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Jacques Rancible, "O que signica wEsteticar, trad RP. Cabral Jacques Ranciére oq signifien aEstétican Gostaria de apresentar a minha concepedo do que significa «estética», Como se vera, esta nogdo envolve uma certa ideia das relagdes entre estética e politica, € opse-se a tendéncia do pensamento anti-estetica que tem preponderado no mundo ocidental ao longo das duas ultimas décadas. Esta critica da tradigao estética apresenta dois aspectos contraditérios. Por um lado, assume o caracter icio da década de de uma rejeigdo da tradigao «modemistan. Com efeito, no 1980 assistimos a afirmagdo de uma «viragem pés-moderna» que veio romper com a ideia da autonomia da arte e com a crenga no poder subversivo da arte auténoma, uma posigdo que foi resumida ms volume de ensaios editado pelo historiador da arte americano Hal Fosier sob 0 emblematico titulo The Anti= Aesthetic. Esta rejeigao do ideal movernista conduziu a uma critica mais alargada de toda a tradigao estética inaugurada por Kant e seus seguidores. A absolutizagao da arte e do juizo estético foi denunciada a partir de uma perspectiva sociolégica, bem como filoséfiea. Do ponto de vista sociolégico, 0 livro de Pierre Bourdieu, La Distinction: Critique sociale du jugement contestava a ideia kantiana do carécter «desinteressadon do juizo estético. De acordo com Bourdieu, 0 gosto de cada classe social € determinado pelo seu tos. 0 juizo desinteressado do belo constitui uma ilusdo filoséfica que oculta a realidade do gosto «refinado» daqueles que possuem o capital «cultural> que Ihes permite supor que o seu gosio esta acima das diferenyas de classe. Porm, © caso destes nao deixa de confirmar a regra de que os juizos de gosto so, na realidade, juizos sociais incorporados que exprimem um etos socialmente determinado, Do ponto de vista filosifico, a critica da cespeculago estéticay foi sobremdo realizada por fildsofos analiticos. Numa obra intitulada Adliew ¢ esshétique, 0 fil6sofo francéfono Jean-Marie Schaeffer opds a andlise conereta de praticas artisticas e atitudes estéticas as insuficiéncias da tradigao estética especulativa emblematizada pela Filasofia da Arte de Schelling ¢ as Ligdes de Estética de Hegel, Esta contestagao da «absolutizagao estética» esta em sintonia DIECTO PROLET PROLEKT YM AO PROJECT kar 201t Jacques Rancible, "O que signica wEsteticar, trad RP. Cabral com a dentincia das vanguardas artisticas que tem no pensador alemao Boris Groys um dos seus principais porta-vozes. Groys acusa a vanguarda de ter preparado 0 caminho para 0 totalitarismo através do seu ideal de identificagaio entre arte e vida e da sua aspiragto a uma arte total que acabaria por encontrar expressdo na arte total das paradas militares estalinistas, Se, por um lado, temos a dentincia da «absolutizagio estética» em nome da realidade conereta da pratica artistca, sociale politica, por outro assistimos a defesa da posigdo contriria por parte de alguns filésofos que acusam a sestéticay de ter diluido o radicalism dos eventos artisticos. No seu Petit manuel C'inesthétique, Alain Badiou rejeita, em nome da ideia platénica segundo a qual as obras de arte sao eventos, um tipo de estética que subordina a sua verdade a uma (anti-)ilosofia aprisionada a celebragies roménticas da verdade sensorial do poema. Nas suas obras tardias, Jean-Frangois Lyotard segue um caminho diferente para chegar 4 mesma conclusio Este pensador poe em conftonto a tracigio estética da reconciliagao enire arte e vida, baseada na analitica kantiana do Belo, com o conceito de Sublime que, na sua opiniao, exprime o verdadero sentido da arte moderna, que é 0 de testemunhar 0 fosso existente entre 0 Inteligivel e o Sensivel. Na sequéncia desta reformulagao do modemismo, Lyotard faz da obedincia ao «lmepresentiveb» a actual missdo da arte, contra todas as formas de fustio pos-moderna de tradigdes artisticas. A anfase que este pensador confere ao «lrrepresentaveb» esti em consonancia com tuma visio da modemidade que contraria a visio progressiva da histéria, Esta Ultima prenunciava um futuro de emancipagdo © revolugio em que se implementariam os poienciais politicos da moderidade. Pelo contr ppensamento do Irrepresentavel esté em conformidade com uma visto da historia moderna que associa a realizagdo dos ideais modemistes ao exterminio dos Judeus pelos nazis e no a uma revoluglio emancipatiria Estas criticas t8m pelo menos uma vantagem: ao associarem a sua dentincia da cestétican a questdes de verdade, historia e politica, tomam patente que a «cestética» € muito mais que a filosofia ou da cigneia da arte, Com efeito, a estétican & uma matriz de percepgdes € discursos que envolve um regime de DIECTO PROLET PROLEKT YM AO PROJECT kar 201t Jacques Rancible, "O que signica wEsteticar, trad RP. Cabral 3 ensamento, bem como uma visio da sociedade e da historia. A ideia de que a estética designa uma forma de experiéncia e um regime interpretativo também constitui © cere da minha propria reflexdo sobre a matéria, porém a minha posigao contrasta com as que expus. Com efeito, as criticas referidas denunciam © cruzamento de priticas artsticas e padroes de interpretagao como o sintoma de uma confusio que urge clarificar. Assim, propdem-se distinguir entre as razbes da teoria, as praticas artisticas ¢ 0s afectos da sensibilidade. Eu defendo 1 perspectiva contraria, A meu ver, a confusdo que esses autores denunciam, em nome de um pensamento que visa reconduzir cada coisa ao seu elemento, constitui na verdade 0 proprio né através do qual pensamentos, praticas ¢ afectos se instituem ¢ sio referidos a um tertitério ou objecto «especificor Ainda que 0 termo «estéticay possa designar uma confusio, € esta «confusion que nos permite identificar os objectos, os modos de experincia e as formas de ensamento que constituem 2 arte enquanto tal. A vontade em dissociar & forga a pritica artistica do discurso estético equivale a citar a extingao da ate, A arte nao & uma pratica auto-evidente em nome da qual podemos denunciar a Uusurpagio estética. A arte existe apenas na medida em que € enquadrada por regimes de identificago que nos permite conferir especificidade as suas priticas e associd-las @ diferentes modos de percepedo ¢ afecto ¢ a diferentes padrdes de inteligibilidade. Propus-me distinguir, no seio da tradigao ocidental, t1és grandes regimes de identificagdo. Chamei ao primeiro «regime ético das imagens», ja que, neste regime, os produtos da pratica artistica no so considerados arte, mas entendidos como imagens. Por conseguinte, a apreciagdo dos mesmos depende de dois aspectos interligados: em primeiro lugar, so essas imagens fiéis aos inais? Seguidamente, que efeito produzem nos modes de ser, no comportamento ¢ na moralidade dos que as contemplam? Plato condena os poemas de Homero por representarem deuses irasciveis e libidinosos que nao fazem jus ao verdadeiro conceito de divindade, nfo podendo por isso contribuir para a educagio de bons cidadios. Os Talibas destruiram os Budas de Bamiyan considerados parte do patrimonio artistico da humanidade — porque, para eles, DIECTO PROLET PROLEKT YM AO PROJECT kar 201t Jacques Rancible, "O que signica wEsteticar, trad RP. Cabral 4 no passavam de idolos ou imagens de falsos deuses, j que € proibida aos homens a representagio em imagens do verdadeiro Deus ‘Ao segundo regime chamei «regime representativon, uma vez que isola, entre as miltiplas «artes» ~ no sentido de «actividades téenicas» -, 0 dominio particular das artes da imitaglo, dissociando-as dos ditames éticos sobre a sua verdade e 0s seus efeitos morais. Em alternativa, este regime submete-as apenas a regras de verosimilitude e de consisténcia intema, Assim se compreende a oposigo estabelecida por Aristoteles entre a légica causal das aegdes na tragédia © @ sucessio empitica dos factos narrados na historia. Mas esta consisténcia interna s6 adquire a sua cogéncia no seio de uma rede de relagdes, estaveis entre as criagdes artisticas © @ sensibilidade do publico. E nisto que reside o significado da mimese: uma relacdo estvel entre a poiesis, que produz as obras, e a aisthesis, que € o meio sensivel da recepgio das mesmas Na Europa do século XVIII, a ordem clissica da mimese tornou-se no sistema em que as regras antisticas eram alegadamente fundadas no conhecimento da nnatureza humana, da qual, por sua ver, dependia a reac¢io emocional dos espectadores. Assim, a invengto antistica estava em consonéncia com uma certa ordem hierarquiea do mundo, ordem essa que determinava os temas passiveis de serem representados, bem como as formas de representagdo mais adequadas, aos temas eruditos (igh) e populares (Jow). Aos temas nobres da tragédia e da pintura de epistédios historicos opunham-se os temas vulzares da comédia © da pintura de género, deixando nas margens da arte as formas que nao cabiam estes moldes, como, por exemplo, o romance, caracterizado por uma mistura de personagens, situagdes ¢ linguagens, Chamei aregime estético da arten 2 um terceiro regime, resultante do colapso dessas regras de correspondéncia entre temas, formas de representagao e modos de expressio Neste regime, a hierarquia de temas e de wéneros cai por terra, Todos os temas gozam de igual estatuto € podem ser tratados mediante toda e qualquer forma de representagao. Esta reviravolta estética ¢ mais ou menos contemporinea da Revolugdo Francesa e encontra uma expresso emblematica nas Ligdes de Hstética de Hegel, mais precisamente num comentiirio que o fildsofo dedica a duas pinturas do espanhol Murillo onde se DIECTO PROLET PROLEKT YM AO PROJECT kar 201t Jacques Rancible, "O que signica wEsteticar, trad RP. Cabral 5 representam jovens mendigos em andrajos. Enquanto exemplos da «vulgar pintura de género, os quadros deste tipo eram até entdo desprezados, Porém, Hegel elogia a indoléncia e a ociosidade dos rapazes mendigos, qualidades que, no seu entender, os aproximam dos deuses do Olimpo representados pelos escultores gregos da Antiguidade. Este descarte da antiga oposigdo entre temas eruditos (high) € temas populares (low) deve-se ao facto de Hegel ter podido contemplar os quadros de Murillo no novo espago do museu — um espago neutro onde as obras surgem isoladas dos seus destinos ¢ das hierarquias as quais estavam submetidas quando adomavam os palécios dos principes ou ilustravam os dogmas da religido. A estética € a forma de percepgao © de reflexdo que convém a este novo regime, caracterizado pela tensio entre dois aspectos: por um lado, a Arte existe enquanto tal, como uma esfera da experigncia separada das demais © propiciada por espagos expecificas como os ‘muses. Por outto lado, deixa de haver qualquer fronteira entre os objectos que merecem ser considerados como artisticos € outros objectos. A estética é a reflexao sobre esta contradigto de funndo que toma a Arte auténoma enquanto esfera da experiéncia, a0 mesmo tempo que etradica as fronteiras que separavam 0s objectos «artisticos» dos objectos e formas da vida prosaica Esta tensito assenta, por seu tumo, numa tensdo mais profunda, ligada & ruptura da ordem representativa. Tal ordem tinha como base 0 pressuposto de uma harmionia natural entre a poiesis produtora das obras e a aisthesis, ou seja, © meio sensivel no qual tais obras eram recebidas ¢ onde produziam efeitos especificos. As regras da producdo artistica assentavam nesta harmonia natural tem relagdo as regras que determinavam as formas de percepgao € de resposta emocional de um piiblico refinado, Perdida esta hasmonia, a ordem mimética desmorona-se. Tal ruptura constitui um tema central da Critéca da Faculdade do Juizo de Kant. 36 referi atras a tese de Lyotard que opde a ruptura do Sublime & harmonia do Belo. Creio que existe aqui um erro de leitura: a ruptura dda harmonia representativa esta jd presente na analitica do Belo, De acordo com Kant, 0 Belo € apreciado para além de qualquer conceito, Mas a arte implica sempre 0 conceito de algo que deve ser produzido, Afirmar que 0 Belo é apreciado sem um conceito equivale a dizer que nio existe correspondéncia DIECTO PROLET PROLEKT YM AO PROJECT kar 201t Jacques Rancible, "O que signica wEsteticar, trad RP. Cabral 5 entre a implementagao das regras © ideias anisticas © a apreciagao de uma forma, nem harmonia entre a produgo antistica e @ recepcio estética, Kant marca posigio a0 estabelecer um contraste entre cheleza livrey & ubeleza aderente»: a ideia do Belo & independente dos critérios que definem a perfeigao de uma obra ou a adequagao de um edificio @ sua fungao. A forma que é apreciada pela experiéncia estetica no 6 @ mesma forma que um artista impoe & matéria, Na verdade, sio coisas opostas, ja que a segunda pressupde uma relagdo hierdrquica entre o conceito e o sensivel ao qual se da forma, enquanto a experigncia estetica implica o livre jogo da faculdade intelectual ¢ da faculdade sensivel. A experiéncia estética nao se limita a passar por cima das hierarquias dos géneros © dos temas da arte ~ ignora também algo que parece ser fuleral & pritica artistica: a vontade de impor uma determinada forma & matéria € de exercer um efeito expecifico sobre a sen iilidade do espectador Assim, a experigncia estética, que Kant explora ao mesmo tempo que decorre a Revolugao Francesa, parece constituir uma forma muito particular e paradoxal de liberdade e igualdade. Este paradoxo toma-se mais evidente no exemplo aparentemente banal que Kant apresenta no segundo parigrafo da Critica da Faculdade do Juizo, quando define o cardcter «desinteressado» do juizo estético. De acordo com 0 filésofo, se pretendemos apreciar a forma de um palacio, temos de por de lado as objecgdes habituais ligadas ao bom» e ao «aprazivel». Uma forma nfo deve ser julgada com base na sua fungio enquanto espago de habitagdo ou simbolo de distingdo social. Do mesmo modo, no devemos tomar em consideragaio 0 facto de o palécio ter sido construido com o suor dos humildes para satisfazer a vaidade dos nobres. Se pusermos de lado todas essas questdes «sociaisa, poderemos pronunciar livremente um juizo sobre a beleza da forma, de modo a que tal juizo seja nao s6 a expressio de um gosto individual, mas se tome atribuivel a toda e qualquer pessoa, Mais a frente, no sexagésimo pardgrafo da Critica da Faculdade do Js Kant mostra que este poder da cuniversalidade sem conceito» possibilita uma nova forma de comunidade ou um novo «senso comum» capazes de colmatar o hiato existente entre os fiteis refinamentos da alta cultura (high) e a selva da cultura popular (/ow’). Para o filosofo, a eriagio ROJECTO PROJET PROUEKT YMAGO PROJECT kar 201t Jacques Rancible, "O que signica wEsteticar, trad RP. Cabral deste senso comum & uma necessidade, se de facto se deseja que vingue a promessa revolucionéria de uma nova ordem politica baseada na liberdade e na igualdade Ja referi o diagndstico de Bourdieu, segundo 0 qual o caracter ‘desinteressado» do juizo estetico e @ promessa de um novo senso comum constituem uma ilusdo estética baseada na «denegagio da realidade social» Porém, este argumento pode ser facilmente invertido, tomando a wdenegagion kantiana do social aparentemente mais subversiva do que a «critica sociaby da estética A critica de Bourdieu opde a igualdade estética a realidade da distribuigo das formas de gosto que dependem da hierarquia das classes sociais. Por iconoclasta que possa parecer, esta critica esti em conformidade com a tradigao do regime ético que atribui a cada classe social modos préprios de ser, sentir © pensar, uma tradig2o cuja formulagio filoséfica remonta & Repiiblica de Plato. Nesta Repiiblica, do mesmo modo que cada parte da alma desempena a sua propria fngo, cada individuo tem o seu «papel» a cumprir, que consiste em governar ou ser governado. Nos tempos modemos, esta maxima alimentou uma preocupago obsessiva entre as classes dominantes quanto a0 perigo das classes baixas poderem ser corrompidas pela apropriagao de gostos e aspiragdes desadequados a sua condigio. Esta concepeio de comunidade como estrutura estivel onde os grupos se caracterizam pelo lugar que ocupam, @ fungio que desempenham ¢ 0 modo como se adequam a esse lugar e a essa fuungio, constitui aquilo a que eu chemo «ordem policial», Para mim, a Policia no designa a parte do aparelho estatal dedicada a repressio, mas sim esta ordenagao da comunidade em que cada parte & compelida a imanter-se fel ao seu lugar, a sua fungo © & sua identidade. Uma tal ordenagio de lugares ¢ identidades implica ainda uma distribuigao do visivel, do audivel e do pensivel mareada por uma separagio clara entre o real € 0 ficcional, 0 visivel e 0 invisivel e, finalmente, 6 possivel ¢ 6 impossivel, Em contrapartida, a légica da politica & caracterizada pela existéncia de um elemento suplementar, clemento esse que extravasa a contagem das partes, lugares e identidades. acgo politica vem baralhar a distribuigdo desses lugares dessas identidades, bem como a definigio do visivel, do audivel e do possivel. Através dela, ROJECTO PROJET PROUEKT YMAGO PROJECT kar 201t Jacques Rancible, "O que signica wEsteticar, trad RP. Cabral 8 aqueles que estavam condenados a uma existéncia obscura e condicionada pela necessidace tomam-se visiveis enguanto seres falantes e pensantes; e aquilo que até entio era entendido como mero nuido dessa existéncia obscura toma-se audivel enquanto diseurso, A isto chamei «a parte daqueles que nao fazem partes. Foi com base nesta ideia que me propus repensar a nogao de democracia. A meu ver, é 0 «povo» o sujeito da democracia, é este que encarna © referido suplemento; & este que exprime a eapacidade de «qualquer um», a capacidade dos «incompetentes», capacidade que se situa para além de toda ¢ qualquer prerrogativa baseada na posse de uma habilitagdo especifica nascimento, riqueza, ciéncia, ou outras. Ora, aquilo que Kant propde na sua anélise estética do palicio é um «suplemento do mesmo género. Ele considera que a apreciagio dos edificios desse tipo envolve normalmente dois critérios: 0 critério intelectual do bom ¢ © critério sensorial do aprazivel Esses dois critérios envolvem és relagbes hierérquicas: primeiramente, 0 eritério intelectual opde o conhecimento 4 ignorancia; em segundo lugar, 0 eritério sensorial opde os sentidos e gostos refinados aos sentidos e gostos da plebe; por fim, 0 eritério intelectual opde-se 20 critério sensorial. Contudo, a analise kantiana da televo a um terceiro elemento; 0 juizo estético nao esta subordinado ‘nem ao critério intelectual nem ao sensorial. E um elemento suplementar, um jogo «livre», nio hierdrquico, das faculdades. Este suplemento neutraliza as trés cposigdes hierérquicas e define uma nova capacidade que é a eapacidade de todos ¢ qualquer um Existe uma capacidade para apreciar a aparéncia € para jogar com a aparéncia que € comum a toda a gente: eis a ligo que um outro pensador, Schiller, retra da Critica de Kant e desenvolve nas suas Cartas sobre a Bducagdo Estetica do Homem. Estas cartas foram publicadas alguns anos apds a terceira Critica de Kant, durante a Revolugdo Francesa, e dao testemunho de um sentimento de desilusio relativamente 4 prometida liberdade republicana. Na perspectiva de Schiller, a Revolugdo Francesa fracassara ao pretender erradicar por via da lei e do poder do Estado formas de desigualdade e de sujeigio que eram inerentes 20 fundo da experiéncia sensivel. Assim, 0 pensedor desenvolyeu uma nova DIECTO PROLET PROLEKT YM AO PROJECT kar 201t Jacques Ranciote,"O que significa wtsteticas, tad RP. Cabral i promessa de liberdade © de igualdade baseada no significado da experiéncia estética, Schiller transforma o «livre jogo das faculdades de Kant em algo a que chama o «impulso lidico», rejeitando a oposiglo entre o «impulso formaby activo © 0 «impulso sensivel> passive. Para este pensador, «o homem s6 é humano quando joga». O impulso lidico & a capacidade de jogar com a aparéncia enquanto tal, capacidade essa que elide a hierarquia tradicional da forma ¢ da materia, da actividade e da passividade, dos meios e dos fins. Todas essas oposi¢des «intelectuais> eram também oposigdes sociais que distinguiam duas espécies no stio da Humenidade: por um lado, o homem de acco, capaz de perseguir grandes objectivos e de dar forma material és suas aspiragdes: por cutro, o homem passive, condenado a esfera material da mera sobrevivéncia Pelo contrétio, a capacidade estética & partilhada tanto pelo amante da arte extasiado perante as antigas estituas de deuses como pelo primeiro selvagem que decidiu adomar-se A experiéncia estética define um potencial de humanidade panithada que permite o desenvolvimento e langa os fundamentos, para uma forma de comunidade sensivel que transcende a comunidade determinada pela lei e pelo poder estatal. ‘A analise de Schiller poe em destaque uma questao importante e contraria 4 maioria dos discursos sobre a modernidade e @ autonomia artstica Aquilo que o regime estético da arte autonomiza nio é a obra artistica ou 0 poder do artista, mas sim um modo especifico de experiéncia, A experiéncia estética constitui a estrutura no seio da qual as formas de arte sto pervepcionadas © pensadas; porém, o seu alcance ultrapassa em muito as fronteiras da arte. Envolve ox diversos modos de experimentar um mundo sensivel, que ja ndo estd Timitado 20 necessirio © ao iil, nem é estruturado pelas hierarquias do bom © do aprazivel. De facto, a capacidade estética enforma um mundo de experiéncia possivel que transcende a distribuigao policial dos corpos e das formas de ver, sentir e pensar tidas como apropriadas» & condigao de cada um. Este esbater de fronteiras constitui um elemento essencial em todas as formas historicas de emancipapao individual e colectiva dos que viviam enredados apenas num mundo sensivel — 0 mundo utilitario do trabalho arduo e da necessidade. No meu livro La Nit des ROJECTO PROJET PROUEKT YMAGO PROJECT kar 201t Jacques Rancible, "O que signica wEsteticar, trad RP. Cabral ° prolétaires, tentei mostrar como a emancipagao social teve origem numa forma de subversdo estética’ surgiu com a apropriagdo pelos membros das «classes baixas» de formas de experigncia, percepgio e linguagem que mio eram consideradas adequadas & sua condigto, isto & a condigao de «subaltemosy, Assim se explica 0 facto de podermos encontrar uma ilustragao directa do olhar desinteressado» que Kant langa 20 palicio num texto publicado cinquenta anos mais tarde, durante a revolugdo de 1848, O texto desereve 0 dia de trabalho de um marcenciro que esté a assoalhar uma casa rica, em beneficio do proprictatio ¢ do seu patrio: Sentindo-se como que em casa, cle vase deleitando com a decorapio de ume sale juan vai assentando o southo, Sea janela dit para um jardin ou pare um pitoreseo hhorizone, por memenios bsixa bragos e na sua imaginago atrvessa a ampla vista, pace a aprosiar melhor do que ox denos das resides izinhas" Este texto nada tem a ver com arte. Contudo, aborda uma questio essencial da analise Kantiana: a capacidade de olhar «desinteressadamenter um espago, que € 0 do trabalho drduo ¢ da propriedade. Acontece que este «desinteresse» no é © alheamento do esteta, indiferente vulgar realidade social. Pelo contritio, implica uma ciséo no seio da realidade social: a dissociagdo entre a actividade manual do trabalhador, que € determinada por constrangimentos socials, € a actividade do seu olhar, que se auto-emancipa, chegando a apropriar-se da forma de poder inerente ao olhar perspective. Esta dissociaglo contraria a distribuigao policial dos modos de sentir considerados adequados ao lugar, & fungao e a identidade do trabalhador Da forma a um novo corpo de trabathador, ja nio adaptado aquela distribuigdo. O texto citado nao fala de arte nem de politica, mas de algo que constitui a base comum da experiéncia estética © da aceao politica ~ aquilo a que eu chamo a distribuigao do sensivel, ou seja, a distibuigio do visivel, do dizivel e do pensavel por meio dos quais os seres humanos se interligam numa comunidade, a distribuicdo das capacidades € incapacidades atribuidas aos elementos que se encontram aqui ou acolé numa comumnidade. Assim, no é por acaso que este texto surja num jornal dirigido ao Gabriel Gauny, «le Travail le the in Le Plalosophe pleeten, p ASX D PROUET PROLEKT YMAQO PROJECT kar 201t Jacques Rancible, "O que signica wEsteticar, trad RP. Cabral proletariado revolucionirio durante a revolugdo de 1848. Aparentemente, a conquista de uma vor colectiva por parte do proletariado dependia da dissociagao cestética» de uma certa identidade dos trabalhadores — mais precisamente, da identidade considerada cadequada» & sua condigao subalterna Para esses trabalhadores, a questio fundamental nao era a de compreender as causas da exploragio que softiam, mas a de inventar um novo corpo, um corpo destinado a algo que niio a exploragdo. E aquilo que tornou possivel a criagio de um corpo destinado a luta colectiva foi a possibilidade de exercitarem, no proprio espago da exploragio, um olhar livre ¢ «desinteressedo», Assim, 0 que parece ser uma caracteristica do regime estético da arte ¢ tum elo paradoxal entre a indiferenga estética e 0 potencial politico. Na légica Giica © representativa existe a suposigao de uma ligagio directa entre a representagio podtica ou visual e um determinado efeito produrido sobre os leitores, a audiéncia ou os especiadores. No teatro classico, esperava-se que 2 representagio dos vicios incentivasse as virtides opostas no espirito dos espectadores. Ainda hoje, espera-se que a representagao de violéncia, guerras, massacres, ete., em nds um sentimento de aversio a guerra, a0 imperialismo ou ao fanatismo; e & suposto que a parédia artistica da cultura do consumo nos resguarde contra as sedugdes da mesma, Porém, 0 regime estético tem, desde © inicio, questionado a ideia de tal conexiio directa, Em contrapartids, a ideia schilleriana da «educagao estéticar do homem afirma 0 potencial emancipatério que a experiéneia estética encerra, precisamente com base na rejcigio de quaisquer tentativas de transmitir uma mensagem ou de incentivar determinadas reacgdes € alitudes nos espectadores, No texto que cite!, a emancipaggo do trabalhiador comega com a capacidade estética de um «olhar desinteressado». Tal paradoxo no € algo do pasado. Gostaria de o lustrar com 0 exemplo de uma experiencia artistica e politica que um grupo de artistas tem levado a efeito num dos suburbios mais pobres de Paris, um desses subirbios maioritariamente habitados por trabalhadores migrantes e marcados por todas as formas de destituigao social e tensio racial, © onde ha alguns anos se verificaram tumultos violentos. Com efeito, actualmente esto em curso numerosos projectos artisticos que intervém DIECTO PROLET PROLEKT YM AO PROJECT kar 201t Jacques Rancible, "O que signica wEsteticar, trad RP. Cabral 2 em bairtos considerados «dificeis» Mas © modo como este projecto particular aborda a questio parece-nos paradoxal. Em muito daquito que lemos e ouvimos sobre a «crise» dos subiirbias refere-se a perda dos «lagos socials» provocada pelo individualismo de massas, bem como a necessidade de reconstituir esses mesmios lagos. Porém, 0 projeeto artistico a que me refiro, encara estas questoes de forma muito particular, j@ que prope a criagio nesse subirbio problematico de um espago «extremamente init, frigil e ndo produtivos.” A diseussio deste espago estava aberta a quem assim 0 desejasse de entre os habitantes Locais ¢ 0 ‘mesmo seria entregue & tutela da comunidade. Mas seria utilizado com um fim especifico: 0 isolamento, Ou seja, © espaco era concebido ¢ implementado como um lugar @ ser ocupado por uma sé pessoa de cada vez, com vista & meditagdo € contemplagao solitirias. Isto porque o elemento que falta na vida quotidiana destes subirbios € a possibilidade de se estar so — logo, a possibilidade de uma comunidade baseada na liberdade e nfo na necessidade Bis a razfo pela qual o projecto se intitulava Fu e Nos. Nao é dificil traduzir estes termos no seu equivalente filoséfico — refiro-me, nomeadamente, & Luniversalidade do juizo estético de Kant. © ponto fulcral do projecto era romper com a normal distribuigao das formas de experiéneia sensivel e das capacidades e incapacidades que as mesmas implicam. Num filme relacionado com projecto, pedia-se aos habitantes do bairro que escolhessem uma frase, a qual era entdio impressa na T-shirt que envergavam diante da cémara, Deste modo podiamos reconhecer um inesperado admirador de Kant ou um apreciador da beleza do pérdo-sol. Mas concentremo-nos numa das frases escolhidas, através da qual uma mulher dava a sua propria versio dos objectives do projecto: «Quero um mundo vazio que eu possa preencher.» «Preencher um mundo vaziow- eis, de facto, uma formula extremamente sugestiva Ela pode recordar-nos a formulag%o kantiana da universalidade do juizo estético, o qual é atribuivel a todos, uma vez que nfo tem coneeito. Aos cuividos dos franceses, a frase podera evocar também o ultimo verso do refta0 da fntermactonal, que diz: «Nous ne sommes rien. Soyens tout.» («Nao somos hada, Sejamos tudo») Do mesmo modo, os leitores franceses poderdo * Para mais informagio pode verse hip ww evensfoundaien be, PROJECTO PROLET PROVEKT Ymago PROJECT keorw 2011 Jacques Rancible, "O que signica wEsteticar, trad RP. Cabral 3 idemtificar na mesma frase um eco do mais célebre personagem literirio francés, Madame Bovary, cuja desgraga & causada pelas suas tentativas para experimentar na vida real a verdade de algumas palavras que tinha fido nos livros, tais como «felicidades, «@xtase e «paix». Mas podera evocar ainda 0 propésito do autor do romance, Gustave Flaubert, que pretendia eserever um livro sobre nada, um livro que valesse apenas pela virtude da sua eserita Devido a semethante proposito, Flaubert foi considerado © paladino da «arte pela arte. Acontece que, desde o inicio, « historia de Madame Bovary ~ a filha de um camponés que deseja viver aquilo que as palavras dizem — foi denunciada como 0 triunfo da democracia ne literatura, Alias, a autonomizagao da «pura literatura» seguia a par € passo com a reviravolta estética implicada por esse desejo da filha de um camponés de introduzir a arte na sua vida. Para se compreender o que significa westética», & preciso procurar definir a rede de conexdes que interliga todas essas formulas, todos esses modos de preencher mundos vazios. Para tanto, fa que por de lado as obsoletas e inconsistentes oposigdes entre sofisticagio estética e realidade social, arte pela arte e arte comprometida, cultura enudita e cultura popular, etc, ete, Inerente a «subversio estéticay € a ruptura de qualquer relagdo directa entre as formas de produgao artistica € 0 efeito que as mesmas possam exercer sobre 05 espectadores ou leitores. Inerente & mesma é ainda a tensio entre a autonomizagdo da experigncia estética e a clistio da fronteira que separa os temas dignos ou indignos de representagio artistica e os puiblicos capazes ou incapazes de os apreciarem. Se queremos compreender essa tens2o fundamental, temos de questionar luma série de conceitos que prevalecem na reflexdo historica sobre a pritica anistica, certamente 0 caso de conceitos como modemismo e pds ‘modemismo, Na tradigao ocidental, © modemismo artistico tem sido sobretudo definido como uma ruptura com a arte representativa, Mas o conceito de arte representativa tem recebido uma definigao demasiado estrita, que @ identifica com a figuragao pictoriea. Esta definigdo tem servido de base ao paradigma de luma revolugio modema anti-representativa, que rejeita a tarefa de contar DIECTO PROLET PROLEKT YM AO PROJECT kar 201t Jacques Rancible, "O que signica wEsteticar, trad RP. Cabral q historias ow de representar personagens para se concentrar na investigagao sisterndtica dos materiais e instrumentos especificos de cada arte. De acordo com este paradigma, Kandinsky, Malevitch e Mondrian iniciaram a modemnidade pietirica ao virar cosias & figuraglo, Schonberg inaugurou a modemidade musical ao por de lado a tradigao expressiva em favor da linguagem dodecafonica; Mallarmé opés & linguagem comum da tribo a linguagem intransitiva do poema, ete. A partir deste ponto, alguns autores identificaram a modemidade com essa autonomizagio da arte em geral © de cada uma das artes em particular, em relagdo as outras artes, linguagem da comunicaggo © as imagens da cultura comercial: ao paso que outros procuraram associar a autonomizagéo da arte & emancipagao social e politica opondo a autonomia artistica a estetizagio da vida quotidiana ¢ da cultura do consumo. Outros ainda associaram a concentrago da arte sobre os seus proptios materiais 20 materialismo marxista Assim se explica que o modernismo de Clement Greenberg da década de 40 ou a teoria estruturalista dos anos 60 tenham procurado estabelecer um paralelismo entre a autonomia antstica e a politica emancipatoria Nos anos 80, com o refluxo da maré, este quadro de analise softeu uma completa reviravolta, Os quadrados brancos ¢ negros de Malevich ja nao eram precursores da revolugo social, mas testemunhos de uma arte do Irrepresentvel que prenunciava o desastre do holocausto nazi. Porém, ja desde 05 arios 60, a Pop Art, 0 novo realismo © as variadas formas de activismo artistico vinham minando essas identificagdes ao ressuscitarem outros moder ismos © modemismo da performance © da irrisio dadaistas, © moxernismo surrealista do dé‘ournement de objectos prosaicos © imagens populates, 0 modernismo dialéctico de fotomontagens politicas, etc. Estes revivalismos naio devem ser interpretados como os sinais de uma ruptura pose modema que veio por fim 4 separagio modernisia entre Arte enudita (high) € cultura popular. E isto porque tal separag2o foi uma invengao retrospectiva, luma reinterpretagao tardia e tendenciosa das formas de inovagao artistica do modernismo historico que remontayam a0s finais do século XIX e inicios do século XX, De facto, tais formas nao estabeleciam um contraste entre a DIECTO PROLET PROLEKT YM AO PROJECT kar 201t Jacques Rancible, "O que signica wEsteticar, trad RP. Cabral 5 autonomia artistica © a vida nao artistica, antes procuravam inventar formas de arte que estivessem em sintonia com as novas formas de experigncia estética. E também nao isolavam a materialidade especifica de cada arte — pelo contrario, pretendiam importar novas possibilidades artisticas de outras artes. As experiéncias de Kandinsky e de Schonberg estavam em consonncia com 0 projecto de uma nova forma de arte que estabelecia analogias entre todos os sentidos, Se Malevich, Rodchenko e El Lissitzky procuravam formas puras, faziam-no com vista a reconstruir as formas da experiéncia sensivel e da vida quotidiana. Assim se explica que, durante a Revolugdo Sovietica, essas formas puras tenham inspirado projectos arquitecténicos ou cartazes politicos comerciais que visavam a identificaggo das formas de arte com as formas da Vida comum. E a poesia «pura de Mallarmé procurava integrar uma nova economia simbélica da comunidade que, na opinio do poeta, iria contrabalangar a economia politica e a democracia representativa, Foi com este fim em vista que Mallarmé se propds introduzir efeitos musicals e formas coreograficas na concepgao e na propria tipografia dos seus poemas, que assim se tornariam mais materiais, mais em sintonia com 2 sua fungo enquanto emblemas da comunidade © modemismo tardio construiu uma fibula inconsistente sobre a autonomia da arte ¢ 0 seu significado politico, e f8-lo como consequéncia de uma ideia simplista que identificava a representagdo com a produgdo figurativa de similitude. Porém, o regime representativo no se definia pela mera produgio de similitude. Definia-se por uma estrutura que submetia essa produgio a todo um conjunto de regras que estipulavam 0 que podia ser representado € as formas de representagiio mais adequadas a cada tema, Por aqui se compreende que o regime estético ndo pode ser entendido como a emancipacao relativamente a similitude. F, em vez disso, a emancipagio da similitude. E importante notar que, no mundo ocidental, 0 modemismo nao comegou com a pintura abstracta; comegou com a reabilitagao da pintura de género e com a exuberdncia descritiva dos chamados romances realistas. descri¢ao que Hegel faz dos pequenos mendigos de Murillo é um bom exemplo. 0 ponto fundamental & que o regime estetico da arte ndo afirma a autonomia da DIECTO PROLET PROLEKT YM AO PROJECT kar 201t Jacques Rancible, "O que signica wEsteticar, trad RP. Cabral 6 arte enquanto tal. Com efeito, essa «autonomian & a resultante da dissociagao entre a produgto e a recepgao da arte O regime estético afirma a autonomia da experincia estética através da sua propria distancia relativamente a vontade do artista Por conseguinte, a autonomia da experiencia estética é 2 autonomia de tuma forma de experiéncia cujo proprio estatuto & contraditorio. De modo a esclarecer tal contradigao, talvez nos seja util regressar & analise da experiéncia estétiea proposta por Schiller nas suas Cartas, Por um lado, a experiéncia estética ¢ experiéneia de uma forma de suspensio ~ ou neutralizagdo. © «livre jogon diante da livre aparénciay constitu uma forma de experiéncia que contraria as formas comuns da experiéncia sensivel, que sio formas de subordinacao. E interessante referir que Schiller o descreve como um momento de «inactividade», ou um momento de equivaléncia entre actividade € passividade. Esta inactividade & emblen tizada pela escultura de uma deusa antiga, a chamada Juno Ludovis. Schiller enfatiza 0 facto de que esta cabega & representada livre de qualquer preocupacdo ou vontade, Hegel afltma o mesmo {a propésito dos rapazes mendigos de Murillo: esto livres de qualquer preocupagio ou cuidado, Assim como a deusa Juno, nada fazem. De modo semethante, 0 mareeneiro «por momentos baixa os bragos, Podemos entender este «nada fazer, este momento de suspensio, como o ceme da experiéncia estética Por um lado, esta experiéncia de liberdade © igualdade pode ser relacionada com 0 novo estatuto da obra de arte no tempo dos museus, dos concertos publicos ¢ da ampla difusio de livros © revistas. Por outro lado, contudo, justifica-se enfatizar a ligagio entre a suspensio estética ¢ a obtengao de direitos politicos. Nesta base, & possivel relacionar a autonomia estetica com a autonomia artistica e afirmar a visdo de uma futura comunidade livre. Porém, podemos encaré-la de duas formas. Fm primeiro lugar, a ceducagao estéticay do homem pode ser uma forma de aprendizagem para a fruigio de autonomia estética e artistica, e entendida como uma condigao preliminar da liberdade e da igualdade sociais. Mas a questao pode ser colocada ao contrario, A aparéncia de liberdade da deusa grega testemunha uma forma de arte que nao estava separada da vida, Com efeito, a arte antiga ignorava a distingo entre vida publica e vida quotidiana, bem como as distingdes entre arte, politica e religido. DIECTO PROLET PROLEKT YM AO PROJECT kar 201t Jacques Rancible, "O que signica wEsteticar, trad RP. Cabral Assim, a ceducagzo estéticay do homem pode ser interpretada como um programa concreto de transformago da vida colectiva, com vista a reinstinuir a nfo distingllo ou nfl separagio entre a arte a vida. Os herdeiros romanticos de Kant e Schiller tomaram esse eaminho: opunham a vida da comunidade estética 4 comunidade morta do Estado e da lei. A mesma ideia alimentou o programa marxista de uma revolugao «humana» que ultrapassava os limites da revolugo politica, ¢ inspirou 0 programa da vanguarda futurista e construtivista na época da Revolugdo Sovietica’ a arte j@ nao eriava obras de arte mas formas de uma nova vida colectiva Por aqui se conclui que no ha apenas um, mas pelo menos dois cmodemismos». E ambos procuraram lidar com 0 paradoxo original do regime estético, ou seja, a dissociagio entre as razdes da arte € as razdes da experiéncia estética, Ha um «modernismo activistay que elimina essa disjunga0 ao tornar a arte j4 nfo uma actividade de produgio de obras de arte, mas um processo de transformacao de formas de vida No campo oposto, hi um outro modernismo que elimina a mesma disjungao. mediante a transferéncia do poder emancipatorio da experiéncia estética para as proprias obras de ante. Esta tensao, porém, nlo deve ser confundida com uma oposigao entre a are pela arte © a arte engajada, Na verdade, as duas estratégias afectam-se mutuamente, ¢ cada uma delas deve importer qualquer coisa da outra. As teorias da escola de Frankfurt sio um bom exemplo disto, tomando-se numa imagem de marca daquilo a que chamei moderismo tardio, defensor da autonomia da arte. Porém, esses pensedores ndo valorizam 2 autonomia das obras de arte enquanto tais, mas antes a forma de experi \corporada, Enfatizam 0 modo como esta forma se opie as formas de experiencia da vida alienada, Uma vez (que estas iltimas representam a falsa reconciliagdo que disfarya a realidade do trabalho alienado, as formas de arte tém de dar testemunho dessa alienagio ‘Tém de contrariar a propria ambigdo de fazer da obra de arte um todo hharmonioso e auto-suficiente. A busca de aparéncia € harmonia deve produzir obras que demonstrem que @ aparéncia e a harmonia sdo impossiveis, e que a beleza & maculada pelo sofrimento da alienagio social. Se a obra de Schonberg 6 emblematica para Adomo, tal deve-se ao facto de, ao denunciar 0 sofrimento DIECTO PROLET PROLEKT YM AO PROJECT kar 201t Jacques Rancible, "O que signica wEsteticar, trad RP. Cabral 8 da vida racionalizada © mecanizada, inventar um sistema que € ainda mais racionalizado € mecanizado do que a propria vida. Pela mesma ordem de ideias, Adorno critica a pera Moisés © Aardo de Schonberg por ver nela uma excessiva harmonia entre o texto e a miisica. A «obra auténoma» & sempre feita de sedimentos da experiéncia social, © que implica conffito social. Em ultima analise, aquilo que € «politico» ndo € a autonomia da obra, mas a sua incapacidade em a aleangar. Inversamente, os artistas que advogam a transformagio das obras de arte em formas de vida no podem contentar-se com @ mera dissolugdo da pritica artistica na vida social, A arte funcional, ao servigo da nova vide, tem de tomar perveptivel que € de facto arte funcional ao servigo da ntova vida, Tem de dar uma expressio simbélica a essa funga0. Dai as linhas excessivamente obliquas da Tribuna de Lenine imaginada por El Lissitzky, ou dos cartazes e fotografias de Rodchenko, Essas linhas obliquas transcendem as exigéncias da sua fungao «social, como que para imitar o despontar da nova vida A significar algo, a modernidade artistica significa nao apenas 2 tensto entre esses dois modemismos, como também a tensio intema inerente a cada uum, Essa tensdio no era uma oposi¢ao estitica; pelo contririo, abriu um campo de miitiplas formas de produgao artistica © de experiéneia estética, Assim, nao 6 facil identificar um novo paradigma eapaz de caracterizar com preciso uma forma de arte «pés-modemay. As instalagdes, performances, video-instalagdes © video-performances da arte contemporinea continuam a explorar a tensio entre a produgdo de obras de arte © a produgdo de situagdes experimentais, inventando dispositivos que visam mudar as formas de percepci imterpretar ‘A meu ver, a reflexio sobre a estética tem que ser a reflexdo que procura esclarecer a logica dessas tenses e 0 modo como as mesmas geram formas de percep¢ao, mods de interpretagao e programas de vida, A estética nao existe enquanto teoria da arte, mas sim enquanto uma forma de experiéneia, um modo de visibilidade e um regime de interpretagio, A experiéneia estética vai muito além da esfera da arte, A questo é a configuragio da paisagem sensivel que DIECTO PROLET PROLEKT YM AO PROJECT kar 201t Jacques Rancible, "O que signica wEsteticar, trad RP. Cabral ° estnutura uma comunidade, a configuragdo daquilo que pode ser visto e sentido dos modos possiveis de falar e pensar sobre isso. Trata-se de uma distribuigao do possivel, que é também uma distribuigao da capacidade que uns e outros tém de participar nessa mesma distibuigao do possivel, Esta questio é fundamental ‘4 nogdo kantiana da universalidade do juizo estético, e esta no cere dos exemplos que apresentei’ quem tem a possibilidade de interromper o trabalho para contemplar a paisagem? Quem tem direito a solidi? Quem € que esté habilitado a possuir © a preencher mundos vazios? As «questdes» estéticas dizem respeito & configuragio de um mundo comum. E, a meu ver, a reflexdo sobre tais questdes requer uma forma de discurso «estético» que niio é uma especialidade da filosofia, mas, pelo contrétio, € transversal as fronteiras de disciplinas especificas como a filosofia, a histéria da arte, a teoria literéria ou a sociologia da cultura, etc, de maneira a pensar as formas de distribuigo do sensivel a partir das quais as formas possiveis das nossas percepedes emergem, bem como os modos de produgio de conhecimento e os mados de confi guragao de um mundo comum ‘Tradugao de Rui Pires Cabral Jacques Ranciére, «O que significa "Estétca"», trad. R. P. Cabral In va. proymago pt (Outubro 2011), PROJECTO PROLET PROVEKT Ymago PROJECT keorw 2011

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