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GABRIEL DE TARDE AS LEIS DA IMITAGAO rés Consutor cient fica Paulo Ferreira da Cunha Fieve orginal ALES LOISDE LIMITATION» Trauglo de Carlos Fernandes Maia com a colsboragiio de Moria Manuela Mais Reservados 0s direitos desta edigao por RES-Editora, La, Pr. Marqués de Pombal, 78, 4000 PORTO PORTUGAL PREFACIO. da segunda edicdo Desde @ primeira edigdo deste tivro, j4 publiquei @ sua continuagao e 0 complemento, com titulo Légica Social. Por isso, creio ter j& respondido implicitamente @ certes objecgdes que a leitura de Leis da Imitagao Pudesse ter feito nascer. Nao é contudo, initil dar a este respeito algumas breves explicacoes. Censuraram-me aqui e acold por "ter muitas vezes chamado imitagéo @ factos 20s quais este rome nao con- vém de forma alguma". Reparo que me admira por vir da Pena de um fildsofo. Com efelto, sempre que o fildsofo tem necessidade de um termo para exprimir uma genera- lizagao nova s6 Ihe resta a escolha entre dues caidas: ou © neofogismo, se nae pode fazer de outro modo, ou, 0 gue vale incontestavelmente muito mais, a extenséo de um antigo vocadulo. Toda a questdo esté em saber se eu sstend abusivamente — no digo sob o ponto de vista das definigées de dicionério, mas a partir de uma nogéo Mais profunda das coisas — o significado da palavra imi- tagao. Ora, eu sei perfeitamente que nao esté conforme 20 uso corrente dizer de um homem, quando ele sem dar conta € involuntariamente reflecte uma opiniée de outro ou se deixa sujestionar por uma acgéo de outro, que ele Imita essa ideia ou esse acto. Mas, se 6 consciente Geliberadamente que ele recebe o seu vizicho uma forma de persar ou de agir, concorda-se que 0 emprego do termo de que se trata 6 aqui legitimo. Nada, contudo, & menos cientifico do que esta separagéo sbsoluta, esta descontinuidade avivada, estabelecida entre o voluntério e 0 inwoluntério, entre o corscierte e o inconsciente. Nao se passa por graus insersfveis da vontade reflectida para o hébito mais ou menos mecarico? E um mesmo ‘acto muda absolutamente de ratureza durante esta passa gem? Nao € que ou regue a importancia da mudanca psicolégica como produto do acaso; mas, no seu aspecto so Gial, 0 fendmeno permaneceu o mesmo. Néo se teria o di- Feito de criticar como abusivo o alargamento do significado do termo em questdo a nao ser que, a0 estendé-lo, eu o tivesse deformado e tornado insignificante. Mas eu dei- xei-lhe um sentido sempre muito preciso e caracter(stico: o de uma acgao & distancia de um espirito sobre um outro, e de uma acgéo que corsiste ruma reproduce quase fotogréfica de um cliché cerebral pela placa sen- sivel de um outro cérebro (1). Se num certo momento a placa fotogréfica se tornasse consclente do que se imprimiu neta, 0 fenémeno mudaria essencialmente de ratureza? — Entendo por imitacao toda a gravacao foto- gréfica inter-espiritual, por assim dizer, quer seja querida ou no, passiva ou activa. Se repararmos que em qualquer lado orde hd uma relacao social qualquer entre dois seres Vivos hé uma imitagao neste sentido (seja de um pelo outro, sej2 de outros pelos dois, como, por exemplo, ‘quando se conversa com alguém falando a mesma lingua, fazendo rovas provas verbais de muito antigos clichés), concordar-se-4 que 0 socidlogo esteja autorizado a por em evidéncia esta nocao. A titulo bem mais justo me poderiam censurar por ter estendido para além da medida o sentido do termo lnvengéo. E certo que eu atribu’ este nome a todas as iniciativas individuais, nao somente sem ter em conta o seu grau de consciéncia — porque muitas vezes 0 individuo (1) Ou do nesno cérebro. se se tratar da initagdo de si nestos porque © mendria e 0 hébito, que so 0s dois ranos dels, dever ser relacionados, para seren ben compreendidos, con a initagio de outro, a Gnica de que nos ocupamos aqui. 0 psicolégico expl pelo socil, previsanente porque o social nasce do psicolégico. 6 inova no seu fntimo, e, para dizer a verdade, o mais imitador dos homens inovador por qualquer lado — mas ainda sem reparar absolutamente nada na maior ou menor dificuldade e no mérito da inovacto. Nao é que eu des- conhega a_importancia deste Jitimo ponto de vista, e tais invengdes sejam tao faceis de conceber que se possa admitir que elas estéo presentes quase por todo o lado, sem qualquer influéncia, nas sociedades primitivas, e que © acidente da sua apari¢ao aqui ou acolé pela primeira vez pouco importe. Outras descobertas, pelo contrério, so tao arduas que o feliz acaso de um génio que as atinge pode ser visto como uma oportunidade singular entre todas e de uma importancia maior. Pois bem, apesar de tudo, creio que mesmo aqui tive razao para fazer & linguagem comum uma ligeira violéncia ao classificar de invengdes ou descobertas as inovacdes mais simples, tanto mais que as mais féceis nem sempre s8o as menos fecun- das, nem as mais diffceis sao as menos inéteis. que 6 realmente abusivo, em compensacao, é a acepgao elés- tica dada por muitos socidlogos ‘naturalistas @ palavra hereditariedade, que thes serve para exprimirem indistin- tamente a transmissao de caracteres vitais por geracio, a transmisséo de ideias, de costumes, de coises sociai por tradi ancestral, por educagdo doméstica, por i tagio-hébito. Do resto, o que hé talvez de mais fécil relativa- mente & concepgao é um neologismo tirado do grego. Em vez de dizer invengéo ou imitagéo, teria podido forjar, sem muita dificuldade, duas palavras noves. — Mas deixe- mos esta pequena questao sem interesse. — 0 que 6 mais grave, 6 que me acuseram, por vezes, de exagero no emprego das duas nogdes em questo. Censura um pouco banal, 6 um facto, @ a qual todo o novato deve esperar, mesmo que tivesse pecado por exces- so de reserva na expresso do seu pensamento. Estai se- guros de que, logo que um filésofo grego pensou dizer que 0 sol era talvez muito maior que o Peloponeso, os seus melhores amigos foram undnimes em reconhecer que navia qualquer coisa de verdadeiro no fundo do seu enge: nhoso paradoxo, mas que, evidentemente, ele exagerava. — Em geral, néo se tomou grande cuidado com o fim que eu me propunha e que era de separar dos factos humanos 7 © seu lado scciolégico puro; feita a abstraceéo, por hi- potese, do seu lado biolégico, insepardvel, contudo, sei-o eu muito bem, do primeiro. O meu plano sé me permitiu indicar, sem grande desenvolvimento, as relacies das trés formas’ principais da repetigao universal, nomeadamente da hereditariedade com a imitacao. Mas ja disse bastante sobre isso, creio eu, para nao deixar dtvida alguma no meu pensamento, @ respeito da importancia da raca e do meio fisico. Por outro lado, dizer que o carécter distintivo de qualquer relaggo social, de qualquer facto social, 6 ser imitativo, 6 dizer, como certos leitores superficiais pare- ceram acreditar, que haja, a meu ver, outra relagao social, outro facto social, outra causa social, para além da imi- tagéo? Igualmente, valeria a pena dizer que toda a fungao social viva se reduz & geragéo e que todo o fenémeno vivo se reduz & hereditariedade, porque em todo o ser vivo tudo 6 gerado e hereditério. As relagées sociais so miltiplas, t8o numerosas e to diversas que podem ser os objectos das necessidades e das ideias do homem e@ os apoios ou os obstéculos que cada uma destas necessidades e cada uma destas ideias oferece ou opde as tendéncias @ Bs opinides de outro, semelhantes ou diferentes. No meio desta complexidade infinita, convém reparar que estas relacoes sociais tao variadas (falar e escutar, pedir @ ser pedido, comandar e obedecer, produzir e consumir, etc.) se referem a dois grupos: uns tendem a transmitir de um homem a outro, por persuaséo ou autoridade, por vontade ou & forga, uma crenga; os outros, um desejo. Dito de outro modo, uns so variedades ou veleidades de ensinamento, outros so variedades ou veleidades de co- mando. E 6 precisamente porque os actos humanos im tados tém esta caracteristica dogmdtica ou imperiosa que a imitagéo é um laco social; porque o que liga os homens 6 0 dogma (1) ou o poder. (Sé foi vista metade desta variedade, e viu-se mal, quando se disse que 2 caracteristica dos factos sociais era de serem coagidos e 1) 0 dogma quer dizer toda a ideia, religiosa ov nao, politica, por exemplo, ov outra qualquer, que se implants no espirito de cada associado or pressao da ambiente. 8 forgados. € descenhecer o que neles hé de espontaneidade na maior parte da credulidade e da docilidade populares). = Nao 6, portanto, por exagero que eu pequei nes~ se livro; por isso, fi-lo reimprimir sem qualquer supresséo. — € por omisséo, acima de tudo. Nunca nele falei de uma forma de imitagdo que desempenha um grande papel nas sociedades, sobretudo nas sociedades contempordneas; @ apresso-me a tapar aqui essa lacuna, Com feito, ha duas maneiras de imitar: fazer exactamente como o seu modelo, ou fazer exactamente o contrério. Daf a neces- sidade dessas divergéncias que Spencer constata, mas nao explica, pela sua lei da diferenciacéo progressiva. Nao se saberia afirmar nada sem sugerir, num meio social por pouco complexo que seja, néo somente a ideia que se afirma, mas também a negacao dessa ideia. Eis porque © sobrenatural, afirmando-se na aparigao das teologias, sugere 0 naturalismo que é @ sua negagao (ver Espinas a este respeito); eis porque o espiritualismo, ao afirmar-se, dé a ideia do’ materialismo; a monarquia, ao estabelecer- -se, d& a ideia da repiblica, etc. Diremos, portanto, agora com maior amplitude, que uma sociedade 6 um grupo de pessoas que apresentam entre elas semelhangas produzidas por imitacao ou por contra-imitago. Porque os homens contra-imitam-se muito, sobretudo quando eles nao tém nem a modéstia de imitar pura @ simplesmente, nem a forca de inventar; @ ao contra-imitar, quer dizer, ao fazer, ao dizer tudo ‘oposto 30 que querem fazer ou dizer, assim como ao fazer ou dizer precisamente o que se faz ou o que se diz & sua volta, vdo assimilando cada vez mais. Para além da conformidade com os costumes, em questdes de enterro, casamentos, ceriménias, visitas, cortesias, naca ha de mais imitative do que lutar contra a sua prépria inclina- do para seguir esta corrente e fingir superé-la. J& na Idade Média a missa negra nasceu de uma contra-imitagao da missa catélica, — Na sua obra sobre a expressao das emogées, Darwin concede, com razéo, um lugar de desta~ que & necessidade de contra-exprimir. Quando é proclamado um dogma, quando um progra ma politico & afixado, 03 homens classificam-se em duas categorias: 05 que se inflamam a favor e os que inflamam contra, Nao hé manifestacZo que ndo vé recrutando mani festantes © que ndo provoque a formagao de um grupo de contra-menifestantes. Toda a afirmagao forte, 0 mesmo tempo que arrasta consigo os espirites medianos @ monétonos, suscita, nalgum lado, num cérebro nascido rebelde, 0 cue nao quer dizer nascido inventive, uma negacao diametralmente contréria e de forca mais ou menos igual. Isto recorda as correntes de indugao em fisica. — Mas tanto uns como outros tém o mesmo con- teddo de ideas e de projectos, sao associados apesar de adversérios ou porque adversérios. Distingamos bem entre a propagagéo imitativa das questdes e a das solugdes. Que uma solugéo se propague aqui e uma outra algures, isso ngo impade de o problema ser propagado tanto aqui ‘como noutro lado. Nao € claro que em cada época, entre 6s povos com relacées frequentes, sobretudo na nossa época (porque jamais as relacoes internacionais foram téo variadas), a ordem de dia dos debates sociais e dos debates politicos € a mesma por toda a parte? E esta semelhanga néo é devida a uma corrente de imitagao explicdvel ele mesma por necessidades e ideias expandidas por contagios imitativos anteriores? Néo é por esta causa que as questées operdrias neste momento sio agitadas por toda a Europa? — A propésito de uma ideia qualquer avangada pela imprensa cada dia, repito-o, 0 piblico divide-se em dois campos: os que "sao desse parecer e 0s que "nao séo desse parecer". Mas estes ndo mais do que aqueles, néo admitem que alguém se possa preocupar, nesse momento, com outra coisa do que com a questao que Ihes 6 assim posta e imposta. Sozinhos, alguns es- plrites rebeldes, estranhos, com 0 seu toque de finedos, no tumulto co oceano social em que estdo merguihados, ruminam aqui e acolé problemas bizarros, absolutamente desprovidos de actualidade. E séo estes os inventores de amanha. E preciso tomar muito culdado para nao confundir com a invengao a contra-imitagao, seu disfarce perigoso. Nao 6 que esta nao tenha a sua utilidade. Se ela alimen- ta 0 espirito de partido, 0 espirito de divisio belicosa ou Pacitica entre os homens, ela inicia-os no prazer muito social da discussao, atesta a origem simpética da prépria contradicao, pela razéo de que as préprias contra-corren- tes nascem da corrente.~ E preciso nao confundir também 10 a contra-imitagéo com a nao-imitagdo sistemética de que deverei falar também neste livro. A nao-imitagao nem sempre 6 um simples facto negativo. O facto de no se imitar, quando néo se esté em contacto — om contacto social, pela possibilidade prética das comunica- gdes — & simplesmente uma relagio nao-social; mas 0 facto de nao imitar tal vizinho muito préximo poe-nos numa relacdo realmente anti-social. A obstinagao de um povo, de uma classe de um povo, de uma cidade ou de uma’ aldeia, duma tribo de selvagens isolados num conti~ nente civilizedo, em nao copiar as roupas, os costumes, a linguagem, as inddstrias, as artes, que constituem @ civilizagéo da sua vizinhanca € uma continua declaracéo de antipatia dirigida a essa forma de sociedede que se proclama absolutamente estrangeira e para sempre; e, de forma semelhante, quando um povo se poe, com um pre~ conceito sistemético, a ndo reproduzir os exemplos dos seus antepassados, em matéria de ritos, de usos, de ideias, isso 6 uma verdadsira dissaciagéo dos pais e dos filhos, rotura do cordao umbilical entre a nova e a velha socie- dade. A nao-imitagéo voluntéria e perseverante, neste sentido tem um papel purificador, bastante andlogo a0 que desempenha o que eu chamei duelo Iégico. Do mesmo modo que este tende @ purificar 0 amontoado social das ideias e das vontades misturadas, a eliminar as disparidades © as dissonancias, a facilitar de algum modo a acco organizadora da uniao Iégica, assim a néo-imitacéo dos modelos exteriores @ heterogéneos permite a0 grupo harmonioso modelos interiores de estender, prolongar, enraizar em hébito @ imitacdo de que eles sio objecto; e, pela mesma razéo, a ndo-imitagao dos modelos ante- lores, quando chegado o momento de uma revolucao civilizadora, trava 0 caminho & imitacdo-moda que j4 no encontra entraves & sua ac¢ao conquistadora. Esta obstinagdo invencivel — momentaneamente invencivel ~ de nao-imitagao tem por causa tnica ou principal, como escola naturalista era levada a pensar hé alguns anos, ainda, a diferenga de raga? De forma alguma. Primeiramente, quando se trata da néo-imitagdo dos exem- plos paternais, em épocas revoluciondrias, € claro que causa indicada ndo poderia ser posta em primeiro lugar uma vez que a nova geracdo é da mesma raga que as 1" geragées anteriores das quais ela rejelta as tradigdes. Depois, se se tratar da ndo-imitaco do estranho, a obser- vagao histérica mostra que esta resisténcia as influéncias do exterior esté longe de se proporcionar com as disse- melhangas dos caracteres fisicos que separam os povos. De todas as nagées conquistadas por Roma nenhuma delas estava mais préxima dela pelo sangue do que as popula gdes de origem grega; e estas sdo precisamente as tnicas que escaparam & propagagao da sua Ifngua, a assimilacao da sua cultura e do seu génio. Porqué? Porque sozinhas, a despeito da sua derrota, elas tinham podido e devido guardar 0 seu tenaz orgulho, o indelével sentimento da sua superioricade. Em favor’ da idela de que as racas distintes eram impermedveis, por assim dizer, a trocas reciprocas, um dos mais fortes argumentos que se podia citar ainda hé uns trinta anos era o encerramento her- mético oposte pelos povos do Extremo Oriente, Japao ou China, @ tode a cultura europeia. Mes a partir do dia, bastante recente, em que os japoneses, téo distanciados de nés pela cor, os tragos, a constituicéo corporal, sen- tiram, pela primeira vez, que nés hes 6ramos superiores, cessaram de impedir a irradiagdo imitativa da nossa civi- lizagéo pelo écran opaco de outrora; pelo contrério, pro curaram-na com ansiedade. E o mesmo acontecerd com @ China, se jamais ela pensar em reconhecer que em certos aspectos, — néo em todos, espero eu — nés somos superiores. Objectar-se-ia em vao que a transformacao do Japao no sentido europeu é mais aparente do que real, mais superficial que profunda, que ela 6 devida a inicia~ tiva de alguns homens inteligentes, seguidos por uma parte das classes superiores, mas que @ grande massa de nago permanece refractéria a esta penetracdo do estrangeiro. — Objectar assim seria ignorar que toda a Fevolugdo intelectual @ moral, destinada a modificar pro- fundamente um povo, comega sempre deste modo. Sempre uma élite importou exemplos estrangeiros pouco a pouco Propagados por moda, consolidados em costume, desenvol- vidos @ sistematizados pela Iégica social. Quando o cris- tianismo entrou pela primeira vez num povo germano, selavo ou filandés, comegou da mesma maneira. Nada de mais conforme &s “leis da imitacao". Quer isto dizer que a ac¢ao da raga sobre 0 curso a civilizagao seja negado pela minha maneira de ver? De 12 forma nenhuma. Eu disse que ao passar de um meio étnico para um outro meio étnico a irradiacdo imitativa se re~ fracta; e acrescento que esta refracgao pode ser enorme, sem que da/ resulte uma consequéncia contréria por pouco que seja &s ideias desenvolvidas no presente livro, Somente, a raga, tal como ela se nos mostra, 6 um produto nacio- nal em que se fundem, no cadinho de uma. civilizagao especial, diversas rages pré-histéricas, cruzadas, destruidas, assimiladas. Porque cada civilizagéo dada, formada de ideies de génio proveniente de um pouco por todos os lados e harmonizadas logicamente em qualquer parte, faz-se através da sua raga ou das suas ragas em que ela se encarna por um tempo; e no é verdade, ao inverso, que cada raga faca a sua civilizagéo. Isto significa, no fundo, que as diversas ragas humanas, bem diferentes nisto das diversas espécies vivas, séo tao colaboradoras como concorrentes; que elas séo chamadas nao somente a combater-se e a se inter-destruir para maior proveito de um pequeno némero de sobreviventes, mas 2 se entre- ~ajudar na execucdo secular de uma obra social comum, de uma grande sociedade final, cuja unidade seré o fruto da sua prépria diversidade. As leis da hereditariedade, tao bem estudadas pelos naturalistas, nao contrariam entao em nada as nossas "leis da imitacao". Eles completam-nas acima de tudo, € nao existe sociologia concreta que possa separar estas duas ordens de consideraces. Se eu as separo aqui, 6, repito-o, porque o objecto préprio deste trabalho é a sociologia pura e abstracta, Por outro lado, eu nao deixo de indicar o seu lugar nas consideragdes biolégicas que eu negligencio de forma premeditada, porque as reservo para os mais competentes que eu. E isto por trés razdes. Primeiro, ao fazer nascer a nacéo da famflia, — porque o bando, também primitive, 6 feito de emigrados ou expul- sos da familia — afirmei claramente que, se o facto social € uma relacéo de imitagao, o Lago social, o grupo social, 6 por sua vez, imitative e hereditério. Em segundo luger, 2 invengio de que eu fago tudo derivar socialmente, nao @ aos meus olhos um facto puramente social na sua origem: ela nasce do reencontro do génio individual, erup- go intermitente © caracteristica da raga, fruto saboroso de uma série de casamentos felizes, com correntes @ ra~ 13 diagdes de imitaco que se cruzaram um dia num cérebro mais ou menos excepcional. Admiti, se o quiserdes, com M. de Gobineau, que as racas brancas sdo as Gnicas in- ventivas, ou, com um antropélogo contemporaneo, que este previlégio pertence exclusivamente &s racas dolicocéfalas: isto interessa pouco para o meu ponto de vista. E além disso eu poceria pretender que esta separacéo radical, vital, estabelecida assim entre a inventividade de certas racas previlegiadas e a imitatividade de todas é prépria pera fazer ressaltar — um pouco abusivamente, seria caso parao dizer — a verdade da minha maneira de ver. — Enfim, no que diz respeito & imitagao, nao s6 reconheci a in~ fluéncia do melo vital em que ela se propaga quando se refracta, como eu o disse mais acima, mas ainda, 20 apresentar a lei do regresso normal da moda ao hébito, do enraizamento habitual @ tradicional das inovacdes, nao dei ainda uma vez mais & imitacao por apoio necessério a hereditariedade? Mas pode-se acordar no ponto de vista biolégico dos factos sociais a mais alta importancia, sem ir até estabelecer entre as diversas ragas, supostas primi~ tivas e pré-soclais, uma separacdo estanque que torne im- possfvel toda a endosmose ou exosmose da imitacéo. E é a Gnice coisa que eu nego. Entendida neste sentido abusive @ erréneo, a ideia de raga conduz o sociélogo que a toma Por guia @ representar-se o termo do. progresso social como uma amdlgama de povos separados, entrincheirados, fechados uns aos outros @ em guerra eterna uns com os outros. Também se encontrar geralmente esta variedade de naturalismo associada & apologia do militarismo. Ao contrério, as ideias de invengao, de Imitacdo e de légica social, escolhidas como fio condutor, levam-nos & pers- Pectiva mais animadora de um grande confluente futuro = se nao, quem dera! préximo — das miltiplas humanidades numa Gnica familia humana, sem conflitos bélicos, Esta idela do progresso indefinido, téo vaga como tenaz, nao ganha um sentido claro e preciso senao sob este ponto de vista. Das leis da imitagao deriva a necessidade dum caminhar em frente para um grande fim longinquo cada vez melhor atingido, apesar de através de recuos notérios mas passageiros, isto 6 (sob a forma imperial ou sob for- ma federativa, néo importa), 0 nascimento, 0 crescimento, @ expansdo universal de uma sociedade Unica. E, de facto, 14 permitir-me-ao observer que, entre as previsdes de Con- dorcet relativas aos progressos futuros, os tnicos que foram considerados justos — por exempio a respeito da extensao e do nivelamento graduais da civilizagao euro- peia — so consequéncias das leis de que se trate. Mas se ele tivesse reparado nestas leis, teria dado 20 seu pensamento uma expresséo ao mesmo tempo mais exacta @ mais precise. Quando ele prevé, especialmente, que a desigualdade das diversas nagdes iré diminuindo, 6 diss melhanga social que ele deveria ter dito ¢ ndo desigual- dade: porque entre os mais pequenos e os maiores Estados, a desproporgo de forcas, de extenséo, e da prépria ri- queza vai, pelo contrério, aumentando, o que nao impede © progressos incessantes da assimilagao internacional. Seré mesmo certo que, sob todos os aspectos, a desigual- dade entre os individuos deve diminuir sem cessar, como previu o ilustre fildsofo? A sua desigualdade relativamente 2 ideias e a talentos? De forma nenhuma. Relativamente 20 bem-estar e &s riquezas? E duvidoso. & verdade que a sua desigualdade relativamente a direitos acabou por desaparecer ou acabaré om breve por desaparecer; mas porqué? Porque a semelhanga crescente dos individuos entre os quais todas as barreiras habituais da imitacdo reciproca foram rompidas,e que se entre-imitam cada vez mais livremente, ento, mas cada vez mais necessaria~ mente, fé-los sentir com uma forca crescente e irresis- tivel, por fim, a injustica dos previlégios. Entendamo-nos bem, contudo, sobre esta semelhanca Progressiva dos individuos, longe de abafar a sua originali- dade prépria, ela favorece-a e alimenta-a. O que é con- trério & valorizagéo pessoal é a imitacdo de um dnico homem, sobre o qual alguém se modela em tudo; mas quando, em vez de se regular sobre algum ou sobre alguns, se recebe de cem, de mil, de dez mil pessoas consideradas cada uma sob um aspecto particular, elementos de ideia ou de acg&o que se combinam em seguida, a prdpria natureza @ a escolha destas cépias elementares, assim como a sua combinagio, exprimem e acentuam a nossa personalidade original. E tal 6 talvez o beneficio mais Aitido do funcionamento prolongado da imitacéo. Poder- -se-ia perguntar até que ponto a sociedade, este longo sonho colectivo, este pesadelo colectivo téo frequente, 15 vale o que custa om sangue © em légrimas; se esta dis- ciplina dolorosa, este prestigio ilusério e despético, nao serviria precisamente para libertar o individuo suscitando Pouco a pouco do mais profundo do seu coracao © impeto mais livre, 0 olhar mais ousado lancado sobre a natureza exterior e sobre si mesmo; e, despontando por todo o 'ado j& néo as cores de almas videntes e violentas de cutrora, as individualidades rudes, mas feigdes de alma profundas e unidas, tio marcadas como civilizadas, desa- brochar ao mesmo tempo do individualismo mais puro, mais forte, e da soclabilidade consumada. G. Te Maio de 1895 16 PREFACIO da Primeira Edicao Neste livro tentei deduzir, com a maior nitidez possivel, © lado puramente social dos factos humanos, Bo contando com aquilo que neles 6 simplesmente vital ou fisico. Mas, precisamente, sucedeu que o ponto de vista em favor do qual eu marquei bem esta diferenca me mostrou entre os fenémenos socials © os fenémenos de ordem natural, as mais numerosas analogias, as mais seguidas, as menos forgadas. Ha j4 longos anos que enun- ciel e desenvolvi aqui e acolé, na Revista Filoséfica, a minha ideia principal — "cheve que abre quase todas as fechaduras", teve 2 amabilidade de me escrever um dos nossos maiores filésofos historiadores; °, como o plano desta obra estava desde entéo no meu pensamento, varios dos capitulos de que se trata puderam sem dificuldade entrar na composigao desta sob a forma de capitulos (1). Nao fiz mais, a0 refundi-los, do que tiré-los da forma do (1) Sao os capitulos PRINEIRO, TERCETRO, QUARTO © QUINTO, modifica- dos ou anpliados. 0 primeiro foi publicado en Seteabro de 1882, 9 terceiro en 1884, 9 quarto en Outubro e Novenbro de 1883, 0 quinto em 1868. — Wao julguei bem dever reproduzir aqui muitos cutros artigos sociolégices publicados na mesma recolha, mas des- tinados @ una revisao ulterior. Numa outra obra (A FILOSOFIA PENAL), desenvolvi a aplicagio do tu ponto de vista s0 lado criminal @ penal das sociedsdes, como Ja 0 tinha tentado na minha CRIMINALIDADE COMPARADA. 7 seu primitivo destino. Os sociélogos que me deram a hon- ra, algumes vezes, de reparar na minha maneira de ver poderao agora, se 0 julgarem conveniente criticé-la com conhecimento de causa endo a pertir de fragmentos iso- lados. Desculpar-ihes-ia terem sido severos para comigo se tivessem sido benevolentes para com a minha ideia, 0 que ndo seria impossivel. Ela pode, com efeito, ter razao de se queixar de mim, como a semente da terra, mas desejo, nese caso, que na continuacao desta publicacao ela caia num espirito melhor preparado do que o meu para Ihe dar valor. Esforcei-me, portanto, por esbocar uma sociologia pura. E 0 mesmo que dizer uma sociologia geral. As leis desta, tal como eu a compreendo, aplicam-se a todas as sociedades actuais, passadas ou possiveis, como as leis da fisiologia geral a todas as espécies vivas, extintas ou concebivels. E muito mais facil, nao discord disso, pér e prover estes princfpics, de uma simplicidade igual & sua generalidade, do que segui-los nos meandros das suas aplicagdes particulares; mas néo 6 menos necessério for mulé-tos. Por filosotia da histéria, pelo contrério, ¢ por filosofia da natureza, entendia-se antigamente um sistema de explicagao histérica ou de interpretaco cient ifica que procurava explicar o grupo inteiro ou a série inteira dos factos da histéria ou dos fenémenos naturais, mas apresentados de tal maneira que @ possibilidade de qual- quer outro agrupamento e de qualquer outra sucesso fosse exclufda. Daf o insucesso destas tentativas. O real no 6 explicével sendo ligado & imensidade do possivel, isto 6, do necessério sob condicao, em que ele navega como a estrela no espaco infinito. A prépria ideia de lei & a concepcao deste firmamento de factos. Certamente, tudo est rigorosamente determinado, © a realidade nao podia ser diferente, dadas as suas con— diges primordiais e incégnitas. Mas porqué estas e nao outras? Na base do necessério existe o irracional. Também. no dominio fisico e no dominio vivo, como no mundo social, 0 realizado parece nao ser mais do que um frac- mento do realizavel. Veja-se o cardcter disperso e frag- mentério dos céus, com a sua disseminac&o arbitréria de s6is e de nebulosas; 0 ar bizarro das faunas e das floras; 18 © aspecto mutilado e incoerente das sociedades que se justapoem, confusdo de vestigios e de ruinas. Sob este ponto de vista, como em tantos outros aspectos que assi- nalarei de passagem, os trés grandes compartimentos da realidade assemelham-se muito bem. Um capitulo deste livro, o que se intitula as leis Iégicas da imitag&o, s6 6 aqui colocado como a primeira pedra duma obra ulterior destinada a completar esta. Se tivesse dado ao assunto todos os desenvolvimentos que ele comporta, este volume néo teria chegado. ‘As ideias que eu exprimo poderiam fornecer, creio eu, solugdes novas para as questées pol/ticas ou outras que nos dividem agora. Nao acho bem dever deduzi-las, e a categoria de leitores & qual me dirijo nao me reprovard de ter negligenciado este atractivo de actualidade. Nao © teria podido fazer, por outro lado, sem sair dos limites do meu trabalho. Uma palavra ainda para justificar a minha dedica~ téria, No sou nem o aluno, nem mesmo o discipulo de Cournot. Nunca o vi nem conheci. Mas tive multa sorte na minha vida em té-lo lido muito quando saf do colégio; muitas vezes pensei que the faltou unicamente ter nascido inglés ou alemao e ter sido traduzido num francés abun- dante de solecismos para ser ilustre entre nés; sobretudo, jamais esquecerei que, num perfodo nefasto da minha juventude, doente dos olhos, tornado por forga unius libri, devo-Ihe néo ter morrido completamente de fome mental. Mas rir-se-iam de mim, de certeze, se ndo me apressasse 2 juntar que a este sentimento desmedido de gratidao intelectual a0 qual obedego se acrescenta um outro, muito menos desinteressado. Se 0 meu livro — eventuelidade que um filésofo em Franca deve sempre encarar, mesmo apesar de ndo ter tido ainda sendo do que contentar-se com a benevoléncia do piblico — fosse mal acolhido, a minha dedicatéria oferecer-me-ia a propésito um objecto de con- solago. Ao sonhar, entao, que Cournot, esse Seinte-Beuve da critica filoséfica, esse espirito tao orignal como sensato, tao enciclopédico e compreensivo como penetran- te, esse gedmetra profundo, esse Idgico fora de série, esse economista extraordindrio, precursor desconhecido dos novos economistas e, numa palavra, esse Augusto 19 Comte aperfeicoado, condensado, clarificado, pensou du- rante toda a sua vida no homeme que nem mesmo depois da sua morte € muito conhecido, como ousaria eu quei- xar-me por ndo ter tido mais sucesso? 20 cAPfTULO I A repeticgo universal I Hé lugar para uma ciéncia ou somente para uma histéria © ainda mais para uma filosofia dos factos so- ciais? A questdo & sempre pendente, ainda que, para fa~ lar verdade, estes factos, se os olhermos de perto e sob um certo angulo, sejam susceptiveis, tal como os outros, de se resolverem em séries de pequenos factos similares @ em férmulas chamadas leis que resumem essas séries. Porqué, entao, a ciéncia social ainda esté a nascer ou a acabar de nascer no meio de todas as suas irmas adultas @ vigorosas? A principal razéo, a meu ver, 6 que se dei- xou aqui a presa pela sombra, as realidades pelas pala— yras. Ninguém acreditou poder dar & sociologia uma feigéo cientifica sendo dando-Ihe um ar biolégico, ou, melhor ainda, um ar mec&nico. Era procurar esclarecer 0 conhe- cido pelo desconhecido, era transformar um sistema so~ lar em nebulosa nao resoltivel para melhor o compreender. Em matéria social tem-se & mao, por um especial privi- \égio, as causas verdadeiras, os actos individusis de que 98 facts so feitos, 0 que esté absolutamente fora dos Nossos olhos em qualquer outra matéria. Esté-se, portan~ to, dispensado, parece, de ter de recorrer, para a expli- cacao dos fenémenos da sociedade, a estas causas, ditas Gerais, que os fisicos e os naturalistas so obrigados a criar com o nome de forcas, de energias, de condicées de existéncia @ de outros paliativos verbais da sua igno- rncia sobre 0 fundo ni'tido das coisas. 2 AS LEIS DA IMLTAGKO ~ Mas considerar os actos humanos como os inicos Factores da histéria...! Isso 6 muito simples. Impés-se a obrigagao de forjar outras causas sobre o tipo destas ficgdes, Gteis que tém, por outro lado, um curso predeterminado; € felicitamo-nos por ter assim dado por vezes aos factos humanos, vistos de muito alto, perdidos de vista, por assim dizer, uma cor completamente impessoal. Acautelemo-nos deste idealismo vago; acautelemo-nos também do individua- lismo banal que consiste em explicar as transformacées so- ciais pelo capricho de alguns grandes homens. Digamos an~ tos de mais que elas se explicam pela aparigao, acidental em certa medida, quanto ao seu lugar @ a0 seu momento, de algumas grandes ideias, ou antes, de um numero conside- rével de Ideias pequenas ou grandes, féceis ou dificeis, 0 mais das vezes imperceptiveis & nascenga, raramente glo- riosas, em geral anénimas, mas ideias sempre novas, que em razdo desta novidade eu me permitirei de bapti- zar colectivamente de invengdes ou descobertas. Por estes dois termos entendo uma inovacéo qualquer ou um aperfei- goamento, por mais ténue que seja, acrescentado a uma inovagéo anterior, em qualquer ordem de fendmenos so- ciais (linguagem, religiéo, polftica, direito, inddstria, arte). No momento em que esta novidade, pequena ou grande, & concebida cu resolvida por um homem, nada mudou apa— rentemente no corpo social, como nada mudou no aspecto fisico de um organismo em que um micrébio, quer nefas- to, quer benéfico, entrou; e as mutagdes graduais que acarreta a introdugao deste elemento novo no corpo so- cial parecen dar continuagao, sent descontinuidade vist- vel, &s mutagdes anteriores na corrente das quais elas se inserem. Daf uma enganadora iluséo que leva os fild-. sofos historiadores a afirmar a continuidade real e funda mental das metamorfoses histéricas. As suas verdadeiras causas, contudo, resolvem-se numa série de idelas muito Rumerosas na verdade, mas distintas e descontinuas, ain~ da que unidas entre elas pelos actos de imitagao, muito mais numerosos ainda, que as tomam por modelos. E preciso partir daqui, isto 6, de iniciativas reno- vadoras, que, trazendo ao mundo ao mesmo tempo necessi- @ A REPETTGIO UNIVERSAL dades novas e novas satisfagdes, nele se propagan em se- guide ou tendem a propagar-se por imitacao forgada ou espontanea, electiva ou inconsciente, mais ou menos ra- pidamente, mas em passo regular, 8 mansira cuma onda luminosa cu de uma familia de formigas. A regularidade de que falo néo 6 de forma nenhuma evidente nos factos sociais, mas descobrir-se-& se os decompusermos em tan- tos elementos quanto neles haja, até ao meis simples dentre eles, Bs invengées distintas combinadas, cos clardes de génios acumulados @ tomados luzes banais: anélise, é verdade, bem diffcil. Socialmente, néo passa tudo de in- vegies e imitagdes, © estas sdo os rios de que aquelas so as montanhas; nada menos subtil, de certeza absoluta, que esta viséo; mas, seguindo-a ousadamente, sem reser- va, desdobrando~a desde 0 mais pequeno detalhe até a0 mais completo conjunto dos factos, talvez se observe co- mo ela 6 apta a pér em relevo todo o pitoresco e, por sua vez, toda a simplicidade da histéria, para revelar pers- Pectivas ou tao bizarras como uma paisagem de rochedos ou t&o regulares como um planalto. Isto 6 ainca idealis- mo, se se quiser, mas idealismo que consiste em explicar We @ historia peles ideias dos seus autores e nao pelas do historiador. & Antes de mais, ao considerar sob este Angulo a ciénc social, vé-se a sociologia humana atrelar-se as sociolo- gias animais (por assim dizer) como a espécie 20 género: espécie singular @ infinitamente superior &s outras, quer dizer, fraterna. No seu belo livro sobre as Sociedades animais, que 6 muito anterior & primeira edigdo da pre~ sente obra, M. Espinas diz expressamente que os traba~ thos das formigas se explicam muitfssimo bem pelo pri cipio "da iniciativa individual seguida da imitaggo". Esta iniciativa 6 sempre uma inovacéo, uma inveng&o igual as Nossas em arrojo de espfrito. Para ter a idela de cons- truir um arco, um tine! aqui ou acold, antes aqui do que acold, uma formiga deve ser dotada de uma inclina- $80 inovadora que iguala ou ultrapassa a dos nossos en- Genheiros construtores de fstmos ou de montanhas. Entre Paréntesis, segue-se daqui que a imitacao destas iniciati- 23 AS LEIS OA IMITAGKO A REPETICRO UNIVERSAL vas tio novas pela massa das formigas desmente de uma maneira evidente o pretenso misoneismo dos animais (1). Muitas vezes M. Espinas, nestas observaces sobre 0s nos- sos irmos inferiores, ficou impressionado com o papel importante que neles desempenha a iniciativa individual. Cada menada de bois selvagens tem os seus leaders, a5 suas cabecas influentes. Os aperfeicoamentos do instinto dos passaros, segundo o mesmo autor, explicam-se por “uma invencdo parcial, transmitida em seguida de geracéo fem geragio por ensinamento directo". Se se pensa que as modificagdes do instinto se ligam provavelmente ao mesmo principio que as modificagdes da espécie e da génese de novas espécies, talvez se seja tentado a pergun- tar se o principio da invencao imitada, ou de qualquer outra coisa andloga fisiologicamente, nao seria a expli- cacao mais clara possfvel para o problema sempre pen- dente das origens especificas. Mas deixemos esta questo @ limitemo-nos a constatar que, animais ou humanas, as sociedades se deixam explicar por esta maneira de ver. Em segundo lugar, ¢ & a tese especial do presente capitulo, sob este ponto de vista nota-se que o objecto da ciéncia social apresenta uma analogia considerével com outros dominios da ciéncia geral @ se reincorpora tam~ bém, por assim dizer, no resto do universo no seio do qual fazia efeito de um corpo estranho. Em qualquer domfnio de estudos, as constatagées puras e simples excedem prodigiosamente as explicagdes. E por tudo 0 que &simplesmente constatado entende-se os (A) Nas espécies superiores de formigas, segundo M. Espinas, "0 IN- DIVEDUO DESENVOLVE UMA INICIATIVA ESPANTOSA", Como iniciam os tra~ fli casa ligrag tes de farmigeattest Edgor:-an/Aepllsvtcdand feted” tintivo, espontine, partido de todos os associados 20 meso tespo, sob a prestio das circunstincias exteriores suportadas 20 mesmo tempo por todas as formigas? lio; un individuo isola-se, mete-se a0 trabalho em priveiro, e bate nos seus vizinhos con a5 sua antenas para os advertir que t@n de Ihe dar a sua mio forte. 0 contégio initativo faz 0 resto. primeiros dados, acidentais © bizarros, premissas © origens donde deriva tudo 0 que 6 explicado. Hé ou houve certas nebulosas, certos globos celestes, de certa massa, de certo volume, a certa distncia; hé certas substancias quimicas; hd certos tipos de vibragées etéreas, chamadas luz, electricidade, magnetismo; hé certos tipos organicos principais, e, antes de mais, hé animais, hé plantas; hé certas cadeias de montanhas, chamadas os Ajpes ou os Andes, etc. Quando nos ensinam estes factos capitais donde’ se deduz tudo o resto, 0 astrénomo, 0 quimico, © fisico, © naturalista, 0 gedgrafo tém papel de cien- tistas propriamente ditos? Nao, fazem uma simples cons tatagado e nao diferem em nada do cronista que relata a expedigéo de Alexandre ou a descoberta da imprensa. Se hé uma diferenga, vé-lo-emos, 6 antes de mais do his- toriador. Que sabemos nés, portanto, no sentido erudito da palevra? Alguém responderé, sem divida: as causas e 3 fins; e quando nés conseguimos ver que dois factos diferentes so produzidos um pelo outro ou colaboram para o mesmo fim, chamamos a Isso té-los explicado. Entretanto, suponhamos um mundo em que nada se asse- melha e nada se repete, hipdtese estranha, mas inteligi- vel em rigor; um mundo todo de imprevisto e de novidad no qual, sem meméria de qualquer espécie, a imaginagao criadora fizesse carreira, em que os movimentos dos as. tros ndo tenham ciclo, as agitagées do éter ndo tenham ritmo vibratério, as geracdes sucessives néo tenham ca- tacteres comuns nem tipo hereditério. Nada impede, ape- sar disso, que cada eparicfo nesta fantasmagoria seja produzida e determinada por uma outra, que ela trabalhe mesmo para conduzir a uma outra. Poderia af haver ainda fins e causas. Mas haveria lugar para uma ciéncia qual- quer nesse mundo? Nao; @ porqué? Porque, uma vez mais, no haveria af nem semelhangas nem repeticdes. ‘Aqui est4 o essencial. Conhecer as causas, isso per- mite prever, por vezes; mas conhecer as semelhangas, isso Permite numerar e medir sempre, ¢ a ciéncia, antes de mais, vive de ndmero © de medida. De resto, essencial nao significa suficiente. Uma vez encontrado 0 seu campo de 25 AS LETS DA TMEIAGKD semelhancas e de repetigées préprias, uma ciéncia nova deve compard-las entre si e observar o Iago de solidarie- dade que une as suas variages concomitantes. Mas, para dizer a verdade, 0 espirito ndo compreende bem, ndo ad- mite a titulo definitivo 0 lago entre causa e efeito, a nao ser na medida em que o efeito se assemelha a causa, re- pete 2 causa, quando, por exemplo, uma ondulagéo sonora gera outra ondulagéo sonora, ou uma célula outra célula semelhante. Nada de mais misterioso, dir-se-4, do que esas reproducdes. € verdade; mas, aceite este mistério, nada de mais claro do que tais séries. E cada vez que pro- duzir nao significa reproduzir-se, tudo se torna escuridao para nds (1). Quando as coisas semelhantes séo as partes de um ‘todo ou julgadas tais, como as moléculas de um mesmo volume de hidrogénio, ou as células lenhosas duma mesma 4rvore, ou 0s soldados de um mesmo regimento, a seme- Ihanga recede 0 nome de(quantidade)e néo simplesmente de@rupo> Quando, dito de outra maneira, as coisa que se repetém permanecem unidas umas as outras ao multipli~ carem-se, como as vibragées caldricas ou eléctricas, que, a0 acumularem-se no interior de um corpo, o aquecem ou electrizam cada vez mais, ou como as formacées de células similares que se multiplicam no corpo duma crian- ga em vias de crescimento, ou como as adesdes a uma mesma religiéo pela converséo dos infigis, @ repeticao, entao chama-se (crescimento)e nao simplesmente (série. Em tudo isto ndo vejo nada que singularize o objecto da ciéncia social. (1) "0 conhecinento cientifica néo deve partir necessarianente das ais pequenas coisas hipotéticas © desconhecidas. Cle encontra o seu comego em qualquer lado onde a matéria formou unidades de orden senelhante, que podem conparar-se entre elas e nedirem-se uns Yas outras; en qualquer Lady unde estas unidades se reunem en unt Gades conpostas. de orden aais elevada, forsecenio elas mesnas a nedida de conparacto destas Gltinas". (Von Naegeliy OISCURSO Wi CONGRESO DOS NATURALISTAS ALEMAES, en 1877). A REPETIGHO INTVFRSAL Interiores ou exteriores, aliés, quantidades ou gru~ pos, crescimentos ou séries, as semelhangas, as repeticdes fenomenais séo os temas necessérios das diferengas e das variagdes universais, as tramas destes bordados, as pautes desta misica. O mundo fantasmagérico que eu supunha hd pouco seria, no fundo, o menos ricamente diferenciado dos mundos possiveis. Como nas nossas sociedades o trabalho, acumulacgéo de accdes decalcadas umas sobre as outras, néo € mais renovador que as revolugies! E que hd de mais monétono do que a vida emancipada do selvagem compa- rada com a vida subjugada do homem civilizado? Sem a hereditariedade haveria um progresso orgénico possivel? Sem a periodicidade dos movimentos celestes, sem o ritmo ondulatério dos movimentos terrestres, a exuberente varie~ dade das idades geolégices e das criagdes vivas teria des- pontado? As repetigdes existem pelas variagies. Se se admi- tise o contrério, a necessidade da morte — problema con- siderado quase insoliivel por M. Delboeuf no seu livro so- bre a matéria bruta e a matéria viva — ndo se compreen- deria; pois porque & que o pido da vida, uma ver langado, nao rodaria eternamente? Mas se as repetigdes sé tém uma razdo de existir, ade mostrar sob todas as suas faces uma originalidade Unica que procura tornar-se clara, nesta hipétese a morte deve fatalmente sobrevir com 0 esgota- mento das modulagées expressas. Observemos de passa- gem, a este propésito, que a relacéo do universal com o particular, alimento de toda a controvérsia filoséfica da Idade Média sobre o nominalismo eo realismo, é precisa- mente o da repeticao na variacéo. O nominalismo 6 a doutrina segundo a qual os individuos sao as Unicas rea- lidades que contam; e por individuos é preciso entender os seres encarados pelo seu lado diferencial. © realismo, pelo contrério, nao considera como dignas de atengao e do nome de realidade, num dado individuo, a nao ser os caracteres pelos quaio clo so assemelha a outros indivi- duos e tende a reproduzir-se em outros individuos seme~ Ihantes. © interesse deste género de especulagio aparece quando se pensa que © liberalismo individualista em poli- 27 As LEIS DA InrTAGKO tica 6 uma espécie particular de nominalismo, e que o socialismo & uma espécie particular de realismo. Qualquer repeticao, social, organica ou fisica, nao importa, isto 6, imitativa, hereditdria ou vibratéria (para ligarmos unicamente as formas mais impressionantes ¢ mais tipicas da Repeticao universal), procede de uma ino— vagao, como toda a luz procede de um fogo; e assim o normal, em toda a ordem do conhecimento, parece deri- var do acidental. Porque, assim como a propagaco de uma forga atractiva ou duma vibracio luminosa a partir de um astro, ou a de uma raca animal a partir de um primeiro casal, ou a de uma idela, de uma necessidade, de um rito religioso, numa nagao inteira, a partir de um cientista, de um inventor, de um missionério, s30 aos nos- sos olhos fenémenos naturais e regularmente ordenados, também a ordem em parte informal na qual apareceram ou se justapuseram os focos de todas estas irradiacdes, por exemplo, as diversas indistrias, religides, instituicdes sociais, os diversos tipos organicos, as diversas substéncies quimicas ou massas celestes, nos surpreendem sempre pe~ la sua estranheza. Todas estas belas uniformidades ou estas belas séries — 0 hidrogénio idéntico a si mesmo na infinita multidéo dos seus &tomos dispersos por todos os astros do céu, ou a expansao da luz de uma estrela na imensidade do espago; o protoplasma idéntico a si mesmo de um extremo ao outro da escala viva, ou a continua- G80 invariével de incalculéveis geracdes de espécies ma- thas desde os tempos biolégicos; as rafzes verbais das Hinguas indo-europeias idénticas em quase todas a huma~ nidade civilizada, ou a transmissao notoriamente fiel das Palavras, de Ifngua copta dos antigos Egipcios até nés, etc. — todas estas multidées incontestéveis de coisas se- meihantes ¢ semelhantemente ligadas, de que admiramos @ coexisténcia ou a sucessio igualmente harmoniosas, re- lacionam-se com acidentes fisicos, bioldgicos, sociais, ‘euja ligagéo nos confunde. Ainda aqui a analogia prossegue entre os factos Sociais e os outros fenémenos da natureza. Se, contudo, os Primeiros, considerados a partir dos historiadores e mesmo 28 A REPETIGRO UNIVERSAL dos socisiogos, nos dio a impressdo de um caos, enquanto que 0s outros, encarados @ partir dos fisicos, dos quimi- cos, dos fisiologistas, deixam a impresséo de mundos mui- to bem ordenados, néo ha que ficar surpreendido com isso. Estes Ultimos cientistas s6 nos mostram o objecto da sua ciéncia pelo lado das semelhangas e das repetigdes que Ihe so prdprias, relegando pare uma sombra prudente o lado das heterogencidades e das transformagées {ou trans~ substanciagées) correspondentes. Os historiadores @ 0s s0- cidlogos, ao invés, langam um véu sobre a face monétona @ regular dos factos sociais, sobre os factos sociais na medida em que eles se assemeinam ¢ se repetem, @ nao apresentam aos nossos olhos a ndo ser 0 seu aspecto aci~ dentado e interessante, renovado e diversificado ao infini- to. Se se trata dos Galo-Romanos, 0 historiador, mesmo filésofo, nunca teré idela, imediatamente depois da con- quista de César, de nos passear passo a passo por toda a Gélia para nos’ mostrar cada palavra latina, cada rito romano, cada ordem, cada manobra militar, em uso pelas legides romanas, cada offcio, cada uso, cada servigo, cada lei, cada ideia especial, enfim e cada necessidade especial importadas de Roma, em vias de irradiar progressivamente dos Pirinéus ao Reno e de ganhar sucessivamente, apés uma luta mais ou menos viva contra as antigas ideias ¢ 0s antigos costumes celtas, todas as bocas, todos os bra~ 0s, todos os coragées e todos os espiritos gauleses, co- pistas entusiastas de César e de Roma. Certamente se ele nos obrigasse a fazer uma vez esta longa caminhada, no no-la faria refazer tantas vezes quantas as palavras ‘ou as formas gramaticals da !/ngua romana, quantas as formalidades rituais da religio romana ou as manobras ensinadas aos legionérios pelos seus oficiais de instrugao, quantas as variedades de arquitectura romana, templos, basilicas, teatros, circos, aquedutos, casas de campo com © seu trio, etc., quantos os versos de Virgilio ou de Hordcio ensinados ‘nas escolas a milnares de alunos, quan- tas as leis da legislacao romana, quantos os processos industriais e artisticos transmitidos fieimente ¢ indefini- damente de operério a aprendiz e de mestre a aluno na 29

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