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interminável
Entre leilões polémicos e arcas por abrir, revelamos seis inéditos e a história do labiríntico
Livro do Desassossego. Fernando Pessoa está aí para nos inquietar – felizmente.
Inéditos de um
outro espólio
ESCOLHIDOS E COMENTADOS POR RICHARD ZENITH
O conteúdo do «espólio residual» de Fernando Pessoa em no entanto, extremamente importante para traçar nexos
poder dos seus herdeiros consiste, sobretudo, em projectos e preencher lacunas na obra notoriamente fragmentária de
literários, apontamentos, esboços, pequenos textos inaca- Fernando Pessoa. Em particular, o considerável número
bados, poemas fragmentários, traduções em curso (nomea- de planos e projectos literários ajuda-nos a perceber melhor
damente uma versão inglesa de A Invenção do Dia Claro, de as intenções do autor quanto à organização e publicação das
Almada Negreiros), cartas e propostas comerciais, anotações suas obras.
astrológicas e rascunhos ou cópias (nem sempre iguais) de Os seis documentos seguintes, todos inéditos, mostram
obras conhecidas, como The Mad Fiddler. As peças são sete aspectos diferentes do material que se encontra actual-
de inestimável interesse para estudiosos e organizadores da mente em casa de Manuela Nogueira e que não estava incluí-
obra pessoana, mas não têm grande valor literário in- do na célebre arca, segundo explica nestas páginas. Não são,
trínseco. Não há entre elas poemas de Alberto Caeiro ou de todavia, inteiramente representativos, pois há muitas peças
Álvaro de Campos, por exemplo, e as prosas literárias – como já foi dito – bem mais fragmentárias, com interesse
acabadas são escassas e geralmente pouco ambiciosas (cons- apenas para especialistas da obra.
tituindo um trecho do Livro do Desassossego, agora reve- Actualizámos a ortografia nas transcrições dos textos em
lado, a grande excepção). Este conjunto de documentos é, português.
EXCURSOS Estado como Nação. Uma simples revolução, com algumas «Notas para Uma Regra de Vida» e
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guerra. Durban, July 14th 1904
1. O verso e a prosa.
2. O orgulho e a vaidade. Os sonhos (Seu simbolismo). Dear Man,
3. A novela policiária. A opinião pública. I should not again have troubled
4. O conceito de progresso. O sufrágio político. you by interfering in the scholarly dis-
5. A imaginação. Notas para uma regra de vida. cussion about Horace and the local trinity, had not
6. (and others of the sort, which can be very easily Esboço de uma geometria dos coexistentes e dos «C.H.H.’s» erudite retort appeared. If, by quoting
picked up from my many notes and casual obser- anti-sólidos. Professor White and the other critic, he mean to
vations) A moral da força (Ensaio sobre a moral). acquaint us with his knowledge of criticism, the
7. A importância social da ortografia. Ditaduras. effort is undoubtedly useless, or is rendered so by
8. Depois de Parménides. Fundamentos do conservantismo. his appended «lesson on literary criticism». I may
9. A pena de morte. A Monarquia. as well remark that the Muses, who have since
the most remote eras had to listen to pseudo-poe-
Há, pois, só dois argumentos em favor da pena [Nos seus apontamentos e memorandos pes- tical effusions such as those of «C.H.H.» and «Fair-
de morte: de que é um dissuadente do crime; de soais, Pessoa frequentemente recorria ao inglês, play», are now too hardened to blush at the trans-
que a prática do crime, que envolve pena de mor- língua que assim surge duas vezes neste projecto lations of Mr. Hillier. Again, «C.H.H.’s» comments
te, é um estado de guerra. de pequenos ensaios em português. Também lhe on «Fairplay’s» obscurity are exceedingly unfair,
Se se admitir que para amedrontar é legítimo acontecia, entusiasmado pelas ideias que lhe iam when we consider that «Fairplay» must be an ad-
empregar qualquer processo, então verificaremos ocorrendo, escrever notas ou até – como aqui mirer of Robert Browning and nonsense. Lastly,
que a tortura é muito mais amedrontante que – redigir parágrafos de alguma obra que acabara I beg leave to state that «C.H.H.’s» assertion, based
a morte, e restabeleceremos a tortura. de enumerar numa lista. A propósito da pena de on the criticism he quotes, that exact rhime is not
Quanto ao estado de guerra... Só a sedição morte, Pessoa, quando mais novo, tanto planea- an essential to a rhimed poem is unfortunately
pode assim designar-se, isto é, a destruição do ra ensaios a favor como contra. Também redigira undeserving of the fashionable name of paradox.
revista LER ( ??????? 2009 ) 00
As to the line lacking in syllables, I am willing I bought a book of Philosophy. Ph[ilosophy] is
Uma arca, ou arcas, to think that but an example of «Fairplay’s» […]. the science that deals with1 life; it was just what
sem sossego: conversa Durban, 14 de Julho de 1904 I wanted – to put science into my life.
com Manuela Nogueira I read the book of philosophy; I got nothing by it,
Caro Man, Mother, I got nothing.
Ao longo do ano passado foram publicadas Não teria voltado a incomodá-lo com a minha in- They tell me2 that it was necessary to be already
muitas notícias acerca da «outra arca» de Fer- tervençãonadoutadiscussãosobreHorácioeatrin- an initiate; now I have only one initiation, which is
nando Pessoa, ainda em poder dos herdeiros dadelocal,nãoforatersurgidoarespostaeruditade this one of having been placed in this world in
do escritor. A metáfora refere-se aos papéis «C.H.H.». Se, ao citar o Professor White e o outro crí- God’s image and resemblance. Isn’t that enough?
de Pessoa que ficaram com a sua irmã Henri- tico,elepretendiapôr-nosaocorrentedoseuconhe-
queta Madalena Nogueira Rosa Dias, transitan- cimento da crítica, esse esforço é sem dúvida inútil, 1 Var.: treats of.
do depois para os dois filhos desta, apesar de ou tornado inútil pela sua «lição de crítica literária» 2 Var.: I was told.
em 1979 o Estado ter comprado o conteúdo da emapenso.JáagorafaçonotarqueasMusas,obriga-
arca, hoje na Biblioteca Nacional. A existência das a escutar desde as eras mais remotas efusões
desses papéis não era nenhum segredo, pois pseudopoéticas como as de «C.H.H.» e de «Fairplay», O LIVRO [Original de Almada Negreiros]
a família deixava que os investigadores consul- já estão demasiado endurecidas para corar com as
tassem o material e publicassem documentos traduções do Sr. Hillier. Mais uma vez, os comentá- Entrei numa livraria. Pus-me a contar os livros
pertinentes. Porém, o facto de os dois únicos rios de «C.H.H.» sobre a ininteligibilidade de «Fair- que há para ler e os anos que terei de vida. Não
sobrinhos de Pessoa – Manuela Nogueira e Luís play»sãoextremamenteinjustos,tendoemcontaque chegam, não duro nem para metade da livraria.
Miguel Rosa Dias – terem procedido à venda de «Fairplay» deve ser um admirador de Robert Brow- Deve certamente haver outras maneiras de se
alguns originais, juntamente com livros e revis- ning e de disparates. Por último, peço licença para salvar uma pessoa, senão estou perdido.
tas que eram do poeta, provocou reacções de declararqueaafirmaçãode«C.H.H.»,baseadanacrí- No entanto, as pessoas que entravam na livraria
protesto e até alegações de que a família que- tica que este cita, de que a rima exacta não é algo estavam todas muito bem vestidas de quem preci-
ria vender aquilo que já fora vendido, em 1979. essencial para um poema rimado, desmerece, infe- sa salvar-se.
Manuela Nogueira, ela própria uma autora lizmente,daelegantedesignaçãodeparadoxo.Quan- _____
com muitos títulos, lembra-se dela quando ain- to à linha a que faltam sílabas, inclino-me a pensar Comprei um livro de filosofia. Filosofia é a ciên-
da viviam na Rua Coelho da Rocha, nos tempos quebastaumexemplodo[...]de«Fairplay»[…]. cia que trata da vida; era justamente do que eu
da sua infância, e recorda-a depois da mudan- Tradução de Manuela Rocha necessitava – pôr ciência na minha vida.
ça da família, por volta de 1943-1944, para Li o livro de filosofia, não ganhei nada, Mãe! não
a Rua das Praças, à Lapa, onde começaram a [Em 9 de Julho de 1904, Fernando Pessoa, utilizan- ganhei nada.
aparecer os primeiros investigadores. Mais do o nome de C.R. Anon, participou numa polémi- Disseram-me que era necessário estar já ini-
tarde os pais, sempre com a arca, mudaram-se ca espirituosa a propósito da tradução de uma ciado, ora eu só tenho uma iniciação, é esta de ter
para a Avenida da República. «A minha mãe ode horaciana realizada por um tal Sr. Hillier e pu- sido posto neste mundo à imagem e semelhança
considerava que a arca era a que encerrava a blicada em The Natal Mercury, numa coluna do de Deus. Não basta?
obra do irmão. Estava cheia de envelopes sina- jornal intitulada «Man in the Moon». Charles Ro-
lizando o que continham. Ela, que não era uma bert Anon, o primeiro pré-heterónimo com uma
estudiosa da sua obra, achava que o Fernando obra de relevo, enviou ao jornal uma carta, junta-
não tinha incluído na arca outros papéis porque mente com oito versos mordazes (a carta e os ver-
não estavam preparados ou acabados. Essa sos foram transcritos por H.D. Jennings no seu
opinião pode parecer ingénua hoje, não sei, mas Os Dois Exílios, Porto, 1984). A presente carta, se
era isso: julgava que Pessoa, se não guardou tivesse sido terminada e enviada, teria prolonga-
outros documentos na arca, era por não inte- do a sua participação na animada discussão prota-
ressarem para a sua obra.» gonizada por Hillier, C.H.H. (iniciais do Dr. Haggar,
Quanto ao dossiê Pessoa-Crowley – que in- director da Commercial School, frequentada por
clui toda a correspondência entre o poeta e o Pessoa em 1902-1903) e por alguém que assina-
mago e outras pessoas envolvidas no caso, bem va «Fairplay». Note-se o inglês exímio da carta.]
como a novela The Mouth of Hell, deixada ina-
cabada – a sobrinha afirma que, tanto quanto
sabe, nunca esteve na arca. Ficava guardado
numa estante do escritório do pai, «juntamen-
te com livros sobre astrologia e temas esotéri-
cos». E a mãe, depois de enviuvar, preferia igno-
rar o dossiê. Sabia que Crowley, naquela altura,
«não era visto com bons olhos pela maioria das
3 THE BOOK
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Todo o pensamento, por mais que quis digitalizar a obra, porque assim ficaria dis-
eu queira fixá-lo, se me converte, tar- ponível, on-line, e então poderíamos vender
de1 ou cedo, em devaneio. Onde qui-
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SOBRE AS CANÇÕES os originais sem prejudicar os estudiosos».
DE UM LOUCO sera pôr argumentos ou fazer correr Quando lhe fiz notar que uma digitalização,
raciocínios, surgem-me frases, pri- embora seja uma ferramenta preciosa, não
Por que é que, sem ter razão, meiro expressivas do próprio pensamento, depois pode substituir o original, Manuela Nogueira
Estas canções têm1 poesia? subsidiárias das primeiras, por fim sombras e respondeu: «Pois, mas nós pensávamos que
E fica2 em meu coração, derivações daquelas frases subsidiárias. Começo o suporte material de certos documentos não
De ouvi-las[,] essa magia a meditar a existência de Deus, e encontro-me a fa- era tão importante como realmente os estu-
Chamada recordação? lar de parques remotos, de cortejos feudais, de rios diosos hoje em dia consideram.» Lamentou
Li-as a mim e inda as ouço. passando meio mudos sob as janelas do meu que, ao contrário do que fora combinado, as
Quero pensar, e há em mim debruçamento; e encontro-me falando deles por- digitalizações efectuadas não tenham sido dis-
Só lembrá-las, e não posso que me encontro vendo-os, sentindo-os, e há um ponibilizadas na Biblioteca Nacional – aparen-
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temente por falta de um protocolo, que está breve momento em [que] uma brisa real me toca Dois inéditos
disposta a assinar – e que nem sequer ela pró- na face, surgida da superfície do rio sonhado atra-
pria tenha recebido uma cópia completa delas. vés de metáforas, do feudalismo estilístico do meu
do Livro do Desassossego
Quanto ao destino mais desejável para os abandono central. provenientes
papéis de Pessoa ainda em poder da família, Gosto de pensar porque sei que não tardarei do Espólio de Pessoa,
Manuela Nogueira não tem dúvidas. Salva- em não pensar. É como ponto de partida que o ra- na Biblioteca Nacional
guardando eventuais peças que a família, no ciocínio me encanta – gare metálica e fria onde se Transcritos e apresentados por Richard Zenith
seu entender, tem todo o direito de conservar, embarca para o grande Sul. Esforço-me, às vezes,
«o ideal para mim, e acho que para o meu ir- por meditar um grande problema metafísico ou Nenhum dos dois textos que se seguem ostenta
mão também, seria o Estado comprar absolu- até social, pois sei que a voz rouca do pensamen- a sigla L. do D., frequente mas nem sempre presen-
tamente tudo. Isso para nós seria um alívio to- to tem para mim caudas de pavão, que se me irão te nos trechos do Livro do Desassossego, mas a sua
tal e é o que consideramos que deveria ser». abrindo se eu esquecer que penso, e que o des- pertença à obra parece evidente. Basta comparar
Defendeu a necessidade de recorrer a leilões, tino da humanidade é uma porta num muro que o primeiro trecho com outros do Livro que tam-
já que não havia outra maneira de determinar não há, e que eu posso portanto abrir para os bém falam de brincadeiras de «pré-heteronímia»
o valor real dos objectos postos à venda. «Ago- jardins que me aprouver. na infância – o trecho 92 (ed. Assírio & Alvim) ou
ra sim, temos uma ideia do valor.» E acrescen- Bendito seja aquele elemento irónico dos des- aquele intitulado «A Cascata» – e o segundo com
tou: «Achámos um bocado estranho que o tinos que dá aos pobres de vida o sonho como os muitos trechos em que Bernardo Soares tece
Estado, depois do primeiro leilão [Dezembro pensamento, assim como dá aos pobres de so- comentários sobre o acto de escrever ou descreve
de 2007] em que comprou umas peças e sa- nho, ou a vida como pensamento ou o pensa- o céu nas suas variadas cores. A vontade de gritar
bendo que havia um segundo leilão [13 de No- mento como vida. é também um leitmotiv na prosa do exteriormen-
vembro de 2008] já em projecto, não nos ti- Mas até o sonho por correnteza de pensar se me te apagado ajudante de guarda-livros. O segundo
vesse contactado senão 20 dias antes desse volve cansando2. E então abro os olhos de sonhar, trecho figura no verso de uma folha ocupada por
segundo leilão. Em cima do acontecimento, chego à janela e transfiro o sonho para as ruas e os um poema datado de 24/7/1930. O facto de ser es-
e já com o catálogo feito e publicado na Inter- telhados. E é na contemplação distraída e pro- crito a lápis e em papel muito fino torna a leitura
net, não havia como recuar. Ficámos com pe- funda dos aglomerados de telhas separadas em bastante árdua, como se vê pelo fac-símile.
na. Se o Estado nos tivesse contactado antes, telhados, cobrindo o contágio astral das gentes O primeiro trecho é redigido no verso do rascunho
havia peças que, com certeza, não precisavam arruadas, que se me desprende deveras a alma, de um poema em inglês, «Now are no Janus’ tem-
de ir ao leilão.» e não penso, não sonho, não vejo, não preciso; con- ple-doors thrown wide», datado de 7/1/1915. Pes-
Outro pólo da polémica em torno dos lei- templo então deveras a abstracção da Natureza, soa começou a escrever o trecho pelo lado direito
lões diz respeito às revistas e livros de Pessoa da Natureza, a diferença entre o homem e Deus.
colocados à venda. Em 1988 a Câmara Muni-
cipal de Lisboa comprou os livros deixados 1Var.: logo.
por Pessoa em duas estantes: uma com 327 2Var.: volve em cansar-me.
livros encadernados e outra com 777 livros.
No contrato conservado pela família, «não há [Entre os documentos de Pessoa que continuam
qualquer referência à “biblioteca” de Fernan- à guarda dos seus familiares, este trecho iné-
do Pessoa». dito do Livro do Desassossego é uma peça atí-
Manuela Nogueira admite que há livros pica, por parecer estar acabado e ter grande
– muitos sobre assuntos esotéricos, por exem- qualidade literária. Data certamente do último
plo – que membros da família quiseram guar- período do Livro e, embora não esteja assina-
dar e outros que foram aparecendo ou ainda lado como tal, não há dúvida de que pertence à
podem aparecer. «Estamos a falar de casas de obra. A temática do devaneio imaginativo e as
família e houve várias mudanças e várias ca- referências a «parques remotos» e «cortejos
sas pelas quais passaram os livros do Fernan- feudais», por um lado, e às ruas e aos telhados
do – misturados com livros do meu pai, de de Lisboa, por outro lado, tornam a sua atribui-
Henrique Rosa e, provavelmente, dos irmãos ção ao Livro inevitável. Mais: as últimas palavras
de Pessoa. Se um livro não está assinado por do trecho constituem uma variante de uma
Pessoa, se não escreveu nele ou se não tem conhecida frase do Livro: «A natureza é a dife-
nenhuma relação com a sua obra, ninguém rença entre a alma e Deus» (do trecho 148, na
pode garantir que lhe pertenceu.» edição da Assírio & Alvim).
Para o fim da nossa conversa, Manuela No- Manuela Nogueira tencionava incluir este texto
gueira exprimiu o seu profundo desgosto pe- no livro Fernando Pessoa: Imagens de Uma Vida
la providência cautelar que a Câmara Muni- (Lisboa, 2005), mas acabou por achar que não se
cipal enviou, no momento do segundo leilão, encaixava bem. Vi uma fotocópia do texto nessa
para impedir que fosse vendida a capa ras- altura, e agora, a meu pedido, a autora do livro
gada de um livro de Pessoa que está actual- procurou e encontrou a mesma, autorizando
mente na Casa Fernando Pessoa (e que fazia a sua reprodução na LER. Ainda não localizou o
parte dos lotes vendidos em 1988). «Bastava original, que talvez tenha ficado junto de outros
que alguém da câmara ou da Casa Fernando que foram publicados no dito livro.]
46 Duas faces da folha com trecho de 1915
da folha, dobrada ao meio, passou para o lado es- zável, no meu passado, na minha perpétua ideia do Pessoa tivesse telefonado a dizer que a capa
querdo, continuou na margem lateral do mesmo meu quarto de então, à roda da minha pessoa pertencia ao tal livro. A insinuação de que a
lado, voltou ao lado direito e terminou o texto no invisualizável3 de criança, vista de dentro, que ia família tinha tirado a capa para depois a vender
lado esquerdo, na margem superior. da cómoda para o toucador, e do toucador para à parte era aviltante e absurda.»
Actualizámos a ortografia nas transcrições. a cama, conduzindo pelo ar, imaginando-o parte Absurda seria certamente, pois não imagino
da linha de carris, o eléctrico rudimentar4 que leva- a Dona Henriqueta com tais calculismos. Infor-
TRECHO DE 1915 va a casa os meus escolares de madeira ridículos. maram-me, na Casa Fernando Pessoa, que
Quando criança eu apanhava os carrinhos de A uns eu atribuía vícios – fumo, roubo – mas não souberam dessa capa à última hora, sendo por
linha.1 Amava-os com um amor doloroso – que sou de índole sexual e não lhes atribuía actos, sal- isso que a câmara agiu de forma tão precipita-
bem que me lembro – porque tinha por eles não vo[,] creio, uma predilecção, que me parecia um da. Depois de leiloada, os trâmites legais para
serem reais uma imensa compaixão... acto de brincar, de beijar raparigas e espreitar-lhes a recuperar teriam sido, evidentemente, mais
Quando um dia consegui haver às mãos o res- as pernas. Fazia-os fumar papel enrolado por trás complicados. Todavia, os direitos da Casa Fer-
to de umas pedras de xadrez, que alegria não foi de uma caixa grande que havia em cima duma nando Pessoa sobre a capa do livro não são
a minha! Arranjei logo nomes para as figuras e mala. Às vezes aparecia no lugar um mestre. E era incontestáveis. Trata-se de uma capa em que
passaram a pertencer ao meu mundo de sonho. com toda a emoção deles[,] e que eu me via obriga- Fernando Pessoa redigiu um texto, o que era
Essas figuras definiam-se nitidamente. Tinham do a sentir, que eu arrumava logo o cigarro falso e nele prática comum. No seu espólio há várias
vidas distintas. Morava um – cujo carácter eu de- punha o fumador vendo-o curiosamente despren- capas que caíram dos seus livros, ou que ele
cretara violento e sportsman – numa caixa que es- dido à esquina, esperando o mestre, e cumprimen- próprio tirou, usando-as depois como suportes
tava em cima da minha cómoda, por onde passea- tando-o, não me lembro bem como, à inevitável de escrita (ou escreveu nelas e depois tirou-as
va, à tarde quando eu, e depois ele, regressávamos passagem… Às vezes, estavam longe um do outro e dos livros). Possivelmente, foi isso que acon-
do colégio, um carro eléctrico de interiores de cai- eu não podia com um braço manobrar esse e outro teceu com a capa que tanto bulício provocou
xas de fósforos de madeira, ligadas não sei por que com o outro. Tinha que os fazer andar alternada- ultimamente, o que justificaria a sua manu-
arranjo de arame. Ele saltava sempre com o carro mente. Doía-me isto como hoje me dói não poder tenção entre os restantes papéis do poeta e
a andar. Ó minha infância morta! Ó cadáver sem- dar expressão a uma vida... Ah, mas por que recor- não junto do livro a que originalmente per-
pre vivo2 no meu peito! Quando me lembro destes do eu isto? Por que não fiquei eu sempre criança? tencia. Porém, se o texto nela escrito for a con-
meus brinquedos de criança já crescida, a sen- Por que não morri eu ali, num desses momentos[,] tinuação de outro que figure no livro, faz todo
sação de lágrimas aquece-me os olhos e uma sau- preso das astúcias dos meus escolares e da vinda o sentido que capa e livro sejam reunidos,
dade aguda e inútil rói-me como um remorso. como-que-inesperada dos meus mestres? Hoje não para preservar a integridade do texto.
Tudo aquilo passou, ficou hirto e visível, visuali- posso fazer isto... Hoje tenho só a realidade com que Pessoalmente, e embora entenda as razões
não posso brincar... Pobre criança exilada na sua da família, acho lamentável que a venda dos
virilidade! Por que foi que eu tive de crescer? documentos de Pessoa, ainda na posse desta,
Hoje, quando relembro isto, vêm-me saudades tenha começado pelo recurso a leilões, e es-
de mais coisas do que isto tudo. Morreu em mim pero que não acabe assim. Não convém que o
mais do que o meu passado. «espólio residual», como Manuela Nogueira
o designa, fique disperso por várias mãos pri-
1 Inicialmente, o autor deixou espaço em bran- vadas. Na falta de uma universidade ou outra
co entre esta frase e o seguimento do texto, instituição pública em Portugal que reúna as
o que indica uma intenção de desenvolvimento condições necessárias para adquirir, conservar
posterior. É possível, mas não seguro, que tenha e disponibilizar este material para consulta,
renunciado a essa intenção, uma vez que preen- urge que o Estado português o compre, inte-
cheu o espaço com uma parte final do trecho. grando-o no espólio à guarda da Biblioteca Na-
2 Palavra dubitada. cional. E se a Câmara Municipal de Lisboa, por
3 1ª versão, preterida mas com dúvida: visuali- estar na lamentável situação financeira em que
zável. está, não dispuser de recursos para comprar
4 Palavra dubitada. os restantes livros da biblioteca de Pessoa, pare-
ce-me que o Estado português, mais uma vez,
TRECHO DE 1930 tem a obrigação de agir. Caso o Estado não con-
Escrevo com uma estranha mágoa, servo de sidere prioritária a aquisição da matéria-prima
uma sufocação intelectual, que me vem da perfei- do maior escritor português desde Camões, en-
ção da tarde. Este céu de azul precioso, des- tão a solução do irmão de Pessoa seria, segun-
maiando para tons de cor-de-rosa pálido sob uma do me parece, a mais sensata. Quer dizer, seria
brisa igual e branda, dá-me à consciência de mim preferível que o Estado autorizasse a venda, em
uma vontade de me gritar. Estou escrevendo, bloco, dos papéis, livros e revistas de Pessoa ain-
afinal, para fugir e refugiar. Evito os idílios. Es- da em poder dos seus familiares a uma univer-
queço das expressões exactas, e elas abrilham- sidade ou biblioteca estrangeira, desde que
-se-me no acto físico de escrever, como se a mes- esta garantisse o seu livre acesso aos estudio-
ma pena as produzisse. sos, ao invés de vermos tudo disperso entre
Do que pensei, do que senti, sobrevive só, obs- dezenas ou até centenas de privados.
cura, uma vontade inútil de chorar. Por Richard Zenith
revista LER ( março 2009 ) 47
História de um
livro desalinhado
TEXTO DE CARLOS CÂMARA LEME
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te observou que, não tendo para onde ir nem que to, deixou um dos textos mais inteligentes – senão e os pontuais entendimentos organizativos da
fazer, nem amigos que visitasse, nem interesse mesmo o mais fabuloso – que se escreveram so- escrita de três personalidades num interdialo-
em ler livros, soía gastar as suas noites, no seu bre o Livro do Desassossego bem como para a sua gismo não explicitamente assumido pelo único
quarto alugado, escrevendo também.» organização: apareceu, pela primeira vez, no nº 3 autor realmente existente.»
Aqui chegados é preciso fazer, desde logo, um da revista Persona, do Centro de Estudos Pessoa- De novo e também na Relógio d’Água chega a
primeiro esclarecimento: os primeiros fragmen- nos da Faculdade de Letras do Porto, em Julho de «um porto de ancoragem», reunindo num só volu-
tos cotejados são iguaizinhos aos textos esta- 1979 (com dois anexos, «Para a história do estudo me o Livro do Desassossego, atribuído a Fernando
belecidos pelos dois editores que mais têm tra- de Jorge de Sena sobre o Livro do Desassossego e Pessoa/Vicente Guedes/Bernardo Soares. Porquê?
balhado na fixação do Livro do Desassossego: para a história da publicação do Livro do Desas- «Uma organização tendencialmente crono-
Teresa Sobral Cunha (Relógio d´Água, Outubro sossego», assinado por Arnaldo Saraiva, e uma lógica do Primeiro Livro e, expressamente cro-
de 2008) e Richard Zenith (Assírio & Alvim, «Nota acerca da preparação – continuação – da có- nológica, no Segundo [Livro] permitiu a consti-
Julho de 2006). A seguir vem o desassossego que, pia do Livro do Desassossego para publicação», de tuição de um discurso em progresso que reúne
de resto, já tinha começado há muito tempo Maria Aliete Galhoz, que apresenta dois inéditos), adequadamente num só esta obra em dois livros
para, agora, aqui chegar. e, em 1984, nas Edições 70, em Fernando Pessoa que Pessoa também definiu como o “livro da mi-
E que, pelo andar da carruagem, ainda fará & Cª Heterónima – Estudos Coligidos 1940-1978, nha vida inteira”.»
correr muita tinta quando a pessoana talvez mas sem os anexos da Persona.
mais conhecida do grande público, Teresa Rita Mas à altura o que levou Sena a desistir do pro- Oriundo dos EUA, se bem que apreciasse a
Lopes, e a Equipa da Edição Crítica das Obras jecto, além de um conjunto de cartas entre o en- poesia de Fernando Pessoa e soubesse da exis-
Completas de Fernando Pessoa, coordenada por saísta e a Ática que não levaram a lado nenhum, tência do Livro do Desassossego, só o leu quando
Ivo Castro, apresentarem as suas propostas. Não ninguém sabe. O que tinha entre mãos só ele o sa- aportou em Portugal, em 1987. Ao lê-lo, diz Ri-
estamos numa estação terminal, não. Se calhar, beria. Mas era de tal forma importante que, para chard Zenith, experimentou uma «sensação de
ainda estamos a comprar um bilhete para uma sempre, ditou: «A publicação do Livro do Desas- mistério, como se estivesse perante um objecto
longa viagem… sossego é por certo um acontecimento. Se nem grandioso mas impossível de dominar, de apre-
Para a história do atribulado percurso do Livro todos os trechos são de igual valor, alguns serão ender». Volvidos quatro anos, traduziu-o para a
do Desassosego, até chegarmos à primeira edição, da mais bela e mais penetrante prosa da língua editora inglesa Carcanet: The Book of Disquie-
a designada edição princeps – que apareceu em portuguesa.» Sim, a pátria de Fernando Pessoa. tude. Desde então, o «bichinho entrou-lhe no
1982, na Ática – temos de ter em linha de conta as corpo», e prepara uma nova edição, na Assírio &
primeiras aproximações póstumas que se foram De todas as investigadoras, foi a que mais pro- Alvim (uma editora que, simultaneamente, tem
fazendo: em 1960, Maria Aliete Galhoz editou postas fez desde a primeira edição. Um work in feito muito pela obra de Fernando Pessoa e a
10 fragmentos na Obra Poética (ed. Aguilar) e, no progress reconhecido por todos os pessoanos, quem Richard Zenith tem sido fiel) com base na
ano seguinte, Pedro Veiga (Petrus) reuniu numa mesmo quando discordam das suas propostas: primeira estabelecida em 1998 – que, afirma,
brochura Livro do Desassossego. Páginas Esco- a inicial, em 1991, quando saiu na Presença – em «incluirá alguns inéditos» –, com data de saída no
lhidas. (cf. o brevete «Livro do Desassossego – His- dois volumes, um atribuído a Vicente Guedes/ início do Verão.
tória de uma edição», no Dicionário Fernando /Bernardo Soares, outro somente a Bernardo «Os meus critérios, relativamente ao conteúdo
Pessoa e do Modernismo Português, com coor- Soares. Uma outra autoria e outra organização. do Livro do Desassossego, são consideravelmen-
denação de Fernando Cabral Martins, Caminho, A assinatura? Teresa Sobral Cunha. te mais conservadores do que aqueles seguidos
2008, assinada por José Blanco, autor da incon- «A economia dos gestos a refazer numa outra por Teresa Sobral Cunha.»
tornável Pessoana, ed. Assírio & Alvim, 2008). edição da mesma obra sobretudo indicia na in- Porquê?
Embora, em 1982, a edição princeps da Ática, tegração do heterónimo Vicente Guedes e dos «Porque, por exemplo, um dos textos que tinha
em dois volumes atribuídos a Bernardo Soares, trechos que o referiam retidos fora da edição introduzido na minha tradução para inglês, e que
publicasse o Livro do Desassossego – com pre- princeps.» foi agora incluída por Teresa Sobral Cunha – “Se
fácio e organização de Jacinto do Prado Coelho e Porquê? eu via aquela árvore…” – na nova edição da Re-
recolha/transcrição dos textos de Maria Aliete «Porque a nova ordenação coordena a pro- lógio d’Água, não entrou na minha edição da Assí-
Galhoz e Teresa Sobral Cunha –, ainda apare- dução documental e os sentidos do discurso, na rio & Alvim, pois acabei por achar que não tinha
ceram mais 19 textos inéditos. Ou seja, um que- integração de trechos inéditos que se me haviam cabimento no Livro do Desassossego. Em contra-
bra-cabeças começava a não dar sossego a quem deparado nas incursões do espólio e, ainda, na partida, depois de um contacto directo com o es-
se propusesse pôr de pé a vera versão do Livro do correcção de erros de transcrição que a comple- pólio, integrei os trechos novos explicitamente
Desassossego. De resto, não surpreende aos que xa caligrafia do poeta facilmente induz.» atribuídos ao Livro do Desassossego, e cerca de
trabalham a obra de Pessoa que não apareçam Em 1994, na Relógio d’Água vai mais longe 40 cujo conteúdo me levava a crer que perten-
mais uns quantos inéditos. É estranho, pois é. (e atribui um primeiro volume a Fernando Pes- ciam a ele.»
Mas é assim… soa/Vicente Guedes, sendo que o segundo Fernan- É muito cuidadoso na forma como aborda
Ao enorme universo pessoano, juntava-se uma do Pessoa/Bernardo Soares não foi publicado por a integração ou não dos inéditos? Porquê?
tal constelação que, à medida que foi crescendo, causa da prorrogação, por mais oito anos, dos «Porque tudo isto é inevitavelmente subjectivo.»
tornou-se na mais enigmática obra – a qual é, direitos familiares, com base na expansão das leis Entre a primeira edição e a mais recente de
actual, e ironicamente, a mais traduzida de Pes- germânicas alargadas à Comunidade Europeia). Teresa Sobral Cunha, muita água passou por
soa. Antes de Jacinto do Prado Coelho, houve Porquê? debaixo das pontes. Actualmente, mesmo que
quem se propusesse dobrar o cabo das Tormen- «Porque singularizavam os resultados de mais não se queira, há, pelo menos, um aspecto proble-
tas: o poeta, ensaísta e escritor Jorge de Sena que, um regresso aos originais e, portanto, acres- mático e polémico entre as propostas de Zenith
embora não tenha conseguido chegar a bom por- centada a sua volumetria, corrigidas as leituras e Sobral Cunha. >
50 ( março 2009 ) revista LER
Leyla Perrone-Moysés*
Brasil, o sossego aqui tão perto
A edição que preparei com o título Fernando o «amante visual», o dizer literário. E o livro foi Na época da minha edição, saíram várias matérias
Pessoa, Livro do Desassossego por Bernardo Soa- composto na ortografia moderna brasileira. Era nos principais jornais brasileiros. Mas não houve
res (Editora Brasiliense, São Paulo, 1986), basea- uma edição corrente, para alcançar um público nenhuma contestação. Sobre a qualidade literá-
va-se na de Jacinto do Prado Coelho, mas era di- mais vasto, objetivo que foi bem-sucedido na ria do livro, por ocasião da 1ª edição portuguesa
ferente. Fiz um novo arranjo, reunindo os frag- época, já que a primeira edição portuguesa [a de Jacinto do Prado Coelho], o crítico Wilson Mar-
mentos sobre determinados temas: Lisboa, a pouco circulou por aqui. Era difícil de encontrar. tins disse que cada novo texto tirado da arca de
ficção do eu, o sonho, a «viagem nunca feita», E muito cara. Pessoa, diminuía «sua estatura intelectual». E o
poeta Décio Pignatari escreveu dizendo que se tra-
tava de «abobrinhas» politicamente reacionárias.
Mas seu companheiro concretista, o poeta Augus-
to de Campos, discordou completamente, dizen-
do que esses «quebrados e desconexos pedaços
tirados de seu baú de maravilhas» eram «cheios
de fagulhas de poesia».
Depois disso, houve outras edições do Livro do De-
sassossego: no Brasil, a edição de Richard Zenith,
igual à da Assírio & Alvim, e publicada aqui pela
Companhia das Letras (1999) é atualmente a
mais lida. Sobre a ordenação do Livro do Desas-
sossego mantenho a opinião que já era a de Jacin-
to do Prado Coelho: cada leitor pode escolher
a ordem de leitura que mais lhe convier. A obra
ficou desordenada, sem a seleção e a revisão ri-
gorosa que Pessoa pretendia dar-lhe. E, assim,
nunca terá uma edição «definitiva». Uma vez
mais, quem tem razão é Eduardo Lourenço: «Tal
como hoje se apresenta, o conjunto de textos
sem plano prévio, acumulados durante a vida in-
teira, destinado a ser o livro de entradas múltiplas
que acabará por constituir para nós, é o equi-
valente textual da mala eternamente por fazer,
impossível de arrumar, de um poema célebre de
Álvaro de Campos» (O Lugar do Anjo. Ensaios Pes-
soanos, Gradiva, Lisboa, 2004).
Apesar da admiração que tenho pelo trabalho
cuidadoso de Teresa Sobral Cunha (em dois vo-
lumes: Fernando Pessoa, Livro do Desassossego,
Vol. I – Vicente Guedes/Bernardo Soares; Vol. II
– Bernardo Soares, Campinas, Editora da Uni-
camp, São Paulo) não acredito numa ordenação
cronológica dos fragmentos pois muitos deles
não são datados. E, sobretudo, porque não vejo
uma vantagem estética de leitura nessa ordem
hipotética. A meu ver, Vicente Guedes foi apenas
um nome cogitado na primeira fase da escrita,
e Bernardo Soares é o seu autor definitivo. O pró-
prio poeta escreveu, já no fim da vida, que, para
editar o Livro do Desassossego, era preciso adap-
tar os textos mais antigos à psicologia de Ber-
nardo Soares que seria a «vera psicologia».