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das ilustragées Fotografia de Gustavo Politi. 28 Acervo do Museu de Arqucologia e Exnologia da Univer- ile de Sio Paulo/forografia de Wagner Souza ¢ Silva. [pb Ilustragio de Robert Schomburgk, Waru Ticaba, a Wa- pisiars Village, 1841 54: Fotografia do autor. 57-8: Acero do Museu de Arquenlogiae Etnologia da Univer Sida de Séo Paul fotografia de Wagner Souza e Silva. 1.60: Adaprado de Howells, William. Back of History. Nova York: Doubleday, 1954, p.298. 1.63a: Acervo do Instituto Histbrico ¢ Geogréfico do Amazo- haw forografiade Fernando Chaves .63b: Acero do Museu de Arqueologia Emologa da Universidade de Sto Paulo/fo- ‘ografia de Wagner Sourae Silva. .65: Desenho de Marcos Brito. .67: Acervo do Museu das Culturasdo Mundo, Gotemburgo, Suécia, 1.68: Acervo do Museu de Arqueologia e Etnologia da Univer- sidade de So Paulo/fotografia de Fernando Chaves. 1.69: Ilustragao de Alexandre Rodrigues Ferreira, Viagem flo- sWfica pelascapitanias do Grio Pard, Rio Negro, Mato Groso ¢ Cuiabd, 1783-1792. 1.70: Acervo do Muscu de Arqueologia ¢ Etnologia da Univer- sidade de Sto Paulo/fotografias de Fernando Chaves. 1.71: Acervo do Museu das Culeuras do Mundo, Gotemburgo, Suécia Introdugao, ‘A Amazénia 6, para muitos, uma das dltimas fronteiras Jnexploradas do planeta, um exemplo de navureza pri- ‘mordial, intocada pela ago humana desde o inicio dos tempos. Durante o governo militar, no inicio do mais recente processo de colonizagio da regio, cunhou-se sé um slogan para representar essa idéia: a de que a ‘Amaz6nia seria uma terra sem gente para uma gente yem terra. A arqueologia mostra que essa ¢ uma falsa premissa. Ao examinar mapas de distribuigdo das terras indigenas na Amaz6nia contemporanea e comparé-los com mapas de distribuigdo de sitios arqueolégicos, hnota-se que a ocorréncia destes é mais ampla que a daquelas. Atualmente, a maior parte das terras indige- nas de grandes dimensdes esté localizada longe da calha principal dos tios Amazonas e Solim@es, em Areas como ts bacias do alto rio Negro e do alto rio Xingu. Junto 10s rios Amazonas e Solim@es hé, por exemplo, apenas das grandes extens6es de terras indigenas, respectiva- nente as dos indios Sateré-Maué e as dos indios una. Fora delas, porém, em locais atualmente deso- “7 OUANDO GOES Neves ‘ocupados por populagdes caboclas e mes- cidades, é comum nas margens desses rios a de sitios arqueolégicos, muitos deles de gran- Isso indica que, no passado, essas reas eram nilas por povos indigenas, embora néo 0 sejam no te, De meados do século XVI ao inicio do XVII, quan- «do 0s primeiros europeus visicaram ou seestabeleceram, nna Amaz6nia, era comum a referéncia & presenga de grandes aldeias, algumas ocupadas por milhares de pes- 404s, integradas em amplas redes regionais de comeércio ¢ em federagées politicas regionais. J& no inicio do século XVIIL, tais referéncias desaparecem dos registros hist6ricos. Iso esté diretamente ligado 20 processo de diminuigio populacional resultante do inicio da colo- nizagdo européia da Amaz6nia, conseqiiéncia da trans- missio de doengas, da guerra e da escravido. Assim, a aparente baixa densidade demogréfica verificada entre 0 povos indigenas da Amazénia contemporinea pro vavelmente resulta mais das vicissitudes da hiseéria colonial e do ciclo da borracha na regiéo do que pro priamente de alguma inaptidio ecoldgica inerente. _, _ Atualmente, o contexto politico e ecolégico da Ama- zbnia é complexo: o desmatamento aumenta a niveis nunca vistos, 0s conflitos pela posse dos recursos natu- rais s4o cada vez maiores e cidades como Manaus ¢ Belém crescem a um ritmo vertiginoso, com as tipicas conseqiiéncias da urbanizagio descontrolada. Proje- |ARQUEDLOGIA DK AMAZONIA las — feitas por cientistas especializados apre- uum quadro de redugio dréstica da cobertura tal no nem to longinquo ano 2030. Todos esses Jemas mostram que 0 Estado brasileiro nfo sabe ito © que fazer com a Amaz6nia, embora a neces- dle de ages seja premente. este livro, procurarei mostrar que parte dos pro- us sensiveis no que se refere & condugio e a dis- Who — por parte de cidadios organizados, agentes snamentais, cientistas, politicos e intelectuais — tratégias voltadas para a ocupacio ¢ 0 desenvolvi- o sustentavel da Amaz6nia esté diretamente liga- 40 completo desconhecimento, ou até mesmo de- weresse, com relacio & milenar histéria de ocupagio. ina da regio. Proponho aqui que um olhar vol- lo para o passado remoto pode, no minimo, nos er parimetros que possam orientar, de maneira pla, alguns principios de ado no presente. Fim primeiro lugar, é importance reconhecer que a smazdnica era densamente ocupada por diferen- povos indigenas no final do século XV, época do io da colonizagio européia nas Américas. Confor- vyeremos adiante, essa ocupagio nfo era uniforme, Jando no tempo e no espago. Os modos de vida ses povos eram também diversficados: alguns gru- os estavam organizados em sociedades hierarquizadas we viviam em assentamentos que hoje chamarfamos oe ‘ide eidades, como pode ter sido 0 caso dos indios “Tapajé, enquanto outros eram ndmades que tinham ‘its economias bascadas na caca, na pesca e na coleta. Him segundo lugar, é também fundamental perceber {que 08 povos que viviam na Amazénia antes do inicio dda colonizagio curopéia eram ancestrais dos povos Indigenas que ainda ocupam a regio, apesar do grande processo de reducio demogrifica, deslocamento geo- {phifico e mudanga cultural ocorrido nos tiltimos 500 anos. Nesse sentido, a arqueologia da Amazénia é, de tudo, uma espécie de Histéria Antiga dos povos indigenas da regido. Em terceiro lugar, é neces- Sirio reconhecer que a ocupagio humana pré-colonial, de certo modo, guia alguns dos processos de ocupacio no presente. Freqiientemente, cidades contempora- neas estfo localizadas sobre sitios arqueol6gicos, como €0 caso de Santarém, Manaus, Manacapuru ¢ Tefé, Nas éreas rurais, ocorre © mesmo fendmeno. Finalmente, as hipéteses aqui enunciadas levam a que se reconsiderem as idéias de “tltima fronteira” ou “natureza intocada”. A Amazénia é ocupada hi mais de 10,000 anos, em alguns casos por populagées de milhares de pessoas. E de se esperar, portanto, que a floresta que hoje recobre muitos sitios arqueolégicos tenha, além de uma histéria narural, também uma hist6ria cultural. Assim sendo, é impossivel entender aspectos da histéria natural da Amazénia sem conside- rar a influéncia das populagées humanas, do mesmo “10 /ARQUEOLOGIA DA AMAZONIA 4 que nio se pode entender a histéria dos povos jhicos sem considerar também as relagdes que Jpovos estabeleceram com a natureza. pesquisas arqueoldgicas na Amazonia tém uma igio centenatia, iniciada por pioneiros brasileiros Jrangeiros na segunda metade do século XIX € juizada inicialmente a partir de dois centros princi- J 0 Museu Nacional, no Rio de Janeiro, e 0 Museu. Jucnse Emilio Goeldi, em Belém. Paradoxalmente, sur cessa tradigéo, existem ainda grandes lacunas de HNhecimento, Com excecso do Pari e do Amapd, julos ou regides inteiras, como Acre, Roraima, Ma- ho c norte do Mato Grosso, sfo virtualmente Kconhecidos. Em outros estados, como Rondénia, Jiuvonas e Tocantins, hé mais informagbes dispont- Jj, mas mesmo assim insuficientes ante as suas gran- is dimensoes. © mesmo vale para os outros palses Juzinicos, ja que a pesquisa nesses locais ¢ aind: ¢ incipiente. Sendo assim, as informagbes aqui Uipresencadas rerio necessariamente cardter hiporético, provavel que sejam modificadas com o avango das Pesquisas na regio. Fste livro é bascado em minha prépria experiéncia ile pesquisa no estado do Amazonas ¢ também em JnlormagSes produzidas pelos poucos arquedlogos que “Wubalham na regigo. Por Amazénia, entende-se aqui a © thamada Amazénia Legal — os estados de Rondénia, Acre, Amazonas, Roraima, Amapé, Pard e partes do We EDUARDO GOES neves, fo, ‘Tocantins e Mato Grosso —, as porgées mnicas de paises como Bolivia, Peru, Equador, Colombia, Venezuela ¢, finalmente, os pafses ou terri {Grios fronteirigos com o Brasil, mas que tecnicamente ‘fo pertencem & bacia amazdnica, tais como Guiana, Suriname ¢ Guiana Francesa, O meio fisico Qualquer descrigéo do meio fisico na Amazénia seré cheia de superlatives. No Brasil, a bacia amazbnica ‘ocupa mais de 40% do territério nacional. Na América do Sul, tem uma drea de sete milhées de quilémetros quadrados, quase igual & de todo o continente europeu. O rio Amazonas despeja, em média, 200.000m/seg de gua ¢ sedimentos no oceano Atlintico, © que repre- senta quase 1/5 do total de agua doce despejada nos ‘oceanos e mares por todos os rios da Terra. As nascen- tes do Amazonas e de seus afluentes estio localizadas jem us reas principais: a cordilheira dos Andes, a este, o planalto das Guianas, 20 norte, ¢ o planalto Central, a0 sul. No caso do rio Amazonas, as nascentes estdo nos Andes centrais, hoje territrio peruano. Os Andes sio uma formagio geolégica recente, cujo processo de soerguimento se encerrou hé “apenas” seis milhdes de anos, muito pouco quando se considera a oa AROUEOLOGIA DA AMAZONIA de mais de quatro bilhes de anos do planeta. tanhas da cordilheira sofrem um processo ero- enso, causado pelo regime de chuvas e pelas ls anuais de temperatura, que levam ao derreti- ddas geleiras no vero e a0 desbarrancamento dos 105 adjacentes as éreas de cabeceiras dos rios que tiginam. Por outro lado, como conseqiiéncia de juventude geol6gica, os sedimentos transportados irosio sAo bastante ricos em nutrientes. Seu trans- pelos rios ¢ conseqiiente deposigao em areas mais leva A fertilizacio destas a cada cheia anual, em pprocesso semelhante ao verificado, por exemplo, io Nilo. Em uma cléssica tipologia, proposta ainda século XIX, 0s ris amaz6nicos que nascem nos les sio conhecidos como “de Agua branca”, devido loragao barrenta de suas dguas. J4 os rios que tém nascentes no planalto das Guianas ou no planalto sytral, como por exemplo os rios Negro ¢ Xingu, ctivamente, tém suas reas de cabeceiras em re- jes geologicamente mais antigas. Como conseqiién- hiio teazem carga sedimentar rica em nutrientes, 0 faz.com que nio fertilizem suas planicies de inun- fio. Na mesma tipologia, tais rios sio conhecidos sno “de dguas claras” e “de dguas pretas”, dependen- dda sua coloragio. Rios de 4guas pretas, como 0 rio jogro, io normalmente os mais pobresem nutrientes, sar de apresentarem alta biodiversidade. 13+ EDUARDO GOES Neves tha Amaz6nia grande variagdo anual no regime vas € nos nfveis dos rios, visivel em pelo menos stages bem marcadas — uma época de cheia e de seca — que mudam de regio a regio. Na Ainazbnia central, por exemplo, o tempo de seca vai dle julho a setembro, quando a quantidade de chuva é significativamente menor. Nessa época, 0 nivel das Aguas diminui, até atingir seu minimo no més de novembro. Jé no alto Amazonas, o pico da seca ocorre antes, no més de maio, As variagdes nos niveis de égua los rios tém conseqiiéncias importantes para as socie- dades da Amaz6nia. E na vazante, quando o nivel é ais baixo, que.a pesca é mais produtiva, uma vez.que ‘© menor volume de Agua reduz o espaco de circulagio dos peixes. E também na época da seca que as rocas so derrubadas, queimadas preparadas para o cultivo, Na época das cheias, por outro lado, a pesca ¢ prejudicada: além de ser 0 periodo de desova e de engorda, 0 alaga- mento das virzeas e da floresta, formando igapés, cria amplas teas inundadas por onde se espalham os pei- es, 0 que torna sua captura mais dificil. Quem tem a oportunidade de sobrevoar a floresta amazdnica deve imaginar que os solos da regio sio bastante fértes, j que sustentam uma floresta densa € alta, Essa imipressio é, no entanto, enganosa. Os solos famazbnicos so normalmente bastante pobres, com fio de algumas dreas como as planicies dos rios de jas brancas ou outros locais especificas onde ocor- he /ARQUEOLOGIA DA AMAZONUA ‘além de ocupar OUARDO GOES nevEs Imanchas de solos mais férteis, como ao longo ‘Transamaz6nica, préximo A cidade de Altami no Pari. Essa baixa fertlidade é explicada pela his via geoldgica da regido. Com excecio dos Andes, q ‘ilo uma formagio recente, a bacia amazbnica est implantada sobre areas geologicamente antigas, suje- as hs condig6es extremas dos climas tropicais. Sob essas. ‘condigées, os solos so expostos anualmente a chuvas tortenciais, bem como & evaporagio causada pelo sol equatorial. Em conseqiiéncia, tornam-se dcidos e inca~ pazes de manter seus nutrientes, em um processo co nhecido como lixiviago. Como explicar, entZo, 0 de- senvolvimento da floresta? Isso ocorre por causa de uma cficiente reciclagem, permitindo que boa parte dos nutrientes que compéem a biomassa, produzida pela floresta e depositada sobre seu leito — folhas e troncos: caidos, por exemplo—, seja decomposta e reabsorvida. ‘com aajuda de micortizas, fungos que vivem nas rafzes das plantas. A reciclagem eficiente faz.com que apenas uma pequena quantidade dos nutrientes seja absorvida pelo solo ¢, mesmo assim, sé em suas camadas mais superficiais. Por isso, € comum que, em reas desma- tadas, a floresta demore muito a se recompor: 0 des- matamento interrompe a ciclagem de nutrientes, em- pobrecendo os solos, além de tornd-los expastos & chuva, que favorece a erosao ea perda adicional dos eventuais trientes que ainda restavam. 16+ ‘ARQUEDLOGIA Dm AMAZONIA uma tipica floresta madura isto é, sem desma- ilo recente, seja por agentes naturais ou humanos, lum que a maior parte da biomassa esteja locali- tna copa das drvores ¢ néo no chao. Tal padrio ¢ ante para o entendimento da ocupacio huma- Amazénia, ao contrério das savanas africanas, é num a ocorréncia de espécies de animais cacéveis tandem em bando ¢ vivam na superficie do cha jaior parte dos animais preferidos por grupos que sn de caca, pesca e coleta habita a copa das drvores. los, antas, pacas, capivaras las so presas valiosas, mas bém animais solitdrios & comportamento territorial ivamente imprevisivel, 0 dificultaa caga. As excegbes 1s porcos-do-mato, que an- ‘em grandes bandos em al- ra pela mata, mas também grande e imprevisivel mo- idade, O padio de distribui- ddos animais terrestres, soli- jos ou de comportamento iprevisivel explica por que colombiana tém alta mok \cacos 20. presas privilegia- por cagadores da Amaz6nia, de, permanecendo poucos dias ‘no mesmo local. Atualmente, seu modo de vida encontra-se ameagado pela guerra civil no pals. EDUARDO GOES Neves, wes ¢ com comportamento territorial m: facilita sua identificagao e caga em quanti produtivas. E também por tal razio que a & por exceléncia, a arma preferida de mui {grupos cacadores ¢ coletores. Suas grandes dis (0 fato de ser silenciosa permitem a captura de {que vivem no alto das drvores, Em contraste com o incerto ¢ imprevisivel de distribuigéo de animais terrestres, 0s animais aq) so uma fonte mais previsfvel e abundante recursos alimentares. Dentre eles hi, além da im vvariedade de peixes, mamiferos aquiticos — como peixe-boi —, répteis e aves. As dreas ribeirinhas sio, portanto, mais ricas e previsiveis em recursos populagdes humanas do que as de terra firme. Tal fato pode explicar 0 padrio pelo qual sitios localizados junto, aos grandes rios tendem a ser maiores e mais densos do, que os outros. Para efeito de estudo da ocupagéo humana, a bacia amazbnica pode ser dividida em quatro grandes com- partimentos de diferentes tamanhos, distribuidos, gros- so modo, de oeste para leste. O primeiro comparti- mento é formado por uma longa faixa, orientada do sul para o norte, que segue paralela a cordilhcira dos Andes, na Bolivia, Peru, Equador ¢ Colémbia, ¢ inclui reas de cabeceiras do préprio rio Amazonas ¢ de alguns de seus principais afluentes. © segundo com- partimento éformado pelas reas ribeirinhase alagadas +18. ‘ARQUEOLOGIA DA AMAZONIA las junto aos intimeros rios, lagos ¢igarapés da 1. © terceiro compartimento, de maiores dimen- yorém menos conhecido, inclui as imensas reas sflivio, ou “de terra firme”, distribuidas por buacia. Trata-se de areas nfo alagiveis, distantes andes rios ¢, portanto, sem acesso a recursos nos em larga escala, Essas sio também as dreas vyém sofrendo o maior desmatamento desde a la de 1970. O sltimo compartimento inclui as de estuirio clitoral, incluindo, no Brasil, partes tados do Amapé, Pard e Maranhio. Trata-se de onde ha forte influéncia das variagbes ins das marés, com virios metros de amplitude, da propria variagéo anual dos niveis fluviais. .¢ compartimento foram identificados sitios com imas das cerimicas mais antigas de que se tem cia na América do Sul. Foi ali também que flores- uma das civilizagdes pré-coloniais mais conhecidas ‘Amazénia: a marajoara. Da breve discussio aqui apresentada, depreende-se ie existe uma caracter(stica subjacente ao processo de paso humana da Amazdnia: a imensa biodiversi- cali verificada. Iso se manifesta no grande ntimero espécies de plantas e animais que ocupam a floresta, ppresentando, paraas populagées humanas, um imen- banco de recursos utilizado ao longo de milénios. mesmo tempo, @ natureza sempre proveu referén- ws para as sociedades indigenas — que podem ser +19. ‘DARDO Goes Neves spor exemplo, nos ricos padrées de decora ccerimicas produzidas por diferentes grupos nia pré-colonial, em que ¢ freqiiente a rep: yentagio de seres fantdsticos compostos por fort hhumanas ¢ animais. Curiosamente, entte as socieda- des ind/genas contemporaneas, é também comum en contrar processos similares, através dos quais seres humanos estariam constantemente envolvidos em teansformages nas quais assumem identidades de ou- tos animais. Como exemplo, ha as narrativas de pajés {que se transformam em ongas ou passaros durante 0 transe xamAnico. Assim sendo, 0 mundo da natureza, para as populagées indigenas da Amaz6nia, representa no somente um grande estoque de recursos materiais a ser utilizado de diferentes formas — para alimenta- <4, construcio de habitacées, transporte, divertimen- to —, mas também uma verdadeira biblioteca de re~ feréncias, a partir da qual individuos € sociedades constroem narrativas sobre si mesmos e seus papéis no universo. A marcante biodiversidade da Amaz6nia correspon- de também uma grande sociodiversidade, que pode, por exémplo, ser aferida pela notavel quantidade de Iinguas ind{genas, de diferentes familias, ali faladas. Em termos de comparagao, todas as linguas modernas da Europa — com excegio do basco, do estoniano, do hingaro, do finlandés e das Iinguas trazidas recente- ‘mente pelos imigrantes da Asia e da Africa — perten- 20+ ARQUEOLOGIA DA AMAZONIA a uma tinica familia lingtiistica, a indo-européia. la incluem-se linguas tio diferentes como, por smplo, 0 portugués ¢ o polonés ou o alemio € 0 liano. Uma familia lingiifstica & como 0 préprio we indica, © agrupamento, no presente, de varias yyuas diferentes que tém origem comum. Isso fica 10 no caso das Iinguas neolatinas como o francés, 0 weno, 0 castelhano, 0 catalio, o portugues eo italia- 1A ébvia semelhanga entre elas deriva do fato de sm se desenvolvido a partir do latim, a lingua oficial Império Romano. As linguas neolatinas, por sua , compéem um ramo de um agrupamento mais ipo e inclusivo, o da familia indo-européia. O mes- ‘corte, nessa familia, por exemplo, com as linguas Wvas ow as germanicas. Na bacia amaz6nica, por sua vez, sfo faladas linguas pelo menos quatro grandes familias distintas — jpi-guarani, arawak, carib g¢—, sem contar imime- ‘outras familias menorese linguasisoladas. As razSes ya tamanha diversidade lingiiistca, ja reconhecida w século XIX, sio certamente histéricas e devem ser rendidas através do estudo do processo de ocupagio colonial, conforme se vers adiante. A diversidade tural e social amazénica tem também outras ma- ifestagées: alguns grupos tém uma ideologia voltada ya. a guerra, outros nio; hd sociedades nmades com snomia voltada para caga, pesca ecoleta vivendo lado ado com grupos agricultores sedentérios. Tal varia- 221+ EDUARDO GOES Neves lc, verificada no presente, também ocorria lo, conforme indicado pela arqueologia. im, ¢ incorreto projetar um tinico padrao de o: ‘nizagio social politica para as populagées pré-cc niais, como se elas vivessem todas do mesmo moi ‘Ao contritio, & medida que as pesquisas arqueolégic avangam na regio, percebe-se que a variabilidade formas de vida no passado tenha talvez sido ainda mai que a do presente. Finalmente, hé também que considerar a gran vvariabilidade geogréfica dentro da bacia amazdnica: na cobertura vegetal, na distribuigéo de espécies ani ais, na precipitagio, na fertilidade do solo, na quimi ca das éguas e na temperatura —, que tem implicagés importantes para 0 processo de ocupacio humana regido. Concluindo, percebe-se que a diversidade € a chave para o entendimento da arqueologia amazénica, Nada mais distante, portanto, de uma certa visio tra- dicional que enxerga a AmazBnia como um grande ecossistema homogéneo — seja ele um inferno verde ou um paraiso perdido — ocupado por grupos essen cialmente iguais entre si. 0 inicio da ocupagao humana ‘ocupagio humana da Amazbnia se iniciou hé pelo 11.000 anos, mas é posstvel que seja ainda mais +22. AROUEOLOGIA DA AMAZONIA Datas ao redor de 9200 a.C foram obtidas na juyio da caverna da Pedra Pintada, uma gruta lizada no atual municipio de Monte Alegre, no | Os achados mostram que esses habitantes antigos jum uma economia baseada em caga, pesca e tam- coleta de frutas, com destaque para algumas pal- nas até hoje consumidas na Amaz6nia. O fato de as cobertas em Monte Alegre terem sido feitasem uma ls nao quer dizer que os primeiros habitantes da wznia fossem “homens das cavernas”. O que ocor- que gruras e cavernas, pela prépria proceso nacural coferecem, tém melhores condigées de preservagio Inateriais, a0 contritio de sitios a céu aberto, geral- lente expostos & acto da chuva, & erosio € a outras itempéries. No extremo oposto da Amazénia, na bacia do alto io Guaporé, atual estado do Mato Grosso, outra gruta, nnhecida como Lapa do Sol, forneceu datas ainda iis antigas, de cerca de 12000 anos a.C. A escavagio i feita na década de 1970 por um arquedlogo brasi- iro, Eurico Miller, com 0 auxilio dos indios Nambi- uara, que vivem na érea, No entanto, as condigies de seservacao do sitio — que sofreu intensa.agao de cupins possivel mistura de camadas arqueolégicas — fazem om que essa data seja tomada com cautela, tornando Inecessériaarealizacio de novas escavag6esno local para confirmé-la, +23 EDUARDO GOES Neves, BID qualquer modo, diferentes parces da ji/eram ocupadas em torno de 7000 a.C. As evidé vvém de locais tio diversos como a serra dos Caras, Pari a bacia do rio Jamari, em Rondénias a regio to Caqueté (lapurd), na Colombia; o baixo rio Ne préximo a Manaus, ¢ 0 alto Orinoco, na Venezu ‘Apesar da escassez de dados, hd um padrdo emerge no que se refere ao entendimento da economia primeiros habitantes da Amazinia, Esse padrdo mos {que 0s povos tinham uma estratégia de exploracso recursos que valorizava a biodiversidade caracterist da regido, isto é, nao eram cagadores especializados ie captura de animais de grande porte, mas sim pe res, colecores e cagadores de animais pequenos. afirmacio pode parecer Sbvia, uma vez que exist ppoucas expécies de animais de grande porte na Am: fia, mas € importante considerar que, tradicionalmen: te, aarqueologia americana esteve impregnada de uma perspectiva, hoje bastante questionada, de que os pri- imciros habitantes do continente etiam sido espec zados justamente nesse tipo de captura. Por conta disso alguns autores chegaram até a propor que teria sido impossivel a ocupacao dafloresa tropical antes do advento da agricultura. Tais hipéreses gerais tém sido dlrrubadas nos tltimos anos, em grande parte gragas a informagées obtidas na América do Sul. Els mostram, | ‘1 primeiro lugar, que, hi cerca de 11.000 anos, havia ‘no continente populagées com diferentes tipos de eco- ‘AnaUEOLOGIA Om ANAZONNA y algumas eram especializadas na exploragio de marinhos; outras, como na Amazénia, tinham snias diversificadas; enquanto outras ainda eram llizadas na caga. Os dados obtidos em da Amazénia mostram que, de fato, a floresta al foi ocupada antes do advento da agricultura, ja, por populagées com economias baseadas em pesca e coleta. O inicio da ocupagdo humana nas ics sempre foi um dos temas mais debatidos na jeologia, em uma discusséo que jé tem mais de um lo, Atualmente, esse debate passa por uma trans- 1igio profunda, jé que a maioria dos arqueslogos da com o fato de que as Américas foram ocupa- hii mais de 12,000 anos. Os dados da Amazinia uma contribuigio fundamental para esse debate, ‘mostrar que as populagées que colonizaram inicial- ‘nce a regigo tinham economias Os primeiros habitantes da Amaz6nia provavelmen- utiliavam uma série de matérias-primas 1a produzir seus artefatos e organizar seus modos de ida, mas, devido as condicées de preservagio normal- jente desfavordveis a materiais orginicos, o que resta 3s conjuntos so instrumentos de pedra lascada ou ida e refugos de sua producao, como, por exemplo, igos na Amaz6nia brasileira foram identificadas pontas de projétil bifaciais (ou seja, Jnscadas em ambas as faces), produzidas a partir de diferentes rochas, como o quartzo € o silex. Por conta Ee OUAROO GOES NEVES ‘disso, alguns autores sugeriram que pontas poderiam ser utilizadas como artefatos indi ‘ocupagoes muito ancigas, datadas em mais de anos. O. problema com esse argumento é que de projétl sio muito raras na AmazBnia. As est vvariam, mas menos de 20 delas foram identifi toda a bacia amaz6nica, certamente um numero: pequeno. Para complicara situacio, a maioria desses ar foi encontrada fora de contexto, por garimp. ctiangas ou pescadores. Sendo assim, é muito determinar sua idade com precisio. Por outro lado, outros sitios antigos localizados na serra dos em Rondénia, ¢ no rio Caqueté, na Colémbia, ide ficaram-se artefatos de pedra lascada, mas no pont de projétil, o que mostra que elas néo tiveram um disseminado. A situacao da Amazénia é, de qualqu modo, contrastante com a de outras partes do Bras — como o planalto meridional, no vale do Ribeira, Si Paulo, a0 norte do Rio Grande do Sul —, onde & comum a ocorréncia de pontas de projéxil em sitios antigos. Em Capelinha, 0 sftio mais antigo de Séo Paulo, as escavagbes identificaram dezenas de pontas em apenas uma unidade de Im Por essa raridade, 0 estudo das pontas amazénicas é importante. INa caverna da Pedra Pintada, um sitio antigo s- ‘eavado com bastante cuidado, identificaram-se frag- ‘mentos de pontas com datas ao redor de 9000 a.C., mas AROUEOLOGIA DA AMAZONIA artefato inteiro. Jé no sitio a céu aberto Dona Jocalizado em Iranduba, no Amazonas, uma Intcira foi localizada, mas associada a datas mais ®s, entre 7000 ¢ 6500 a.C. Dona Stella é, até 0 Wnto, nico sitio onde se identificou uma ponta em contexto arqueolégico bem definido em ‘1 bacia amazénica, O artefato em questéo tem dex 4cm. A matéria-prima utilizada foi um tipo lex incomum na regio, cujos afloramentos mais mos conhecidos localizam-se a quase 200km de incia. A técnica de produgéo incluiu percussio ate pressio. O acabamento refinado da ponta, a yettia nos retoques ea pouca espessura relativa indi- que ela foi confeccionada por artesios com grande inhecimento técnico. Em ambas as faces do pedkin- lo — a haste da base do objeto — hi um pequeno snal formado pela retirada por pressio. A pequena imensio do pedkinculo coloca diividas sobre sua fun- fo quanto ao encabamento da ponta. De fato, o6timo tstado de conservagio da ponta e a auséncia de evidén- clas de desgastes no gume, ou mesmo de qualquer tipo de fragmentagio, podem até sugerir que sua fungio talver nfo fosse a de instrumento de caga, mas sim, por exemplo, um objeto de status. Aliés, as poucas pontas conhecidas na Amarénia nfo tém, aparentemente, sinais de uso — como, por exemplo, quebra reaviva- mento do gume —, o que indica que esses artefatos também tenham sido utilizados em contextos mais 127+ EDUARDO GOs Neves rituais que propriamente utilitérios ‘Talvez por isso sejam tao raros. Em torno de 10000 ¢ 8000 a.C., transig&o entre as épocas geol6gicas nhecidas como Pleistoceno e Hol & provivel que as condigées climsticas evolégicas da Amazénia fossem Thantes is atuais, como conseqiiéncia: Pontas de proj de ym processo de aquecimento global ini pera so raras na f pee ee sanicn. ciado alguns milhares de anos antes, Esse exemplarfoico- partir de 16000 a.C. Nessa época, IetadopoiamesPe- 18,000 anos, a temperatura do pli Wiiebora seasce ef em média, 6°C mais baixa que datado entre 7000 atual. Parte considerével da Agua do pla- 6500 a. ncta estava retida em grandes gelel localizadas no alto das montanhas ou nas altas lati des. O territério que corresponde atualmente a0 Ca- nad, por exemplo, estava coberto por uma massa de gelo de 3km de espessura e milhdes de quilometros: 4quadrados de rea. Uma conseqiiéncia da formagio de: geleitas foi o recuo do nivel do mar, que em alguns pontos ficou até 100m abaixo dos niveis atuais. No ‘caso do rio Amazonas, esse recuo fez.com que sua for: ficasse num local muito distante de onde é hoje, pré- ximo & costa da Guiana Francesa, a mais de 100km de! distancia do licoral atual. ‘A partir de 16000 a.C, ocorreu um proceso de reaquecimento cujas causas estéo relacionadas a varia~ +28 ARQUEOLOGIA OA AMAZONIA goes na 6rbita do planeta. Na Amazbnia, de 11000 a.C. em diante, os registros indicam aumento da pluvi dade, do nivel dos rios e da sedimentacio aluvial. O crescimento gradual do nivel do mar, 0 derretimento de geleiras nos Andes ¢ 0 aumento do volume de agua nos rios levaram ao afogamento de cursos d’égua € 3 formagao de lagos, tipicos da paisagem regional. Desse iodo, é provavel que os primeiros habitantes tenham Vivido em um contexto ecoldgico semelhante ao atual. Paradoxalmente, os registros paleoclimaticos e pa- Jeoecoldgicos do Holoceno médio — ou seja, da época entre 6000 ¢ 1000 a.C. — sio menos conhecidos que 0s do inicio do Holoceno. As melhores fontes de in- formagao dispontveis para o entendimento do clima e do meio ambiente de entéo provém de fontes distintas: pélens preservados no fundo de lagos, geleiras nos ‘Andes, quimica dos solos, microvestigios vegetais co- nhecidos como fitdlitos ¢ a prépria implantagio dos sitios arqueolégicos. Todas essas fontes independentes parecem indicar que, na Amazénia, o clima foi mais seco entre 6000 e 1000 a.C. Uma possivel conseqiién- tia desse intervalo seco deve ter sido a retragao de dreas cobertas por floresta, com conseqiiente expansio de fireas de cerrado, assim como — nas dreas onde a floresta permaneceu — a mudanga na freqiiéncia de ‘espécies de plantas. E também possivel que o nivel nédio dos rios tenha diminufdo. No baixo rio Xingu, 41 base de alguns sftios conhecidos como sambaquis, 229+ EDUARDO GOES Neves datados de cerca de 2000 a.C., esté atualmente sul ‘metsas, indicando que o nivel médio do rio devia ‘mais baixo que o atual. Na bafa de Caxiuana, proxi ao baixo Xingu, houve aumento de chuvas a partir. 700 a.C., enquanto no perfodo anterior, de 4000 a70 4.C., 0 lago era bem mais raso do que atualment cembora a vegetagao circundante jé fosse composta floresta tropical Resumindo a discussio, as evidéncias aqui apresen: tadas apontam para a ocorréncia de variagdes climti ‘eas ¢ ecoldgicas na Amaz6nia durante o Holoceno. O% dados sio quase concordantes em um aspecto funda: mental para a hist6ria da ocupago humana na regi © fato de que houve aumento nas condigées gerais di precipitacio e umidade—além da expansio da flor em alguns casos — a partir de cerca de 3000 anos atrés, Tal processo deve estar relacionado as mudangas vis veis no registro arqueoldgico da regio, notadas a partir da mesma época, conforme se verd a seguir. Particular- mente, no que se refere a0 estudo do inicio da ocupagao humana, o reconhecimento de que ocorreram mudan- sas climaticas significativas a0 longo do Holoceno pode explicar por que houve uma aparente diminuiglo da fieqiiéncia de sitios arqueolégicos nesse periodo. Paradloxalmente, conhece-se mais sobre os sitios mais aantigos, ocupados antes de 6000 a.C., do que sobre os: sitios ocupados entre 6000 ¢ 1000 a.C. Estaré essa Jacuna nas informagées relacionada de fato a um esva- +30 —————_—_—_—_—_—___—_——— ‘ARQUEDLOGIA DA AMAZONIA nento demogrifico da regido, resultante das mu- was climaticas? Ou, por outro lado, os sitios dessa Kea nfo estéo sendo identificados devido a proble- nas estratégias de levantamento utilizadas pelos jucdlogos? A ainda baixa quantidade de pesquisas ipede que tais perguntas sejam respondidas com tera. Baseado nos dados atualmente disponiveis, snas duas dreas da Amaz6nia foram ocupadas mais. iu menos continuamente durante o Holoceno. A ieira inclui a regio do baixo rio Amazonas e estudtio, lea atual cidade de Santarém até o litoral, no estado Pard. A segunda inclui a bacia do alto rio Madeira seus afluentes, onde atualmente estd localizado o transigdo para a agricultura e inicio da producao ceramica ima das maiores contribuigées dos indios das Améri- para a humanidade foi a domesticagio de uma série plantas que atualmente sio consumidas de diferen- modos por todo o planeta. A lista é grande e serd si parcialmente mencionada, em ordem alfabética: wate, abacaxi, abébora, amendoim, barata, caju, jo, mamfo, mandioca, maracujé, milho, pimenta- “ate EDUARDO GOES Neves vermelha, pupunha, tabaco e tomate, entre out foram domesticados em diferentes partes do conti te americano muito antes da chegada dos euro ‘Como quase tudo em arqueologia, hé um grande bate sobre a antigiiidade do inicio desse processo, € provavel que os colonizadores iniciais — que tinh seu modo de vida organizado em torno de caca, p € coleta — jé praticassem algum tipo de manejo plantas, conforme dados obtidos, por exemplo, ‘Amaz6nia equatoriana. A domesticagéo de plantas ve ser entendida como um processo a partir do q\ algumas espécies selvagens sio manipuladas com objetivo de destacar algumas de suas caracteristi num raciocinio semelhante ao feito atualmente ctiadores de animais de raga. Assim, por exemplo, processo de domesticagio da mandioca envolveu manipulagio de espécies selvagens com o objetivo desenvolver variedades com rafzes mais grossas ¢ lo gas, jd que esta ¢ a parte da planta que é consumide Do mesmo modo, a domesticacio da pupunha— espécie de palmeira cujos frutos, do tamanho de ameixa, sio amplamente consumidos na Amazénia. em outros pafses da América do Sul ¢ Central envolveu um processo de seleso que privilegiou, longo do tempo, as variedades com frutos maiores. processo de selegio intencional que leva & domesti io de uma planta é bastante longo, com duragio muitas décadas ou mesmo séculos. Nesse sentido, 232+ ‘AROUEOLOGIA OA AMAZONIA ricultura nao foi “inventada” por alguns poucos Individuos. Ao contritio, resulta de processos longos e ‘fumulativos no decorrer dos quais a selecio intencio- ‘nal de caracteristicas morfoldgicas acaba por levar a0 surgimento de novas espécies, aparentadas as esp selvagens das quais se originaram. E ébvio que hoje isso tmudou, Basta, por exemplo, ver as fortunas investidas por grandes laborat6rios internacionais no desenvolvi- mento de espécies transgénicas. Pode-se considerar a emergéncia da agricultura gomo um processo coevolutivo no qual seres humanos «plantas desenvolveram uma dependéncia miitua que Jornou a vida de ambos impossivel sem a presenca do ‘outro. A mandioca é um bom exemplo: foi domestica- da na Amaz6nia e atualmente ¢ consumida em larga escala pela América Latina, Caribe, Africa ¢ Asia. Ela é {io dependente dos seres humanos para se reproduzit que muitas variedades jé perderam a capacidade de Jancar sementes no solo. Nesses casos, é necessério que talos do galho sejam quebrados e plantados pelos agri- cultores. Por outro lado, é correto afirmar que muitas populagées do mundo em desenvolvimento provavel- ‘mente teriam dificuldades nutricionais ainda piores sm o cultivo de mandioca. Esse exemplo é ilustrativo ‘cimpressionante, ja que os indios — provavelmente as Indias — do passado desenvolveram uma tecnologia fisticada, baseada no uso de vérios instrumentos, ‘como 0 ralador, o tipiti e o cumaté, que transforma +33 EDUARDO GOeS Neves” ‘uma planta extremamente venenosa em vitios prod {os importantes, como o beiju, a farinha, a tapioca e ‘A domesticago da mandioca é um exemplo de como as antigas populagdes amazdnicas desenvolveram técnicas avancadas de cul= tivo, Essa imagem fol feta por Robert Schomburgk em 1841, No estudo do processo de domesticagio de plantas -animais, algumas reas sio classificadas como centros, isto é locais onde esses processos inicialmente ocor- reram, enquanto outras so consideradas receptoras, ‘ou seja, locais que posteriormente receberam essas ino- vag6es. Nas Américas, existem dois centros conheci- dos de domesticagio de plantas: a Mesoamérica— partes do México, Guatemala e Honduras — ¢ os Andes centrais. Paulatinamente, no entanto, a Amazénia +346 ‘ARQUEOLOGIA DA AMAZON também tem sido considerada um centro inde- pendente de domesticacio. A lista de plantas domesti- cadas ali é extensa e inclui, entre outras, 0 abacaxi, 0 amendoim, o mamio ¢, principalmente, a mandioca e pupunba. Normalmente, um centro de domesticagio pode ser identificado a partir dos proprios vestigios paleobot’- nicos encontrados nos sitios arqueolégicos ou de estu- dos botanicos e genéticos indicando a ocorréncia, em ‘ieas especificas, de espécies selvagens que tenham parentesco com as espécies domesticadas. Dentro da grande diversidade ecolégica e geografica que caracte- ja, hd uma area espectfica que pode ter sido um importante centro de domesticagio: a bacia do alto Madeira e seus afluentes, onde hoje esté 0 s- tado de Rondénia. De acordo com evidéncias botani- cas genéticas, esse foi o centro de domesticagio de duas das mais importantes plantas cultivadas atual- mente na Amazénia: a mandioca e a pupunha. Curio- samente, e talvez nfio por acaso, essa é uma das poucas {reas onde ha claras evidéncias de ocupacio humana continua durante todo 0 Holoceno. Conforme se vers adiante, 0 alto Madeira pode também ter sido o centro de origem das linguas tupis. ‘As formas antigas de agricultura da Amazénia foram provavelmente bastante parecidas com algumas priti- as atuais, tal como o cultivo nos quintais das casas — as vezes em hortas suspensas, geralmente sobre canoas riza a Amazé1 +35 EDUARDO GOES Neves abandonadas — de plantas medicinais ou tem ‘como diferentes tipos de pimentas. Uma dif tecnolégica significativa, no entanto, é que as po| ‘ges pré-coloniais ndo dispunham de macha metal para abrir suas rogas. E provavel que a introg desse tipo de instrumento, bem como de facd partir do século XVI, tenha modificado as prétcas colas e os préprios padrées de mobilidade das soc des amazbnicas. A técnica de cultivo tradicional usilizada na Amaz6nia e também na Mata Atlin no Brasil central é agriculeura “de coivara”, “det ou “de corte € queima”, que consiste na derrut queima de dreas de floresta realizadas na época da € posterior cultivo nesses locais. As cinzas resul contribuem para fertilizar os normalmente pouco, teis solos das reas de terra firme da Amazénia. rogas de coivara, os troncos das érvores derrubad: queimadas so mantidos, 0 que confere a elas aspecto de “sujeira” ou “desorganizacio”. ‘A vida ttil de uma roga de coivara é relativament curta: apés dois ou trés anos a fertilidade do solo do mesmo modo que aumenta a competi das plantas cultivadas coms ervas daninhas. Por cont desse padrao, alguns autores sugeriram que economis baseadas no cultivo em rogas de coivara seriam im siveis de manter populagGes sedentérias, dada.asu necessidade de relocagio constante. O argumento interessante, mas tem um problema: é baseado 36 + AROUEOLOGIA DA AMAZONIA cstudo de sociedades indigenas contemporineas, que fizem amplo uso de machados e faces de meta. Isso scelerasignificativamente o 4rduo trabalho deabertura de uma roga na floresta, a0 mesmo tempo em que facilica a abercura de éreas mais amplas. Com macha- dos de pedra essa tarefa era certamente mais demorada complicada, pois cles tendem a quebrar, si0 mais pesados ¢ o reavivamento de seus gumes é bastante demorado e complexo. Rochas aptas & produgio de snachados — sejam cles lascados ou polidos — nem sempre si0 amplamente dispontveis na Amazénia, principalmente nas éreas de varzea. Como conseqiién- no € & toa que grupos indigenas considerados isolados” jf fizessem uso de ferramentas de metal quando foram contatados pela primeira vez. Em alguns ‘casos, essas ferramentas esto bastante gastas, mas sta inelhor aptidio & derrubada de rogas as torna instru- mentos cobigados. ‘Com base nas diferengas tecnolégicas entre macha- dos de pedra e de metal para a derrubada da mata, rercebe-se que os padrées de cultivo em rogas decoivara a Amazénia pré-colonial eram certamente diferentes los verificados entre os indios contemporineos da ido. E provavel que os sistemas pré-coloniais tives- ‘xem menos mobilidade que os atuais. Se for correra essa hipstese, pode-se supor que dreas de vegetagio secun- ria tenham sido valorizadas para a abertura de rogas. ielas, o diametro das drvores ¢, em média, menor do “37+ EDUARDO GOES moves, que em uma floresta madura, o que facilita a den da, mesmo com machados de pedra. E também pi vel que tempo de vida iil das rogas tenha sido que o verificado arualmente, o que levaria a um ci do maior no combate as pragas ¢ a algum tipo investimento na manutencio da ferilidade. Final te, deve-se também considerar a hipétese de q\ cocupagiio das aldeias tena tido também uma dur maior, como conseqiiéncia da menor mobilidade sistemas agricolas. Uma possivel resuleante dessa pi tica de cultivo sio as chamadas “terras mulatas”: so normalmente férteis, de coloragio marrom, relat mente extensos, préximos a sitios arqucoldgicos, ne malmente interpretados como vestigios de anti reas de cultivo. Outros tipos de evidencia arqueol6 caapéiam essa hipétese: na AmazOnia central, em sft cocupados por muitas décadas ou mesmo alguns séc los, é comum a ocorréncia de machados lascados polidos de pequeno porte, instrumentos adequados derrubada de érvores menores, tipicas de éreas vvegetacio secundétia, Embora a Amazdnia, em particular sua porgio st doeste, tenha sido um centro independente de dot ticagZo de plantas na América do Sul, néo se sabe ain quando esse processo teve inicio. Para entendé-lo, necessitio diferenciar os termos “domesticacao” e “agri cultura”, jé que, embora estejam intimamente relacio nados, referem-se a atividades ou processos distinto Sau AROUEOLOGIA OA AMAZONIA usticagao & © processo pelo qual caracteristicas \ticas de plantas selvagens sdo intencionalmente lificadas até 0 surgimento de novas espécies, em initos casos dependentes de intervengdes humanas; sa sua reproducio. Ou seja, algumas dessas plantas scdem a capacidade de se reproduzir naturalmente. jeultura, para a discussio aqui apresentada, refere-se estabelecimento de um modo de vida totalmente spendente do cultivo de plantas domesticadas, ‘A domesticagZo de plantas & uma condigao funda- jental para o estabelecimento de modos de vida agrl- ls, mas € possfvel que sociedades com economias adlas em. caga, pesca ¢ coleta também tenham se iliado de plantas domesticadas sem que se tornas- m completamente agricolas. Esse padrio ainda é ve- ficado entre populagées indigenas amazénicas como Maku, Nukak, Parakana, Siriond, entre outras. ‘ata-se de populagées que, tecnicamente, vivem de |, pesca ecoleta, mas que também mantémo cultivo pequena escala de algumas espécies de plantas. Para fos autores, alguns desses grupos teriam sido agri- ie de “marcha a ré evolutiva". A jpotese ¢ interessante, mas traz. uma carga evolucio- a unilinear, como se os processos de mudanga ressem por um tinico caminho. Tais “regressoes”, ném, podem ser vistas de outra mancira. A idéia de +39 EDUARDO GOES Neves egressio implica o retorno a um modo de vida ‘e supetado, mas ¢ também plaustvel que alguns {grupos contemporineos tenham oscilado entre ‘mias mais ou menos agricolas ao longo de mileni que a opsao recente pela agricultura seja mais | anifestagio dessa oscilagio estrucural. ‘A discusséo acima € importante porque aj cexplicar outro paradoxo da arqueologia amazéni grande intervalo cronoldgico, de alguns milhares: anos, entre as evidéncias mais antigas de domesti ea emergéncia de modos de vida plenamente age E provavel que, a0 longo desses milénios, entre 6 © 1000 a.C., a ocupacio humana da Amazénia sido realizada por populagées com economia mis baseada em caca, pesca, coleta eem uma agricultura baixa intensidade. Tais estratégias diversificadas, certo, mimetizavam a prépria biodiversidade da resta. Assim, embora o processo de domesticagio plantas seja bastante antigo, o surgimento de m de vida dependentes da agricultura foi muito. ms recente, tendo se iniciado hé mais ou menos 3. anos. Essa hipétese é baseada no fato de que, a de entdo, sio mais claras as evidéncias de gran aldeias sedentérias, ocupadas por centenas de pess durante muitas décadas, 0 que é compativel com nomias plenamente agricolas, Como explicar a loi duragio desse intervalo? Uma hipétese seré apresent daa segui. ‘AnQUEOLOGIA OA AMAZON ‘As diferentes maneiras pelas quais a agricultura foi \u no incorporada aos modos de vida na Amaz6nia, lurante 0 perfodo entre 6000 e 1000 a.C., tiveram unbém um papel importante no processo de expansio las linguas indigenas na regido. A medida que se treita a cooperacio entre lingtiistas ¢ arquedlogos stabalhando em diferentes partes do planeta, fica cada ‘mais claro um padeio que correlaciona a distribui- io de linguas de algumas familias lingiisticas no sesente a processos de expansio agricola no passado. parece ter sido o caso das linguas indo-européias, Europa, das linguas bantu, na Africa subsaariana, Iinguas austronesianas, no sudeste da Asia ¢ da lolinésia. O raciocinio é simples: a adogao da agricul- ra levaria ao crescimento populacional, ¢ essa expan- jo demogréfica, & colonizagio de novas reas, ocupa- anteriormente por populagées nao agricultoras ou smo totalmente desocupadas por seres humanos, mo na Polinésia. No caso da Amaz6nia, hé um Jemento complicador, que ¢ a ocorréncia de mais de 1a expansio linglifstica. Dessas expansoes, duas fo- bastante amplas: as das familias arawak e tupi-gua- i. No infcio da colonizagio européia das Américas, final do século XV, as linguas arawak tinham ampla sribuigo, cujos limites eram as ilhas Bahamas, no ribe, a regiéo do Pantanal mato-grossense, 0 sopé » Andes e a foz do Amazonas. A distribuicéo das \guas tupi-guarani era menor, mas também grande, ae EDUARDO GOES NEVES ¢ inclufa uma drea que tinha como limites 0 zonas, 0 norte da Argentina, o sopé dos Andes nos € 0 litoral atlantico, do Cearé a0 rio da Apesar de amplas, as disribuigées das familias ‘¢ tupi-guarani nao eram continuas, mas sim ent ddas por dreas ocupadas por falantes de outras lin Naantropologia das teras baixas da Américad € antiga uma hipétese que correlaciona a expansio wak & domesticagao ao cultivo da mandioca. De nas ilhas do Caribe, os povos responsiveis pela i duo dessecultivo, hd mais de2.000 anos, eram de linguas arawak oriundos do norte da Améri Sul. £ possfvel que o mesmo tenha ocorrido em pei dos mais recentes, no final do primeiro milénio, bacia do alto Xingu. Além do mais, grupos arawalk tradicionalmente reconhecidos pela antropolog como agricultores contumazes, © que confirmari hipétese. O problema, no entanto, é que a genética plantas indica que o provével centro de origem de mesticagio da mandioca tenha sido a regio do alt Madeira, onde arualmente esté o estado de Rondénis ‘uma regio aparentemente nunca ocupada por falant de linguas da familia arawak. Como resolver esse pi blema? Una caracteristica notivel das ocupagSes humanas iniciais na Amaz6nia é a presenga precoce da produgio cceriimica, com datas que esto entre as mais antigas da América do Sul. Tais cerdmicas foram identificadas no’ padi ‘ARQUEOLOGIA DA AMAZONIA ual estado do Paré, em uma regio que comeca no o Amazonas, préximo as atuais cidades de Santa- ime Monte Alegre, passa pelo baixo rio Xingue chega ‘i chamada “zona do Salgado”, que é, de fato, o litoral ilintico desse estado. E provavel que cerimicas com {al antigitdade sejam identificadas também no litoral do Maranhao. Fora do Brasil, no litoral do Suriname também se encontram objetos desse tipo. (Com excegao da caverna da Pedra Pintada, localiza- da cm Monte Alegre, todos 0s outros pontos onde ‘cerimicas antigas foram identificadas sao sambaquis — sitios arqueolégicos bastante particulares, local ‘dos em praias, éreas ribeirinhas ou lagunares por todo ‘© mundo. Formados pelo aciimulo intencional de cconchas e terra, resultam em verdadeiras colinas artifi- ciais, em alguns casos com virios metros de altura. Atualmente, acredita-se que os sambaquis fossem lo- cais de moradia, mas também funcionavam como cemitérios, uma vez que é comum identificar neles is conheci- sepultamentos humanos. No Brasil, os dos e estudados sio os do litoral sul e sudeste, distri- buidos desde o Rio Grande do Sul até 0 Rio de Janeiro. No vale do Ribeira, em Sao Paulo, encontram-se os sambaquis mais antigos dessas regidcs, tanto litorincos como fluviais, datados de 6000 a.C. A partir dessas datas antigas, sambaquis foram sendo construidos € habitados no sul e sudeste até por volta do ano 1000, quando sio abandonados, provavelmente como con- 1435 EDUARDO GOES WevEs _ Aeglincia da ocupacio dessa regiso por grupos {ores falantes de linguas da familia cupi-guarani, Na Amazénia, os sambaquis foram bem estudados que em outras partes do Brasil, informagées sobre sua distribuicéo em dreas litoral do Salgado e o litoral do Amapé,o baixo préximo a Porto de Méz, a regiio de Sant cidade de Itapiranga, no Amazonas, ¢ até 0 ‘Guaporé, em Rondénia. Essa distribuigio, no ent nio é continua. A regio do Salgado, no litoral do € um ambiente bastante rico, formado por ¢ ‘manguerais e grande rede de rios e arquipélagos. sas dreas, sabe-se da ocorréncia de sambaquis ha tempo, devido a sua destruigéo para a minera cal. Cientistas pioneiros como Domingos Fi Penna, fundador do Museu Emilio Goeldi, em B tcalizaram pesquisas em sambaquis do Salgado no: do século XIX, mas foi apenas nas décadas de 1 1970 que, gracas as pesquisas de Mario Simo cobtiveram datas para eles. Os resultados indicam so to antigos quanto os sambaquis do sul e s com a importante diferenca de que contém cet coin idades de até 3500 anos a.C. Conhecidas mina, elas esto entre as mais antigas do contin Nos sambaquis do sul e sudeste, as ceramicas sio 4} ‘ausentes ¢, quando ocorrem, so muito mais. As datas de 3500 a.C. identificadas no S: fazem parte do quadro mais amplo do inicio da Ade /ARQUEDLOGIA DA AMAZONA fio ccrimica no continente americano. Esse quadro ra que ceramicas antigas s4o encontradas, a partir 4000 2.C.,em um arco que vai do litoral do Equador, weste, Foz do Amazonas, a leste. O arco contorna 0 te do continente, passando pelo litoral norte da ldmbia e pelo litoral do Suriname. Nesses pontos, iimicas com datas entre 4000 ¢ 3500 a.C. foram icontradas, em alguns casos em sambaquis. As cer’- aas mais antigas das Américas, no entanto, foram lizadas no interior do continente, no baixo Ama- as, prdximo a Santarém. Nessa regio, em frente & do Ituqui, no sambaqui fluvial de Taperinha, ina Roosevelt identificou, nos anos 80, ceramicas ym datas remontando a quase 5000 a.C. Posterior- ince, na década de 1990, ela escavou, na caverna da ra Pintada, localizada na mesma regio, cerimicas ostamente mais antigas, datadas de 6000 a.C. No Junto, os resultados dessas pesquisas sio ainda dis- iveis por varias raz6es, Em primeiro lugar, as infor- 1s disponiveis sobre tis objetos, bem como sobre ‘gontextos onde foram identificados, sio bastante jas. Em segundo, alguns arquedlogos sugeriram processos posteriores & ocupacio desses sitios cau- perturbacio nos depésitos, o que traria proble- quanto A aceitagao das descobertas. Tais criticas procedentes, mas nio invalidam a plausibilidade datas. DUARDO GOES Neves, © problema mais agudo para os que critica datagio diz respeito & possibilidade de ter havido de um centro original de produsio de cerimi todo 0 continente americano. Durante muitas dé os arquedlogos accitaram a idéia de apenas um ce Jocalizado no noroeste da América do Sul, em uma, que vai do litoral do Equador, préximo & cic Guayaquil, ao litoral atlintico da Colombia, pré a Cartagena. Nessa hipétese, a partir desse centro cial, onde hé cerimicas de até 4000 a.C., técni fabricagio ou populagées que as dominavam ter cespalhado para outras éreas, incluindo a América tral, os Andes ¢ a Amaz6nia. Essa hipétese tem, centanto, pelo menos dois problemas: o primeiro, bvio, a prépria data das cerimicas de Pedra Pint Taperinha, que, se confirmada, é mais antiga q das cerimicas do Equador e da Colémbia. O & que mesmo as cerimicas mais recentes — como dos sambaquis do Salgado, datadas em torno de 35 a.C. — sio bastante diferentes das supostamente ginais de que teriam derivado. Enquanto, por exem as cermicas do noroeste da América do Sul tém dirdes decorativos plésticos que incluem a incisio, as Salgado eas do litoral do Suriname nao tém decor alguma, com excegio da pintura vermelha, Esses cenfraquecem a hipétese de um tinico centro inicial, que a expectativa seria que houvesse alguma se thanga estilistica ou técnica entre elas. As cerémicas +48 ‘AnauEOL0GiA On AMAZON jonce Alegre e Taperinha, por sua ver, parecem tam- im ter decoragio incisa, mas, como sio pouco conhe~ las, os padres nfo sio ainda claros para que se possa tabelecer comparagées. ‘Tradicionalmente, arquedlogos associam o inicio da sodugio cerdmica ao desenvolvimento da agriculeura, Mostram que o quadro é mais complexo, uma vez que datas mais antigas, em torno de 5000 ¢ 3500 a.C., ‘yém de contextos em que a agricultura nao havi ‘plenamente adotada. Desse modo, a presenga antiga le cerimica nao parece indicar uma ruptura com os ‘modos de vida anteriores. Ao contritio, é provavel que {enha se mantido 0 mesmo padro de adaptagio basea- ddo em economias diversificadas, organizadas na caga, pesca e colera ‘O conhecimento sobreas ceramicas antigas na Ama- ‘WOnia é, como quase tudo, ainda embrionsrio: as dreas ‘vom evidéncia de producio precoce sio aparentemente Jestrias,estando localizadas em sambaquis litoraneos ‘ fluviais do baixo Amazonas e da zona do estuério. Em ‘utras partes da regio, durante esse mesmo perfodo, ‘que durou aproximadamente de 7.500 a 3.500 anos wis, as evidéncias de produgio ceramica — ¢ mesmo +476 EDUARDO Gos News de qualquer tipo de ocupagio humana — sio go cotalmente inexistentes. Curioso também de que, em um dos supostos centros origi Amazénia—a regio de Santarém e Monte. a produgio cerimica tenha sido aparentement donada apds um inicio precoce. Se essa hipétese correta, indica, mais uma vez, que os process mudanga no passado nao foram lineares nem veis. interessante notar que, embora no in século XVI 0 maior Estado das Américas, o Im Inca, tivesse seu centro € sua origem no cor cordilheira dos Andes, todos os focos iniciais de importante inovacio tecnolégica, a produgio a, estdo localizados fora da cordilheira, em terras baixas tropicais. Ascensio e queda das sociedades complexas da Amazonia ‘Uma das hipéteses subjacentes a este livro prope a ocupacio humana pré-colonial da Amaz6nia nio um processo regular ¢ cumulativo, mas sim cara zado pela alternancia entre perfodos de aparente bilidade e outros de mudangas relativamente by nos padrées de organizacio social, econdmica e polit ca, visiveis no registro arqueolégico. Talvez as mat festagées mais claras dessa hipétese sejam as sibit 248+ AROUEOLOGIA DA AMAZONIA transformagées nos padrées de ocupagio notiveis a partir de cerca de 2,000 anos atrés, Tais modificages certamente refletem mudangas mais profundas, rela- cionadas & organizacio politica das sociedades amaz6- nicas do periodo. Seu aspecto mais visivel ¢ 0 aumento no tamanho, densidade e duragio de ocupagio nos sitios arqueolégicos. Esse processo pode ser inferido, por exemplo, pela construgio de aterros monumentais cm regides to distantes como a ilha de Marajé, 0 alto Xingu, os campos alagados de llanos de Mojos, na Bolivia, eas plan{cies costeras das Guianas. Do mesmo modo, é a partir dessa época que ficam mais visfveis e numerosos os sitios associados aos solos antrépicos conhecidos como tertas pretas de indio, correlatos aos processos de ocupacio sedencaria As modificagdes nos padrées de assentamento cor- respondem também sinais de uma verdadeira explosio cultural. Diferentes tradig6es ceramistas sao visiveis no registro arqueolégico, algumas claramente locais, ou- tras com influéncias externas, principalmente do norte da América do Sul. Artefatos Iiticos polidos com ico- fias comuns, como muiraquitis ¢ estatuetas, sio encontrados distribuidos por amplas reas, indicando a ocorréncia de formas de contato que integraram po- pulagées cm redes mais amplas. Finalmente, a partir dessa época, ficam mais vistveis evidéncias de contlitos armados, 0 que ¢ atestado pela presenga de estruturas +49 EDUARDO GOES Nos vas localizadas no alto rio Negro, na. tral e no alto Xingu. ‘Conforme discutido anteriormente, parece ‘mais claro que houve mudangas climaticas eecol icativas em toda a bacia amaz6nica, em to ano 1000 a.C. Tais mudangas se referem, pri mente, a0 aumento da pluviosidade e & conseq| cexpansio da floresta sobre dreas anteriormente col por uma vegetagio mais aberta, como os ce dramaticos eventos de 2005 mostram como peqi mudangas climaticas podem ter um impacto na Amaz6nia. Nesse ano, um aumento da temper nas éguas do mar do Caribe foi responsivel por série de furacées catastréficos como © Katrina, destruiu a cidade de Nova Orleans, nos Estados dos. Na Amazénia, a conseqiiéncia foi uma 1 das chuvas que levou & diminuigio significativa nivel de égua dos principais tios, & mortandade peixes © & propagagio de doengas. Sendo assim, p legitimo que se postule alguma correlagio entre as dancas climéticas notéveis a partir de 1000 a.C. transformagbes visiveis no registro arqueolégico Amaz6nia. Sob esta perspectiva, o aumento da pluviosidade: cexpansio das florestas criarum as condiges paraa xy siio de modos de vida plenamente agricolas pela amaz6nica, As transformagées em conseqiiéncia adogio da agricultura seriam, por sua vez, correl 50+ ‘AnauEotO«IA 0A AMAZONIA hada a outros fenémenos notiveis,a partir da mesma poca, no quadro da ocupacio humana das teras baixas dda América do Sul, além da Amaz6nia, tais como: a ‘expansio de grupos falantes de Iinguas do tronco tupi eda familia arawak, o surgimento de grandes a anelares no Brasil central eno alto Xingu eo surgimen- to de grandes aldeias na regio do Pantanal. Como, no entanto, conciliar a hipétese de uma doco relativamente recente da agricultura, a partirde cerca de 1000 a.C., ou mesmo depois, se as evidéncias paleoboranicas indicam que © processo de manejo € domesticagio de plantas se iniciou muito antes, hé talvez 9.000 anos? A resposta a esse paradoxo deve postular a ocorréncia de um grande intervalo cronolé- pico entre 0 inicio do processo de domesticagio ¢ a plena adogéo da agricultura como base produtiva. Tal intervalo seria coincidente com 0 Holoceno médio, ‘uma época aparentemente mais érida. As mudangas climaticas notaveis a partir de 1000 a.C. teriam criado as condigées ecolégicas para essa transformagio. A hipétese da adogio relativamente recente da agricultu- ra poderia também explicar um fendmeno interessante ¢ recorrente entre varios grupos ind{genas contempo- Hineos: mesmo sendo agricultores, eles valorizam e conferem prestigio muito maior & caga, embora essa info seja a atividade mais importante para a obtengio de alimentos. 51+ EDUARDO GOES Neves (pretas. Atualmente, as evidéncias mi le estabelecimento de assentamentos sedent Amaz6nia brasileira vém de dois locais dst dos em extremidades opostas da bacia: a ilha de; € a regido do alto rio Madeira, onde esté a Rondénia. Esse estado tem uma arqueologia nhecida, embora com potencial bastante grant {que se encontra, hoje, a maior diversidade li entre os povos falantes de linguas tupi, 0 que ‘que essa seja sua regido de origem. E também a cestudos genéticos sugerem ter sido 0 centro de ticagio original de importantes plantas amaz6i como a mandioca ea pupunha. Finalmente, ali encontradas 0 que parecem ser as mais antigas pretas de indio da Amazénia, com cerca de 4.000. de idade, Nas areas adjacentes aos rios Solim Amazonas, taistipos de solo — bastante férteis ¢ grande importincia econdmica — sio mais recent tendo mais ou menos 2.000 anos de idade. ‘As terras pretas talver.sejam o melhor indicador {que os ambientes amazénicos foram modificados; populagses indigenas que ocupavam a regifo antes conquista. Atualmente, esse tipo de solo é procui por agricultores em razao de seu potencial de cult ‘mas pouca gente sabe que foi formado pelos indios passado. Além da ala fetilidade, ralvez a propy mais interessante das terras pretas seja a estabi Fscavagies realizadas na Amazdnia central indi +52: ‘ARQUEOLOIA OA AMAZONIA 4s terras pretas mais antigas nessa érea datam do lo VIL, ou seja, t8m cerca de 1.400 anos de idade, js solos mantém, no entanto, alta ferilidade, o que irmalmente seria incompativel com a intensa lixivia- {que ocorre nos trépicos. Em outras palavras, a expec- tivaseria de que solos comessaidade fossem atualmente nico férteis, apés séculos de exposigio as condigbes limticas da regio. Por conta dessa propriedade, esfor- interdisciplinares tém sido feitos por agronomos, reddlogos (cientistas de solo), gedlogos, quimicos, an- ropblogos e arquedlogos com o objetivo de determi- ha os processos responsiveis pela formagao das terras pretas e as caracteristicas que promovem sua estabili- dade. ‘Ainda nao se sabe, porém, 0 que levou & formagao das terras pretas. A hipétese mais provavel € que elas resultem do actimulo continuo de restos orgiinicos — ‘ossos de peixes € outros animais, cascas de frutas ¢ raizes, fezes, urina, carvio etc. — em aldeias sedentarias ocupadas durante muitos anos ou décadas. Sob essa perspectiva, s{tios com esse tipo de solo seriam locais dde habiracio no passado. Alguns deles tém reas con- sideriveis: Agutuba, localizado no baixo rio Negro, a cerca de 40km de Manaus, por exemplo, tem 90ha de érea, com 3km de comprimento por 300m de largura. E provivel, portanto, que tenha sido uma grande aldeia, com algumas centenas de habitances, durante seu periodo de ocupagio. +53 OUARDO GOES Neves, um base nessas consideragbes, 0 surgi ‘sitios com terras pretas no registro arqueold, ‘Amnazbnia pode ser visto como um marcador danga nas relagbes sociais ¢ econdmicas: as soci ‘queos ocuparam eram mais sedentaias, inham mobilidade ¢ talvez fossem mais territoriais 4 antecessoras. Quanto & establidade das terra p resposta para essa questo deverd passar necessati te pela consideracio de que so uma matriz. com por elementos naturais préprio solo e seus com, tes orgiinicos, inclusive de alimentos —e cultu fragmentos de cerimi objetos de pedra lascada lida. E comum agricul que plantam mamio em com terras pretas utilizare abundantes fragmentos de ramica visiveis na supel das rogas para, por exemy proteger do sol intenso ¢ Ds sitios de terra preta, além de Imulto fires sio cos em ves- Higlos arqucotégicos. A escava- alguns agriculeores reclamé ade um depsitodeceea d€ dos arquedlogos quando, 10cm de profundidade, em ran- a no Amazonas, revelou mui- TARE as escavagdes os fra ragmentos,visiveisnocorte. tos cerimicos enterrados +54. ARQUEOLOGIA DA AMAZONIA oletados. Segundo eles, essa retirada faz. com que 0 solo seque mais répido, chegando a rachar durante a tstiagem. Isso ocorre porque a presenga de toneladas tle fragmencos de ceramica diminui a velocidade de ‘eyaporagao da 4gua retida no solo, mantendo-o timido por muito mais tempo. A tradigao pocé. Com excecio da regido de Rondénia, ‘onde sitios com terras pretas podem ter até 4.000 anos de idade, em outras partes da bacia amaz6nica eles comegaram a se formar a partir de cerca de 2,000 anos ards. Sendo assim, é também a partir dessa época que suurgem, em diferentes partes, as evidéncias de assenta- ‘mentos sedentétios e populosos. Nos sitios da Amaz6- fia central encontram-se cerimicas bem-feitas, com ddecoragio pintada e incisa, chamadas de manacapuru. Fim alguns sitios, subjacentes a essas ocupagoes, hi depésitos mais profundos, enterrados, as vezes, a mais de 100cm, datados em até 2.300 anos de idade, tam- bhém com cermicas de decoracao incisae pintada, mas em a presenca de terras pretas. Esses objetos tém se- melhangas com outros, encontrados, por exemplo, no baixo Amazonas, datados da mesma época e também sem associaco com terras pretas. Esses depésitos, lo- calizados perto dos rios Amazonas, Solim@es e alguns dle seus afluentes, datados em cerca de 2.000 anos e nao sassociados a terras pretas, pertencem a um fendmeno ‘nais amplo, relativo & Amazbnia central e a0 baixo + 55- OUARDO GOES Neves, um base nessas consideragbes, 0 surgi ‘sitios com terras pretas no registro arqueold, ‘Amnazbnia pode ser visto como um marcador danga nas relagbes sociais ¢ econdmicas: as soci ‘queos ocuparam eram mais sedentaias, inham mobilidade ¢ talvez fossem mais territoriais 4 antecessoras. Quanto & establidade das terra p resposta para essa questo deverd passar necessati te pela consideracio de que so uma matriz. com por elementos naturais préprio solo e seus com, tes orgiinicos, inclusive de alimentos —e cultu fragmentos de cerimi objetos de pedra lascada lida. E comum agricul que plantam mamio em com terras pretas utilizare abundantes fragmentos de ramica visiveis na supel das rogas para, por exemy proteger do sol intenso ¢ Ds sitios de terra preta, além de Imulto fires sio cos em ves- Higlos arqucotégicos. A escava- alguns agriculeores reclamé ade um depsitodeceea d€ dos arquedlogos quando, 10cm de profundidade, em ran- a no Amazonas, revelou mui- TARE as escavagdes os fra ragmentos,visiveisnocorte. tos cerimicos enterrados +54. ARQUEOLOGIA DA AMAZONIA oletados. Segundo eles, essa retirada faz. com que 0 solo seque mais répido, chegando a rachar durante a tstiagem. Isso ocorre porque a presenga de toneladas tle fragmencos de ceramica diminui a velocidade de ‘eyaporagao da 4gua retida no solo, mantendo-o timido por muito mais tempo. A tradigao pocé. Com excecio da regido de Rondénia, ‘onde sitios com terras pretas podem ter até 4.000 anos de idade, em outras partes da bacia amaz6nica eles comegaram a se formar a partir de cerca de 2,000 anos ards. Sendo assim, é também a partir dessa época que suurgem, em diferentes partes, as evidéncias de assenta- ‘mentos sedentétios e populosos. Nos sitios da Amaz6- fia central encontram-se cerimicas bem-feitas, com ddecoragio pintada e incisa, chamadas de manacapuru. Fim alguns sitios, subjacentes a essas ocupagoes, hi depésitos mais profundos, enterrados, as vezes, a mais de 100cm, datados em até 2.300 anos de idade, tam- bhém com cermicas de decoracao incisae pintada, mas em a presenca de terras pretas. Esses objetos tém se- melhangas com outros, encontrados, por exemplo, no baixo Amazonas, datados da mesma época e também sem associaco com terras pretas. Esses depésitos, lo- calizados perto dos rios Amazonas, Solim@es e alguns dle seus afluentes, datados em cerca de 2.000 anos e nao sassociados a terras pretas, pertencem a um fendmeno ‘nais amplo, relativo & Amazbnia central e a0 baixo + 55- OUARDO GOES WevES onas, chamado de tradigéo pocs, denon partirdo sitio Pocé, onde foram inicialmente ki eados. Sitios da tradicéo pocé sio o registro, na 6 ‘Amazonas, do perfodo imediatamente anterio tivuigao das grandes aldeias com terras pretas racterizariam a ocupagiio humana dessa parte da ‘em épocas posteriores. Nos locais onde foram ficados, esses sitios surgiram apés longos hiat processo de ocupagéo humana. Na Amazénia & por exemplo, ohiato reve duragio de pelo menos3 anos. As cerimicas pocé tém uma série de caract cas decorativas em comum com outras, mais anti identificadas no litoral da Colémbia. Uma hip provivel é que as populagées que as produit nham se originado no norte do continence e ocups a Amazinia hé aproximadamente 2.300 anos. A paitir do perfodo marcado pelas ceramicas po as evidencias de ocupagio nas drcas adjacentes 38, ‘zeas amazénicas sio abundantes. Na Amazénia centt por exemplo, seguem-se as pocé trés ocupacées distit tas, todas associadas a grandes sitios com terras pret as jf mencionadas ocupagées com cermicas manag puru, datadas entre os séculos VII e IX; as com cet Iicas chamadas de paredio, datadas entre os século Vil eXI; eas com cerimicas guarita, entre os séculos D XVI A enumeragio de diferentes nomes de compl ‘eerimicos no passado nio pretende confundir o lito aoa ‘naueoL061A 04 AMAZONIA is apenas chamar a atengio para os intensos ¢ din cos processos de ocupacio instaurados na Amazénia partir do inicio da era crista. A cerémica marajoara, Na Amazdnia brasileira, é na itha de Marajé que se encontram algumas das manifes- luges mais antigas dos processos de crescimento de- mogrifico ¢ de mudancas paisagisticas. Bles culmi- faram com a chamada cultura marajoara. Cerimicas dessa cultura, ou “fase”, compéem acervos de museus ¢ colegées particulares no Brasil ¢ no exterior, sendo caracterizadas por grande beleza e imensa diversidade de formas e padrées de decoragio. Entre os diversos tipos de artefatos hé urnas funeritias, vasos, estaruetas antropomorfas, pratos, tangas ¢ bancos. A decoragio & normalmente pintada einclui motivos antropomorfos, roomorfos e abstratos, sempre com alguma combi- hacio entre vermelho, laranja, branco e preto. A deco- ragio plistica, também freqiiente, lui o modelado ¢ também 0 uso de diferentes téenicas de incisio ¢ cexcisio, A beleza das cerémicas ma- rajoara torna-as bastante cobicadas, sendo, sem sombra de divida, a maior categoria de objetos arqueo- légicos contrabandeados para for Ym exemplo tin de ume do Brasil atualmente. _ marajoara, oUARDO GOES weves Os sitios mais caracter cultura marajoara so, nor te, atertos artificiais, conl como tesos, que tém alguns de altura € dezenas de me comprimento. Os tesos, bi numerosos, sio distribufdos nay leste da ilha de Maraj6, numa Una com decoragio Ps extensos campos naturais, ica e pintada,inctuindo incsdes extsdes eo mo- durante boa parte do ano, lo tela, também bastante a0 redor do lago Arai. Apesar — istéria mais que centendria quisas, nao existe ainda uma cronologia precisa fase marajoara, embora haja um consenso que et dra sta duragao entre o século IV ¢ 0 XIV — em. de mil anos, portanto. A hist6ria das pesquisas arqueolégicas ¢ das int pretagSes propostas para explicar o registro arq ligico da ilha de Marajé emulam, de certo m prépria histéria da arqueologia ¢ sua consoli como disciplina académica. Inicialmente, as cer sofisticadas e os sitios arqueolégicos monumen encontrados atrairam a atengo de naturalistas pio 105, como Charles Hartt e Domingos Ferreira P no fim do século XIX. No inicio do século XX, ‘quisas arqueol6gicas importantes foram realizadas (Cure Nimuendaju e Helofsa Alberto Torres, mas ‘nas décadas de 1940 ¢ 1950, como resultado do + 58+ AROUEOLOGIA DA AMAZONIA Iho de um casal de arqueslogos norte-americanos —= Betty Meggers ¢ Clifford Evans — que uma hipévese sinda influente foi proposta para explicara arqucologia regional. Meggers e Evans sio seguidores de uma linha de pesquisa conhecida como antropologia ecolégica. Para esses autores, padrées verificados no registro ar- qucolégico — tais como o tamanho, a densidade e 0 tempo de ocupagio dos sitios — podem ser entendidos como o reflexo de padres adaptativos de popuilagdes no pasado. No final dos anos 40, quando Meggers ¢ Evans iniciaram suas pesquisas na iha de Marajé eno Amapé, havia um paradigma na arqueologia sul-americana que identificava o norte eo centro da cordilheira dos Andes como 0s grandes centros de inovagio na histéria da ‘ocupagéo humana do continente. Por centros de ino- vvagio entendem-se aqui os locais onde se desenvolve- ram inicialmente elementos tais como a agriculeura, a produsio cerimica ¢ 0 Estado. De acordo com esse paradigma, a bacia amazénica ¢ a érea de dominio da mata atlintica teriam sido secundétias, para onde al- {gumas — mas nfo todas — dessas inovagies suposta- mente oriundas dos Andes se difundiram (ver figura a seguir). Tal perspectiva explicaria, por exemplo, por que impérios como o Inca teriam se desenvolvido na regido andina endo na Amazénia ou no litoral atlanti- 0, Dentro desse quadro, a arqueologia de Marajé oferecia uma contradigio: como,explicar um registro +59 Mapa do inicio da década de 1950 que representa uma perspectiva comum na antro- pologia do periodo,colocan- ‘do a Amazonia em um con- texto periffrico na histéria cultural da América do Sul EDUARDO Goes Neves arqueolégico to rico, ap, mente caracteristico de so des hierarquizadas, em supostamente marginal como do Amazonas? Apés virios i de prospecedes e escavagdes rios anos de anélises de | trio, Meggers e Evans pro} ram, em 1957, que as popt que ocuparam o leste da i Marajé —e queali produzi certmicas € 0s aterros arti tipicos — seriam oriundas cles teriam passado de complexas a simples, a partir ‘uma tipologia evolucionista ento cm voga na ant pologia norte-americana. A tradicao policroma. Quando Meggers e Evans ‘zaram suas pesquisas na ilha de Marajé, 0 método datagdes absolutas por carbono 14 nio era ainda pplamente disponivel. Sendo assim, propuseram, a p trde andlise da ceramica e de estudos das camadas + 60+ AROUEOLOGIA DA AMAZONIA los arqueolégicos, que a fase marajoara teria sido lacivamente curta reflexo de um répido processo de widanga cultural, Estudos posteriores, realizados nas adas de 1960 e 1980 por Mario Simées e Anna vet, indicaram que tal hipétese ndo se sustenta, ima vez que aquela cultura teve duragio de quase .000 anos, do século IV ao século XIV. Do mesmo wodlo, a hipérese de uma origem andina também niio vilida, De fato, sabe-se hoje que as cerimicas da fase arajoara sio as representantes mais antigas da chama- i tradigo polfcroma da Amazdnia. Em arqueologia, termo “tradigio” denomina um conjunto de fases dlistribuidas por reas vastas e com grande amplitude ‘cronolégica. As certimicas da tradicéo policroma so, como o proprio nome diz, caracterizadas pela decoracio pinta- dla em vermeho, cor-de-vinho, laranja ou preto sobre Juma base branca. Do mesmo modo que na fase mara- Joara, as cerimicas policromas sio também decoradas ‘tom modelado, incisio, excisio etc. Apesar das seme- 1angas gerais, h4 uma consideravel variagio entre as liversas ceramicas ¢ sitios arqueoldgicos associados & {uadigio policroma, Por conta disso, elas recebem di- fercntes denominagées regionais, a partir de suas carac- foristicas decorativas particulares. Algumas dessas lenominagées sio relativamente bem conhecidas. ‘Além da marajoara, hé: miracangiiera, na regio de 61+ EDUARDO GOES Neves , Itacoatiara e Urucurituba; borba, no ira; guarita, nas regides de Manaus, baixo. Manacapuru, Codajése Coaris efé, na regio de Tefé; séo joaquim e pirapitinga, no alto S ‘bu, na regido de Leticia, na Colémbia; no! bbém na Colombia, mas na regiso de Arara rio Caqueté (Japurd); caimito, no alto Amazonas, Ucayali, no Peru; ¢, finalmente, napo, no rio Ni Equador. Em linhas gerais, algumas tendéncias so n primeiramente, parece haver uma prepond. maior de vasos com formas quadrangulares ou gulares & medida que se viaja rio acima. Assim, na do rio Napo, préximo aos Andes, no extremo o¢ ibuigio das cerimicas polfcromas, é com\ ocorréncia de pratos quadrados. Um padrio an cde mudanga é visto nas urnas funertias: no alto ‘zonas so muito mais usuais as urnas antropomok polfcromas, nas quais bragos e pernas sio model descacando-se do corpo dos vasos, enquanto nas da ‘marajoara bragos ¢ pernas sio normalmente pint ‘ou modelados junto a0 corpo dos vasos. Hé ain algumas formas de vasos que parecem s6 ocorrer sitios policromos em algumas Areas especficas: ‘AmazOnia central, préximo a Manaus, é comum ‘ocorréncia de vasos de médio porte, com decora plistica em canais e decoragio pintada em branco. + 62+ ‘ARQUEOLOGIA OA AMAZONIA ‘A cronologia ea distribuigao geogri- de sitios da tradicao polfcroma mos- 1m um padrio bastante claro: os mais tigos, datados do século IV, aproxi- idamente, esto localizados na ilha de larajé. Posteriormente, em torno do sé- julo VIII, sftios policromos foram ocupa- los 0 redor da atual cidade de Silves, no stado do Amazonas. De Silves para 0 ‘peste, eles slo encontrados em reas prd~ ‘ximas aos rios Amazonas e Solimées até cima da cidade de Iquitos, no Peru. Si- tios da tradicio policroma foram também. Identificados 20 longo dos principais afluentes dos rios Amazonas ¢ Solimées, tais como: Madeira, Uatuma, Negro, Ja- puré-Caqueté, Ig4-Putumayo e Napo, entre outros. A cronologia mostra que sitios com cerimicas polfcromas tor- nam-se paulatinamente mais recentes & medida que se percorre, rio acima, 0 Amazonas-Solimoes ¢ seus afluentes, desdea foz atéos contrafortes dos Andes. ‘Tal padrao indica que tradigdo policro- 63+ ‘Umas da radio po- liroma encontradas na Amaz6nia_cen= tral. Suas caracte- risticas comuns sto as fabeas grossa p= tadas em branco, preto e vermelho ~ tomadas quase invi- siveis pelo tempo ~ a5 representagies. antropomortas. ma é um fenémeno com origem claramente amaz6ni- a, € nao andina, conforme propuseram Meggers € Evans na década de 1950. As descobertas indicam que, ‘enquanto as ceraimicas policromas encontradas na ilha EDUARDO GOES weves ij6 datam do século IV, as mais antigas ia central datam do século IX, as do méd nia central, hd evidéncias de construsio de valas art ciais, algumas delas com sinais de buracos de estac m seu interior, situadas ao redor de sitios arqueol cos, contemporineas das ocupacées policromas rea, no século XI. Tais estruturas tém funcéo ap: temente defensiva. A continuagio de pesquisas nes ‘rea poderd mostrar se a construgo de estruturas des tipo foi mesmo freqtiente naquele perfodo, o que po ‘glo de Francisco de Orellana, que desceu o tio zonas em 1542, narra como — em um local sit fentre as bocas dos rios Negro ¢ Urubu, préxim cidade de Manaus — avistaram “uma aldeia fortfica por uma muralha de madeiras grossas”. E certo que as populagdes que produziram ‘es policromas foram as mesmas que testemunha @ passagem dos primeiros viajantes europeus — como Carvajal e Orellana — pela Amazénia, reae! AROUEOLOGIA DA AMAZONIA Planta do sitio Lago Grande, localizado em uma peninsula de 30m de altura junto @ um lago da virzea do rio Solimbes. As habitagbes s8o eispostas em circulo a0 redor de uma praca central, €, 20 norte, no istmo que conecta a peninsula & tera firme, foi construida uma vala defensiva no sé. X.Epossvel que ‘os conflitos que levaram & construezo da vaa tenham eventual~ ‘mente causada 0 abandono do sitio. DUARDO GOES Neves XVLe XVII, e foram também descritas por el descriges sugerem que, em alguns caso populagdes do alto Amazonas e do rio Solimées vi ‘em grandes aldeias, as vezes com alguns milhares pessoas, ¢ eram governadas por chefes supremos, comandavam também outras aldeias de grande port Anda de acordo com os cronistas dos séculos XVIL, esses grupos mantinham relagées de comércl com outros mais distantes. A arqueologia amaz6ni tem, nos diltimos anos, confirmado tais descri indicando que, de fato, alguns sitios com cerimica policromas correspondem a aldeias de grande porte, veves com dezenas de hectares de &rea. A tradigéo inciva ¢ ponteada, Cusiosamente, hé, no baixo Amazonas, uma drea onde nao se encont sitios com cerimicas policromas. Ela inclui um trech {que vai da for do rio Xingu, aleste, até regio da de Parintins, a oeste. Nesses locais encontram-se sitios ‘com cerimicas bastante distintas das policromas, m: também de grande beleza, pertencentes 4 chamada ttadigao incisa e ponteada. Esses sitios so contempo- rineos aos da tradigao policroma, sendo datados desde pelo menos o ano 1000 até o inicio da colonizagio européia. Sitios com cerimicas incisas ¢ ponteadas também podem ser bastante grandes, com virios hecta- tes de dea, c associados a terras pretas antépicas, indi 766 ARQUEOLOGIA DA AMAZONIA ido que eram grandes aldeias sedentérias ocupadas ior populagdes numerosas. Em levantamentos realiza- jos na década de 1920, Curt Nimuendaju identificou ais de 60 deles no entorno da cidade de Santarém, ‘alguns conectados por caminhosamplos, como sefossem ‘estradas. A presenga de vias terrestres conectando sftios aarqueolégicos foi identificada também no alto Xingu, associadas a ocupagées do século XIII, embora essas ‘iio tenham cerimicas incisas e ponteadas, ‘Talvez as ceramicas mais conhecidas relacionadas 4 tradigdo incisa e ponteada sejam as tapajonicas ou ide Santarém, Trata-s, assim como no caso de Maraj, de cerimicas bastante sofisticadas, incluindo formas com- plexas ¢ téenicas de produgio como a pintura ¢ 0 modelado. Os objetos tapajOnicos mais conhecidos sio 0s vasos de caridtides e de gargalo, que tém esses nomes devido a sua forma e decoragio, Nessas categorias prevalece a decoragio modelada, composta por moti- vos zoomorfos — como péssaros, morcegos, réptels € mamiferos — ¢ também antropomorfos, incluindo as proprias caridtides. Na cerimica apaj6nica é também comum que se encontrem estatuetas antropo- ‘morfas, em alguns casos bastante ‘aturalistas, nas quais se peroebem dletalhes da pintura corporal, us0 yas ge gagalo caractrsto de j6ias e diferentes tipos de pen- da regio de Santarém. +67 UARDO GOES weves jam as de base semilunar, sentando mulheres nuas nadas. ‘As cerimicas tapaj6i so encontradas em uma, ‘elas fas cards) que susten- tam uma vasa decorada com Incsbese apéndices antropomor- fos zoomorfos. de drea que tem como c cidade de Santarém, | sobre um grande s{tio légico atualmente bas destruido, devido ao crescimento urbano. Elas ps também ser vistas em acervos de museus brasil cstrangeiros, bem como em colegées particul regido de Santarém e entorno, apesar de seu eresse, é ainda muito mal conhecida do vista arqueolégico, nao havendo, por exemplo, 5 uma cronologia bdsica para os sitios. As poucas disponiveis indicam que a ocupacio tapajénica ta pelo menos ao final do primeiro milénio, ¢ atéo século XVII, ou seja, apés a chegada dos c Informagées sobre 0 modo de vida dessa podem ser obtidas nos relatos de missionérios ca que com ela conviveram. Esses dados mostram sociedade tapajénica era bastante hierarquizada as mulheres tinham um papel politico ¢ religios pportante. Tais informagées sao corroboradas pelos £605 dados arqueolégicos dispontveis. + 68+ AROUEDLOGIA DA AMAZONIA Préximo a Santarém, na regido dos rios Nhamunda Trombetas, bem como na regio de Parintins, encon= tram-se cerimicas também pertencentes tradigo in- isa e ponteada, conhecidas como konduri. Sao também bastante sofisticadas, com prevaléncia da decoracio modelada em motivos antropomorfos ¢ zoomorfos, € coma diferensa de que 0s vasos sio geralmente maiores uc os tapajénicos. Os fragmentos desses vasos sio co- nhecidos como “caretas”, ¢ comumente encontrados cm reas de terra preta ¢ rogas por toda a regitio, A ar= queologia konduri é ainda menos conhecida que a ta- pajonica, mas acredita-se que suas populagdes tenham sido contemporaneas. Um aspecto interessante da ar- queologia konduti é a presenga de um pequeno, mas representativo, repertério deestatuetas de pedra polida.. Flas representam seres humanos e animais, com desta 4queparaongasesucuris. Normalmente, tém duas gran- des perfuragdes, mas no se sabe como eram utilizadas. A iconografia dealgumas das estatuetas embra bas- tante a das grandes esculturas de pe- dra encontradas na regido de San \ Agustin, nos Andes colombianos. Outras, por sua vez, tém tragos em: ‘comum com os desenhos encontrados thas prancheras de madeira produzi- das pelos indios Maué até o século XIX e usadas para aspiracio de pati- 4 acy rg ap i, um pé alucindgeno feito a partir peeyatatc saterore dda casca das drvores do género virola. _ camente tabla. +69 FOUARDO GOES Neves ‘eategoria de artefatos de pedra associados Konduti sio os muiraquitis, que nfo sio vos da regio do Nhamundé-Trombetas, pois Informages de sua ocorréncia em locais como a ill de Marajé, Santarém, alto Tapajés e até mesmo norte de Manaus. Os muiraquitis sio normalmen Dastante pequenos, sendo quase sempre zoomorfo — 0s antropomorfos sio bem mais raros. Eles s também encontrados fora da Amaz6nia, nas Guian: c ilhas do Caribe. Nao esté ainda claro se a regio Nhamundé-Tromberas era 0 tini centro de produgio a partir do q circulavam esses artefatos ou se el eram produzidos em varios locais: ferentes. O fato é que a distribui de muiraquitas por uma ampla 4i indica queas populagbes amaz6ni 0s muiraquitas mais co- do inicio do segundo milénio né funsdocnfomadespaestavam isoladas, mas sim inte fines oieey ec em redes de comércio ou de out Toshibrancaecomoutros ‘pos, que permitiam o contato. D “Motivos zoomorfos. Sua vido a seu tamanho reduzido e alt Mungo Edesconhecida.— oreabilidade, muiraquitis sao pt sujeitas a roubo e contrabando, As ceritmicas de Maracd. Por volta ano 1000, o registro arqueolégi mostra um quadro de diversi -10- ARQUEOLOGIA DA AMAZONIA culeural e poltica na Amaz6nia brasilei- 1a, exemplificado pelos tesos da ilha de ‘Marajé, pelos grandes sftios da regido de Santarém e também pelos diferentes ti- pos de cerimicas, incluindo as polfcro- mas, no médio ealto rio Solim@es. E, no entanto, na regio onde se encontra 0 atual estado do Amapé que tal diversida- de parece ter sido mais intensa, como indicado pela proliferagio de uma série de cerimicas distintas, ¢ aparentemente contemporaneas, em uma drea relativa- mente pequena. Conhecidas localmente como aristé, mazagio, aru3, cupixi e ma- rac, as certimicas de Maracé foram des- cobertas no século XIX, ¢ incluem urnas funerérias zoomorfas € antropomorfas com a forma de individuos sentados so- statuetas de pedra polida como essa so Faras na arqueologia ‘da Amazénia, A re- presentagd0 maisco- mum éde figurasan= ‘tropomorfas envol~ tas ou encobertas por figuras zoomor- fas, sugerindo tal vez 0 transe xama- nista bre bancos — em muitos casos, semelhantes aos usados por grupos indigenas contemporincos da regio da Guiana. As urnas marac encontram-se sempre na superficie, colocadas dentro de grutas, na regio do igarapé do Lago, a oeste de Macapé, mas hé também sitios a céu aberto, embora sem urnas. Atualmente, 0 crescimento econémico da regido e a falta de protegio trazem uma ameaga a esse patriménio, uma ver que os sitios t@m sido saqueados por colecionadores de nM FOUARDO GOES Neves também na Guiana Francesa, que remontam lo IV ou V. O interessante nesse caso ¢ que ha clara relagio entre os indios Palikur, atuais habitan dda regido litorinea do norte do Amapé e da Gui Francesa, e os grupos indigenas que produziram cerdimicasaristé viveram na mesma regio. Se cort essa hipétese indica que os Palikur e seus ancestrais vivem continuamente nessa drea hd cerca de 1.501 anos, Do mesmo modo que as cerémicas maracé, fanerérias aristé séo também encontradas em grutas, Os sitios a oéu aberto correspondem a antigas aldeias, ‘Alguns deles estio localizados sob aldeias contempor neas, como € o caso de Kumene, localizada no rio ‘Urucaud. As cerdmicas aristé tém grande beleza, mar= cada pela decoragio pintada e modelada e por grande: dliversidade de formas. Talvezo stio aristé mais conhe- ido seja Kunani, um pogo artificial onde se deposita- ram diversos vasos ¢ urnas funcririas, localizado pré= ximo & cidade de Calgoene ¢ escavado por Emilio Goeldi no fim do século XIX. Do mesmo modo que’ as cerimicas de Maracé, os sitios aristé so também ameagadlos pelo interesse de colecionadores particular 1es e pela proximidade com a Guiana Francesa, o que facilita 0 contrabando de pegas. contribuigio dos indios. O favo de haver uma relagio saentre os indios Palikur eos grupos que ocuparam. 72. a regiio antes do in{cio da colonizagio e ite que se utilize a tradicio oral na identifi cestudo de sitios arqueolbgicos na regio. Uma: cia nesse sentido foi realizada em um sitio cl Kwap, localizado as margens do rio Urucaus, esca por uma equipe de indios Palikur juntamente com at= quedlogos e antropélogos. Nos trabalhos de campo, as informagées dos indios foram utilizadas com o fim de identficar éreas para a abertura de escavagGes, norm: ‘mente inacess{veis ou pouco visiveis, jé que o sitio atualmente coberto pela mata. Sem essa colaboracio, asinformagbes obtidas seriam certamenteincompletas. ‘Outros exemplos de participacio ativa e criativa de Indios em trabalhos de campo arqueoldgicos tém ocor tido no alto Xingu e no alto rio Negro. Na regido do rio Uaupés, na bacia do alto rio Negro, a tradigio o dos indios Tariano foi utilizada para a identificagio sitios atualmente localizados sob a floresta. De com a tradigfo oral, os Tariano teriam tido armados com outros indios da regiio quando estabeleceram, mas nio se sabia a0 certo qui teria ocorrido. A escavagio de sitios identifi 28 a histérias contadas de geragio a Indios permitiu que se determinasse que a rio Uaupés pelos Tariano ocorreu por volt do século XV. No alto Xingu, os {ndios trabalhado com arquedlogos e antro} ficagio ¢ mapeamento de grandes 73+ OUARDO GOES weves por valas artficiais e conectadas. meados da década de 1990, havia di uturas eram artificiais ow naturai arqueoldgicos mostraram que as valas € foram construidas, provavelmente pelos Kuikuru, no século XIII. Os achados no mostram também que os processos de grandes aldeias sedencérias nfo se restriny as dreas da virzea do rio Amazonas, tamb em locais distantes de sua calha principal, Por outro lado, grupos indfgenas or entidades como a Coiab (Confederacao ‘gOes Indigenas da Amaz6nia Brasileira) uma pressao cada ver. maior sobre arquedl piiblicos de protegao ao patriménio arqueol manifestam preocupacéo quanto aos usos cimento produzido pela arqueologia e tamby a0 destino dos vestigios obtidos. Recent cavagio de algumas urnas funerérias em Jocalizada no centro histérico de Manaus intenso debate — envolvendo indios, arqi poder piiblico — quanto ao local de guai desses artefatos. © problema nfo foi ainda mas, embora nao haja evidéncias de cone direta entre os indios que ocupavam a r ‘aus hé cerca de 1.300 anos e os mais de 204 que hoje ali vivem, 0 préprio surgimento de “The ‘ARQUEOLOGIN OA AMAZONIA bre o tema é mais uma evidéncia do inicio de nova joca no relacionamento entre indios e arquedlogos, impacto da colonizagdo. O inicio da colonizagio sropéia, a partir do século XVI, pds em marcha um uofundo processo de mudanga entre os povos indi- nas que habitavam a Amaz6nia. A maior prova disso © jd mencionado fato de que, atualmente, grande utc das terras indigenas da regido esté localizada em ineas distantes do rio Amazonas, na periferia da baci n locais como 0 alto rio Negro, o alto Xingu, 0 nalto das Guianas ¢ a bacia do alto Madeira. Para- joxalmente, 4teas préximas aos rios Amazonas ¢ Soli- Wes, ou mesmo a ilha de Marajé, que nao so hoje supadas por grupos ind{genas numerosos, mas sim 1 seus descendentes caboclos, esto repletas de sitios iqucoldgicos, alguns deles de grande porte. A explica- fo mais simples para essa questo & que muitos dos suupos que viviam nessas éreas & época do descobri- wento foram exterminados pela transmissio de doen- contra as quais nZo tinham imunidade, pela guerra pela escravidao. De fato, os relatos dos primeiros: iropeus que desceram o rio Amazonas mostram que |yumas éreas eram mesmo densamente ocupadas. No sulo XVIIL, 0 quadro jé era outro, e muitas regides tavam bastante esvaziadas. O golpe final pode ter ilo 0 ciclo da borracha do final do século XIX ¢ in Jo XX, uma época de extrema violéncia contra os 75+ EDUARDO GOES Nevis {ndios e 20 mesmo tempo de forte ocupagio 26nia por familias empobrecidas de migrant tinos. Foi também nessa época que se ini pesquisas antropoldgicas na regio. Talver.p imagem consolidada entre cientistas e o pill goral sejaade quea Amaz6nia foi sempre es} Povoada, Atualmente, a arqueologia contrib modificar essa visio, trazendo evidéncias de ut hist6ria pré-colonial. E importante, no entanto, evitar interpretagh plistas, ou mesmo anacrénicas, quanto 3 hist ‘Amaz6nia pré-colonial. Um risco, por exempl a suposicio de que as sociedades indigenas p niais estariam seguindo um caminho inexorivel ao desenvolvimento de uma organizagio politica um Estado, e que tal caminho teria sido abortado inicio da colonizagao européia. A arqueologia mos {que as bases econdmicas das sociedades amaz6s sempre foram centradas no grupo doméstico, isto unidade produtiva sempre foi a familia nuclear ‘grupo residencial, organizados no cultivo de mandi ce outras plantas, na pesca, na coletae, em menor es na caga, Tal caracteristica conferia a esses grupos sgrau de autonomia econdmica que criava as condi para o desenvolvimento de formagbes sociais mar pela instabilidade politica de longo prazo, verificada registro arqueol6gico através de sucessivos episédios ocupagao e abandono de grandes assentamentos. T 78+ AROUEOLOGIA DA AMAZONIA vez a partir dessa perspectiva possam ser ex alguns fenémenos interessantes, tais como 0 cola da cultura marajoara no século XIV ou o faro de que 0 apogeu demogrifico na Amazénia central pré-colo- nial tenha aparentemente ocortido no século XI, e nao no XVI. Perspectivas futuras e temas de investigagao Este livro apresentou um quadro sintético ¢, espera-se, coerente da histéria pré-colonial da Amazénia. O re- sultado, no entanto, € provisério e fadado a ser modi- ficado em um futuro nio tio distante, 3 medida que novas areas de pesquisa forem investigadas. Além da calha do Amazonas e de alguns de seus afluentes, ha regides virtualmente desconhecidas pela arqueologia. No Acte, por exemplo, préximo a Rio Branco, achados recentes tém mostrado a ocorréncia de estrucuras arti- ficiais, feitas de terra, com formas geométricas qua- drangulares ou circulares e dezenas de metros quadra- dos de 4rea, conhecidas como geéglifos. Nao se sabe ainda qual a idade dessas estruturas, mas correlagbes com estruturas semelhantes construidas na Bolivia su- .gerem que devem datar do primeiro milénio. No mo- mento, é dificil estabelecer uma correlagio entre os ge6plifos © 0s povos indigenas que ocupam atualmente a regio do alto Purus, Entre outras reas mal conhe- “7 DUAROO GOES NEVES idas, hd as bacias dos ros Javarie Jurus, a bacia do Branco — que inclui quase todo o estado de Roraima. toda a Area de interfhivio no planalto das Gui desde Roraima até 0 Amapé, e ambém o grande in flivio entre os rios Madeira, Tapajés, Xingu e To tins, ao sul. O crescente avango das frentes de color zacio, principalmente no sul da Amazénia, leva sét risco ao patriménio arqueolégico dessas éreas. No inicio deste livro propus que, na Amazéni informagées sobre o passado podem trazer contriby ‘gGes para a resolugdo de um problema do present encontrar a forma mais adequada de ocupacéo regiio. Ao final, espero ter dexado claro que a arqui ogia nos diz que, no passado, as ocupagées hum: foram mediadas por um profundo conhecimento condig6es ecolégicas, expresso, por exemplo, na ti iconografia das cerimicas ou gravuras rupestres. T © desafio sea justamente este: conhecer a Amazdnia partir de seus préprios parimetros culturais eecold os, para que esse patriménio nfo se perca para sempi Cronologia 12000 a.C. Possivel ocupagio da grata Lapa do Sol (val do rio Guaporé, Mato Grosso) 9200 aC. Inicio da ocupagao da caverna da Pedra Pi tada (Monte Alegre, Para) 16000 aC. Ocupagio de diferentes partes da AmazOnia: serra dos Carajés (Para); rio Jamari (Rond6nia); rio Cae ‘queté (Colémbia); baixo rio Negro (préximo a Manaus); alto Orinoco (Venezuela) {6000-5000 aC. Possivel inicio de producio nos sitios da caverna da Pedra Pintada 3500 aC. Inicio da produgéo cerimica nos samby do litoral do Paré (fase mina) 2500 a.C. Inicio da formagio de terras pretas (rio, 1900.2. Ocupagio da ilha de Marajé por bricantes da cerimica ananatuba 300-100 aC. Ocupagio da Amaz6nia cent a Manaus) ¢ do baixo Amazonas (rio Ti grupos fabricantes das cerdimicas da tradi 300-1400 dC. Ocupagio da ilha de ‘que produziram as ce da fase

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