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ARTIGO ARTICLE 455

Práticas e comportamento alimentar no meio


urbano: um estudo no centro da cidade
de São Paulo

Eating practices and behavior in the urban


environment: a study in downtown São Paulo

Rosa Wanda Diez Garcia 1

1 Departamento de Nutrição, Abstract This study focuses on the implications of urban life style on eating habits and the re-
Faculdade de Ciências
lated symbolic representations. Theoretical references used to approach the food experience are
Médicas, Pontifícia
Universidade Católica the concepts of social representation and habitus. The methodology consisted of a qualitative
de Campinas. analysis of interviews with 21 administrative employees and field observations made at com-
Av. John Boyd Dunlop s/n o,
mercial establishments in downtown São Paulo, such as snack bars and restaurants. Study of
Campinas, SP
13020-904, Brasil. eating behavior and practices was developed along two planes: food actually eaten and food de-
sired. Results were classified into three segments: “ingesting and digesting affection”, “determi-
nants of social representations of eating practices”, and “rituals in eating practices”. Due to their
origin in a domestic universe, symbolic aspects associated with food have a strong affective ma-
trix. Concrete conditions of the urban environment associated with the subject’s financial limits
establish a structure of values and feelings compatible with the subject’s possibilities. The study
addresses both the abbreviation of food rituals and its implications on food behavior as well as
features of the present urban food pattern.
Key words Feed; Feeding Behavior; Food Habits; Social Representation

Resumo Este trabalho explora a dimensão da comida no modo de vida urbano, tendo em vista
as implicações que este modo de vida tem nos hábitos alimentares e nas representações simbóli-
cas envolvidas. Utilizamos como referencial teórico os conceitos de representação social e de ha-
bitus para abordarmos a experiência alimentar. A metodologia utilizada foi a análise qualitati-
va do discurso de 21 funcionários administrativos e o estudo de observação em estabelecimentos
comerciais, como lanchonetes e restaurantes na região central de São Paulo. O estudo do com-
portamento alimentar foi exposto em dois planos: o dos alimentos e preparações consumidos e o
dos desejados. Por sua origem no universo doméstico, os aspectos simbólicos associados à ali-
mentação têm uma forte matriz afetiva. As condições concretas do meio urbano associadas aos
limites financeiros do sujeito estabelecem um arcabouço de valores e sentimentos compatíveis
com suas possibilidades. A abreviação dos rituais alimentares e suas implicações no comporta-
mento alimentar são abordados bem como as características do atual padrão de alimentação
urbano.
Palavras-chave Alimentação; Comportamento Alimentar; Hábitos Alimentares; Representação
Social

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Introdução va ou negativa de alimentos e locais, hábitos


alimentares nos dias e fins de semana, comida
A alimentação está envolta nos mais diversos de casa, refeições feitas durante o turno de tra-
significados, desde o âmbito cultural até as ex- balho, lanches, etc.) e por unidade, conside-
periências pessoais. Nas práticas alimentares, rando a coerência do discurso do entrevistado.
que vão dos procedimentos relacionados à pre- Na análise das entrevistas, estaremos usando
paração do alimento ao seu consumo propria- citações dos relatos em função da temática a
mente dito, a subjetividade veiculada inclui a ser enfocada.
identidade cultural, a condição social, a reli- Como referencial teórico, utilizamos o con-
gião, a memória familiar, a época, que perpas- ceito de representação social (Moscovici, 1978)
sam por esta experiência diária, garantia de e de habitus (Bourdieu, 1983) para abordarmos
nossa sobrevivência. a experiência alimentar. Apresentamos, no tex-
Partindo da premissa de que características to que se segue, os resultados do estudo sobre
do modo de vida urbano orientam o compor- práticas e comportamento alimentar urbano
tamento alimentar, o objetivo deste trabalho no centro da cidade de São Paulo subdivididos
foi explorar a dimensão da comida e suas re- em três partes: “ingestão e digestão do afeto”,
presentações simbólicas neste meio, conhecer “algumas condições que determinam as repre-
o que as pessoas comem e o que representa co- sentações sociais sobre as práticas alimenta-
mer no centro da cidade de São Paulo. res” e “os rituais nas práticas alimentares”.
Delimitamos como locus característico do
meio urbano, um trecho do centro da cidade
de São Paulo (entre as Praças do Patriarca e São Práticas e comportamento
Bento, incluindo as ruas São Bento, Líbero Ba- alimentar urbano
daró e adjacências) onde realizamos observa-
ção de campo em estabelecimentos comerciais O comportamento alimentar do qual estare-
como lanchonetes e restaurantes. Ao pretender mos tratando aqui é o relatado pelos entrevis-
abordar o comensal urbano, duas possibilida- tados que adentra duas instâncias: a dos ali-
des foram cogitadas: entrevistar os que traba- mentos consumidos e a dos desejados. Não
lham no centro da cidade e os que passam pelo nos preocupou distinguir, nos relatos, estas
centro. Optamos pelo comensal que trabalha duas instâncias por considerarmos que ambas
no centro da cidade e faz pelo menos uma fazem parte das representações sociais sobre a
grande refeição (almoço) neste local. O traba- alimentação e orientam o comportamento ali-
lho foi baseado principalmente em entrevistas mentar.
com 21 funcionários administrativos que tra- Abordaremos o assunto nos apoiando no
balham na Secretaria da Habitação da Prefeitu- conceito de representação social, definida co-
ra Municipal de São Paulo, localizada no Ed. mo a construção mental da realidade que pos-
Martinelli, situado no trecho delimitado para o sibilita a compreensão e organização do mun-
estudo. Dos 21 entrevistados 10 eram do sexo do, bem como orienta o comportamento (Mos-
feminino e 11 do masculino. Todos eram fun- covici, 1978; Jodelet, 1988). Trata-se de como o
cionários administrativos: 13 ocupam o cargo objeto social é apreendido, interpretado e re-
de oficial da administração geral, 2 são assis- constituído. Os elementos da realidade, os con-
tentes administrativos, 2 auxiliares de pesqui- ceitos, as teorias e as práticas são submetidos a
sa, 2 encarregados de setor e os demais, auxi- uma reconstituição a partir de informações co-
liar de escritório e secretário. Dezessete pes- lhidas e da bagagem histórica (social e pessoal)
soas tinham o segundo grau completo, 1 o pri- do sujeito, permitindo, desta forma, que se tor-
meiro grau completo e 3 tinham título univer- nem compreensíveis e úteis. Nesse processo, as
sitário sem nunca terem exercido a profissão. representações sociais tornam um objeto sig-
Entre 20 e 29 anos havia 12 entrevistados; entre nificante, introduzindo-o num espaço comum,
30 e 39, 6; e com mais de 40 anos, 3 pessoas. digerindo-o de forma a permitir sua com-
Quatorze entrevistados nasceram e sempre vi- preensão e sua incorporação como recurso pe-
veram em São Paulo, 3 eram paulistas e 4 vie- culiar ao sujeito.
ram de outros estados. As entrevistas foram O aspecto a ser destacado na perspectiva
orientadas por um roteiro flexível e realizadas das representações sociais da comida é que
no horário de trabalho, segundo a disponibili- aqui a experiência reside como seu componen-
dade do funcionário. Duraram em média entre te mais forte. Neste sentido Bourdieu (1983) é o
uma hora e uma hora e meia e foram gravadas. autor que, através do conceito de habitus, in-
Analisamos as entrevistas por categoria temá- sere com mais veemência as práticas nas re-
tica (como se sente na cidade, valoração positi- presentações sociais. Os habitus, que funcio-

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nam como disposições estruturadas e estrutu- cê tá aí, um dia você vai ter que morrer. O pes-
rantes, são fortemente marcados pelas primei- soal fala: o cigarro mata. Eu conheço muita
ras experiências, as que ocorrem no interior gente que tá com 90 anos de idade e fumando,
das manifestações familiares. Essas estruturas não morreu ainda. Vai do organismo da pessoa,
de origem irão constituir o princípio da per- da saúde da pessoa. Quanto mais você se cuida,
cepção e da apreciação de toda a vida ulterior. pior é.”
O gosto, os conflitos, as preocupações, as lições ”Sou vegetariano. Tenho um sistema de co-
de moral, entre outros, manifestar-se-ão se- mer. Às vezes até me dá fome, mas eu... porque o
gundo tais experiências constituintes do habi- organismo vai se adaptando. Então eu acho que
tus. Ele funciona como matriz de percepções, você, para o funcionamento regular do teu or-
de apreciações e de ações e é princípio gerador ganismo, você tem que ter equilíbrio, uma disci-
e estruturador das práticas e das representa- plina alimentar. (...) Se você tiver um pouqui-
ções. Ao paladar (apreciado) incorporam-se re- nho de consciência de alimentação, você vai
presentações sociais sobre alimentação forma- procurar se adequar a esse ambiente da melhor
das, por exemplo, a partir de informações cien- forma possível.(...) É lógico, a máquina vai des-
tíficas veiculadas pela mídia. Tais representa- gastando, a máquina não pára. Volta e meia vo-
ções poderão, no discurso, se sobrepor ao pa- cê tem que levar pro mecânico pra fazer uma re-
ladar. O complexo de elementos constituintes visão geral. Eu acho que você então tem que lu-
das representações sobre alimentação e que brificar a sua máquina da melhor maneira pos-
orientam o comportamento alimentar não é sível, através de alimentos de qualidade.”
regido, necessariamente, pela coerência, ou Através de algumas frases que trazem, em
melhor, ela existe circunstancialmente, impos- essência, a relação do sujeito com a comida,
ta por uma dada situação. Um mesmo entrevis- originária da experiência pregressa, pudemos
tado, por exemplo, quando está se referindo à identificar alguns discursos regidos por dife-
comida de sua casa, coloca-a como sendo a rentes vínculos com a alimentação. Por exem-
melhor e a preferida. Num outro momento, ao plo:
falar de sua experiência com as refeições feitas “Como de tudo”. Esta matriz de orientação
fora de casa, o entrevistado diz que come me- do vínculo com a comida, tem como caracte-
lhor fora de casa. Tais elementos, constituintes rística uma relação austera adquirida na in-
das representações sociais, convivem em es- fância:
truturas flexíveis, adaptando-se às circunstân- ”Desde menino eu sempre fui criado assim,
cias, ao gosto, aos valores, etc. Estando as re- tipo você come o que tem na mesa. Estudei em
presentações sociais no entremeio do discurso escola interna, né, então você tinha que comer
e da prática, orientando-os e sendo por eles de tudo que as tias davam, você enfiava goela
orientadas, acreditamos que tais representa- abaixo.”
ções mutantes, principalmente no plano do Neste outro exemplo, o “comer de tudo” di-
discurso, são mais refratárias ao plano da ex- ferencia-se pela valorização da variedade de
periência. comida de casa, como pode ser observado nes-
As representações sociais sobre alimenta- ta fala:
ção podem estar sendo orientadas por diferen- ”Não ligo pra roupa, sapato, pra jóia, pra
tes matrizes. Por exemplo, pelo hedonismo ou nada; agora, pra alimentação... isso é uma coisa
pela disciplina, guiando-se respectivamente que meu pai me ensinou: em casa nunca faltou
por aquilo que se quer comer, ou seja, pela bus- nada, eu sempre comi muito bem. Podia não ter
ca da satisfação do paladar, do prazer pelo que roupa ou sapato bonito, mas sempre me ali-
será consumido, ou, ao contrário, por aquilo mentei muito bem. Não posso falar: isso eu não
que se deve comer, quando a norma é o padrão comi ou daquilo eu não comi, não tem.”
idealizador predominante dessas representa- Há também outros tipos de relação, como
ções sociais. podemos constatar em comentários como:
Exemplificamos com duas entrevistas que “...sempre busco uma disciplina alimentar”
servem como referências polares e antagônicas ou “não sou de comer muito mesmo.”
dos dois modelos: aquele que em suas repre- Nesses exemplos encontramos a psique na
sentações destaca o “prazer” e aquele que en- raiz das estruturas governantes da ligação do
fatiza a “norma” na alimentação. sujeito com a comida.
”Se eu precisar, eu peço dinheiro pro agiota,
mas eu me alimento bem. “...”Eu não me preo-
cupo se vou comer muita massa e vou engordar,
ou vou comer muita gordura e vou ter coleste-
rol. Eu não me preocupo. Eu acho o seguinte: vo-

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Ingestão e digestão do afeto ”Nove anos que eu trabalhei aí, e nove anos
eu fui habituado a comer lá. Porque lá é um lu-
A condição humana, pela ausência do aparato gar que a gente sabe que é limpinho, que o pes-
instintivo que lhe dê autonomia, é a da depen- soal lá faz boa comida, e eu conheço a pessoa
dência de seus semelhantes, que inaugura, que trabalha no balcão... Eu comecei a ir porque
desde o nascimento, a inserção num mundo o pessoal daqui começou a ir lá, dizendo que era
culturalmente constituído (Steffen, 1988). Não muito bom.”
é possível situar os limites da natureza e da cul- ”Lá você tem aqueles restaurantezinhos, que
tura já na amamentação, esse ato biológico por os donos são portugueses, são amigos do meu
excelência. Com nascimento inauguram-se, e a pai. Você entra assim, o cara te traz uma sopa,
amamentação consagra, simultaneamente a depois tem também o prato do dia, mas o pes-
existência física, a psíquica e a cultural. soal faz na hora, traz as porções até você...”
Originária no universo doméstico, a ali- Entendermos as questões conseqüentes à
mentação, enquanto prática, está envolta no transferência dessa rotina alimentar para outro
convívio familiar e social, vinculada mais espe- espaço que não o doméstico, implica conside-
cificamente à figura da mãe e da mulher e, por- rar outros valores associados à alimentação em
tanto, atrelada a uma referência afetiva. Confi- refeitórios de indústrias e escolas, restauran-
gurada no espaço doméstico e sob responsabi- tes, no próprio local de trabalho, na rua, etc.
lidade da mulher, a alimentação era comparti- DaMatta (1985) utiliza a “casa” e a “rua” co-
lhada essencialmente na intimidade do lar. Ho- mo categorias sociológicas para compreender-
je, mesmo a mulher que trabalha fora de casa mos a sociedade brasileira entendida como um
não se furta da tarefa e da responsabilidade de sistema de ação embebido em valores e idéias.
ser a principal provedora da alimentação da fa- A oposição entre “casa” e “rua” não deve ser
mília, com atividades que vão desde a defini- compreendida a partir de espaços rígidos, mas
ção do cardápio, incluindo a responsabilidade principalmente como entidades morais, como
de adequar os recursos financeiros às necessi- esferas de ação social, capazes de despertar
dades de alimentos, a realização de compras e emoções, leis, reações, etc. Nos códigos da “ca-
preparação das refeições (Grácia-Arnaiz, 1996). sa”, a hospitalidade e a familiaridade tipificam
O tempo na cidade provocou uma reorga- uma suposta harmonia do lar. O código da
nização da rotina interna da família, mesmo “rua” é regido por leis e mecanismos impes-
quando a mulher não se encontra inserida no soais (o modo de produção, a luta de classes, a
mercado de trabalho e dedica seu tempo exclu- subversão da ordem, a lógica do sistema finan-
sivamente às atividades domésticas. Comer em ceiro capitalista, etc.). Dessa maneira, não se
casa, nos grandes centros urbanos, não depen- pode transformar impunemente a “casa” na
de apenas de ter alguém que se ocupe do pre- “rua” e vice-versa. Há regras e rituais impor-
paro da comida. A distância entre o local de tantes para isso.
trabalho e a casa, as dificuldades de desloca- As manifestações de afetividade que com-
mento impostas pelo trânsito e o próprio ritmo põem as representações sociais da alimentação
da cidade, dificultam a execução das refeições no meio urbano transferem para o convívio da
no domicílio. “rua” elementos predominantes do convívio
Longe do reduto familiar, como observa- doméstico. As pessoas geralmente preferem
mos no centro da cidade de São Paulo, esse as- sair para comer acompanhadas por aqueles que
pecto afetivo acompanha representações so- têm maior ligação afetiva, valorizam a comida
ciais ligadas à comida que se manifestam de caseira e criam vínculos nos lugares onde habi-
maneiras diversas. Através da intimidade do tualmente fazem suas refeições. O vínculo afe-
ato de comer, da necessidade da companhia de tivo também é consolidado no ato alimentar.
amigos, parentes ou do colega mais próximo, ”Trabalhar até se trabalha com quem a gen-
da escolha do restaurante, normalmente feita te não gosta, mas almoçar não. Quando a com-
por indicação de amigos, da valorização de panhia não agrada, o papo fica complicado, a
ambientes aconchegantes, da freqüência aos comida faz mal. ...”
mesmos lugares, quer seja pela comida ou pela ”A gente sai, sempre vai pra ir conversar, um
relação amistosa com os garçons do local, ve- pouquinho, não importa o que a gente vai co-
mos manifestações que delatam a busca cons- mer.”
tante da “casa” na “rua”. ”Nós comemos aqui. Como a gente trabalha
”A maioria dos lugares que eu vou é por in- aqui, em equipe, a gente também come aqui em
dicação do pessoal daqui de dentro mesmo. En- equipe, uma espera a outra.”
tão fui comer uma vez, duas, três, daí começo a ”Eu sempre como com uma amiga, minha
ir direto.” irmã.....”

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”Normalmente almoço com o meu marido, desconfiança e desconhecimento do processo


se o meu marido não tá, eu almoço sozinha. de elaboração da comida, como demonstram
Normalmente no serviço, o pessoal tem a pessoa as acusações de que a comida desses lugares
certa para almoçar”. tem, segundo alguns entrevistados, “salitre” e,
”Meu pai trabalha aqui no centro, de vez em segundo outros, “conservantes”, ambos tidos
quando nós almoçamos juntos, umas duas ou como prejudiciais à saúde. Um dos restauran-
três vezes por semana.” tes não qualificados como “caseiro” foi consi-
O restaurante é um recinto público e o des- derado bom por ser “limpo”, “com cardápio
conforto de comer sozinho neste local é maior equilibrado por nutricionista”, “com pratos fi-
do que no ambiente de trabalho, usualmente o xos”, mas ruim “por servir muitas refeições” e
refeitório, seja por se ter mais possibilidades de ser tido como restaurante de “esquema empre-
encontrar um conhecido, seja por sentir-se sarial”.
mais à vontade. As características de distinção entre o que é
Numa tentativa de mapear as melhores re- “caseiro” e o que é “industrial” estão organiza-
giões para comer em São Paulo, um dos entre- das principalmente pelo argumento simbólico,
vistados utilizou como referência a relação en- como observamos nos relatos. A comida “casei-
tre sua casa e o centro: ra” pertence ao domínio familiar, o aspecto
”Pra comer melhor, você precisa se afastar “industrial” representa o impessoal e desco-
daqui. Se afastar até chegar na sua casa. Quan- nhecido.
to mais você se afastar do centro você vai comer A diversidade de opções em termos ali-
melhor.” mentares, que as pessoas dizem encontrar no
Este comentário mostra como o plano afe- centro da cidade, não satisfaz. Sempre em de-
tivo orienta a escala de preferência, manifesta- trimento da comida da “rua”, a comida de “ca-
da na oposição entre “casa” e “rua”. sa” é valorizada por ser “limpa”, “melhor de
Um caráter de intimidade circunda a comi- tempero”, “por saber quem faz”, “porque não
da e o modo de comer, revelado na preocupa- enjoa”, etc. Mesmo considerando a variedade
ção e no constrangimento que as pessoas sen- de opções, a comida do centro é tida, muitas
tem ao estarem sendo observadas quando es- vezes, como “repetitiva”, “monótona” e “enjoa-
tão comendo. A comida delata a condição so- da.”
cial. Quando as pessoas fazem a refeição no lo- A comida de casa é identificada com adjeti-
cal de trabalho, sempre escolhem um canto re- vos associados ao âmbito afetivo e pela segu-
servado, longe dos olhos de quem possa ver o rança de conhecer sua origem.
que estão comendo: ”Então, quando vou pra casa da minha mãe,
”Se for comer aqui vão ficar olhando o que quando eu volto pra cá...quando eu fico por lá
estou comendo, e o povo sempre comenta . Eu assim, de final de semana, eu volto pra cá mais
mesmo já vi gente que come só arroz, feijão e forte, mais bonito.”
ovo.” ”Janto à noite em casa, janto bem, comidi-
”Comer no local de trabalho, só quando não nha caprichada da mama.”
tem jeito, (...) você tem que comer rapidinho, ”Em casa, você é mais confiante porque você
num canto escondido, (...) as pessoas ficam sabe o que tem na comida”, “em casa é sempre
olhando.” mais segurança pra comer”, “você sabe quem
Na valorização da comida do tipo caseiro, faz, como faz...”, “sabe que a comida é bem mais
persegue-se a “casa”, lugar idealizado para ali- tratada”, “e a gente sabe de onde compra, quem
mentação. A comida do dia-a-dia e a comida fez e onde foi feito”, “o sabor, a higiene, a gente
do lazer, dos finais de semana, transcorrem em sabe como é feita a comida em casa”.
espaços distintos e marcam diferenças simbó- Em contrapartida, comer fora de casa tem
licas importantes. A comida da “rua” nunca po- conotações distintas quando se trata dos dias
derá substituir a comida de “casa” e os envolvi- de trabalho e fins de semana. Neste último ca-
mentos que dela decorrem. so, ou num dia de semana especial, por exem-
Os critérios utilizados para discernir a co- plo, “comer fora” enquadra-se em outra catego-
mida “caseira” são aqueles que identificam-se ria, a do lazer. Atenuam-se aqui os inconve-
com o espaço domiciliar, ou seja: “um lugar pe- nientes expostos com relação a comer fora de
queno”, “que não serve grande quantidade de casa nos dias de semana.
comida”, “onde a comida, por ter mais gosto, é ”Eu como sempre no restaurante aqui em-
mais forte”. Em contrapartida, a comida tida baixo, mas quando a gente saí assim, pra almo-
como “de escala industrial” é qualificada como çar fora, a gente vai aqui no Lírico, mas aí vai
ruim por representar o contrário da domiciliar: num aniversário, alguma coisa assim, vai a tur-
“por ter cara de comida em grande escala”; pela ma toda.”

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” Final de semana, quando a gente sai pra ”Se você não gosta de alguma coisa, tem um
comer com a maioria do pessoal, a gente vai monte de opção. Então aqui eu consigo fazer
num rodízio, come carne e salada.” uma refeição como eu faço na minha casa.”
”O orçamento não dá pra comer fora, não Quando a prática alimentar do âmbito do-
permite mesmo, do contrário, vontade a gente méstico é colocada como referência à outra, e
tem, né, mas é difícil.” no caso da alimentação isto é habitual, é res-
”No final de semana, você tem muita opção, saltado o caráter de oposição desses espaços.
você não é obrigado a comer num determinado Mas quando essas instâncias se deslocam para
lugar. Você vai onde acha legal, o que é gostoso situações paralelas, isto é, com autonomia de
comer, então sempre você escolhe o melhor lu- valores e com referências nítidas diferenciadas,
gar, pra ir jantar, né? E que seja num preço aces- gera-se uma outra matriz de representação,
sível também.” aquela peculiar a cada um desses espaços. É
A comida feita fora de casa nos dias de se- possível notarmos como, sutilmente, em algu-
mana, durante o período de trabalho, não é mas ocasiões, quando esses domínios são tra-
boa porque “a gente não sabe como eles prepa- tados com autonomia, atenuam-se as polari-
ram, a gente não vê, mas que tem diferença tem, dades. Quando se trata de uma refeição feita
porque fazem em quantidade”, “não tem muita fora de casa como lazer, por exemplo, os crité-
opção, porque a comida é cara e não é igual à da rios de qualificação não são os mesmos que co-
casa da gente”, “você não sabe o que está comen- mer na “rua”; quando desvantagens de se co-
do, não sabe como é feito, geralmente o pessoal mer em casa são apontadas resgatam-se ele-
não tem muita higiene”, “depende da sorte e da mentos positivos associados a comer fora do
confiança no lugar”, ou porque “não sabe o que domicílio, mesmo quando, anteriormente, a
vai encontrar no prato”, “a comida a gente não comida de “casa” tenha sido enaltecida.
vê, não sabe quanto tempo fica parada, on- Estas constatações indicam uma coerência
de,...”, “você vê a diferença de uma pessoa que vulnerável nos discursos, uma influência da re-
trabalha no centro e come no centro, para aque- lação com o espaço (“casa” e “rua”) na expe-
las que comem em casa”. As desvantagens riência alimentar com forte tendência de valo-
apontadas em comer no centro não foram sus- rização da experiência doméstica e muitos cri-
tentadas durante toda a entrevista. A compara- térios subjetivos na determinação da relação
ção com a comida de casa acentuou as devan- do sujeito com a comida. Com o tempo, a ex-
tagens de comer na “rua”. periência alimentar sendo consolidada fora do
Como notamos nas caracterizações das espaço doméstico, talvez se construa uma rela-
práticas alimentares pertinentes a diferentes ção mais positiva com a alimentação fora de
espaços, há dois tipos de relação entre comida casa. Esta é uma possível hipótese a esse res-
de “casa” e comida de “rua”: uma relação de peito.
oposição e uma de independência em que pre-
dominam significantes autônomos de cada
instância. Algumas condições que determinam
Os exemplos que se seguem são daqueles as representações sociais das práticas
que desfrutam da alimentação feita fora de alimentares
casa:
”Bom, como sou uma pessoa sozinha, eu As condições concretas associadas aos limites
adoro comer fora, porque uma das coisas que eu financeiros do sujeito estabelecem um arca-
detesto é cozinhar. Pra mim é uma coisa muito bouço de valores e sentimentos compatíveis
prática comer no centro, eu como, eu gosto de com as possibilidades alcançáveis. A comida
uma comida assim bem simples, e tem vários de casa delata mais as condições sociais do su-
cardápios, saladas e outras coisas.” jeito do que a comida da “rua”, mesmo quando a
”Carne pra mim não pode faltar, sabe? Por escolha do prato é feita pelo preço. As despesas
isso que eu te falo, é melhor comer aqui do que domésticas com alimentação pertencem ao or-
em casa. Aqui todo dia eu como carne ou fran- çamento familiar e, portanto, a comida feita em
go, ou de vaca ou de boi.”...”gosto daqui sim, gos- casa está mais sujeita às condições sócio-eco-
to dos lugares, da comida, eu gosto.” nômicas da família. Acreditamos ser este um
”Não, não é diferente comer em casa. Eu não dos motivos pelo qual a alimentação domésti-
como nada assim de extraordinário em casa. ca é resguardada com mais intimidade e os sen-
Porque assim, se você come bem na rua, chega timentos a ela associados, mais protegidos. Os
em casa você não tem o que comer, não tem gra- qualificativos para a comida de “casa” são dis-
ça nenhuma. Então você tem que se virar, comer tintos daqueles usados para apreciar a comida
aquilo que dá na tua casa.” da “rua”, esta última, julgada com maior rigor.

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PRÁTICAS E COMPORTAMENTO ALIMENTAR NO MEIO URBANO 461

A comida consumida em “casa” e na “rua” ”Porque prato do dia, geralmente é mais rá-
reflete, diferencialmente, as condições dispo- pido, você chega, não é sempre, você demora de
níveis. Em casa a variação e a escolha do que se cinco a dez minutos pra conseguir um lugar, aí,
vai comer depende da matéria-prima disponí- se você pede um prato que não é o do dia, logi-
vel e das opções de preparo determinadas pe- camente vai ter que esperar um pouco mais.”
los recursos financeiros e influências sócio- A variedade de opções de restaurantes, de
culturais. Na cidade escolhe-se entre o dispo- diferentes tipos de comida e de sabores foi
nível que está pronto para ser consumido. A apontada como vantagem mesmo entre aque-
variedade é determinada pelas alternativas de les que freqüentam os lugares fixos para comer.
cardápios definidos por estabelecimento. A es- Se, por um lado, a variedade de opções é valo-
colha é posterior à preparação. Em casa, as op- rizada positivamente, o tempo e o preço das re-
ções dependem da matéria prima e dos hábi- feições são vistos como um problema pela in-
tos alimentares da família. A comida de “casa” suficiência. O comensal sabe que qualidade e
é um reflexo mais fiel da condição social, eco- diversidade de alimentos estão relacionados
nômica e cultural. com o preço e, portanto, a adaptação deve ser
A marmita poderia ser um recurso valoriza- do paladar. O limite do orçamento está intrin-
do por permitir que a comida de casa possa ser secamente associado ao desconforto com as
consumida no local de trabalho, mas é uma al- refeições feitas fora de casa.
ternativa que traduz, por diferentes motivos, ”Tem dias que eu como só frutas pra não ter
um sinal de pobreza. que comer fora. Tem dia que eu como pão com
”Quer dizer, o máximo que você almoça fora presunto pra não ter que comer aqui. É mais fá-
é pelo menos dez dias, o restante do mês é obri- cil, eu acho mais gostoso, mais barato também.”
gado a trazer de casa.” O “ticket” ou vale refeição é um importante
”É, quando acaba o vale refeição, eu trago determinante da escolha alimentar. Na presen-
marmita.” ça da inflação, progressivamente vai reduzindo
”Optei por marmita. Tem outras opções, mas seu poder de compra. Há períodos em que ele
são poucas. Ou você come no vegetariano, que é não cobre as despesas de uma refeição sendo
mais variado, mas também não tem carne, ou necessárias alternativas para alimentar-se den-
você come sempre os mesmos. É também pelo tro do orçamento. Com freqüência é o paladar
dinheiro, porque a comida aqui sobe demais.” quem cede ao preço. Opções como salgadi-
”Bom, pra mim, detesto cozinhar e carregar nhos, sanduíches são freqüentes nesses perío-
marmita, não tenho que reclamar, se reclamar, dos.
vou reclamar demais.(...) Eu trabalhei muito ”Uma refeição sadia hoje, decente, está cus-
tempo carregando marmita, eu acho isso horrí- tando em média CR$ 30.000,00. O nosso vale,
vel, se você quiser comer comida fresca tem que aqui, por exemplo, é CR$ 16.800,00, quer dizer,
levantar cedo, tipo 5 horas da manhã.(...) Ho- você tem que completar se quiser se alimentar
mem nenhum gosta de carregar marmita, os ca- bem. Ou se não, você passa à base de lanche, que
rinhas vão tirar um sarro da minha cara, quer está em média de CR$ 25.000,00 e até CR$
dizer, é coisa de homem, de colega. Então o que 30.000,00. A menos que você coma uma esfiha e
ele faz, ele come lanche porque ele ganha pouco, um refrigerante, como na maioria das vezes eu
ele não tem condições pra se alimentar bem.” faço, pra que o vale possa dar o mês inteiro.”
O cardápio fixo baliza nos dois sentidos: na ”É, quando acaba o vale refeição, eu trago
escolha do prato do dia ou para optar por um marmita.”
outro prato. O vale pode ser adequado para quem come
”Quarta-feira eu sei que tem feijoada, então pouco e pode recorrer à comida por quilogra-
eu pego e procuro outro prato, qualquer coisa, ma, onde paga-se o valor correspondente à
um chuchu, qualquer outra coisa que substitua quantidade de comida que tem no prato. Para
aquilo. Tem macarrão na manteiga, o arroz, um aqueles que trazem marmita, o vale é acresci-
tipo de arroz com legumes ...” do ao orçamento doméstico como moeda em
”Só na quinta-feira, só levo em consideração alguns supermercados.
a quinta mesmo, que é massa”. ”Não fica tão caro, o vale da gente pra mim é
”Você sabe que tem um cardápio e que tem suficiente e até sobra. Então, eu como aqui por
um outro tipo de alimento, além do prato do causa disso.”
dia. O prato do dia é geralmente em todo restau- ”Tem pessoas que comem que nem passari-
rante, mas o pessoal tem sempre um prato dife- nho, então o vale refeição dá. Na maioria das
rente, então a gente vai procurando.” vezes acho que para 60% da população o vale
”Geralmente é o prato do dia, e quarta-feira não comporta, não dá. É pouco o que você ga-
tem que comer feijoada.” nha de vale refeição, não acompanha, enten-

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462 GARCIA, R. W. D.

deu. O teu salário já é pouco, o vale refeição é mesa de trabalho, ou para a frente de uma tele-
pouco, tudo é pouco. Falta estrutura em tudo, visão. Isto pode ter levado a um enfraqueci-
desde dentro de casa até no seu emprego, na tua mento da consciência do ato de alimentar-se
família, filho, tudo.” em função dessas facilidades para dispersar as
refeições. Quando recorre-se a métodos de
consumo alimentar que utilizam como única
Os rituais nas práticas alimentares referência a alimentação, outras informações
sobre a comida poderão ficar escamoteadas
Em função do tempo, abreviaram-se os rituais por estarem dispersas sob outros rótulos de re-
destinados à alimentação, deslocando-os para gistro na memória.
ambientes compatíveis com outras atividades. Em termos de comportamento alimentar,
Estudos sobre consumo alimentar baseiam- enfraquecendo seus rituais, é possível facilitar
se em métodos informativos de descrição por- mudanças nos padrões alimentares pelo esva-
menorizada da alimentação consumida. Com ziamento das rotinas mais estruturadas de ali-
os nossos entrevistados, nosso objetivo não era mentação. A desestruturação da alimentação
ter precisão da ingestão alimentar, motivo da tem sido mencionada como um importante fa-
opção pela metodologia qualitativa. Este crité- tor de mudança na alimentação (Fischler, 1995;
rio metodológico permitiu tecermos algumas Mennell et al., 1994; Demuth, 1988).
considerações sobre o comportamento ali- Principalmente nos dias de semana a tele-
mentar e, dessa forma, contribuir com obser- visão centraliza a atenção durante o jantar. Em
vações sobre possíveis problemas na obtenção casa é a programação quem faz companhia aos
de informações quando se utilizam métodos comensais. Observamos nos relatos a seguir as
quantitativos centralizados no consumo ali- características da rotina das refeições feitas em
mentar. Quando as pessoas referem-se à comi- casa, principalmente nos dias de semana.
da é comum elas enfocarem as grandes refei- ”Olha, normalmente a gente nem senta. Por-
ções, principalmente almoço e jantar. Talvez que como somos só eu e ela, nós fazemos o prato
alimentos consumidos de maneira dispersa, no e é a hora da novela, sabe, e então nós vamos
decorrer do dia e em locais destinados a outras sentar. E, principalmente, lá em casa é aparta-
atividades, descontextualizados, pela ausência mento, é pequeno, né, então eu saio da cozinha,
de um ritual peculiar àquela refeição, sofram já estou na sala. Pego o pratinho, senta lá e fica
um registro na memória mais tênue e orienta- vendo novela e jantando. Todo dia é isso.”
do por um outro domínio. Recorrendo a uma ”Sabe, um pega o prato e vai pra televisão,
imagem ilustrativa, é como se tivéssemos esca- outro fica lá mesmo entendeu. Não tem aquela
ninhos categorizados por temas. Por exemplo, mesa posta, assim não. Sabe, vai no fogão, cada
o lazer comporta a comida, mas a mesma está um se serve. A não ser quando vai alguém, algu-
contida nesta outra temática. Assim, ao per- ma visita, aí já é diferente. Aí, é lógico, na mesa
guntarmos sobre alimentação, remetemos o e tal. Mas normalmente não é mesa posta, não.
sujeito usualmente àquelas refeições mais for- Cada um se vira lá, pega o seu prato e se serve.”
malizadas. Um salgadinho no decorrer do dia, ”Porque é apartamento, a cozinha é peque-
um biscoito com cafezinho, um chocolate, um na, então não tem espaço para colocar a mesa
refrigerante, uma cerveja com petiscos, não na cozinha e a mesa é na sala. As crianças ficam
são classificados da mesma maneira, são guia- pedindo: vira a televisão para este lado. Elas
dos por outras diretrizes; encontram-se, en- querem assistir, geralmente é no horário dos pro-
quanto alimentos, volatilizados em diversos gramas infantis, né, na Cultura. Então é neste
segmentos com diferentes significados. Nossas horário, sete, sete e meia, oito. Se não ninguém
impressões nos levam a supor que comer, nes- vai ficar, ninguém vai tirar a mesa, daí você tem
sas ocasiões, não tem o mesmo rigor no regis- que virar a TV para todo mundo assistir.”
tro do consumo alimentar na memória. ”E eu gosto de comer vendo televisão. Eu gos-
As lanchonetes, principalmente os fast food to, eu gosto muito de ver TV, comendo. Mesmo
esvaziaram substancialmente os rituais asso- na cozinha, eu gosto de ficar ouvindo.”
ciados à alimentação. A própria variedade de ”Às vezes, está assistindo televisão mas está
utensílios diminuiu em função das prepara- discutindo alguma coisa. Então a televisão fica
ções. Bastante simplificadas pela textura, ta- ligada, mas só pelo fato de estar ligada. Você
manho, forma, as preparações mantêm a mes- não fica entretido, comendo e entretido na tele-
ma concentração de nutrientes e gasta-se me- visão.”
nos tempo para sua ingestão. Pelas embalagens Apenas dois dos entrevistados costumam
descartáveis, é com facilidade que uma refei- comer sem a presença da televisão e com a me-
ção se desloca para outros locais, para uma sa posta.

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PRÁTICAS E COMPORTAMENTO ALIMENTAR NO MEIO URBANO 463

Ao contrário dos dias de semana, o domin- A principal refeição feita em casa, durante
go diferencia-se por ter o almoço ritualizado, a semana, é o jantar. Durante a semana o arroz
caracterizando o encontro familiar em torno e o feijão são os componentes básicos da ali-
da mesa. É raro freqüentar a casa de amigos mentação, sendo o cardápio variado principal-
para comer. Normalmente as refeições em con- mente pelos vegetais e num segundo plano pe-
junto são entre parentes e, mesmo assim, entre las preparações à base de carne, já que não são
os mais próximos. todos os que a consomem regularmente.
Áries & Duby (1992) também fazem alusões O desjejum consiste basicamente do con-
a mudanças no ritual da alimentação, tendo sumo de café e para poucos representa uma re-
como objeto de observação principalmente a feição mais suculenta.
sociedade francesa e a americana. “Antigamen- ”De manhã, saio de casa e tomo um café só
te os rituais alimentares imprimiam o ritmo à pra fumar. Café puro. Eu não gosto de café com
vida familiar. Hoje a alimentação está cada vez leite.”.
mais submetida às imposições do trabalho (p. ”De manhã é um copo de café com leite e só,
320)”. (...) “...a refeição coletiva, moderna, in- não passa mais nada”.
dustrial, dietética, barata, compromete a co- ”Eu não tomo café da manhã, nada”.
mensalidade: na hora do intervalo, no restau- ”Tomo só um golinho de café, sem pão, sem
rante da empresa ou em outro lugar com os nada”.
‘tickets-restaurantes’, a pessoa almoça depres- Em contrapartida, os poucos que mencio-
sa, cercada pelos colegas, mas não com eles. nam comer nesta refeição relatam:
Não se tem tempo, visto que uma parte deste ” Me alimento bem de manhã, tomo leite,
intervalo será utilizada nas caminhadas. Tem- café, bolacha, como uma fruta sempre quando
po curto de consumo. Tempo curto de prepara- tem...”.
ção (p. 320)”. ”Eu geralmente como alguma coisa, como
Observando informações sobre consumo bolacha e mais um suco”.
alimentar encontradas nos relatos dos entre- ”Eu sou acostumado a comer fruta, suco de
vistados, principalmente as grandes refeições laranja, comer pão com alguma coisa...”
são ressaltadas. Alguns comentários sobre pe- No almoço de sábado as preparações são
tiscos consumidos com cerveja, doces, salgadi- similares às dos dias de semana, assinaladas
nhos, biscoitos, consumidos durante o dia, de- basicamente pelo arroz e feijão. Como o sába-
latam outras faces do consumo alimentar que do é dedicado a atividades domésticas como
foram explicitadas somente e quando solicita- compras de gêneros alimentícios, limpeza da
das informações adicionais sobre ingestão ali- casa, organização das roupas, entre outras, o
mentar vinculada a essas outras situações, almoço não é uma refeição de destaque. O sá-
principalmente de lazer e intervalos entre as bado à noite inaugura o fim de semana para o
grandes refeições. descanso, em geral com uma “pizza” ou com
O lazer está associado à comida, à bebida e um lanche feito em casa.
à dança, componentes universais da noção de Domingo, ao contrário, é o dia dedicado a
“festa”, categoria próxima da idéia de lazer, saciar o apetite com preparações culinárias di-
prazer, gozo. Na sociedade industrial moderna, ferenciadas.
tais práticas, continuam tendo, para todas as ”Domingo, pra mim, se não tiver macarrão
classes sociais, uma conotação de entreteni- não é domingo. Pode ter arroz, feijão, pode ter o
mento e sociabilidade (Forjaz, 1988). Acredita- que tiver, mas tem que ter o macarrão.”
mos que, dependendo da ritualização em tor- ”Gosto de massa, gosto de pizza ao sábado.”
no da mesa, como por exemplo em comemora- ”De sábado, comer uma pizzinha, e domin-
ções como casamentos, aniversários, Natal, en- go, aquela macarronada com porpeta, bracho-
tre outros, a conscientização do consumo ali- la.”
mentar é orientada diferencialmente como re- ”Domingo se não tiver uma macarronada,
sultado dos significantes que acompanham tais um nhoque, não tem almoço.”
situações. Um exemplo é a cerveja, consumida ”Domingo é geralmente macarrão, risoto,
na sexta-feira no final do expediente, acompa- um frango, uma carne, uma maionese, uma la-
nhada por petiscos, os quais só foram mencio- sanha, às vezes faço cuscuz.”
nados mediante pergunta sobre o assunto. ”Final de semana é aquele tal negócio, ma-
Quando questionados sobre o que comem, carronada, uma lasanha, um arroz de forno, às
principalmente o almoço e o jantar foram des- vezes feijoada.”
critos e, com menos freqüência, o desjejum. O ”Às vezes de domingo a gente varia, é peixe,
que é ingerido nos intervalos ou ocasionalmen- ou macarronada, mas domingo geralmente é
te não foi mencionado espontaneamente. macarronada”.

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”A única coisa que eu como fora mesmo, to- sião, espaço social, cultural e político e, ao con-
do sábado, é pizza, não tem jeito.” trário, a situação que provoca a resistência ao
”O pessoal não faz muita comida de sábado nordestino em São Paulo. Na medida em que a
à noite, aí vai numa pizzaria...” tendência atual da economia é a internaciona-
Se durante os dias de semana o arroz e o lização, a hegemonia econômica reproduz a
feijão são os pratos básicos, nos fins de semana desnacionalização associada à importação de
predomina o paladar italiano. A macarronada outra referência cultural. A tendência massifi-
tem gosto de domingo. Algumas vezes o ma- cante no padrão alimentar, explica a notável
carrão acompanha o arroz e o feijão, aqui co- absorção dos costumes alimentares norte-
mo “mistura” e não como “prato principal”. americanos. A presença de lanchonetes como
Cascudo (1983) faz esse mesmo comentário so- Mc Donald’s, Bob’s, a Pizza Hut, bem como a
bre a associação do macarrão concorrendo entrada do hambúrguer nos cardápios das lan-
com outros pratos de nossa culinária e sua di- chonetes, são exemplos da difusão de outro
fusão no gosto coletivo. padrão alimentar. Por outro lado, restaurantes
É no terreno dos costumes alimentares que que servem o “prato do dia” e dispõem de car-
apreciamos as mesclas culturais que permitem dápio semanal atendem as diferenças étnicas
identificarmos uma dieta tipicamente paulis- incorporadas à cozinha brasileira em função
tana e, ao mesmo tempo, uma composição de da imigração (virado à paulista, dobradinha,
pratos com as mais variadas influências que se nhoque, feijoada, etc.).
traduz, no caso de São Paulo, por um cosmo- Dispostos e difusos na cidade de São Paulo,
politismo no plano alimentar. A imigração vemos também restaurantes de comida japo-
acrescentou novos paladares e os incorporou nesa, indiana, italiana, francesa, russa, alemã,
aos nossos hábitos de tal modo que, como vi- entre outras. São Paulo destaca-se, como diz
mos no caso da macarronada de domingo, ou Weffort (1984), por ser a cidade que mais reúne
da pizza no sábado à noite, podemos assumir, amostras expressivas de todas as regiões do
na nossa identidade alimentar, esse traço ita- país. Através das culinárias típicas se confir-
liano. Além dos restaurantes típicos, instância mam estas presenças: churrascarias gaúchas,
formal de preservação de valores culinários de restaurantes de comida típica baiana, capixa-
outras culturas, podemos assimilar fisiologica- ba, mineira, nortista e nordestina.
mente os movimentos migratórios, nas barra- O gosto é uma manifestação de identidade
cas das baianas da feira de artesanato da Praça cultural. No caso dos filhos de imigrantes, nas-
da República, nas barracas de comida chinesa cidos no Brasil ou brasileiros casados com imi-
e japonesa do bairro da Liberdade, nos quibes grantes, é interessante observar como a apre-
e esfihas das lanchonetes espalhadas pela ci- ciação de ambos os paladares vai se acomo-
dade e nas especialidades sírio-libanesas dos dando à rotina alimentar.
arredores do Parque Dom Pedro. ”Eu sempre, como um bom filho de italiano,
Os cardápios encontrados no centro da ci- gostei de comer bem.(...) Domingo aquela ma-
dade de São Paulo são caracterizados por duas carronada com porpeta, brachola...(...) Italiano
tendências simultâneas: a homogeneidade e a quinta feira é tradicional o macarrão (...) O que
heterogeneidade, categorias peculiares às con- eu mais gosto de comer é arroz, feijão, bife ace-
centrações urbanas (Wirth,1987). Determinam bolado, purê de batata e salada que não pode
tais tendências, os fluxos humanos das migra- faltar. Filho de italiano deveria gostar mais de
ções e imigrações aos quais a cidade esteve su- comida italiana, mas o que eu mais gosto é es-
jeita ao longo de sua história, as influências sa.”
econômicas internas e externas, determinan- ”A única coisa que eu vario em casa é fazer
tes conjunturais das ofertas e de disponibilida- um quibe, assim, de vez em quando, uma coa-
de de alimentos que, no decorrer do tempo, de- lhada, uma coalhada síria. Eu fui criado com
linearam o ecletismo dos costumes alimenta- comida árabe, assim, né.”
res do paulistano. Paralelamente, há uma “ten- ”O meu filho, ele é assim, apesar de ser filho
dência niveladora” decorrente dessa alta con- de estrangeiro, ele puxou meu pai que é brasi-
centração de diversidades, que faz parte do leiro. (...) É pôr feijão em tudo. Seja qual for o
processo de despersonalização. prato, estrogonofe, seja o que for, tem que ter fei-
A característica social e cultural da cidade jão. (...) A minha mãe é descendente de italiano,
vai sendo contruída através das migrações. então era aquela macarronada que ela fazia. Ti-
Weffort (1984) problematiza a questão migra- nha que ser, se ela não fizesse, não era domingo.
tória, em função do potencial de absorção so- Na minha casa é o contrário, sábado e domingo
cial, cultural e política, exemplifica o caso da é arroz e feijão.(...) ...A minha família puxou
permeabilidade ao italiano, por haver, na oca- mais pro lado italiano, mesmo as minhas ir-

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PRÁTICAS E COMPORTAMENTO ALIMENTAR NO MEIO URBANO 465

mãs, as duas são casadas com italianos, então é tro, pela oferta de locais para fazer a refeição,
só massa.” vão determinar o limite de possibilidades de
”Acho que até os 7 anos dá pra modificar a que o sujeito dispõe para se alimentar no cen-
criança, depois dos 7 anos o hábito fica arraiga- tro da cidade e sobre as quais, entre outros as-
do. Eu gosto de massa, pizza aos sábados. Então pectos, irá construir suas representações so-
pra mim eu vejo que a dificuldade que eu tenho, ciais. O lanche é opção quando há limites fi-
parece que você sente falta desse tipo de alimen- nanceiros.
to. Como sou descendente de italiano, a gente Observamos uma variedade de tipos de
está acostumado a comer massa desde crianca, sanduíches: aqueles baseados no padrão nor-
eu gosto, mas eu sei que é errado pro meu orga- te-americano, tendo como base o hambúrguer;
nismo, não faz bem. (...) A única extravagância os mais tradicionais à base de frios como o
que eu faço é massa né, de fim de semana que eu “bauru”, o “americano”, o “misto quente”; os
gosto mais, de sábado à noite, pizza, e macarrão “beirutes”, feitos à base de pão árabe; o “ca-
domingo, na casa da mama.” (vegetariano) chorro-quente” em diferentes versões, entre
Já, nestes outros exemplos, pode-se notar a outros. Os salgadinhos não são considerados
identidade com o paladar nacional e a força da lanches, apesar de serem também uma opção
base da nossa dieta, o arroz e feijão. para a falta de tempo e de dinheiro. Os salgadi-
”Eu não sei comer sem feijão. Arroz e feijão nhos mais consumidos são a coxinha, esfiha e
pra mim é vital, sei lá, é coisa de moleque, vício o quibe.
de criança.” Na região delimitada para este estudo, há as
”Eu não como sem feijão, se eu comer sem lanchonetes das redes Mc Donald’s, Pizza Hut
feijão, eu me sinto fraca, tem que ter arroz e fei- e Bob’s. Apareceram nas falas também as lojas
jão”. da rede Well’s, Well’s Burguer, que foram lem-
”Só gosto de coisa bem brasileira mesmo, na- bradas por um dos entrevistados por estarem
da diferente. A maioria das vezes é arroz e feijão”. próximas ao antigo local de trabalho.
Segundo Candido (1987), a apreciação da A impressão é que essas lanchonetes estão
comida sólida deriva da necessidade de ter a acima das suspeitas que pairam sobre as de-
“barriga cheia”. A “comida saborosa” designa mais. Suspeitas de qualquer tipo: sobre a higie-
comida sólida e, de preferência, a carne. No ne, a qualidade, etc. Algumas características
meio urbano, a preferência pela comida mais desse tipo de estabelecimento foram aponta-
calórica concentra-se nas classes sociais para das como vantajosas ...”fast food é tudo auto-
as quais a abundância representa uma valor de mático, ninguém mexe”. Num paralelo com o
ascensão e entre trabalhadores braçais (Mar- que ocorre com a moda no vestuário, os fast
tins et al.; 1994; Zaluar, 1988). food importados são as grifes mais valorizadas,
Tal como é percebida pela população estu- como podemos observar nestes comentários:
dada, a refeição tem o caráter de reposição “Por aqui é tudo lugar para você comer em pé
substancial de energia, ao contrário do lanche ou fast food. No caso de fast food, alguns de
que é caracterizado como uma alternativa in- marca, Mc Donald’s, Pizza Hut, Bob’s, eles dão
capaz de atender às necessidades. mesinha pra comer. Mas a maioria, esses bote-
”Os lanches são gostosos, nutritivos, mas quinhos do tipo esquininha, ou aqueles compri-
acho que é só a nível de enganar na hora, acho dinhos que no máximo você fica sentado numa
que não chega a sustentar legal.” banquetinha, um do lado do outro, com espaço
”Se eu vir que o ticket não vai dar pro mês pra você comer, comer um lanche.”
todo, eu paro de comer e vou comer na lancho- Mesmo quando desvalorizados, os lanches
nete”. das redes de lanchonetes são enquadrados
”O sanduíche não substitui minha refeição, com deferência, como observamos nesta fala:
é um complemento alimentar.” ” É muito difícil eu comer lanche, nem no Mc
” São vinte dias úteis de trabalho, quinze Donald’s.”
dias você se alimenta bem e cinco você toma um Também para aqueles que se intitulam ve-
lanche ou alguma coisa assim.” getarianos (dois de nossos entrevistados), há
”A lanchonete é uma opção barata. Quando uma relação mais permissiva e condescenden-
o vale não vai dar para o mês todo, como lan- te com este tipo de lanchonete, no caso o Mc
che” ou “ ...Quando a grana tá curta e não dá Donald’s. Entre os comentários a respeito dos
para almoçar.” lanches em geral, o Mc Donald’s é destacado
”Acho que o preço (do lanche) é quase idên- com certa permissividade:
tico e a refeição sustenta mais.” ”Acho que o lanche não tem nada de nutri-
As condições disponíveis, formadas, de um ção, mesmo esses Mc Donald’s da vida, também
lado, pelas possibilidades financeiras e, de ou- acho que não trazem nada de nutrição.”

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466 GARCIA, R. W. D.

O outro vegetariano referindo-se aos lan- gados a certas práticas que nos levaram a abo-
ches diz: minar o trincho do animal morto à mesa, hábi-
”Bom, eu peço normalmente assim, filé de to anteriormente valorizado, que para nós está
frango, alguma coisa nesse sentido. No Mc associado à lembrança do sacrifício do animal,
Donald’ eu como às vezes, até bastante, aí eu de tal forma que hoje, as preparações à base de
já..., eu já não..., aquela carne não tem muito carne são tão disfarçadas que quase não lem-
gosto né, eu já não... porque lá eu como todos os bramos da sua origem. O hambúrguer é um
tipos , todos os que tem lá eu gosto. Apesar do exemplo plausível dessa mudança.
hambúrguer ser feito de carne e eu não gostar Tagle (1988) explica o êxito desse tipo de
de carne, aquela eu como porquê não tem mui- alimento pela facilidade de acesso de horário,
to gosto de carne né, é uma carne meia... não sei rapidez de serviço, preços razoáveis e pela pa-
como é feito mas eu como.” dronização e regularidade do produto que evi-
Em tais reticências parece residir um espa- ta surpresas. A própria variação de sabores se
ço permissivo onde os recursos que poderiam dá a partir de uma mesma matéria-prima onde
ter sido utilizados para classificar, por exem- os aditivos promovem a diferenciação estrita
plo, o hambúrguer enquanto carne, não predo- de sabores.
minaram. Imperou o nome da lanchonete co-
mo uma entidade que engloba o todo – o Mc
Donald’s. A representação social constitui-se Conclusão
sobre a entidade Mc Donald’s que se sobrepõe
aos tipos de lanches. Sendo o núcleo de preocupação o comporta-
Podemos supor que haja uma sobreposição mento alimentar, conhecer as representações
da marca sobre o produto. Os elementos que simbólicas e os costumes envolvidos na ali-
compõem a marca, o rótulo, superam o con- mentação aponta para a compreensão de co-
teúdo; e o recurso que seria utilizado para qua- mo se dá o elo de embricamento de questões
lificar o hambúrguer de qualquer lanchonete sócio-culturais e psicológicas consagradas no
passa a ser secundário. O exemplo acima de ato de alimentar-se. Através das representa-
vegetariano que come o hambúrguer do Mc ções sociais é concebida a idéia de alimenta-
Donald’s demonstra que a possibilidade de ção enquanto veículo de configurações concre-
classificar o hambúrguer enquanto carne pas- tas e imaginárias construídas pelo pensamento
sou para um segundo plano frente à marca. Po- social, adaptadas e readaptadas às condições
demos ter aqui indícios para a compreensão de disponíveis, mas sobretudo experimentadas,
alguns elementos pertinentes à rápida incor- com um decodificador que, tal como uma car-
poração de certos hábitos alimentares, como é ga genética, é sustentado por matrizes que pre-
o caso da permeabilidade que o costume ali- servam a história social e individual do sujeito,
mentar norte-americano tem tido no nosso através do paladar.
país, considerando como pano de fundo o po- Outro aspecto do comportamento alimen-
der exercido pela pressão econômica do capi- tar, facilitado pelo estudo das representações
tal internacional, impondo suas mercadorias sociais, é a flexibilidade de sua estrutura. Cons-
associadas a hábitos e imagens, absorvidas e, tatamos como um mesmo discurso se amolda
mais especificamente, digeridas com esses no- a diferentes situações, o que nos permite con-
vos produtos. Harvey (1993), referindo-se à im- cluir, através da análise dos discursos sobre ali-
portância da imagem para o produto, diz ser mentação, que há espaços para atitudes flexí-
ela quem promove associações como “respei- veis, orientadas pelas circunstâncias. Esta fle-
tabilidade”, “qualidade”, “prestígio”, “confiabili- xibilidade coloca em questão a objetividade es-
dade”, entre outros. Naquilo que observamos, perada das informações sobre consumo ali-
especificamente relativo à marca Mc Donald’s, mentar.
tais associações parecem superar o próprio O meio urbano afeta a estrutura da alimen-
produto. tação e provoca uma reorganização de valores
A tentativa de descrever e diferenciar a car- e práticas que, certamente, terão implicações
ne do hambúrguer do Mc Donald’s, por “não no padrão alimentar. As pressões exercidas pe-
ter gosto de carne” ou ser “uma carne meia...” lo meio urbano delineiam novas práticas que
mascara sua origem. Elias (1990) assinala mu- vão sendo incorporadas com resistência pelos
danças nas práticas e sentimentos vinculados à comensais urbanos.
forma de servir alimentos à mesa, como marcas
do processo civilizatório. Considerando o pe-
ríodo que vai da Idade Média até os dias atuais,
houve mudanças no padrão de sentimentos li-

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PRÁTICAS E COMPORTAMENTO ALIMENTAR NO MEIO URBANO 467

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