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BRINcAR E SUAS TEORIAS Tizuko Morchida KISHIMOTO ORGANTZADORA Pacheco Amaral 0 BRINCAR E suas TEORIAS nogio 0 sentido chomskyano da criatividade, aceitando as semelhan: ‘gas entre jogo e linguagem. Aceitemos a banalidade da criatividade Segundo esse modelo, quem brinca se serve de elementos culturais heterogeneos para construir sua propria cultura liidica com significa- Oes individualizadas Resta uma tiltima questdo, a de saber se o jogo poderia ser um meio privilegiado de acesso a cultura. E indiscutivel que a cultura hiidica participa do processo de socializacao da crianga, Deve-se considerar que sua contribuicao € essencial? Parece-me dificil de provar. Os que defendem esse ponto de vista parecem movidos mais pelo interesse pelo jogo do que por resultados cientificos. Mas dizer que o jogo e a cultura lddica contribuem para a socializacdo nada significa, na medi- da em que se pode dizer o mesmo de todas as experiéncias da crianga, A titulo de hipétese pode-se ir mais longe. A importiincia das diferen- as sexuais na cultura hidica pode indicar-nos o papel que ela pode Tepresentar na construgao da identidade sexual!*. Mas parece-m teressante ressaltar um outro especto mais estrutural. © processo usa- do na construgio da cultura lidica tem todos os aspectos mais com- plexos da construcéo de significagoes pelo ser humano (papel da ex- periéncia, aprendizagem progressiva, elementos heterogéneos prove. ersas, importancia da interagio, da interpretacéo, diversificagao da cultura conforme diferentes critérios, importancia da criatividade no sentido chomskyano), ¢ no é por acaso que 0 jogo freqiientemente ¢ tomado como modelo de funcionamento social pelos sociélogos. Pode-se entao considerar que através do jogo a crianca faz a experiéncia do processo cultural, da interacao simbélica em toda a sua complexidade. Dai a tentagao de consideré:lo sob diversas formas como origem da cultura. Pode-se imaginar que isso nfo pode ocorrer sem produzir aprendizagens nesse campo, 0 que coloca o problema delicado da transferenciabilidacle. Seja como for, a experiéncia hidica aparece como um processo cultural suficientemente rico em si mes- ‘mo para merecer ser analisado mesmo que nao tivesse influéncia so- bre outros processos culturais mais amplos. ‘Sobre esse arsunto, cf Piers Tap, Mavalino fiisin ce Ufa Touloose: Privat, 1985, caPiruLo 2 K ake Os “LIVROS-VIVOS” FRANCESES. UM Novo PARA{SO CULTURAL PARA NOSSOS AMIGUINHOS, OS LEITORES INFANTIS Jean PERROT visNed Trg de ania ae de Ag O objetivo deste artigo € fornecer ao leitor amostras de livros in- fantis de diversos paises europeus, assim como apresentarthe uma abordagem te6rica da literatura infantil. Proponho-me a explorar as lades oferecidas atualmente aos jovens leitores de manusear Iturais por meio de interessantissimos livros ilustra- dos ~ os “livros-vivos”. Indubitavelmente, o cenério internacional de “livros-surpresa” é ainda dominado pelos mestres americanos ow in- sleses (como jé 0 foi pelos alemies), mas existem jovens talentos fran- ceeses que exibem um magnifico impulso criativo ¢ uma grande atra- fo pelo que continua sendo uma mina de ouro. Gostaria de salientar as tendéncias que demonsiram uma nova conscientiza¢ao por parte de nossos criadores de arte ¢ de nossas editoras, mostrando como & sensibilidade do publico leitor moderno enconira-se profindamente afetada pelo espiito das brincadeiras e dos jogos. Mostrarei também que as formas que esses livros assumem reaicam ¢ estimulam 0 gosto pela leitura, por prenderem o leitor ao prazer do mundo encantado (0 BRINCAR E SUAS TEORIAS das “surpreses” literdrias, Este artigo permitir-me-é reforgar varias idéi- as essenciais de pesquisa em que me encontro engejado ha alguns anos. A LEITURA E 0 FAZ-DE-CONTA LITERARIO Acredito nao precisar insistir muito em certs fatos como, por exem- plo, na evidencia de que as dificuldades de leitura n4o podem ser in- teiramente explicadas através de referéncias sistemiticas 20 ambiente social da crianea, pois so, em parte, conseqiiéncia de uma disfuncéo afetiva dentro do seio da propria familia. Com relagdo a isso, vernos que 0 modo como 0s livros sao apresentados e a desdramatizagao do ato de ler, reforcadlos pelos “livros-vivos”, devem ser levados em con- ta como parte das estratégias para atrair os nfio-leitores, pois a apa- rente gratuidade e a aparéncia de brinquedo desses objetos fornecem Ihes a qualidade de presente e de disiracao, tirando-os do contexto das obrigacdes ¢ dos trabalhos escolares e, aparentemente, oferecen- do um alivio para o cansativo jogo de integracao cultural. Em segundo lugar, que o prazer de ler que se fundamenta no faz- de-conta é constantemente antecipado pela dinamica das invengoes edi- toriais. A fim de sobreviverem, 03 editores sao levados a inventar, inces- santemente, novos objetos, expressando, assim, mais preocupacéo pro- fissional com o lucro do que com o crescimento intelectual da crianga. A inovaglo técnica, porém, fundamentada no prazer dos préprios criado- res, serve, entiio, para promover o desenvolvimento completo da ilusio literdria, que, em nossas sociedades, governadas culturalmente pelo principio do prazer, depende da crescente imj cia. do hidico. E preci- so lembrar que a palavra <> vem do latim <>, que significa <>. E sabe-se que a leitura e o faz-de-conta esto associados & decodifica¢ao dos signos lingiiisticos. Embora esses ofere- ‘cam uma abertura para @ abstragao, acabam tomando o processo dificil para os leitores nio familiarizados com os cédigos culturais dominantes, segundo os quais as constelacdes de imagens e de sistemas so compre- 08 *LIvROS.VIVOS" FRANCESES endidos como substitutos daqueles objetos, que so colocados de lado, simplesmente por encontrarem-se ausentes. Os “livros-vivos” e as imagens sfo ferramentas e mediadores que entram no hidico, ajudando o leitor a “deslizar”, por assim dizer, pelo “prazer do texto”, indo de um universo tridimensional para um bi- dimensional, governado por convenc6es pictoricas, tais como a lei da perspectiva, ou outros processos abstratos. O prazer do leitor vem da ‘compreensao implicita dessas leis que governam 0 campo da repre- sentac&o, pois os brinquedos, se concordarmos com as teorias de ‘Winnicott em 0 brincar ¢ a realidade, so substitutos simbélicos para 0 corpo da mie, Freud, na sua consideragao basica sobre a psicologia da brincadeira, na famosa anélise de <> ou de <> =o jogo de balangar” em Beyond the pleasure principle (Além do princi- (pio do prazer) (1920-1953-1974), também’ demonstra a gratificacdo ‘alucinat6ria obtida por meio desse proceso. Do mesmo modo, toda producio de faz-de-conta precisa ser compreendida funcionalmente: imagens ¢ representacées tém a fungio de reatualizar as figuras de autoridade, que tornam a autonomia possivel. Do corpo e da pele da mae para o andador ¢ dai para o ursinho de pelicia, a boneca ou outro brinquedo e, a partir deles, para imagens ou sistemas incorpore- dos aos livros. Consegue-se a transferéncia de um significado pelo poder da imaginacdo, tendo nosso mundo concreto como ponto de partida para um mundo mais abstrato e subjetivo. Os cenatios e os livros animados brincalhdes sio espécies de <>, smundos intermediérios, que suprem a seguranga perdida, negada pela perda do mundo real. Alguns livros feitos de pelicia proporcionam prazeres equivalentes aqueles obtidos pelo contato com a pele da mae, ¢ livrinhos de borracha macia, tais como J'ai faim (Estou com fome) lime V'eau (Gosto de dgua), de Benedicte Guettier (Loulou et Companie, Ecole des Loisirs, 1994), podem ser “lidos” no banho. O primeiro de- les mostra um peixinho que vai comendo animais e objetos cada vez maiores, ao mesmo tempo em que se torna, também, cada vez maior; © segundo, mostra um gatinho que passa por vrias situagdes que © fazem ter contato com agua e que, no final, sofre uma mutagio sim- bélica, pasando do mero prazer fisico dos exercicios corporais (um © BRINCAR E SUAS TEORIAS dos primeiros estagios das brincadeiras infantis, de acordo com o psi- célogo suico, Jean Piaget) para o prazer oral, quando o gato declara que prefere sorvete a égua! Outras substancias plésticas diferentes conseguem outro tipo de sratificaco psicologica, ao unirem leitura e sensacéio digital, fazendo com que a compreenséo surja de conexdes sutis. Por exemplo, Oiseau rouge (Péssaro vermelho) de Patrick Fort (Chardon Bleu et Laurence liver Four Editions, 1987) mostra um avigo voando por um céu tem- pestuoso, onde encontra patos selvagens e, finalmente, consegue aterrisar com serenidade. E um livro montado por estruturas levemente salientes que podem ser palpadas com os dedos e que vémn acompa- nhadas por sinais em braile (Jean Perrot e Rhonda Bunbury, 1994). O leitor encontra-se a meio caminho entre a Jeitura propriamente di a exploragio concreta convencional de um espaco imaginado. Tais livros, no entanto, no se “mexem” no sentido exato da palavra, mas, a0 se voltarem para um universo tridimensinal, diferenciam-se dos livros comuns e encaixam’se no campo dos brinquedos, criando um. tipo de cumplicidade baseada em formas primitivas de leitura. Pode- mos também mencionar a pequena série Hatier de livros ilustrados, de 1991, de Grégoire Solotareff, Bébé ours (Bebé urso) ou Bébé lapin (Bebé coelho) etc.,. com paginas denteadas revelando objetos significativos: 0 Sol, a garrafa de leite, etc., que so embleméticos das cenas mostradas nas paginas. Ha também uma publicagéo do mesmo artista para a Ecole des Loisirs, os livros da Loulou et Compagnie, de 1993-1994, que tém 0 formato do animal ou da coisa que pretendem representar {am crocodilo, um barco, um carté, etc.). Bobby e Jack, produzidos por Nadia, irma de Grégoire Solotareff, também tém, respectivamente, as formas de um coelho e de um urso. Finalmente, “livros de palavras cruzadas”, como Jeux de lettes (Jogo de palavras), de Lionel Koechlin (Circonflexe, 1990), tendem para uma total desconstrugéo Iidica do ivro, exatamente daqueles elementos responsaveis pela formacao do sentido, Os livros e os brinquedos parecem, assim, “fantasmaticamente? combinados para dar a ilusio de cumplicidade entre desenhistas contadores de historias a servico da causa da infaincia ¢ do estimulo & leitura... 0S *LIVROS.vIVOS" FRANCESES A TERRA ENCANTADA DAS SURPRESAS O passo seguinte da verdadeira <> das imagens se da com livros como Archimboldo, concebido por Véronique Grange-Spahis, € Sylvie Ducas pare a colecdo Lart qui Bouge (Arte Mével), Fleurus Idées, 1995, que mostra uma espécie de desconstrucao do famoso qua- dro de Archimboldo, Verda, reduzido progressivamente aos seus meno- res elementos: para se ter a ilusio de movimento basta folhear rapida~ mente as paginas do livro e o quadro parece, surpreendentemente, se compor ou, simetricamente, se decompor ~ os vegetais que formam 0 rosto do homem no quadro parecem se soltar. Na tiltima pégina, 0 ho- mem parece fazer uma careta ironica para a brincadeira espirituasa, que se apresenta como um verdadeiro trique de magica no texto. A hist6ria comega como um conto de fadas, sendo 2 abertura feita por trés avelds que parecem constituir 0 trunfo da personagem, “a noz”, e que sdo apresentadas por uma espécie the cantiga de “Line, deux, trois noisettes. Cric, crac, croc je les croque” (Uma, duas, trés ave crique, craque, croque, quebro) Entfo aparece as duas cerejas, que no quadro ficam em cima das avela “Deux petites cerises exquises au bout de leur tige (Duas pequenas cerejas vermelhas na ponta das hastes volteiam) Charadas sucessivas levam o leitor & pergunta final: “Quem € voce?” Assim, o humor desconstrativo revela um aspecto constitutive a “leitura”, que desperta antecipadamente o interesse do leitor, quan- do esse apreende as associagdes inesperadas, 0 que explica por que os Ieitores somtiem quando manuseiam o pequeno livro de Véronique Grange-Spahis. Podemos encontrar outro tipo de livro <> bem simples e eficiente na série Mes premiéres decouvertes (Minhas primeiras descber- 1a}, editada. pela Gallimard, que recebeu o prémio de nfo-ficcio por essa série, na feira do livro de Bolonha, em 1989, Um desses livros, Le temps (O dima), de Sophie Kniffke, 1991, co do tlio livro que mencionamos, mostra as diferentes estagbes do ano ilustradas por cenas exteriores dispostas em paginas duplas inteiricas, entre as quais se move uma pelicula transparente, que re- vvela partes da paisagem nelas pintadas. Assim, pode-se ver como 0 arcoviris nasce e cruza o horizonte de uma extremidade a outra; ou se tera ilusio de uma pipa voando e sumindo na distancia, Nesse caso, 0 objetivo do estratagema é provocar admiragao frente a descoberta de movimentos ¢ regras secretas da cena revelada pela pelicula; ja no caso de outro livro da série, intitulado O ava, que mostra como o pin nho se desenvolve dentro da casca e, finalmente, quebra-a para seir, 8 intengdo € explicar os mistérios da vida. Esses livros sdo realmente “monstros” no sentido latino da pala vra, que significa etimologicamente “monstrare”, isto é, “mostrar”, Eles colocam em evidencia o que normalmente néo faz parte da conscién- cia convencional do leitor na construcio do universo dos sentidos e de suas personalidades. Assim, consegue-se despertar uma sensagdo ime- diata nas criangas, cuja cumplicidade ¢ representada por meio de uma piscadela verdadeira de uma das personagens, como acontece em Un sourire il cous plait (Sorria, por favor), outro tipo de livro ilustrado de Jean Claverie (Albin Michel, 1986). Nas paginas desse album, pode-se ver iim fot6grafo, em um parque de diversio, tirando fotos de perso- nagens em um painel de foto-montagem, em que apenas 0s rostos si0 visiveis; mas ao se abrir as abas da cart |, Tevelam-se mal jose (08 “LIVROS-VIVOS" FRANGESES ‘mente aspectos inesperados dos trajes. Por exemplo, 0 poreo, que parecia um general numa bela roupa militar, veste um macacio sujo embaixo da farda, etc. A zombaria ditigida & personagem pomposa tem caracteristicas da irreveréncia do humor popular, que provoca sorrisos no leitor ingénuo. Essas caracteristicas exercem sua influéncia através de varios arti- ficios repetitivos como, por exemplo, em Je vews ma maman (Quero mamas), também de Jean Claverie (Albin Michel, 1986), 0 menino, que procura desesperadamente pela mae, aparece, sucessivamente, chamando diferentes fémeas de animal de “mamae": uma porca, uma ‘macaca, uma canguru. Tentando escapar dos ternos carinhos da pri- meira, que o lambe maternalmente, ele reclama: “Voce ngo é ma: mie! Onde esté minha mame?” O menino esta desenhado numa ‘aba de cartolina, que se abre ¢ deixa o leitor ver o filhote certo embai- xo dela: um porquinho, que parece muito satisfeito com a aflicac amorosa do menino, Esse desdobramento vai revelando as posigdes adequades que, presumivelmente, se deve assumir para conseguir fe- licidade na vida. Mais adiante, o menino, que por engano parecia ter encontrado refiigio na bolsa de uma canguru, é substituido pelo legit mo dono do lugar, quando a imagem escondida aparece. Finalmente, quando o menino-heréi encontra sua verdadeira mée, primeiro, ele aparece correndo em direcZo a ela com os bracos abertos e, entéo, sob a aba, vemos a mie ajoelhada, abracando-o fortemente. Nesse caso, a leitura corresponde a satisfaca0 progressiva de um profimdo desejo ~ a fusio amorosa primitiva com 0 corpo materno, cuja satisfa- cio é protelada, ficando mais aflitiva por causa do suspense brinca- Théo. Como em Archimboldo, 0 cenério baseia-se, também, num jogo de <> € na surpresa da revelagao final © que melhor ilustra @ “suxpresa” no folclore infantil francés sio as caixas, chamadas de sacolinhas, vendidas em padarias ou supermer- ceados, e que sio abertas com uma alegria ansiosa, s6 pelo fato de & crianga pensar nos presentes inesperados: brinquedos e doces que podera encontrar. Tal fato expressa a vibragéo e dependéncia da cri- ‘anca ao receber o presente do adulto — um substituto transacional ti co para o sentimento de incluso reciproca dual, dentro do sistema 0 DRINGAR F suas TEORIAS familiar. E um marco que ilustra o funcionamento seguro e feliz da imaginacgo infantil, e permite que a crianca dé os primeiros passos decisivos de sua iniciagao cultural, como demonstrei em Du jeu, des enfants et des licres (O brincar, o jogar, as crianas ¢ os livros) de 1987. (CELEBRANDO OS RITUAIS INFANTIS Jean Cleverie consegue um excelente resultado ao fazer a integrago lidica do relacionamento afetivo, como mostra o livro Toc, toe, Toque, toque) de Albin Michel (1986). Nessa historia, cada novo personagein que aparece traz‘um presente. Quando chega o primei- ro, que € 0 camundongo, a parte de cima da porta, imitando vidro, parece vazia e nao deixa que o leitor adivinhe nada: a personagem é muito pequena ¢ fica oculta pela estrutura de cartolina que suposta- mente a deixaria entrar. Na segunda pagina, o camundongo 6 mostra- do no extremo oposto da sala, quando o gato bate na porta. O pacote © 2 personagem sio maiores dessa vez e da para ver o primeiro atra- vés da parte superior da porta. Esse gato, logo seré seguido por um cachorro. Como 0 pacote torna-se maior, assim como cada animal que chega, © leitor & Jevado a especular quem sera o tiltimo convida- do. Esse ultimo visitante, nao podera ser identificado pelo seu pacote, que seria grande demais, entio 0 seré por um circulo enigmitico, re- presentado dentro da moldura vitrificada da porta. O leitor adivinha- ré corretamente, quando tiver em mente a logica da série crescente, pois 0 circulo é 0 olho de um elefante, e esse carrega um pacote enor- me. Quando mostro o livro para adultos, geralmente experimento 0 prazer malicioso do autor, que tenta frustar a expectativa do leitor: surpreendentemente, percebe-se até que ponto a leitura é realmente uma questao de projecao pessoal, pois ao verem o efrculo na pagina, freqitentemente dirao que ele representa o olho da mae, a Lua, ou ‘uma coruja, esquecendo-se de que 2 série limitou-se a mostrar ani ‘mais que se tornavam cada vez maiores. E claro que as outras sol 05 “LIVROS.VIVOS" FRANCESES ‘0es sto bastante possiveis, mas pressupdem outras regras de progres: sfo, sendo que as criancas geralmente atém-se primeira solugd que sdo especialmente sensiveis a animais; enquanto que os adultos, imaginando que o iltimo visitante é uma mée, projetam suas preocu- paces paternais nas imagens. ‘A.cena final é muito persuasiva para os pequeninos, pois mostra co grupo todo de convidados animais em volta da crianga que esta sen- tada ao lado de um enorme bolo, celebrando seu aniversério. A crian a, como rainha da festa, 6 uma situacdo-chave na representacao hidica dos “livros- vivos” contemporaneos, nos quais a cena final fornece 20 leitor a surpresa desejada, a verdadeira gratificagdo da leitura, Nesse ‘caso, a ficgdo reforga um sistema estrutural, cujo maior lucro, além do prazer dos relacionamentos afetivos, parece ser a integracio de pi cessos cognitivos, como fica mais evidente no caso dos “livros-vivos” que revelam séries de animais e que tem como objetivo ensinar as criangas a contar até dez. Em minha opinigo, nenhum outro livro, nes- se campo, se iguala a0 maravilhoso e recente One to ten pop-up surprise 2r0-viv0 ~ surpresa”), publicado por Chuck Murphy, em 1995 (Santa Fé, Novo México, EUA: White Heat Ltd.), Em todos esses livros, 0 estimulo intelectual baseia-se no movimento das estru- turas de papelio, concorcando implicitamente com 0 método de Georg Groddeck, demonstrado em Das buch om es (Groddeck, 1923), de al- cangat ¢ agir no “eu inconsciente” do leitor, o “id”, em vez de no “eu consciente”, O mundo encantado das surpresas € aquele da cultura e, na Fran- «2, encontrar-se-4 outro exemplo de iniciacao cultural beneficiada pelas 4 colecées de livros de arte concebidos no padrao do Arleguinade de Robert Sayer, de 1765. Esse livro consiste em paginas divididas em tiras horizontais, um dispositive que permite ao leitor construire ves- tir personagens misturando e trocando as diferentes partes de seus corpos (Baudouin van Steenberghe, 1994, 12). Esse mesmo esquema é adotado numa colegio de livros de arte, Liart en jew, produzida para 0 LAtelier des Enfants du Musée d’Art Moderne (Centro Georges .,em Paris) por Sophie Curtil. Por exemplo, no livro La tour © BRINCAR F SUAS TEORIAS Eiffel (A torre Eiffel) de Robert Delamay, (1987), a desmontagem do quadro do pintor se processa por meio da projecdo de diversas abas & através da sobreposicio de duas frases significativas. A segunda delas die “Avec des lignes et des couleurs (Com linhas e cores) artiste pei (o artista pinta) le tableau (o quadro).” Ea préxima diz: “D’un bout a autre (De uma ponta a outra) le peintre construit (0 pintor consti) la tour Eiffel (a torre Eiffel).” Os outros livros bem sucedidos da cole double secret (Maigrite, 0 duplo segredo) e Brague femme a ta guitarre ( her de brague com violdo), seguem principios similares utilizando-se da brincadeira de desdobrar as paginas com “surpresas gratficas” e “jogos graficos” que, presumivelmente, despertarao o interesse da crianca or museus e que, com certeza, ja facem a delicia dos jovens leitores. Esses livros, temos de reconhecer, tendem a recorrer mais a estimulos intelectuais do que a afetivos; sendo que os melhores so aqueles que oferecem ao leitor um prazer maior do que a mera descoberta de “surpresas” através da celebracao pessoal de uma festa de aniversério, Sao aqueles que tratam dos mitos sociais, como por exemplo, a entrega de presentes de Natal. Entre esses, Santa Claus's surprises (As sunpresas de Papai Noel) continua sendo uma das mais ad- miraveis producdes do género, mostrando que o melhor presente para as criangas da classe média da época era o prazer esquecido do dia-a- (Os “livros-vivos" ainda surpreendem as criangas ricas, em socie- dades onde as benesses da “classe privilegiada” do século XIX, para ‘usar termo de Thorsten Veblen alcancam um némero maior de “con- sumidores", E preciso lembrar que tais prazeres continuam inacessi- veis & maioria das criangas do mundo. 05 “LIVROS-vIVOS" FRANCESES O TERRITORIO DAS DIABRURAS Se o objetivo dos brinquedos e dos jogos 6, parcialmente, canali- var a agitacio infantile assegurar a homeostase cultural que regula a dependéncia recfproca entre adultos e criancas, por meio da repre- sentagio simbélica da fuséo indistinta do grupo familiar (Perrot, 1992), 6 importante irmos até 0 outro extremo do faz-de-conta € pensarmos sobre aquelas criangas que questionam a “Lei do Pai" e recorrem & violencia como expresso de liberdade, A melhor maneira de fugir | das regras normalmente aceitas pelo grupo € por meio de diabruras. | As traquinagens e o humor cruel sao formas de violéncia toleradas, que tém como objetivo contestar ou avaliar alguns elementos da. cul- fura em questio, conforme mostraré um exame minucioso das Cartas de Papai Neel, de J.R.R: Papai Noel e 0 Urso Polar representam as duas personagens polares do reino imaginério de Tolkien, o primeiro presenteando com as surpresas de praxe, e o segundo fazendo o pa- pel do garoto brigéo e do Senhor da Desordem. Ea melhor travessura do urso ocorre quando esse vai, como se fosse uma crianga malcom- portada, até o “buraco dos fogos de artificio” - onde estio guardadas milhares de caixas de “bombinhas” — ¢ ali derruba uma vela, provo- cando uma queima de fogos magnifica, que faz lembrar uma espécie de Destronamento bakhtiniano do Rei Momo. No campo social, @ queima de fogos, por meio de forcas contestadoras ou de criangas desregradas, é anélogo 4 habilidade dos adultos em utilizar a chaminé da lareira, no Natal, para demonstrar sua forga através da magica po derosa dos presentes e das supresas, Os cendrios de destruigéo e de humor negro, que expressam a negagéo impertinente da ordem social, aparecem nos “livros-vivos” de uma forma muito simples e especial. Por exemplo, Sacrée famille (Que familia’), um dos livros da série de quatro de Amato Soro, publi- cado pela Syros em 1988, traz, em uma das paginas, duas criancas sorrrindo maliciosamente que parecem estar brincando de cabo-de- guerra - um em cada ponta de uma mesma corda -, mas quando 0 leitor abre a pagina, desdobrando-a para a direita, aparece a figare de um avé, € 05 dois pestinhas sdo pegos no pulo, cada um puxando uma das pontas do bigode do velho. Em outro quadro, uma mulher parece estar amamentando o bebé com uma mamadeira mas entre os dois surgird um carro, que estava escondido sob a pagina dobrada, reve- lando a verdadeira situagao: ela esté despejando o contetdo da ma- madeira no tangue do automével e a crianca esté sugando a extremi- dade da mangueira de gasolina! Em outra cena, uma pessoa descuida- damente arremessa latas de conserva em um carrinho vazio; mas um segundo carrinho aparece nas “asas” da pagina, mostrando uma cri- anga soterrada por verduras € sacolas de mercado... A familia da cri- ange que, no comego, esta sendo fotografada, também desaparece simbolicamente em uma armadilha, que havia sido escondida pelo fotografo sob a aba dobrada A impressio geral causada por tais livros ilustrados € de uma “es- tranheza freudiana inquietante”, jé que 0 cenério tende a retratar 0 desempenho de meros fantasmas agressivos, disfarcados somente pelo excesso que pretendem enfatizar. Um dos livros da série até se chama Estranko, e mostra uma ago bratal, na qual um homem, tomando 0 café da manha com a familia, decepa o crinio do proprio pai, pois fora induzido a pensar ser esse um ovo cozido ~ somente quando se levanta a aba, pode-se ver o velho com o nariz enterrado na tijela do filho! Tais fantasmas, entretanto, ndo séo meramente gratuitos, pois enfatizam a necessidade da perda na formagio da personalidade. Embora ridicularizem grotescamente, também sugerem o processo de integracio do “lado obscuro” da psique humana. Nao é de estra- shar que tais livros caiam no gosto dos jovens, sendo freqitentemente rejeitados pelos adultos pelo excesso de crueldade... Ainda assim, a liltima personagem desse livro, que salta de tras de uma mascara, nao € outra seniio a do palhaco ~ 2 antitese anéloga de Papai Noel, no Jogo social. Assim, pode-se concluir que os “ a0 projetarem tais estruturas de papelio, expressam a vontade de realizar sonhos secre- tos ¢ encontram-se em contraste direto com os buracos recortados nas pginas que, freqtientemente, parecem turbilhdes de ciladas psi- os “LivRos-vivos" FRanceses coldgicas, que conduzem a abismos simbélicos - como tantas “feri- das” — em alguma terra imaginéria, onde o sujeito pode acabar se per- dendo. Ambos 0s tipos, entretanto, recortem & mesma estética que, agora, analisaremos sob outra luz, em livros destinados néo a divertir ou distrair mas, somente, a instruir. EXPLORANDO © MUNDO CONCRETO POR INTERMEDIO DA ESTE- TICA BARROCA Um breve exame historico mostra que os “livros-vivos" origina- ram-se da estética barroca, com a Revolucdo de Copémico ¢ 0 desen- volvimento da Medicina: um dos primeiros “livros-vivos” de que se tem noticia, Petri apian cormegraphia, foi publicado em 1540, em Flo- renca. Embora néo tenha sido, explicitamente, concebido para crian- cas, € formado pela esfera de um globo, montado com precisto por fitas recortadas em papel fino, que se projetam no espaco tridimensional, conforme as paginas vao sendo abertas (Baudouin van Steenberghe). Um outro descreve, por meio dos mesmos estratage- mas, o interior do corpo humano. Séo caracteristicas que represen- tam uma nova linha pedagégica da época e estilo incorporadas a esté- tica barroca, fruto da Contra-Reforma em Roma, que anunciava ume mudanga religiosa caracterizada pelo desejo de educar, levando em consideragao os sentidos e a imaginaco. Segundo Gilles Deleuze em Le pli, Leibniz ot le Baroque (A dobra, Leibniz e a Estetica Barvoca), de 1988, a arte barroca expressa-se melhor pela dobra ~ motivo cultural € item que, no sistema filoséfico de Leibniz, revela uma continuidede nna natureza muito mais adequada para a descricao das forcas mate- riais do que a concepcio cartesiana da progressto linear da luz. A do- bra, a menor parte da matéria, encontra-se em nitido contrasie com a bola. Conforme sugere Deleuze, ao compreendermos que a arte do n sabor barroco (Deleuze, 9), conseguimos ampliar nossa a respeito do “livro-vivo", ja que é uma arte que marca os esta- © BRINCAR E suas TEORIAS gios de continuidade entre as forcas material e espiritual. A mola 6, também, um item muito significativo para o batroco, e a multiplica- a0 dos objetos que pulam e saltam nos “livros-vivos” testemunham ser ela permanente e predominantemente utilizada na criac&io de “sur- presas”. A presséo sistemética das forgas plasticas, que comanda a re- presentaciio cientifica do mundo material, nos livros modernos, apre- senta formas de vida inesperadas. Unt livro que ilustra bem esse aspecto é 0 de Francois Michel, com desenbios de Philippe Davaine, Dans le secret des roches (Partilhando 0 sigredo das vochas), publicado pela Edigdes Bayard, em 1989. £ um livro ilustrado, idealizado por um professor de Geografia, Francois Michel, com o intuito de representer concretamente 0s processos pe- Jos quais passa o solo até chegar aos diferentes formatos das paisagens geogrdficas. Por exemplo, em uma das péginas que explicam a ori- gem do carvao, deve-se puxar uma alga de papel para que apare- am as érvores mortas acumuladas nos pantanos. A estrutura, quan- do ereta, restaura a floresta antiga ¢ apresenta os vérios estdgios da formacao do carvao. Em outra pagina, abrem-se rosas-de-vento de arenito e aparecem penhascos, com pedras nos topos de colunas imen- sas. Sob as dobras de papelio, surgem fosseis, deixando entrever pe- dacos de cristais de rocha, os quais dao a impressao de terem se parti- do em um passe de magica. Os veios de carvéo permanecem, como festa da energia em funcionamento em algum tipo de universo leibniziano. E as pedras preciosas e os geodes sio teste- munhas da riqueza e do esplendor da natureza, A estrutura saliente de algumas plataformas maritimas de petré- leo ¢ os dois clevadores usados para descer e subir da mina de carvao, que funcionam por meio de uma outa aba, sto também heranca das méguinas tipicas do palco barroco. Apareceram, por exemplo, em Aleeste de Lully ou, com mais propriedade, em Entretiens sur la pluralité des mondes (Discussies sobre a pluralidade dos mundas) de 1686, de Fonteneille. Jénaquela época, o novo filésofo, ao ensinar as leis da gravidade para os Duques, utilizava as imagens tiradas da 6peta Phacton de Lully para explicar como uma carga consegue descer e a outra subir, quando 08 *LIVROS-VIVOS" FRANCESES balanceadas por pesos equivalentes; assim como faziam os deuses que desciam das bambolinas do tablado nos palcos do século dezesse' maravilhando o piblico ingénuo e supersticioso. Com seus tracos téc- nicos, 0s “livros-vives” proporcionam o tipo de repeticio cultural da mutagao barroca, que foi aperfeicoada com a chegada dos fil6sofos do Iluminismo, insistindo na estética da curva € da dobra, como j& pudemos observer. Portanto, as elipses ¢ os circulos de rotacio dos planetas, as do- bras com as massas de ventos e 4guas, que fazem com que as estrutu- ras saltem e fiquem eretas, caracterfsticas de muitos dos livros publica- dos pela Edigdes Gallimard na colegao Le racine de savoir (As ratzes do ivros-vivos” cientificos € saber), resumem o mundo turbulento dos sugerem a unidade necesséria entre 0 Universo e’@ mente do leitor. O 10 deve ser elevado e inspirado por influéncias sutis, arrancado de seu poderoso universo natural e conduzido até um paraiso cientifico pelo incoercivel desejo de “aprender” e compreender. ‘Como é normal acontecer com a cultura e o folclore infantis, a desdramatizacao das leis coercivas da pedagogia severa acabam pro- duzindo objetos parddicos de formas de comportamento ridiculas: a antitese da escola é 0 circo, onde se pode conseguir tais maravilhas liidicas ridiculas. E 0 que acontece no livro ilustrado Ludo, le petit dompteur gui n'a jamais peur (Ludo, 0 pequeno e destemido domador de ‘eées), criado por Jerome Bruandet com ilustracdes de Thierry Dediew ¢ poemas de Marie-France Floury (Nathan, 1995). Através de situa~ des divertidas, retratadas em sete cenas, 0 livro se move em diregdo A iniciagdo poética: na primeira pagina, Ludo, 0 garotinho, desafia as leis da gravidade, ao usar seu ursinho de pelticia como se fosée halteres. A brincadeira é puxar a ala que controla os movimentos dos bracos do menino para que, alternadamente, subam e descam, escondendo e mostrando seu rosto. Outro truque muito hébil acon- tece com 0 cachorro que nao quer comer, mas é obrigado a fazé-lo por meio de um simples “abracadabra”, que faz a comida desapare- cer do prato. A iltima aba ajuda o menino a beijar seu gato, dando ‘uma conclusao ealorosa ao shew. A contra-capa do livro apresenta-o © BRINCAR £ SUAS TEORIAS como “repleto de poesia, humor e surpresas”. Notemos que esse li- vro é, que eu saiba, o primeiro “livro-vivo” francés no qual o inven: tor dos estratagemas é apresentado como ingenicur en papier (enge- nheiro de pape), 0 que enfetiza o aparecimento significative de uma nova profissto no campo da cultura infantil, que vai ao encontro de novas necessidades e prazeres. ENCENANDO 0 CONTO DE FADAS DO DESTINO DO HOMEM Muitos “livros-vivos”, entretanto, nfo se-baseiam somente em estratagemas humoristicos ou preocupagtes cientificas, sendo que os mais bem-sucedidos combinam o espirito Kidico com ensinamentos ‘morais ou de integrac&o social. Nos melhores, a extensio da historia vai além da mera sucesso de efeitos cOmicos repetitivos encenados em uma tinica pagina ou em paginas duplas, tendo um enredo bem alinhavado que une as diferentes paginas em uma narrativa concise. Um exemplo ingenuo desse processo pode ser encontrado na colecéo “Os mascarados”, criada por A. Monney e J.P. Barbier para as Edi- ‘gGes Hatier, em 1985. Em La renconire (O encontro), por exemplo, um expediente muito simples consiste em fazer com que dois buraces per- farados no livro coincidam com as extremidades de binéculos ou de culos. A histéria diz ao leitor o que ele ou ela deve fazer para ficar amigo de alguém: primeiro, observar a pessoa pelo binéculo; em se- guida, pelos buracos de uma cerca, etc, Como essas tentativas fracas- sam, a maneira mais simples de terminar « busca, de acordo com a informacdo na tltima pagina, nao é olhar para a pessoa que se quer por amigo ou amiga, mas aproximar-se dele ou dela. Nesse estégio, embota os buracos nao sejam utilizados para olhar para fora do livro, ‘causam essa impressio, sendo cada um deles 0 olho de uma das duas personagens: um menino e uma menina encarando-se e com 2s pon- tas dos narizes tocando-se. Outro livro da colegao, % votlé masgué! (Agui estds mascarado!), dos mesmos autores, pode ser usedo como uma 05 *LIVROS.VIVOS" FRANGESES ‘miscara de verdade pelo leitor, que € convidado a se identificar “de dentro” para as personagens retratadas. Como alguns deles sso mons- tros terriveis, pode-se experimentar o sentimento primitive de temor, gerado pelo uso de méscaras, segundo Roger Cillois em Les jeux et les hommes, Le masque et le vertige (Os jogos € 0 homem, A méscara ¢ a verti- ;vro-vivo” francés, em minha opinido, Pomdarinette, Lapprentie sorciére (Pomdarinette, @ aprendiz de feticcva), criado por Elzbieta para Pastel, I'Ecole des Loisiers, em 1993. Ele dé um passo & frente em relagdo & integracio do destino do homem as estruturas movedigas dos papeldes, que se enquadram com perfeicao nos altos € baixos do enredo de um verdadeiro conto de fadas, que termina com ‘© casamento dos her6is, © livro, na verdade, comeca como um paleo de teatro, da mesma maneira que Plaine Lune de Frédéric Clément (que pode ser traduzido por Lua cheia ou por Simplesmente Lue, j& que no dé para conservar o trocadilho do titulo em francés), E um livro esteticamente magnifico, mostrando as metamorfoses magicas da Lua que, primeiro, se transforma em um péssaro, para entio dissolver-se ‘em uma onda, etc.) A historia de Elzbieta também trata de metamor- foses e arremessa Pomdarinette, uma jovem e, com ela, 0 leitor, em ‘um “floresta densa e escura”. Lé, é claro, ela encontra um passarinho, cujos movimentos gerados 20 se puxar @ aba de papelio, parecem imitar o ritmo das palavras que repete sem parar para amenina perdi- da: “Quem é voce, o que € que voce fax? Quem & voce, o que € que vocé faz?” A jovem, como Chapeuzinho Vermelho, também encontra Lobo, Ela o noceuteia com a sombrinha, com a qual, repetidamen- te, aceria sua cabeca, todas as vezes que ele tenta se erguer por tras dos arbustos, onde esté escondido. O proprio leitor consegue fazé-lo, 0 puxar ritmicamente as duas abas, dando a impressio de que as stracbes correspondem fielmente as agbes da hist6ria. ‘As coisas pioram, 0 que aumenta o deleite do leitor, quando © “esqueleto no papelio” (uma parédia do romance vitoriano de boas maneiras), ganha vida ¢ conta a formula magica da feiticeira na tenta~ tiva de ajudar Pomdarinette. Primeiramente, 0 Jobo vira um rato, trans- formagao que se materializa no livro pelo destizamento e sobreposigéo de retalhos horizontais de papel colorido. O préximo passo até mais primitiva, ja que fora encantado pela feiticeira. A primeira tentativa parece fracassar, pois o esqueleto transforma-se em um ovo, ¢ tem-se @ impress de que Pomdarinette usou a formula errada. Mas o rato acaba pulando no ovo, que cai no chio e se quebra, liberando o Prin- cipe Encantado, que fora seqtiestrado pela Feiticeira. Consegue-se essa faganha, facilmente, por meio da manipulagdo de uma estrutura de papelio rotativa, cujo movimento, em volta de uma cortina central verde, alterna a visio do esqueleto e da ovo, Para reforcar os efeitos ‘materiais, antes da transformagao final, o ovo é envolvido por uma luz, A ttima cena mostra Pomdarinette e seu amado Principe voando em uma vassoura de bruxa e dando tchauzinho, sendo que o leitor 56 tem de puxar a cortina vermelha do palco sobre essa imagem para encerrar 0 show. O passaro e 0 rato sio as tinicas testemunhas desse melodrama representado no palco. Tudo esti bem quando acaba bem, no melhor dos mundos possiveis. A perfeicio desse livro, que se apresenta como uma das novas maravilhas da cultura infantil, salta da perfeita adequagio dos estrata- gemas de papelio para o espirito especifico da histéria: truques magi cos € a inversio humoristica das situacées combinam-se para conferir um ritmo vivo ao conto de fadas, que fica no meio do caminho entre um sonho encenado e a realidade, entre um show de marionetes real e ‘95 acess6rios ilusGrios do contra-regra. Tudo caminha para a bem- aventuranga final dos herdis, cujos desejos sao satisfeitos em um mun- do idealizado especialmente para que conquistem a felicidade. Os el ‘mentos concretos do livro materializam as intencées morais dos adul- tos, inclinados a oferecer a crianca vis6es otimistas do futuro que, para arse, principalmente, no dominio do significante que esté sendo trabalhado no desdobramento desces sinais materiais, os quais corroboram as intengdes abstratas, essas mais claramente expressas por palavras e pela linguagem eserita. O tema do Paraiso Perdido e Reconquistado pode ser lido, aqui, sublinhando todo o pro- cesso, fato que me faz, lembrar o recente livro ilustrado: Le secret du rive (0 segredo do sonko), urn “ivro-afresco”, para utilizar a terminolo- gia de Nicole Maymat, criadora da colecao, publicada no ano passa- do, pelas Edigdes Seuil. Na historia emprestada da mitologia australi- ana por Joha Poulter e ilustrada por Claire Forgeot, a criagio do mun- do mostra a vida como originando-se no mar, alcangando a Lua ¢ 0 Sol e, depois, espalhando-se por todo o Universo. © livro é uma pagi- na pregueada de sete metros, que forma um acordeo, o que faz com que o leitor prenda a respiracdo ao vé-la desdobrar-se infinitamente ro espago - exemplo maximo da “dobra” barzoca, que governa as maravilhas da criago cultural infantil da atualidade... O LeITOR TRIUNFANTE'OU A CAIXA DE SURPRESAS Para os jovens, ler “livros-vivos” significa, freqiientemente, ape- nas dar uma espiada nas engenhosas técnicas de transparéncia mas, certamente, diminui o nivel de expectativa de qualquer pessoa em relacdo 20 significante literério, pois 0 dkimo pode conter perigosas verdades e realidades. E como a alvorada que antecede a seguranca oferecida pelo livro, como um substituto para o mundo real, que os “livros-vivos” despertam o interesse de leitores principiantes ou dos nicrleitores. O que salta de suas misteriosas paginas é, principalmen- te, aimagem da mesiria serena do poder magico desenvolvido atra- vvés do processo de leitura mas, mais forte que isso, 6 0 sentimento de se chegar a um entendimento com um fantasma, 20 mesmo tempo diabélico e excitante. E muito significative que Peekaboo (Bu! Achou), publicado em 1985 por Albin Michel Jeunesse and Mathew Price, mostre a equivaléncia implicita do Diebo (parodiando o génio maligno de Descartes) € do leitor bem-sucedido, através da figura do bebé- 3 que salta das duas wltimas paginas do livro - uma nova versio da popular figura do “Diabo que salta da caixa”, como literalmente denominamos a caixa-surpresa na Franga, Retratase aqui, a ihustra ‘lio lacaidasical de uma perigosa iniciacéo ao significado, por meio da (0 BRINCAR E SUAS TEORIAS inverséo extremamente saborosa dos valores adultos, nesse esbogo que satitiza as relacdes familiares. ‘Na primeira pagina de Peekaboo (Bu! Ackou!), \é-se: “Onde esti a mamie?” e a ilustragio € somente 0 contomo de um corpo humano indistinto, aparentemente dormindo em uma cama, com um gato so- nolento ao lado. Na segunda pagina, o rosto matreiro da mie, rindo maliciosamente, pintado em uma aba de papelfo, realmente salta das paginas, mostrando a personagem sentada com o gato ao lado, o qual compactua com a atitude da “dona”, pois traz estampado na cara um sorriso levemente irdnico como o dela: “Achou! Olha eu aqui, ela grila, Na pagina seguinte, repete-se o estratagema com o pai escondi- do atris do jornal: é um jornal muito especial, pois parece ser 0 Le Monde des bébés (0 Mundo dos bebés), com sugestivas manchetes, do tipo: ‘iltima moda para menores de trés anos” ou “Arrume uma baba para seus pais”. As travessuras multiplicam-se na pagina seguinte, quan- do a cabeca do pai é reconstituida em trés dimensoes por uma aba de Papelio que se eleva, fazendo com que ela se projete por tras do jor- nal aberto, deixando a mostra outras manchetes, com dizeres bastan- te sugestivos, tais como: “Musica de rock no jardim da infancia” e “A televisio € prej a0 trabalho dos educadores?” Outras persona- ns pulam do livro, como, por exemplo, 0 cachorro do menino e, claro, o representante hidico da malicia adulta - um palhaco. O leitor sente que essa dinastia masculina em aco implica, no caso, uma qua- se glorificagao e chega-se ao climax quando o rosto triunfante do ga- roto salta da pagina, ficando maior que o préprio livro, dominando- 0; ¢, embora tenha os olhos fechados, aparenta estar adorando a lei tura. O diabrete, na verdade, segura um livro, em cuja capa encontra- se ele mesmo retratado, com uma das mos cobrindo um dos olhos, ¢ com 0 outro olho aberto ~ exatamente 0 mesmo desenho da capa do livro, do qual ele mesmo salta e que o verdadeiro lei Acrescenta-se mais um dado irénico & estratégia do livro” ou do “Ieitor que lé sua propria histéria”, com a figura do mes- ‘mo menino fazendo caretas horriveis na capa de out Proprio tem aos pés, € cujo sugestivo titulo é: “Face: Aqui, também, a intengao € usar o humor como elemento de seducao VROS-VIVOS" FRANCESES os para o adulto que lé para a crianga, e cujo interesse tem de ser estimu- lado por propagandas do tipo: “A mamadeira cientifica” ou “Como se jvrar do parquinho”, ou ainda: “Imitando, aprenda a ir ao banheiro sozinho”... A cultura da crianga aumenta, ¢ a aquisieao de comporia- ‘mentos e regras é feita sem dramas. A gloria encenada pela crianca leitora exorcisa o medo de se ficar perclido em um livro, jé que a me- nipulago das paginas mostra, claramente, que a personagem leitora pode sair do livro e voltar para ele. A risada compertilhada com 0 adulto 6 uma sedugio extra, que aumenta e aprofunda o “prazer do texto”. A crianca leitora, ao mesmo tempo em que decifra os cédigos | sociais, vai formando sua propria concepgao de literacidade que a -varé a construgdes mentais mais complexes e mais marcantes, do ponto ( 4 ¥ de vista afetivo dos significados das regras sociais, Pode-se dizer que 0 ores por meio do faz-de- proprio livro joga e vence, ganhando mai conta do jogo literdrio, simplesmente por meio de uma iniciagdo liidica as convengées culturais e & autonomia intelectual.

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