Apresentagao
O mundo desencantado
ax Weber é, muito provavelmente, o autor mais influente e mais conhe-
ido no ambito das ciéncias sociais contemporaneas. Também no direito
¢ na economia seus trabalhos possuem significativa penetragio, Essa posiga0
singular se deve a uma série de fatores. Um deles é 0 conhecimento enciclo-
pédico do autor e seu interesse multifacetado, que o animou a escrever sobre
praticamente todas as 4reas das ciéncias humanas. Mas a razio principal tem
a ver com sua leitura da genese ¢ da singularidade daquilo que ele chamava,
referindo-se 4 peculiaridade do Ocidente como matriz cultural singular, de
“racionalismo ocidental”.
A leitura weberiana acerca da especificidade do Ocidente e de seu “racio-
nalismo’, em todas as dimens6es, é, hoje em dia, a leitura dominante, seja na
dimensdo da reflexio met6dica, seja também, ao menos em grande medida, na
dimenséo do senso comum e da midia ‘cultivados’. Nao existe praticamente
nenhum pensador moderno significativo nas ciéncias sociais que nao seja, em
alguma medida - e muito freqiientemente de maneira decisiva -, influenciado
pelas teses'e idéias de Weber. Também a autopercep¢ao do Ocidente “cultivado”
émarcada pelas idéias weberianas acerca dos motivos pressupostos da singu-
A8 wenen | ensatos comENTADOS a ee
laridade do Ocidente como cultura especifica. O pensamento latino-america-
1o, e muito especialmente o pensamento social brasileiro’, tem em Max Weber
sua inspiragao principal.
Um primciro esclarecimento, no entanto, que se impde, é aquele relati-
vo aos sentidos dos conceitos-chave da sociologia weberiana: racionalidade,
racionalizacao e racionalismo, Esse passo ¢ fundamental para que possamos
compreender, sem ambigitidades, o que Weber queria dizer, por exemplo, com
a singularidade do “racionalismo ocidental’ Racionalismo significa a forma,
culturalmente singular, como uma civilizagao especifica, e por extensdo tam-
bém 0s individuos que constituem sua maneira de pensar e agir a partir desses
modelos culturais, interpretam 0 mundo.
A triparticao kantiana das dimensGes da experiéncia humana entre trés
esferas ou mundos - 0 mundo objetivo, isto é, a realidade exterior; 0 mundo
social, que se refere & dimensio da vida em comum, a qual compartilhamos
com 05 outros; o mundo subjetivo, aquele ao qual temos acesso privilegiado
— pode nos ajudar a definir o que significa “racionalismo cultural” para Weber.
Racionalismo seria, nesse sentido, o modo sempre especifico e varivel como
cada civilizacdo particular constitui sua matriz cultural peculiar - que definiré,
por sua vez, como cada um de seus membros iré perceber e agir no mundo em
todas as trés dimensées posstveis de aco.
Isso significa, antes de tudo, que nao existe definicao “universal” possivel
acerca do que é “racional” ou do que seja “racionalidade’ Para Max Weber, ra~
cionalidade ¢ racional so sempre conceitos que se referem a uma matriz cul.
tural especifica. O que é “racional” sé pode ser medido em relacio a um racio-
nalismo peculiar. Seguindo esse pressuposto, podemos também afirmar que
nao existe uma definicao universal e valida para todas as culturas e civilizagies
especificas acerca do que seja 0 ser humano e de como suas necessidades de-
vam ser interpretadas.
1. Weaneck Viana. Max Weber ea interpretigao do Brasil In Sout, Jesse (Org), Omalandroc o protestante
Brasil: Fdliora da UnB, 1999Cada civilizacio particular “cria” sua propria definicio do que ée para que
serve um “ser humano”. A “humanidade’, desse modo, é sempre definida de
modo particular. Existem tantas maneiras diferentes de interpretar a “huma-
nidade” dos seres humanos, que definem um modo especifico de sentir e de
agir em todas as suas dimensdes da vida, quanto existem culturas ou matrizes
civilizacionais distintas.
O modo como a racionalidade é definida em cada sociedade depende, des-
se modo, da matriz civilizacional & qual essa sociedade particular pertence.
Em relagio a civilizacao ocidental moderna, Weber definiré seu racionalismo
especifico como 0 “racionalismo da dominagao do mundo”. Esse racionalismo
difere de modo profundo, por exemplo, dos racionalismos da “fuga do mun-
do’, tipico da sociedade de castas hindu, ou do racionalismo da “acomoda¢io
a0 mundo” tipico da sociedade tradicional chinesa.
O racionalismo da dominacao do mundo seré definido por uma “atitude
instrumental” em relagao as trés dimensdes da ag4o humane ja citadas. O ho-
mem ocidental moderno tende a perceber 0 mundo exterior, em sua dimensio
natural; o mundo social, que compartilha com 0s outros;e seu préprio mundo
subjetivo interno, ao qual tem acesso privilegiado, como dimensdes “coisifica-
das’, como meros “meios” para a consecucio de fins heterbnomos como poder
dinheiro. Assim, a natureza externa vai ser percebida como algo a ser explo-
rado pelo homem e nao como algo que possua valor em si.
‘Também 0 “outro’, o ser humano como qual convivemos, seré interpretado
instrumentalmente como “competidor” a ser vencido na luta social por recur-
808 escassos endo como “irmao” a ser ajudado, como na ética crista medieval.
Finalmente, nossas proprias necessidades e emogdes sero “colonizadas” e ins-
trumentalizadas para a consecucio de fins heter¢nomos
E por conta dessa defini¢ao peculiar de “racionalismo” que a “racionalidade”
ocidental serd marcada pela I6gica instrumental da relacéo meio-fim. Como
08 fins jé estao dados - a busca de lucro no ambito do mercado capitalista, por
exemplo -, nés, individuos ocidentais, sé podemos ser “racionais” se calcular-
‘mos ¢ compreendermos como o mercado funciona, para melhor nos adaptar areat
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suas demandas. E desse modo que a “ago racional” e a “racionalidade” sao de-
pendentes do tipo de “racionalismo” dominante em dada cultura peculiar.
O diagnéstico acerca do racionalismo especifico que a civilizacio ocidental
constitui é portanto ambiguo para Max Weber. Ele reconhece que, na dimensao
material da producao e da distribuigao de riquezas, 0 Ocidente nao tem com-
petidor; assim, a expansio de seu racionalismo peculiar para todo o globo seria
apenas uma questo de tempo. A dimensao material da vida nao possui apenas
significarao econémica mas também militar, politica, cultural e simbélica, 0
que explica a dominancia inconteste do Ocidente no mundo atual,
Mas 0 racionalismo ocidental é também ambiguo, Weber fala dos “homens
do prazer sem coragio’, no sentido de uma relacdo externa com os valores dos
sentimentos e das emogoes, € dos “especialistas sem espirito’, no sentido de
homens que entendem tudo de seu reduzido campo de agdo ¢ nada sobre o
mundo mais amplo e sua légica, como os tipos sociais mais tipicos do mundo
moderno. A riqueza material € contraposta a pobreza emocional e intelectual
‘como duas faces da mesma moeda.* Ao mesmo tempo, o mercado competitivo
capitalista e 0 Estado racional centralizado sao percebidos como instituigoes
cuja eficiéncia e “racionalidade” nao teriam igual.
Essas duas visdes da percepcao weberiana da peculiaridade ocidental ins-
piraram leituras divergentes de sua obra: uma versio apologética do Ociden-
te, consubstanciada numa percepgao liberal (e neo-liberal, nos dias de hoje),
na qual a virtude econémica e material ganha proeminéncia, ¢ uma versio
“critica” que inspiraria, por exemplo, os trabalhos posteriores da assim chama-
da “escola de Frankfurt’, uma das tradicées de pensamento critico mais im-
portantes do século xx. Foi precisamente a riqueza e a propria ambigiiidade
da interpretacao weberiana do Ocidente o principal fator responsavel por sta
influéncia tao profunda no pensamento que se lhe seguiu.
Como foi que Weber construiu sua leitura peculiar do racionalismo oci-
dental? E comum lembrar a importancia de seus estudos de sociologia da reli-
2. Wenen, Max. A tia protestant 0 expirito do capitalismo. Sto Paulo: Compan das Letras, 2004
Lenard eee |AGEwese po CAPITALISMO MoDERNO IT
gio, nesse particular. E sem divvida uma afirmagao verdadeira, mas nao vinga
se nao a qualificarmos com cuidado, Ainda se pensa que Weber seria uma es-
pécie de antipoda de Karl Marx, ¢ que, contra a leitura “economicista” do Oci
dente moderno deste tiltimo, teria proposto uma leitura “idealista” a partir da
dominancia da varisvel religiosa.
Nada mais longe da verdade. A importancia da variavel religiosa na cons-
tituigao do racionalismo ocidental em Max Weber é heuristica. Como todas as
sociedades tradicionais eram sociedades dominadas por uma visio religiosa
do mundo, em que a religiao era a instancia que produzia “sentido” em todas
as suas dimensdes, a passagem “espontinea” para uma sociedade de tipo se-
cular e moderno haveria de ter raizes religiosas. A leitura de Weber sobre a
ética protestante é o texto-chave de sua interpretacdo do Ocidente. E nese
texto que Weber elabora sua visio do “paradoxo das conseqiiéncias’ tipico da
ética protestante, ao mostrar uma ética religiosa que condena a si mesma e
ctia (sem ter tido obviamente essa intenco) as condigées do mundo secular,
dominado agora pelo mercado competitivo e pelo Estado racional centrali-
zado. Mas isso nada tem a ver com 0 “peso causal” da varidvel religiosa. Weber
ndo esté dizendo que a religiao foi mais importante do que os outros fatores
econdmicos, politicos, juridicos etc. para a constituigao do mundo moderno
que nés conhecemos. O que ele quis dizer foi que, para melhor “compreen-
dermos" a passagem da sociedade tradicional para a moderna, no Ocidente,
precisamos compreender primeiro como a racionalizacao religiosa ocidental
cria as precondigées de sue propria morte, ao menos como tinica instancia
produtora de sentido, e cria as condigdes “simbélicas” para o surgimento da
sociedade secular.
Se o peso da racionalizacao religiosa no Ocidente esta consubstanciado na
doutrina protestante ascética, cujos estimulos praticos 4 conduta implicavam
um ascetismo intramundano de transformacao do mundo, acarretando com
1 Talcott Persons defende este argumento no capitulo dedicado 2 Weber no seu hoje clisico The stmcture of
tocial action New Yorks The Free Pres, 968,om: oR
12 wenen| sxsatos comentaos
isso anccessidade de conhecer ¢ de dominar esse mundo de maneira nio-reli-
giosa e secular, existe também uma série de outras “revolugées parciais”, em ou-
tras esferas da vida, sem as quais o mundo como hoje o conhecemos nio teria
existido. Além da religido, Weber enfatiza, dentre outros fatores, a importancia
da cidade ocidental e de sua forma de sociabilidade e de organizagio politica
revoluciondrias; tambéma racionalizacao juridica em diregio ao direito formal
€ previsivel que assegura a possibilidade da sociedade moderna regulada por
Contratos; o desenvolvimento da tecnologia e dos modos de producao econd-
mica que permitiram o capitalismo moderno e o desenvolvimento do Estado
racional ¢ centralizado moderno.
O texto que ora é apresentado ao leitor pode ser compreendido como um
excepcional resumo, abrangendoa leitura weberiana da racionalizagio religio-
a, juridica, politica e econdmica que levaram a formacio do Ocidente como
“um racionalismo peculiar, e expondo de modo conciso e comparativamente
“Tauito claro todos os fatores importantes para a constitui¢ao do mundo mo-
_dexno como hoje o conhecemos.
JessE Souza