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Apresentação
(...) O primeiro contato que um jovem tem com a ciência – em alguns casos, o
único – ocorre invariavelmente por meio dos livros didáticos. Esses manuais
apresentam apenas uma dimensão do trabalho científico, seu aspecto técnico
de solução de problemas. Nada se discute sobre as grandes indagações
acerca do Universo ou os debates que possibilitaram a construção das teorias.
Ao término de alguns anos de estudo, o que resta é uma visão muito limitada
da ciência. Pretendíamos, portanto, resgatar uma dimensão esquecida, ao
desenvolver um trabalho que nos permitisse apresentar um novo olhar sobre a
ciência – em que ela pudesse ser percebida como parte de um processo maior
de reflexão do homem sobre o mundo e a natureza.
Nesse sentido, percebíamos que seria necessário avançar para além das
fronteiras do conhecimento que comumente se chama científico. Os homens de
ciência, ao construírem teoria e modelos explicativos para os fenômenos da
natureza, dialogam com outros homens que exercem atividades aparentemente
distantes da científica, como teólogos, artistas plásticos, músicos ou poetas.
(...)
Dilemas insolúveis
Para o professor do Instituto de Eletrotécnica e Engenharia da USP José
Goldemberg, tais dilemas são praticamente insolúveis, uma vez que o cientista
não tem controle das repercussões sociais de seu trabalho. O físico conta ter
sentido isso na pele quando trabalhou em Stanford, nos Estados Unidos, em
1962, em plena Guerra Fria.
"Trabalhava com aceleradores lineares, usando radiação eletromagnética para
investigar o núcleo dos átomos. Tinha o foco no meu trabalho, mas também
tinha consciência de que ele poderia ser usado mais tarde para a fabricação de
uma bomba portátil, o que felizmente acabou não acontecendo", disse.
Cientistas e Políticos
De acordo com Goldemberg, o mentor da bomba atômica, Robert
Oppenheimer, chegou a procurar o presidente norte-americano Harry Truman
para solicitar que a bomba atômica fosse usada apenas em demonstrações
sobre o Pacífico, mas não sobre populações.
"Consta que, assim que Oppenheimer virou as costas, Truman ordenou: 'nunca
mais me tragam esse tolo aqui'. Hoje vemos que Oppenheimer foi incrivelmente
ingênuo. Mas é o que faria qualquer cientista que eu conheço", disse.
A física Amélia Hamburger, professora do Instituto de Física da USP, também
citou um caso histórico: em 1944 o físico Niels Bohr conseguiu uma entrevista
com Winston Churchill e sugeriu que, para impedir uma corrida armamentista
no pós-guerra, as pesquisas sobre energia atômica fossem internacionalizadas.
Os estudos seriam feitos em consórcio com a União Soviética.
"O único resultado da petição foi que Churchill ordenou imediatamente que
Bohr fosse vigiado de perto pelo serviço secreto", disse Amélia. "Mas, como
Bohr, vários cientistas se manifestaram espontaneamente contra o uso bélico
dos avanços científicos."
Fragmentação do saber
A física e conselheira da Cátedra Unesco Dina Lida Kinoshita ressaltou que a
fragmentação da ciência limita as chances de o cientista prever as aplicações
de seu trabalho. "A fragmentação é muito grave. Um pesquisador pode estudar
os estados eletrônicos de uma molécula hipotética de urânio sem se dar conta
de que esse conhecimento pode fazer parte do desenvolvimento de
armamentos", disse.
Para ela, mesmo com o fim da guerra fria, o cientista da área nuclear vive
próximo dos dilemas éticos. "O problema é que os programas nucleares nunca
vêm desacompanhados de projetos militares. E, mesmo hoje, diversos países
continuam construindo artefatos bélicos desse tipo", afirmou.
Sociedade de risco
Fernando de Souza Barros, professor aposentado do Instituto de Física da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), concordou que a questão
nuclear ainda gera dilemas éticos.
"Vivemos em uma sociedade de risco com base na economia. Vários países
possuem bombas atômicas, que poderão ter um papel importante na luta pelas
reservas do planeta, cada vez mais escassas", afirmou.
Para Barros, no entanto, a responsabilidade social da ciência não é mais um
assunto interno dos cientistas. "Atualmente, milhões de técnicos no mundo todo
conhecem o método científico e o usam a serviço de estados e grandes
corporações. O cientista formula as questões, mas o pesquisador pode estar
em qualquer setor da sociedade. A responsabilidade está diluída na sociedade.
Ela extravasou o âmbito da ciência no sentido estrito", afirmou.
A ordem política da Guerra Fria, que permitiu montar um tratado de não-
proliferação, está completamente falida, segundo Barros. Com isso, a pesquisa
nuclear deverá fazer parte de uma nova ordem.
"Devíamos dar mais atenção à proposta do diretor-geral da Agência
Internacional de Energia Atômica, Mohamed ElBaradei, que defende que
países como Brasil e Argentina façam pesquisa nuclear em consórcio",
destacou.
Já se observou que no Brasil existe muito mais "ciência pura" do que "ciência
aplicada", ao contrário dos países tecnologicamente mais maduros. Se isto
significa que nossos cientistas são "alienados," significa também que são,
potencialmente, mais livres, por não estarem desde o início atrelados a um
processo tecnológico que não controlam. Talvez, fazendo força da fraqueza,
seja esta uma oportunidade para impedir que colidam, no futuro próximo, o
progresso e o progresso da ciência. A condição essencial para isto é o
fortalecimento da comunidade científica, cujo principal instrumento tem sido, e
deverá continuar a ser, a SBPC.