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Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto

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Nuno Guerreiro Josué

http://ruadajudiaria.com/?p=653

at 1/27/2010 in kaddish, antissemitismo andhistória. "English" Translation

Hoje, quando se assinala o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto, e

quando passam exactamente 65 anos sobre a libertação do campo de extermínio de

Auschwitz, optei por publicar aqui uma carta do embaixador de Portugal em Berlim durante o

início da Segunda Guerra Mundial. Como enviado extraordinário e ministro

plenipotenciário na capital alemã entre 1933 e 1940, Veiga Simões observou de perto, por

um lado, a subida de Hitler ao poder e, por outro, a consequente degradação das condições

de vida da população judaica alemã. Nos círculos diplomáticos da capital do Reich, Veiga

Simões era conhecido como um ―anti-ariano‖ revoltado pela forma brutal como os nazis

tratavam os judeus. Alem de testemunhar a desumanidade nazi face aos judeus, nesta carta

o embaixador pede que seja concedida a nacionalidade portuguesa a dois judeus que

desempenham as funções de cônsules de Portugal em Frankfurt e Nuremberga, Gustav

Mayer-Alberti e Eduard Lindenthal, respectivamente. O texto mostra-nos uma faceta da

diplomacia portuguesa desta época que é ainda muito pouco conhecida fora dos círculos

académicos portugueses.
Confidencial.

Berlim, 14 de Setembro de 1938

Senhor Ministro dos Negócios Estrangeiros,

Excelência

Os recentes diplomas publicados por este Governo no prosseguimento da sua incansável

perseguição aos judeus, contêm disposições que lhes vêm criar uma situação que para a

grande maioria será completamente insustentável. Não se lhe encontra, por mais que se

procure, uma solução para a simples manutenção diária dos milhares de israelitas que ainda

se encontram neste país. Aos médicos passa a ser proibido exercer clínica, mesmo livre, e

foram-lhes já denunciados todos os contratos de arrendamento dos seus consultórios para o

fim do corrente mês. Aos comerciantes, a arianização progressiva de todos os ramos

comerciais, mesmo os retalhistas, vai-os despojando de todos os seus haveres e coarctando-

lhes toda a possibilidade de actividade. Eram estas as duas classes que, entre os judeus,

ainda até agora iam podendo suportar, embora mal, a situação que lhes haviam deixado. Até

isso vai acabar e, como medida final e vexatória, acaba de ser imposto a todos os judeus

que não tenham já um nome constante duma lista oficialmente publicada – e que segundo

corre foi elaborada com o propósito de abranger o menor número – acrescentar ao seu

próprio nome e usar em todos os actos da sua vida social e particular, a partir do dia 1 de

Janeiro próximo, e sob penas severíssimas de prisão e multa, o nome ―Israel‖ ou ―Sara‖

conforme o sexo.

O conjunto destas medidas vem atingir alguns cônsules de Portugal neste país que não posso

precisar quais sejam na totalidade – talvez uns quatro – mas de que desejo destacar dois

que me parecem os únicos inteiramente merecedores da atenção do Governo Português: os

cônsules em Francoforte e Nuremberga, Srs. Gustav Mayer-Alberti e Eduard Lindenthal.

Trata-se de dois velhos funcionários consulares – o primeiro tem 83 anos e é Cônsul de

Portugal há 42 e o segundo é-o há mais de 20 anos – que têm sempre demonstrado pelo

serviço e pelo nosso País uma dedicação perfeita, prestando por vezes a esta Legação

serviços altamente importantes quer em matéria informativa quer noutras de que os haja

encarregado, a par duma perfeita execução das suas funções propriamente consulares.
Ambos eles vão ser atingidos pelas últimas disposições legais do Reich sobre judeus e a

situação em que vão encontrar-se virá a ser dentro em muitos poucos meses, totalmente

insustentável. E chega-me agora, particularmente mas de fonte diplomática, a informação de

que brevemente o Governo do Reich vai solicitar de todos os Governos a substituição dos

seus cônsules de raça judaica.

Estas circunstâncias parecem-me oferecer a oportunidade para o Governo Português olhar

humanamente para esses dois velhos servidores e estender-lhe a sua protecção, pela única

forma por que pode prestar-lha: concedendo-lhes a nacionalidade portuguesa. Ambos

residiram bastante tempo em Portugal, creio que mais do que o necessário para aquisição do

direito de naturalização, ambos falam correctamente a nossa língua e de ambos o Estado

tem recebido os mais valiosos serviços que podiam prestar-lhe dentro da sua esfera de

acção.

Estas considerações de justiça humana levam-me a fazer a V. Exa. a proposta concreta de

concessão da nacionalidade portuguesa aos dois funcionários mencionados, com dispensa de

quaisquer formalidades não essenciais. E constando-me que por razões relacionadas com a

guerra em Espanha e durante a sua duração está suspensa a concessão de patentes de

nacionalidade, devo esclarecer V. Exa. que, no caso sujeito, uma demora de alguns meses

inutilizará por completo uma eventual resolução favorável, pois em muito curto prazo a nova

legislação alemã terá atingido os dois cônsules com todos os seus efeitos.

Se V. Exa. se dignar concordar com esta proposta, posso assegurar-lhe que terá praticado

um acto de nobre humanidade, digno de um Estado que não esquece nem abandona os seus

velhos e leais servidores, e que é ao mesmo tempo a única recompensa que pode ser

atribuída aos dois Cônsules, inteiramente dignos dela a todos os títulos.

A Bem da Nação

Veiga Simões

A carta, sabe-se hoje, foi arquivada sem segundas considerações ou ponderações — um

destino frequente dado às comunicações no Ministério dos Negócios Estrangeiros. Na

verdade, e além das simpatias políticas, o Estado Novo tinha uma política oficial de ―não

interferência‖ nas questões da Guerra que se estendia ao auxilio humanitário a refugiados.

―Portugal não tem razões de ordem política ou rácica que o levem a ocupar-se deste
problema que nos seus territórios não existe, mas nos quais por isso mesmo, não está

disposto a fazê-lo nascer‖, escrevia-se num ofício do Ministério dos Negócios Estrangeiros

datado de 1939. O ―judeu estrangeiro‖ foi declarado ―moral e politicamente indesejável‖ pela

então Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE), procurando ao máximo restringir a

entrada destes em Portugal. Ainda assim, alguns refugiados judeus conseguiram socorre-se

de Portugal como plataforma para escapar à Europa, maioritariamente para os EUA, para o

Brasil ou para a Argentina. (Sobre eles aconselho o filme notável de Daniel Blaufuks,Under

Strange Skies / Sob Céus Estranhos) Ainda assim, e com o desincentivo oficioso do Governo

português, um número muito reduzido fixou-se em Portugal.

Numa entrevista recente publicada na Ipsilon e conduzida por José Manuel Fernandes, o

historiador alemão Carsten L. Wilke afirma: ―Portugal, quando Hitler já estava no poder, teria

podido salvar milhares de judeus descendentes dos que tinham partido séculos antes, mas

Salazar nada fez e as comunidades que existiam em Bordéus, em Amesterdão ou em

Salónica, por exemplo, foram completamente destruídas.‖

O caso dos judeus de ascendência portuguesa, citado por Wilke, é paradigmático. Em vez de

optar pela simples tarefa de facilitar o processo de naturalização de judeus holandeses,

franceses e alemães cujos nomes de família (Nunes, Costa, Ricardo, Mesquita, Leão de

Laguna, Lopes Cardoso, etc.) deixavam muito poucas dúvidas quanto à sua origem

ancestral, o regime decidiu virar-lhes as costas e dificultar-lhes até a simples tarefa de obter

um visto de trânsito, selando o seu destino nos campos de extermínio nazis. A 23 de Abril de

1940, por exemplo, os cônsules portugueses na Holanda eram avisados para que, quando

lhes fossem solicitados vistos de entrada em Portugal, averiguassem escrupulosamente se os

requerentes eram judeus, sendo que ―nenhum visto em passaportes judeus poderia ser

concedido sem autorização do MNE‖, que respondia assim à exigência da PVDE de ―evitar a

entrada em Portugal de indivíduos dessa qualidade‖. É sobre este pano de fundo que

sobressaem os nomes de diplomatas portugueses como Aristides de Sousa Mendes, Carlos

Sampaio Garrido e Alberto Teixeira Branquinho, cujos gestos de coragem conseguiram

resgatar a vergonhosa cumplicidade imobilista e a cobardia que nortearam os destinos

diplomáticos de Portugal durante o Holocausto.


António de Oliveira Salazar: o ditador sentado à secretária, onde pontifica uma foto

autografada de Mussolini, o aliado principal de Hitler. Foto de Bernard Hoffman (Life

Magazine, EUA).

Crianças da mocidade portuguesa fazem a saudação nazi. Foto de Bernard Hoffman (Life

Magazine, EUA).
A carta do embaixador Veiga Simões acima reproduzida encontra-se no livro Correspondência de um Diplomata do 3º
Reich, organizado por Lina Madeira, e é transcrita integralmente também em Breve História dos Judeus em Portugal, de
Jorge Martins — um pequeno volume que se assume como uma introdução fundamental para quem queira
compreender o papel dos judeus portugueses na construção da nossa História.
Shoah
Em Memória das Vítimas do Holocausto
Carsten L. Wilke

Portugal teria podido proteger muitos dos


judeus de origem portuguesa, mas não o fez
19.06.2009 - José Manuel Fernandes

http://ipsilon.publico.pt/livros/texto.aspx?id=234575

A história dos judeus portugueses foi condensada em 250 páginas pelo


académico alemão Carsten L. Wilke.
Chegaram à Península Ibérica muito, muito tempo antes de Portugal nascer, ainda
no século I, quando a Lusitânia fazia parte do Império Romano. Conheceram os
reinos cristãos anteriores à invasão muçulmana, foram protegidos pelos primeiros
reis de Portugal até ao édito de expulsão, foram perseguidos como cristãos-novos,
primeiro no continente, depois no Brasil ou na Índia conforme o longo braço da
Inquisição lá foi chegando, começaram a regressar no século XIX mas nunca
voltaram a ser uma minoria importante.
Carsten L. Wilke, doutorado em Estudos Judaicos pela Universidade de Colónia,
Alemanha, e investigador no Instituto Steinheim de História Judaica Alemã, em
Duisburg, aceitou o desafio de condensar em apenas 250 páginas destinadas ao
grande público a história dos judeus portugueses. Uma história que o autor
considera bem estudada, sendo numerosos os trabalhos académicos, e claramente
autónoma da dos outros judeus da Península Ibérica, uma história que, no entanto,
é mal conhecida pelos não especialistas num país onde raramente os livros
escolares lhe dedicam mais do que rápidas - e escassas - referências.
O que começou por fasciná-lo na história dos judeus portugueses foi o
facto de estes gozarem de um estatuto de protecção muito superior ao
tinham noutros países na Idade Média. Porquê esse estatuto excepcional?
A protecção excepcional de que beneficiaram os judeus portugueses deriva do
poder muito maior que tinham os reis em Portugal. As condições da reconquista
criaram, até pela fuga de parte da população muçulmana, condições especiais para
que os reis e os aristocratas protegessem os judeus contra as aspirações da Igreja
e o preconceito popular. A Casa Real também utilizou os judeus como instrumento
de centralização de poder.
Nessa relação não terá também tido influência não termos vivido um
regime medieval clássico, de os reis, para dominarem o território, terem
outorgado cartas de foro a muitas povoações dando-lhes grande
autonomia?
Os judeus nessa época não viviam apenas nas cidades, não eram só comerciantes.
A distribuição das suas populações era dispersa durante toda a Idade Média. Em
Portugal sabemos que estavam muito presentes nas zonas rurais do interior, de
Castelo Branco a Bragança. Para além disso, utilizaram os judeus para povoarem as
zonas que iam conquistando aos mouros...
Recentemente um estudo genético mostrou uma forte presença de genes
mais frequentes entre judeus nas populações do sul da Península, Portugal
incluído...
Li vários artigos sobre esse estudo que me surpreendeu muito. Por um lado temos
toda a pesquisa documental, que apontava num sentido, e depois esse estudo
genético que aponta numa direcção diferente. A documentação apontava para Trás-
os-Montes, para a Beira Interior, e agora os traços dos genes apontam para sul. A
sede, por assim dizer, do cripto-judaísmo português sempre foi Bragança. Temos
de investigar mais, mas a presença mais forte de genes a sul poderá mostrar que a
mistura foi mais forte a Norte do que a Sul.
Os primeiros sinais da presença judaica em Portugal datam do ano 69 DC,
por altura da segunda destruição do Segundo Templo, agora pelos
romanos. Aqui viveram ainda com o Império, depois viveram nos múltiplos
reinos cristãos que se formaram, por fim sob a dominação árabe. Foi no
período do Al Andaluz que viveram melhor?
A situação dos judeus conheceu uma enorme melhoria com a invasão muçulmana.
Antes era frequente os reinos cristãos tentarem converter os judeus ao cristianismo
pela força: ou se convertiam ou eram expulsos. Muitos viam-se obrigados a
prosseguir os seus ritos clandestinamente e se eram descobertos faziam deles
escravos. Não custa a crer que essas comunidades judaicas tenham apoiado a
tomada do poder pelos muçulmanos. Ao mesmo tempo, os muçulmanos
perceberam que os judeus podiam ser-lhes úteis para controlarem um território
onde as populações cristãs eram mais numerosas do que as islamizadas.
Mas essa benevolência não durou sempre...
Não. Houve períodos em que a Península esteve dividida em vários reinos rivais,
houve uma nova invasão vinda do Norte de África e com ela vieram dirigentes
islâmicos mais fanáticos que, também eles, queriam converter tantos os judeus
como os cristãos ao islamismo. Isso sucedeu por volta do no século XII, época em
que os judeus voltaram a ser melhor acolhidos nas áreas cristãs da Península e
migraram de sul para norte.
Esse período coincide com a criação do Reino de Portugal, com a tomada
de Lisboa. O que se sabe sobre os judeus que aqui viviam?
Infelizmente muito pouco, pois investigou-se mais o que se passava em Granada
ou em Córdova. Nunca se colocou a questão de saber qual a diferença na área de
Portugal. Há um documento interessante que mostra que a autoridade máxima
judaica na Lusitânia tinha, na época muçulmana, um poder como não existia em
nenhuma outra comunidade. Podia realizar julgamentos, determinar penas,
condenar à morte. Dir-se-ia que o extremo ocidental da Península, e da Europa, era
o "wild west": havia pouca autoridade mas havia homens poderosos. Isto também
ajuda a explicar a protecção que os primeiros reis de Portugal deram aos judeus.
No fundo tiraram partido de uma elite mais culta e com algum poder que os podia
servir.
O que sucede é que a mudança de atitude dos reis portugueses vai ter
lugar nos séculos XV e XVI, que são os dois séculos de glória de Portugal.
Um dos primeiros reis a perseguir os judeus é D. João II, para os
portugueses O Príncipe Perfeito.
Exacto, quando o seu pai, Afonso V, foi o rei que se destacou na protecção dos
judeus.
D. João II foi o rei das grandes expedições. Onde estavam os judeus no
seu tempo?
Financiavam os investimentos necessários. E muitos eram os estudiosos, os sábios,
os que apoiaram com estudos, levantamentos e mapas essa epopeia.
Porquê então a mudança de atitude?
Temos de perceber o que era o Portugal de então para os judeus no quadro de uma
Europa que, no século XV, foi terrível para esta minoria, que era perseguida por
todo o lado. Muitos dos judeus fugidos foram acolhidos em Portugal por D. Afonso
V, boa parte deles vindos de Espanha que os expulsou muito antes de nós. Nessa
época só dois estados aceitavam os judeus que estavam a ser expulsos de todo o
lado: Portugal e a Polónia. D. João II continuou a receber os judeus como o pai,
mesmo sendo menos hospitaleiro, pois a sua principal preocupação era consolidar o
seu poder pessoal contra os poderosos do reino e as diferentes elites. O que por
vezes influencia a sua imagem negativa junto dos judeus foi ter enfrentado a Casa
de Bragança, aliada dos judeus, o que indignou Issac Abravanel cujos escritos
influenciaram a imagem negativa, na historiografia judaica, de D. João II. Mesmo
assim é verdade que, nesse reinado, o estatuto dos judeus se degradou, mas nada
que pudesse anunciar, ou mesmo fazer prever, o que viria depois.
D. Manuel, que lhe sucede, tem um comportamento diferente dos Reis
Católicos: não força a expulsão, antes permite a permanência dos judeus
desde que se convertam ao cristianismo. À primeira vista parece uma
atitude mais humana, mas muitos pensam hoje que foi muito mais cruel...
Sem dúvida. Do ponto de vista da história do judaísmo foi mais cruel, muito mais
duro, aquilo que Portugal fez. D. Manuel tinha muito mais necessidade de manter a
comunidade judaica do que os Reis Católicos, e por isso tentou evitar que ela se
exilasse. Há séculos que as finanças da coroa eram administradas por judeus,
reinado após reinado eles eram como que os ministros das Finanças. A tensão que
se criou com Espanha foi que os Reis Católicos não podiam tolerar uma presença
tão forte dos judeus em Portugal e D. Manuel sabia que não podia haver expansão
portuguesa sem estar em paz com os seus vizinhos. Daí que tentou a quadratura
do círculo: ficar com os judeus conseguindo que eles se convertessem. Fê-lo por
interesse, se bem que tivesse começado a surgir em Portugal uma classe que
queria competir com os judeus no comércio internacional, gente que não aceitava o
monopólio dos judeus.

Para os judeus a conversão forçada foi então pior do que a expulsão?


Claro. Para os religiosos, era intolerável aceitar uma religião estrangeira. Para os
comerciantes e para elite era a catástrofe. Lisboa era o centro do mundo, o lugar
central da mudança da economia mundial. Se pensarmos que tinha sido aos judeus
que D. Manuel dera a possibilidade de gerir os negócios coloniais, a sua expulsão
ou conversão forçada resultaria sempre em catástrofe. Viveram um dilema terrível:
não podiam sair, porque o rei impedia-os, e não podiam senão praticar o judaísmo
clandestinamente. Eram judeus em casa, cristãos na rua. Pior: D. Manuel procurou
integrar os cristãos novos e permitiu que continuassem a negociar e prosperar,
tendo até benefícios da coroa. O horror estava nas conversões forçadas, sobretudo
das crianças arrancadas aos pais e, mais tarde, na ferocidade da Inquisição. É
nessa altura que os judeus que podem fugir começam a fazê-lo.
E o que se passou nas colónias? Os judeus, ou os cristãos-novos,
desempenharam um papel central na florescente economia do Brasil antes
de a Inquisição lá ter chegado.
Houve vários motivos para que a civilização cripto-judaica tenha podido sobreviver
mais tempo no Brasil. Por um lado, o território era vastíssimo. Por outro lado, a
coroa preferiu, durante muito tempo, manter o Brasil na dependência de Lisboa e
isso teve como consequência que a Inquisição não pôde instalar um tribunal próprio
na grande colónia. Finalmente é bom recordar que muitos dos judeus fugidos de
Lisboa se instalaram nos Países Baixos e que estes também chegaram a ocupar
partes do Brasil. Os laços entre essas duas comunidades que se conheciam
permitiram um desenvolvimento do comércio que teria sido impossível noutras
circunstâncias.
Tudo muda quando a Inquisição chega ao Brasil?
Sim. Isso passa-se no início do século XVIII, quando se instala no Rio de Janeiro. É
nessa altura que centenas de brasileiros, acusados de cripto-judaísmo, são
perseguidos, condenados e mortos. A historiografia estabelece de forma clara que
essas perseguições estão ligadas ao declínio da prosperidade do Brasil, na época
mais rico do que as colónias inglesas que dariam origem aos Estados Unidos. Mas
isso só se tornaria claro no século XIX, graças ao desenvolvimento do capitalismo e
das instituições democráticas nos novos Estados Unidos.
Pensadores portugueses como Antero de Quental pensam que existe um
antes e um depois da presença judaica e associam a decadência ibérica à
expulsão dos judeus da Península. É verdade?
Temos de distinguir entre judeus e cristãos-novos. Na verdade é uma tese antiga
mas que tem um problema: o auge do poder de Espanha e de Portugal ocorre
depois da expulsão dos judeus, no século XVI...
Mas ficaram os cristãos-novos, os cripto-judeus...
Exacto. É por isso que temos de ver o que se passou com a Inquisição, sobretudo
porque esses cripto-judeus formavam boa parte não só da burguesia mercantil mas
também eram artesãos e muitos deles integravam a elite intelectual do país. Com a
Inquisição essa camada da população empobrece e os comerciantes são
substituídos por estrangeiros, ingleses e franceses. Gradualmente, sobretudo no
século XVII, Portugal foi ficando dependente do estrangeiro devido à acção da
Inquisição. É neste quadro, que cruza os séculos XVI e XVII, que se pode dizer que
a Inquisição enfraqueceu Portugal ao destruir uma parte importante, senão
fundamental, da sua elite mercantil e intelectual.
O poder real não interveio porquê? Interessava-lhe? Não podia?
Portugal viveu uma época de tensões entre os que desejavam tirar proveito da
expansão ultramarina e os sectores que preferiam manter um tipo de vida mais
tradicional, mais rural. O poder real ainda fez gestos para limitar o poder da
Inquisição, decretou amnistias gerais, mas o Rei não era um "partido" que pudesse
estar de um dos lados nestes conflitos. O Rei procurava conciliar os diferentes
interesses, o que criou situações contraditórias e levou a soluções de compromisso
economicamente insatisfatórias. Isto mesmo tendo podido contar com o apoio dos
Jesuítas que, no século XVII, queriam limitar o poder do Santo Ofício e, em
Portugal, tiveram uma voz tão distinta como a do Padre António Vieira. Nas
colónias, por exemplo, os jesuítas procuraram proteger os cristãos-novos porque
perceberam que eram muito importantes para o desenvolvimento das colónias, em
especial no Brasil. O conflito foi longo, durou várias décadas após a Restauração de
1640, mas a vitória acabou por ser a das forças mais conservadoras.
Os judeus começaram a regressar a Portugal no início do século XIX,
formando comunidades pequenas, as primeiras em Lisboa e nos Açores, só
que isso sucede quando na Europa estava a surgir um novo tipo de anti-
semitismo, baseado na raça. Como explica?
O liberalismo em Portugal entrou de forma lenta e incompleta e, até ao fim da
Monarquia Constitucional, a única religião aceite continuou a ser o catolicismo. A
prática do judaísmo era, contudo, permitida aos estrangeiros e começou logo após
as invasões francesas, altura em que já havia uma pequena sinagoga em Lisboa,
algo impensável em Espanha. Eram grupos pequenos, sobretudo de comerciantes e
ligados a negócios com o Reino Unido. Quando, por fim, depois da revolução do 5
de Outubro, o judaísmo foi reconhecido como religião de corpo inteiro, Portugal já
se transformara num país de emigrantes, num país pobre que dificilmente poderia
atrair grandes comunidades estrangeiras.
Contudo teria sido possível que os judeus que tinham saído de Portugal,
que até tinham mantido as tradições e a língua, regressassem ao país dos
seus antepassados. Não o fizeram, mesmo quando a ameaça nazi se foi
tornando cada vez mais clara. Porquê?
Historicamente Portugal teria podido proteger muitos dos judeus de origem
portuguesa, mas não o fez. Paradoxalmente isso não se passou em Espanha, onde
no final do século XIX houve um movimento de redescoberta dos judeus sefarditas
do exílio que funcionaram como "embaixadores" do país na diáspora. Talvez isso
tivesse sucedido por a Espanha ter sofrido, em 1898, o choque do fim do Império e
Portugal não... Mesmo assim Portugal, quando Hitler já estava no poder, teria
podido salvar milhares de judeus descendentes dos que tinham partido séculos
antes, mas Salazar nada fez e as comunidades que existiam em Bordéus, em
Amesterdão ou em Salónica, por exemplo, foram completamente destruídas.
Quando os judeus são expulsos de Portugal também ainda vivia cá uma
significativa comunidade muçulmana. O que é que lhe aconteceu?
O édito não visava apenas os judeus, também obrigava os muçulmanos a partirem.
Contudo essa comunidade não só era muito mais pequena como, do ponto de vista
económico e cultural, tinha muito menos influência. As consequências da sua saída
seriam sempre menos importantes. Para além de que, como escreveu Damião de
Góis, ele mesmo um cristão-novo, houve sempre uma grande diferença no
tratamento dos judeus e dos muçulmanos porque estes tinham estados poderosos
que poderiam defendê-los. Os judeus é que não tinham quem os defendesse.
Por outro lado, nas zonas rurais, era comum os muçulmanos converterem-se ao
cristianismo, e os cristãos ao Islão, conforme o poder do momento. Já os judeus,
habituados a viver em minoria, resistiam mais a mudar de religião. Isso vê-se bem
nos autos da Inquisição, onde também os casos de cripto-islamismo são muito
menos numerosos do que os processos por cripto-judaismo.

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