comunicacao na América Latina houve um tempo no qual a politizagao conduziu a fazer gravitar 0 campo todo so- bre a questdo da ideologia, convertendo-a no dispositive totalizador dos discursos legitimos. Nos ltimos anos os estu- dos de comunicagao experimentam uma tentagao andloga ao transformar a relacdo comunicagao/cultura em outra forma de totalizacao. Na conformagao dessa tendéncia esto pesando decisivamente as inércias ideolégicas e as modas académicas. Faz-se dificil para nés “viver” sem as segurangas que ofereci- am os grandes paradigmas globalizadores, e a tentagao conti- nua sendo ainda forte de dissolver as tensdes enunciadas nos conceitos convertendo em merotemaneutroe assépticoo que so conflitivas pistas de investigagao e esforgos de conexdo com as contradigées sociais. Nés que trabalhamos na dupla fronteira da comunicagao/ cultura e da investigagao/docéncia nos vemos ultimamente expostos a um ciimulo de mal-entendidos, e a dois especial- mente graves: de um lado, pareceria que nao hé forma de to- mar a sério a cultura sem cair no culturalismo que des- historiciza e despolitiza os processos ¢ as praticas culturais; do outro, pensar a comunicacao desde a cultura implicaria irremediavelmente sair do terreno “préprio” da comunicagio, de seu Ambito tedrico espectfico. A resposta ao primeiro mal- 212 [ANOS 1990: PENSAR A SOCIEDADE DESDE A COMUNICAGAO. entendido se acha na explicitagéo das medigées que articu- lam os processos de comunicagao com as diferentes dinmi- cas que estruturam a sociedade, desde as econémicas e poli- até a que estrutura o campo no qual se insere a comuni- cagéio, acultura. Compreensio que supée a desconstrugao do conceito de cultura para desvelar os entrecruzamentos e as mudangas de sentido — as clandestinas e paradoxais oposi- bes e convivéncias entre conceigées atuais e superadas mas que sobrevivem tenazmente aferradas &s mais avancadas —, assim como o movimento das posigdes ¢ os projetos politicos. Pois “sabemos que a lutaa través das mediagées culturais nao dé resultados imediatos e espetaculares, mas é a unica garan- tia de que passemos do simulacro da hegemonia ao simulacro da democracia: evitar que uma dominagao derrotada possa ressurgir nos habitos cimplices que a hegemonia instalouem nosso modo de pensar e nos relacionar”'. Sobre o segundo mal-entendido, retomarei o escrito ha pouco: pensar a comu- nicagao desde a cultura é fazer frente ao pensamento instru- mental que tem dominado 0 campo da comunicagao desde seu nacimento, e que hoje se autolegitima apoiado no otimis- mo tecnolégico a que se acha associada a expansao do con- ceito de informagao. O que ai se produz ndoé ento um aban- dono do campo da comunicagao mas sua desterritorializagao, uma movimentagao dos limites que tém demarcado esse cam- po, de suas fronteiras, suas vizinhangase sua topografia, para desenhar um novo mapa de problemas em que caiba a ques- tao dos sujeitos e das temporalidades sociais, isto 6, a trama de modernidade, descontinuidades e transformagées do "4. N. GARCIA CANCLINI, Cultura y poder: zd6nde esté la inves- tigacién?, ENAH, México, 1985, 16. MINERARIOS OA INVESTGAGAO 213 sensorium que gravitam em torno dos processos de constitui- ‘¢lodos discursos e dos géneros nos quais se faza comunicagiio coletiva. Porém, se estamos mencionando esses mal-entendidos no é para resolvé-los academicamente mas para poder pas- sar do problema da legitimidade teérica do campo da comu- nicagéo a uma questio diferente: a da sua legitimidade inte- lectual, isto é, a possibilidade de que a comunicago seja um lugar estratégico desde o qual pensar a sociedade e de que 0 comunicador assuma o papel de intelectual. E para ai que aponta em tiltima instancia a perspectiva aberta pelo para- igma da mediagao e da andlise cultural, a pergunta pelo peso social de nossos estudos e nossas investigacdes diante da exi- géncia de repensar as relages comunicacao/sociedade e redefinir o préprio papel dos comunicadores. De nao ser as- sim a expansio dos estudos de comunicagao, e inclusive seu crescimento e sua qualificagao teérica podem estar se con- vertendo hoje em um verdadeiro alibi: aquele que nos permi- te esconder por trds da espessura e da densidade dos discur- sos logrados nossa incapacidade para acompanhar os proces- Sos e nossa demisséo moral, Amis de uma pessoa poder escandalizar a proposta de que o comunicador se assuma como intelectual. Depois de todo © esforco feito em nossas escolas para assumir a dimensao produtiva da profissio, no estariamos nos voltando para a época em que se confundia 0 estudo com a dentincia? Nao. O que estamos propondo é que na medida em que 0 espaco da comunicacao se torna a cada dia mais estratégico, decisivo para © desenvolvimento ou o bloqueio de nossas sociedades — como revela a espessa relacao entre informagao e violéncia, a incidéncia dos meios de comunicagao na legitimacao dos no- 24 ANOS 1990: PENSAR A SOCIEDADE DESDE A COMUNICACAD vos regimes autoritarios, assim como nos processos de tran- sigdo para a democracia, e das novas tecnologias na reorgani- zacao da éstrutura produtiva, da administracao publica e in- clusive na “estrutura” da divida externa —, se faz mais nitida a demanda social de um comunicador capaz de enfrentara en- vergadura do que seu trabalho poe em jogo e as contradigbes que atravessam sua pratica. E isso é o que constitui a tarefa basica do intelectual: lutar contra o assédio do imediatismo ofetiche da atualidade, pondo o contexto histérico a uma dis- tancia critica que Ihe permita compreender, e fazer compre- ender aos demais, 0 sentido e o valor das transformagdes que estamos vivendo’, Diante da crise da consciéncia publica e da perda de rele- vancia social de certas figuras tradicionais do intelectual, é io que os comunicadores destaquem e tenham cons- ciéncia de que na comunicagao se joga de maneira decisiva a sorte do publico, a sobrevivéncia da sociedade civil e da de- mocracia. Do contrario teremos que nos perguntar seriamen- te em qual medida o ensino da comunicagao em nossas facul- dades nao esté contribuindo para forentar um novo tipo de monopélio da informagao tao nefasto quanto o que concentra, a propriedade dos meios em algumas poucas empresas, a0 contribuir para concentrar o direito da palavra piblicanas maos dos especialistas em comunicacao, isto é, ao converter um direito de todos em profissio de uns poucos. neces: 2, Ver a esse propésito Ph. SCHLESINGER et al,, Los intelectuales en Jasociedad de la informacién, Anthropos, Barcelona, 1987; S. RAMIREZ, Culturas, profesiones y sensibilidades contempordneas en Colombia, Univalle, Cali, 2967, MINERAROS DAINVESTGAGRO ais ‘Nova configuragao do campo O campo de estudos da comunicagao se forma na Améri- ca Latinaa partir do movimento cruzado de duas hegemonias: a do paradigma informacional/instrumental procedente da investigagao norte-americana, ea da critica ideolégica denun- cista nas ciéncias sociais latino-americanas. Entre essas hege- monias, modulando-as, se insere o estruturalismo semidtico francés. No fim dos anos 1960, a modernizagao desenvol- vimentista® propaga um modefo de sociedade que converte a ‘vomunicacdo no terreno de ponta da “difusio de inovagdes”* eno motor da transformacdo social: comunicagao identificada com 0s meios maci¢os, seus dispositivos tecnolégicos, suas linguagens e seus saberes préprios. Do lado latino-america- no, a teoria da dependéncia e a critica do imperiatismo cultu- ral padecerdo de outro reducionismo: aquele que nega a co- municagao qualquer especificidade enquanto espago de pro- cessos e praticas de produgao simbélica e nao sé de reprodu- 40 ideolégica. “Na América Latina a literatura sobre meios de comunicagio de massa esté dedicada a demonstrar sua qualidade, inegAvel, de instrumento oligérquico-imperialista de penetrago ideoiégica, porém quase nao se ocupa de exa- minar como sao recebidas suas mensagens e quais os efeitos concretos disso. E como se fosse condigao de ingresso ao t6- pico que o investigador esquega as conseqiiéncias ndo deseja- das da a¢ao social para se instalar em um hiperfuncionalismo 3. 0. SUNKEL, P. PAZ, El subdesarrolio latino-americano y la teoria del desarrollo, Siglo XXI, México, 1970. 4. E, SANCHEZ RUIZ, La crisis del modelo comunicativo de la ‘modernizacién, in Réquiem por la modernizacién, Universidad de Gua~ dalajara, Guadalajara, México, 1986. ne [ANOS 1990: PENSAR A SOCIEDADE DESDE A COMUNICACAO de esquerde’®. A confrontagao durante os anos 1970 desses dols reducionismos produz uma perigosa cisdo entre saberes técnicos e critica social, e uma verdadeira esquizofrenia entre posigdes tedricas e praticas profissionais. A insergao doestu- do da comunicagao no ambito das ciéncias sociais possibili- tou nesses anos a tematizagao da cumplicidade dos meios nos processos de dominagio, porém significou também a redu- 40 do estudo dos processos de comunicagao a generalidade da reprodugio social, condenando as tecnologias e suas lin- guagens a um irredutivel exterior: 0 dos aparelhos e instru- mentos. Dessa mistura esquizdide nao foi possivel sair nem com as contribuicdes da Escola de Frankfurt nem com as da semiética. Pois o que se leu, especialmente nos textos de Ador- no, foram argumentos para denunciar a cumplicidade intrin- seca do desenvolvimento tecnolégico com a racionalidade mercantil. E, a0 identificar as formas do processo industrial com as légicas da acumulagao do capital, a critica legitimou a fuga: se a racionalidade da produgdo se esgota na do sistema, no haveria outro modo de escapar 4 reprodugao sendo sen- do improdutivos. O viés dessa leitura achou justificagao no mais importante de seus textos péstumos, ao afirmar que “na era da comunicagao de massas, a arte permanece integra quan- do nao participa da comunicagao"®, Tampouco os aportes da semiética permitiram superar a cisio. Ao baixar da teoria ge- ral dos discursos as praticas de andlise, as ferramentas semisticas serviram quase sempre para reforgar o paradigma ideologista: A onipoténcia que na verso funcionalista se atri- 5, J. NUN, El otro reduccionismo, in América Latina: ideologia y cul- tura, Flacso, Costa Rica, 1982. 6.T ADORNO. Teoria estética, Taurus, Madrid, 1980, 416. TINERARIOS DA INVESTIGAGAO 27 buia aos meios passou a depositar-se na ideologia, que se tor- nou dispositivo totalizador/integrador dos discursos. Tanto 0 dispositivo do efeito, na versio psicolégico-behaviorista, como a mensagem ou o texto na semiético-estruturalista termina- vam por referir 0 sentido dos processos de comunicacaoauma imanéncia esvaziada do social: a da inevitavel manipulagao ou da fatal recuperacao pelo sistema”’. A investigagao da comu- nicagao nesses anos nao péde superar sua dependéncia dos “modelos instrumentais” e do que Mabel Piccini® chamou ‘a Temisso acorrentada as totalidades”, que tornavam impossi- vel a abordagem da comunicagao como dimensio constitutiva da cultura e portanto da produgao do social. Em meados dos anos 1980, a configuracao dos estudos de comunicagao mostra mudangas de fundo, provenientes ndo s6 nem principalmente de desiizamentos internos ao proprio campo, mas de um movimento geral nas ciéncias sociais. O questionamento da “razo instrumental” nao envolveré uni- camente 0 modelo informacional mas também descobrird a hegemonia dessa mesma razdo como horizonte politicodo ideologismo marxista. De outro lado, a globalizagaoe a “ques- to transnacional” ultrapassardo os aleances te6ricos da teo- ria do imperialismo, obrigando-nos a pensar uma trama nova de territérios e de atores, de contradigdes e conflitos. Os des- locamentos com os quais se procuraré refazer conceptual € 7. J. MARTIN-BARBERO, De los medios a las mediaciones, Comunicacién, cultura y hegemonta, Gustavo Gili, Barcelona, 1987, 122; trad. ingl: Comunication, Culture and Hegemony, Sage, London, 1990. 8, M. PICCINI, La imagem del tejedor: lenguajes y politicas de comunicacién, Gustavo Gili, México, 1987, 16; Industrias culturales, tranversalidades y regimenes discursivos, DIA-LOGOS de la comuni- cacién, 0.17, Lima (1987). 218 ‘ANOS 1990: PENSAR A SOCIEDADE DESDE A COMUNICAGAO metodologicamente o campo da comunicagio provirdo tanto da experiéncia dos movimentos sociais como da reflexdo que articulam os estudos culturais. Inicia-se entao uma alteragio nos limites que demarcavam o campo da comunicagao: as fron- teiras, as vizinhangas e as topografias nao sio as mesmas de apenas dez anos antes, nem estado tao claras. A idéia de infor- magéo — associada a inovagao tecnolégica — ganha legitimi- dade cientifica e operatividade enquanto a de comunicagao se desloca e aloja-se em campos circundantes: a filosofia, a hermenéutica. A brecha entre o otimismo tecnoldgico e 0 ce- ticismo politico se faz maior, apagando o sentido da critica. A partir da América Latina, essa movimentacao dos limi- tes do campo se traduz em um novo modo de relacdo com e desde as disciplinas sociais®, nao isento de receios e mal-en- tendidos, porém definido, mais que por recorréncias teméticas ou empréstimos metodolégicos. por apropriagdes: desde a comunicagao trabalham-se processos ¢ dimensdes que incor- poram perguntas e saberes histéricos, antropoldgicos, estéti- cos. Aomesmo tempo, a sociologia, a antropologia ea ciéncia politica comegam a se encarregar, ja ndo de forma marginal, dos meios e dos modos como operam as indtistrias culturais Isto aparece na histéria “bairral” das culturas cotidianas nos setores populares de Buenos Aires de comegos do século XX", na histéria das transformagdes sofridas pela mtisica negra no Brasil no percurso que a leva das fazendas escravistas & cida- de massificada e suz legitimagao pelo radio e pelo disco como 9, J. MARTIN-BARBERO, Euforia tecnoldgica y malestar en la teoria, DiA-LOGOS de la comunicacién, n. 20, Lima (1988); também: Identidad, comunicacién y modernidad, Contratexto, n.4, Lima (1980). 10. L. GUTIERREZ, L. A. ROMERO, Sectores populares y cultura po- litica, Sudamericana, Buenos Aires, 1985. INERARIOS DA INVESTIGAGAO 29 miisica urbana e nacional". Vai-se da antropologia que dé conta das mudangas no sistema de producdo e na economia simbélica do artesanato™ aquela que indaga as permanéncias e rupturas nos rituais urbanos do carnaval" ou nos jogos da alma e do corpo nas praticas religiosas". Da sociologia que investiga o lugar que ocupam os meios nas transformagdes culturais'*& tematizagao dos meios nos consumos e nas polt- ticas culturais™®, / Tao decisiva quanto a assuncdo explicita do “tema” das midias e das indistrias culturais pelas disciplinas sociais € consciéncia crescente do estatuto transdisciplinar do campo, tornado evidente pela multidimensionalidade dos processos comunicativos e sua gravitagdo a cada dia mais forte em torno dos movimentos de desterritorializagao e hibridagbes que a modernidade latino-americana produz”. Nessa nova perspec- tiva, industria cultural e comunicagdes macigas sao o nome dos novos processos de producao e circulagao da cultura, que correspondem ndo sé a inovagées tecnolégicas mas a novas 11. E. SQUEE JM. WISNIK, Onacionale o popularna cultura basileira: misica, Brasiliense, Sa Paulo, 1983. 12, N. GARCIA CANCLINI, Las culturas populares en el capitalismo, Nueva Imagen, México, 1982 13.R. DA MATTA, Carnavais, malandros, her6i 10, 1981, 14. MUNIZ SODRE, A verdade seduzida, Por um conceito de cultura zo Brasil, Codecri, Rio de Janeiro, 1983. 45, J. J. RUNNER, C. CATALAN, A. BARRIOS, Chile: Transfor- maciones culturales y conflictos de la modernidad, Flacso, Santiago de Chile, 1989. 16. N. GARCIA CANCLINI (coord,), El consumo cultural en México, Conaculta, México, 1994; ID. fed.) Politicas culturales en América Latina, Grijalbo, México, 1987. 17. 1D, Culturas hibridas, Grijalbo, México, 19 ‘ahar, Rio de Janel- 20 ‘ANOS 1990: PENSAR A SOCIEDADE DESDE A COMUNICACAO, formas de sensibilidade. E elas tém, se ndo sua origem, ao menos seu correlato mais decisivo nas novas formas de socia- bilidade com as quais as pessoas enfrentam a heterogenei- dade simbélica e a impossibilidade de se abarcar a cidade. E a partir das novas maneiras de juntar-se e excluir-se, de des- conhecer-se e se reconhecer que adquire consisténcia social e relevancia cognitiva aquilo que passa em e pelas midias e pelas novas tecnologias de comunicagao. Pois foi ai que as midias comecaram a construir o piblico, a mediar na produ- do de imaginérios que de algun modo integram a desgar- rada experiéncia urbana dos cidadaos', seja substituindo a neutralidade da rua pela espetacularizagao televisiva dos ri- tuais da politica, seja desmaterializando a cultura e alivian- do-a de sua espessura histérica mediante tecnologias que, como as redes telemdticas ou os videogames, propoem a hiper-realidade e a descontinuidade como habitos perce- ptivos dominantes. Transdisciplinaridade no estudo da comunicagao nao sig- nifica a dissolugao de seus objetos nos das disciplinas sociais, mas a construgao das articulagdes — mediagées e intertex- tualidades — que fazem sua especificidade", essa especi: ficidade que, hoje, nem ateoria da informagdo nem asemitica, embora sejam disciplinas “fundamentais”, podem ja construir. Como as pesquisas de ponta na Europa e nos Estados Uni- 18. J. MARTIN-BARBERO, La ciudad: entre medios y miedos, Gaceta de COLCULTURA, n. 8, Bogoté (1990); El tejido comunicativo de Ja de- mocracia, Telos, n. 27, Madrid; Dinémicas urbanas de la cultura, Gaceta de COLCULTURA, n. 27, Bogota (1991); Mediaciones urbanas y nuevos escenarios de comunicacién, Sociedad, n. 5, Buenos Aires (1994). 19, R. FUENTES, La investigacién de la comunicacién: hacia la post. disciplinariedad en las ciencias sociales", in Medios y mediaciones, Iteso, Guadalajara, México, 1994. INERARIOS DA INVESTIGACAO ma dos®, também as latino-americanas apresentam uma conver- géncia a cada dia maior com os estudos culturais em sua ca- pacidade de analisar as industrias comunicacionais e cultu- rais como matriz de desorganizagao e reorganizagao da expe- riéncia social ® no cruzamento das desterritorializagdes que acarretam a globalizagao e as migragdes com a fragmentagao eas relocalizagées da vida urbana. Uma experiéncia que vem jogar’por terra aquela bem mantida e legitimada separagao que identificou a massificagao dos bens culturais com a de- gradagao cultural, permitindo a elite aderir, fascinada, a mo- dernizago tecnolégica enquanto conserva sua rejeigao a de- mocratizagao dos ptiblicos e a socializagao da criatividade. E essa mesma experiéncia que esta rearranjando as relagdes en- tre cultura e politica justamente a partir do que esta tem de es- pessura comunicativa: nao s6 pela mediaco decisiva que hoje exercem as midias na politica mas pelo que ela tem de trama de interpelagées nas quais se constituem os atores sociais®. O que por sua vez reverte para o estudo da comunicagéo maci- 20. Algunos textos representativos de las nuevas tendencias: M. WOLE “Tendencias actuales del estudio de medios”, in: Comunicacién social 1990. Tendencias, informe Fundesco, Madrid, 1990; Ph. ‘SCHLESINGER, “Identidad europea y cambios en la comunicacién: de la politica a la cultura y los medios”, Telos, No. 23, Madrid, 1990; L. GROSSBERG, C.NELSON, P. TREICHLER, Cultural Studies, Routledge, New York, 1992; D. MORLEY, Family, Television Cultural Power and Domestic Leisure, Comedia, London, 1986; G. MARCUS, M. FISCHER, Antrophology as Cultural Critique, The University of Chicago press, 1986; H. BHABHA, Nation and narration, Toouledge. London, 1990. 21. J. J. BRUNER, Cartograflas de la modernidad, Dolmen, Santia g0 de Chile, 1995; O. [ANNI Teorias de la globalizacién, Siglo XX1, Méxi £0, 1998. 22. 0. LANDI, (1984) Crisisy lenguajes politicos, Cedes, Buenos Aires, 1984; Devérame outra vez: qué hizo la television con la gente, qué hace la gente con la televisidn, Planeta, Buenos Aires, 1982. m2 [ANOS 1990: PENSAR A SOCEDADE DESDE A COMUNICAGAO ¢a, impedindo que possa ser pensada como mero assunto de mercados e consumos, exigindo sua andlise como espa- ¢0 decisivo na redefinigao do ptiblico e na reconstrugao da democracia. A contraditéria centralidade da comunicagao Assumir esse novo olhar implica em primero lugar vn movimento de ruptura com 0 comunicacionismo, que é a ten- déncia ainda bem forte a ontologizar a comunicagao como 0 lugar onde humanidade revelaria sua mais secreta esséncia Ou, em termos sociolégicos, a idéia de que a comunicacao constitui omotor e 0 contetido tiltimo da interacao social. Aten- ao, porque, em uma linguagem ou na outra, a idéia da centralidade da comunicagao na sociedade —e 0 conseqien- te esvaziamento da questo do poder e da desiguaidade das relagdes sociais — estd recebendo agora sua legitimaco te6- rica e politica do discurso da racionalidade tecnolégica que inspira a chamada “sociedade da informacao”. Esgotado o motor da luta de classes, a historia acharia a renovagao nos avatares da comunicagao. Com isso, mudar a sociedade equi- valeria de agora em diante a mudar os modos de producao e circulagao da informagao. Uma coisa 6 reconhecer 0 peso decisivo dos processos e das tecnologias de comunicagao na transformagao da sociedade, outra bem diferente é afirmar aquela enganosa centralidade e suas pretenses de totalizacao do social. Osegundomovimento de ruptura é com 0 midiacentrismo, que resulta da identificago da comunicacao com as midias, desde o culturalismo meluhiano, segundo o qual as midias fa- zem a histéria, ou desde seu contrario, o ideologismo althus- FINERARIOS DA INVESTIGAGAO 223 seriano, que fazdas midias um mero aparetho de Estado. Desde McLuham ou Althusser, compreender a comunicagao é estu- dar como funcionam as tecnologias ou os “aparelhos", pois eles fazem a comunicagao, a determinam e Ihe dao sua forma. E curioso que, enquanto nos paises centrais esse midiacentrismo est sendo superado pelo proprio movimento da reconvers: industrial — que faz. com que os meios de comunicagio, e em especial 2 televisdo, percam sua especificidade comunicativa ad subordinar essa fungao a seu novo cardter de elemento integrante da produgao em geral —, seja em nossos paises que as midias “fagocitem” o sentido da comunicaco relegan- do as margens do campo de estudo a questo das praticas, das situagdes e dos contextos, dos usos sociais e dos modos de apropriagao. Acentralidade que, sem diivida, hoje ocupam as midias resulta desproporcionada e paradoxal em pafses com neces- sidades bésicas insatisfeitas na questdo da educacao ou na da satide, como os nossos, e nos quais o crescimento da desi- gualdade atomiza nossas sociedades, deteriorando os dispo- sitivos de comunicagao, isto é, de coesao politica e cultural. E, “desgastadas as representacées simbélicas, nao logramos construir uma imagem do pais que queremos e, portanto, politica nao consegue fixar 0 rumo das mudangas que estdo em marcha”. Daj que nossas gentes possam com certa faci- lidade assimilar as imagens da modernizacao e das mudancas tecnolégicas, porém s6 muito lenta ¢ dolorosamente recom- por seus sistemas de valores, de normas éticas e virtudes civi- cas, Tudo isso nos esta exigindo que continuemos 0 esforgo 23. N. LECHNER, América Latina: la visi6n de los cientistas sociales, ‘Nueva Sociedad, n. 139, Caracas (1995) 124. 204 [ANOS 1990: PENSAR A SOCIEDADE DESDE A COMUNICAGAO. por desentranhar a cada dia aquela que € a mais complexa trama de mediagées que articula a relagdo comunicagao/ sociedade. E um terceiro movimento: superagao do marginalismo do alternativoe sua crenga em uma “auténtica” comunicagaio que se produziria por fora da contaminacdo tecnolégico/mercan- til das grandes midias. A metafisica da-autenticidade (ou da Pureza) se toca com a suspeita que desde os de Frankfurt viu na indistria um instrumento espesso de desumanizacao e na tecnologia um obscuro aliado do capitalismo, e também com um populismo nostalgico da férmula essencial e originaria, horizontal e participativa de comunicagao que se conservaria escondida no mundo popular. Enganadora negagao do midia- centrismo, sendo como é seu melhor complemento, 0 mar- ginalismo do alternativo resulta o melhor Alibi que tenha po- dido encontrar a visio hegeménica: existe algum fato melhor para ela que a confinacao da procura e a construcao de alter- nativas as margens da sociedade e as experiéncias micro- grupais deixando-lhes livre o “centro” do campo? A andlise da insergao da comunicagao nas praticas soci- ais cotidianas se acha ainda fortemente condicionada pela di- ferenciagao e pela especializacao que a modernidade intro- duz na organizagio do social: diferenciagao das esferas e dis- cursos da ciéncia, da moral e da arte, especializagao dos espa- 05 € das instituigdes do politico, do econémico, do cultural Seguindo esse modelo, Habermas rastreou a insergao da co- municagio na constituigao historica da esfera piblica, quer dizer, a desprivatizagao do politico e sua conformagao na es- fera “dos assuntos gerais do povo”. R. Sennet retomou, por sua vez, essa perspectiva, analisando o papel da comunicagdo MINERARIOS DA INVESTIGAGAO 25 na progressiva despolitizacao e dissolugao do ptiblico*. Ora, uma aproximagao aos espagos especiallizacios das praticas cho- ca-se hoje com a multiplicidade de deslocamentos do terreno e das marcas que o indicavam. Nao obstante, e reconhecendo a precariedade atual dessas demarcagées, pode ser oportuno um mapa basico que, partindo delas, indique 0 movimento que desde a comunicagao as atravessa e desterritorializa, Se pensar as praticas significou principalmente a centra- lidade da politica, a parte que ai correspondeu a comunicagao padeceu até hd pouco tempo de uma confuséo com a propa- ganda ea publicidade, reduzindo sua funcaoa algo de apenas conjuntural, s6 importante durante os “tempos fortes” das campanhaseleitorais. Hoje, nao obstante, a comunicago apa- rece constituindo uma cena nova de mediagao e reconheci- mento social, na qual as imagens e representagdes das midias a0 mesmo tempo que espetacularizam ¢ enfraquecem o poli- tico o reconstituem. Pois 0 que estamos vivendo nao é, como acreditam os mais pessimistas profetas fim-de-milénio, a dis- solugdo da politica mas a reconfiguragao das mediagdes nas quais se constituem seus novos modos de interpelagao dos su- Jjeitos e de representagao dos vinculos que unem a sociedade. Pensar a politica desde a comunicacao significa por em primeiro plano os ingredientes simbélicos e imagindrios pre- sentes nos processos de formacao do poder. O que leva a de- mocratizagao da sociedade em dirego a um trabalho na pré- pria trama cultural e comunicativa das préticas politicas. Nem a produtividade social da politica é separdvel das batalhas que se travam no terreno simbélico, nem o cardter participativo 24. R. SENET, El declive del hombre pubblico, Peninsula, Barcelona, 1978, 226 [ANOS 1990: PENSAR A SOCIEDADE DESDE A COMUNICACAO, da democracia é hoje real por fora da cena publica que a co- municagio macica constréi, Entdo, mais que em objetos de politicas, a comunicagao ea cultura se convertem em um cam- po primordial de batalha politica: 0 estratégico cenério que exige a politica a recuperagao de sua dimensio simbdlica sua capacidade de representar o vinculo entre 0s cidadaos, 0 sentimento de pertencer a uma comunidade — para enfren- tar a erosdo da ordem coletiva. Na esfera econdmica a comunicagao corresponde a duas figuras. Uma tradicional: a do vefculo de informagao para 0 mercado, isto é, 0 processo de circulagao do capital que preci- sa de informagao permanente acerca de todos os fenémenos da vida social que possam incidir sobre seus fluxos¢ ritmos. E outra pés-industrial: a informacao como matéria-prima da produgao ndo sé das mercadorias mas da vida social. Ou, dito de outro modo, a economia passando a ser informada”, cons- titufda pelo movimento da nova riqueza que a acumiulacdo ea organizagdo da informagao pée a circular. Isso implica 20 menos trés novos modos de insergao e operacdo: a informa- do ea comunicacao passam aser campos prioritarios da acu- mulago; em segundo lugar, as telecomunicagdes, ao impulsio- nar a reconversio industrial e protagonizar a convergéncia entre veiculos e contetidos —se convertem em espago do inte- resse preferencial do capital; ¢ terceiro: a internacionalizagao das redes de informacao desafia a configuragao dos saberes desde as novas formas da gesto, tanto privada como publica Na esfera cultural o que aparece explicitamente referido & comunicagaio continua a ser as préticas de difusdo: a co- 25. M. CASTELS, La economia informacional y el proceso de globalizacién, in La era de la informacién, v. 1, Alianza, Madrid, 1987, 93-179, INERARIOS DA INVESTIGAGAQ 27 municacao como vefculo de contetidos culturais ou como movimento de propagagao e acercamento dos ptiblicos as obras, E, coerente com essa redugao do processo ao veiculo, seré legitimada também a redugio dos receptores.a consumi- dores e admiradores da atividade e da criatividade desenvol- vidas na obra. Apenas se comega a assumir a comunicagao como espaco estratégico de criagao e apropriagao cultural, de ativagio da competéncia e da experiéncia criativa das pessoas, e de reconhecimento das diferengas, ou seja, do que cultural- mente so e fazem os outros, as outras classes, as outras etnias, ‘08 outros povos, as outras geragies. mbora os “classicos” tenham integrado explicitamente a dimensao lidica na cultura, somos herdeiros de uma con- cep¢ao ascética que condenou o écio como tempo do vicio, de uma critica ideolégica que confunde a diversdo com a eva- sdo alienante, especialmente a partir de sua massificagao e sua mercantilizagao pelas indiistrias culturais. Nao é facil distin- guir hoje o que, na suspeita que cobre o espetaculo e a diver- sdo, pertence & negacdo ascética do gozo do que foi introduzi- do pela idealista oposicao entre formas culturais e formatos industriais. O que é claro, porém, é que a possibilidade de reinserir as praticas ladicas na cultura passa tanto pela critica de suas perversées como por entender a “dupla articulacao” que liga, em nossa sociedade, as demandas e as dinamicas cul- turais a légica do mercado e ao mesmo tempo imbrica o apego a formatos na fidelidade 4 mem@ria € a sobrevivéncia de géne- Tos desde os quais “funcionam” novos modos de perceber ede narrar, de fazer musica ou de brincar com as imagen: Tocamos assim o solo da cena “ tardomoderna” e do mo- vimento que desterritorializa as identidades e volta a fundar 0 sentido das temporalidades. A inscrigao da comunicagao na BM——_-ANOS 1970: EnsAR A SOCIEDADE DESDE A COMNCACAO cultura deixou de ser simples assunto cultural, pois sao tanto ‘economia como a politica as envolvidas aqui diretamente no que se produz. £ aquilo que, ambigua mas certeiramente, di- nam expressdes como “sociedade da informacao” ou “cultura politica’; e de um modo ainda mais obscuro, mas também certo, 6 0 que conta a experiéncia cotidiana das desarraigadas populagées de nossas cidades. O que poderia traduzir-se em duas desterritorializadoras e desconcertantes perguntas: Como pudemos passar tanto tempo tentando compreender 0 sentido das mudangas na comunicagao, inclusive as que pas- sam pelas midias, sem referi-las as transformagées do tecido coletivo, & reorganizacao das formas do habitar, do trabalhar e do brincar? E como poderemos transformar o “sistema de comunicagao” sem assumir sua espessura cultural e sem que as politicas procurem ativar a competéncia comunicativa e a experiéncia criativa das pessoas, isto é, seu reconhecimento como sujeitos sociais? 2. Anova trama comunicativa da cultura A reinsergdo do estudo da comunicagao no campo da cultura — de suas matrizes historicas, suas temporalidades sociais e suas especificidades politicas — implicou uma pri- meira desterritorializagao conceitual que abriu esse estudo pluralidade dos atores e a complexidade de suas dinamicas Nomesmo impulso que ver desse deslocamento fez-se crucial nos anos 1990 reterritorializar a comunicago: entéo como mo- vimento que atravessa e descoloca a cultura. Pois o lugar da cultura na sociedade muda quando a mediagao tecnolégica da comunicagao deixa de ser meramente instrumental para se converter em estrutural:a tecnologia remete hoje nao a novi- INERARIOS DA INVESTGAGAO 9 dade de alguns aparelhos mas a novos modos de percepcaoe de linguagem, a novas sensibilidades e escritas, & mutagao cultural que implica.a associagao do novo modo de produzir com um novo modo de comunicar que converte o conheci- mento em uma forca produtiva direta. Eo lugar da cultura na sociedade muda também quando os processos de globalizagio econémica e informacional reavivam a questo das identida- des culturais — étnicas, raciais, locais, regionais — até o pon- to de converté-las em dimensao protagonista de muitos dos mais ferozes e complexos conflitos bélicos dos tltimos anos, a0 mesmo tempo em que essas mesmas identidades, mais as de género e as de idade, esto reconfigurandoa fundo a forga eo sentido dos lagos sociais e das possibilidades de convivén- cia no nacional. Entre matrizes cutturais e mediagdes comunicativas ‘As mudangas no ambito da tecnicidade e da identidade esto reclamando imperiosamente que se pense as mediagGes comunicativas da cultura, um novo mapa que dé conta da com- plexidade nas relacdes constitutivas da comunicago na cul- tura, pois as midias passaram a constituir um espago-chave de condensacao e intersecdo da produgao e do consumo cul- tural, ao mesmo tempo em que catalisam hoje algumas das mais intensas redes de poder. Dai provém a necessidade de enfrentar 0 pensamento tinico que legitima a idéia de que a tecnologia é hoje o “grande mediador” entre os povos e 0 mundo, quando o que a tecnologia medeia hoje mais intensa e aceleradamente é a transformagio da sociedade em merca- do, edeste em principal agenciador da mundializagdo(em seus miltiplos sentidos contrapostos). A luta contra o pensamento 230 ‘ANOS 1990; PENSAR A SOCIEDADE DESDE A COMUNICAGAQ. nico acha assim um lugar estratégico nao s6 no politeismo némade e descentralizador que mobiliza a reflexaio e a inves- tigago sobre mediagSes histéricas do comunicar, mas tam- bém nas transformacées que atravessam os mediadores sociocuiturais, tanto em suas figuras institucionais e tradicio- nais — a escola, a familia, a igreja, 0 bairro— como no surgi- mento de novos atores e movimentos sociais que, como as organizagoes ecologicas ou de direitos humanos, os movimen- tos étnicos ou de género, introduzem novos sentidos do soci- al e novos usos sociais das midias. Sentidos e usos que, em suas tentativas e tensdes, remetem, de uma parte, 4 dificulda- de de superar a concepgo eas praticas puramente i tais para assumir 0 desafio politico, técnico e expressive que leva o reconhecimento na pratica da espessura cultural que hoje contéem os processos e os meios de comunicagéo; mas de outra parte remetem também ao lento surgimento de no- vas esferas do piblico e formas novas de imaginagao e criati- vidade social. Propomos entéo um mapa que se movimenta sobre dois eixos: um diacrénico, ou hist6rico, de larga duragio —tensio- nado entre as Matrizes Culturais (MC) e os Formatas Industriais (Fl) — e outro sincrénico, tensionado pelas Logicas de Produ- 40 (LP) em sua relagdo com as Competéncias de Recepeao ou Consumo (CR). Por sua vez, as relagdes entre as MC e as LP se cham mediadas por diferentes regimes de Institucionalidade, ‘enquanto as relagdes entre as MC e as CR esto mediadas por diversas formas de Socialidade. Entre as LP e os Fl medeiam as Teeni strumen- iidades, e entre os Fle as CR as Ritualidades. A Socialidade dé nome a trama de relagdes cotidianas que tecem os homens ao se juntar, e nas quais se ancoram 0s pro- cessos primérios de interpelagio e constitui¢ao dos sujeitos e MINERARIOS OA INVESTIGAGAD 21 identidades. Isso é o que'constitui o sentido da comunicagao como questo de fins e nao sé de meios, enquanto mundo da vida que se insere, e desde onde opera, a préxis comunicati- va, No comunicar, mobilizam-se e se expressam dimensdes basicas do ser social: tanto aquelas desde as quais a coletivi- dade se constréie permanece, tecendo as negociagSes cotidia- nas com o poder, como aquelas outras nas quais eclode a uta para minar a ordem®. Depois de longos anos durante os quais o pensamento critico se aferrou ao objetivo de colocar a inteligibilidade do social unicamente do lado das determinagées e estruturas, a socialidade cobra hoje uma relevancia, na hora de pensar-se as préticas, o que ndo significa 0 desconhecimento da razdo codificante, ou a forca do habito, mas sim a abertura a outros modos de inteligibilidade “contidos” na apropriacao cotidia- na da existéncia e sua capacidade de fazer partir a unificagéo hegeménica do sentido. Abandonando a remissao circular entre individuo e sociedade, o que na socialidade se afirma é a multiplicidade de modos e sentidos nos quais a coletividade se faz e se recreia, a polissemia da interagio social. Porém, qualquer comunicacao ou intercémbio é sé dura- douro se toma forma, pois todo movimento que nao for mero estalido ou agitagdo engendra regularidade e ritmos. Ritua- lidade é 0 que na comunicagao ha de permanente reconstru- do do nexo simbélico: a0 mesmo tempo repetigaoe inovaco, Ancora na memoria ¢ horizonte aberto. E o que no intercém- bio ha de forma de ritmo. Ao reatar a interagao aos ritmos do 26. J, HABERMAS, Teoria de la accién comunicativa. Complementos ¥ estudios previos, Cétedra, Madrid, 1989, 27. N, LECHNER, Los patios interiores de la democracia, Fondo de Cultura Econémica, Santiago de Chile, 1990. 232 ‘ANOS 1990: PENSAR A SOCIEDADE DESDE A COMUNICAGAO tempo e aos eixos do espaco, a ritualidade impde regras ao jogo da significagao, introduzindo o minimo de gramatica- lidade que faz. possivel expressar e tornar compativel o senti- do. E aoativar 0 ciclo —o qual nunca é mera inércia ou repe- tigdo mas a longa duragdo na qual se atam os destempos —a ritualizagao conecta a aceleragao da comunicagao com o tem- po primordial da origem e do mito®. A ritualidade é, de uma sé vez, 0 que nas praticas sociais fala da repeticao e da operabilidade. Diante de velhas concepgées dicotomizantes, a etnografia da producao nos revela hoje a profunda imbri- cago entre operacdo e expresso, entre as rotinas do traba- Iho e as energias da transformagao. As ritualidades constitu- em também gramaticas de aco” — do olhar, do ouvir, do ler — que regulam a interagaio entre espacos e tempos, os quais conformam as midias. Isso implica, de parte das midias, uma certa capacidade de impor regras aos jogos entre significagao e situagdo, Mas uma coisa é asignificagao da mensagem e outra aquilo ao qual alude a pragmética quando faz a pergunta pelo sentido que, para o receptor, tem a ago de ouvir radio ou ver televisio. As ritualidades remetem entdo, de um lado, aos di- ferentes usos sociais das midias, por exemploo barroquismo expressivo dos modos populares de ver cinema em oposi¢ao a sobriedade e a seriedade do intelectual ao qual qualquer Tuido distrai de sua contemplagao cinematografica, ou o con- 28.N. RICHARD, La insubordinacion de los signas,Cuarto Proprio, San- tiago de Chile, 1994 R. REGUILLO, la construccién simbslica de la ciudad: sociedad, desastre, comunicacién, eso, Guadalajara, México, 1996, 29. S. GRUZINSKI, La querra de las imagenes, Fondo de Cultura Econémica, México, 1994 30. B. SARLO, Escenas de la vida postmoderna, Intelectuales, arte y video-cultura en la Argentina, Ariel, Buenos Aires, 1994; N. RICHARD, Residuos y metéforas, Cuarto Proprio, Santiago de Chile, 1998, ITINERARIOS DA INVESTGAGAO 233 sumo produtivo que alguns jovens fazem do computador opos- to ao uso marcadamente lidico-evasivo da maioria, De outro lado, as ritualidades remetem aos milltiplos trajetos de leitu- 12" ligados as condigées sociais do gosto, marcados pelos ni- veis e qualidades da educacio, pelos haveres e saberes constituidos em meméria étnica, de classe ou de género, e pelos hébitos familiares de convivéncia com a cultura letrada, a oral ou audiovisual, que carregam a experiéncia do ver so- bre o ler, ou vice-versa. As ritualidades contemporaneas® sao arrancadas por al- guns antropélogos e socidlogos ao tempo arcaico para ilumi- nar as especificidades da contemporaneidade urbana: modos de existéncia do simbélico, trajetos de iniciacao e viagens “de passagem’”, serialidade ficcional e repetigdo ritual, permitin- do assim entrever 0 jogo entre cotidianidade e experiéncias do estranho, ressacralizagao, reencantamente do mundo a partir de certos usos ou modos de relagdo com as midias, entre inér- cias ¢ atividades, entre habitos e iniciativas do olhar e ler. A institucionalidade atravessa a comunicagdo converten- do-aem urdidura da civilidade”, Porém essa institucionalidade pertence a duas ordens contrapostas: a que desde o Estado configura os meios de comunicagao como “servigo pubblico”, ea que, a partir do mercado, converte a “liberdade de expres- 31. S. RAMIREZ, S. MUNOZ, Trayectos del consumo. Itinerarios bio-

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