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Nick Shadow

Sangue e Areia

Tradução
Paulo Reis e Lourdes Menegale
Título original: The Midnight Library — Blood and Sand
Série criada por Working Partners Limited.
Ilustração de capa: David Wyatt

Direção editorial
Soraia Luana Reis

Editora
Luciana Paixão

Editor assistente
Thiago Mlaker

Assistência editorial
Elisa Martins

Revisão
Luciana Garcia
Vanessa Rodrigues

Criação e produção gráfica


Thiago Sousa

Assistente de criação
Marcos Gubiotti

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

S537s Shadow, Nick


Sangue e areia / Nick Shadow; tradução Paulo Reis e
Lourdes Menegale. — São Paulo: Prumo, 2008.
— (Biblioteca da meia-noite)
Tradução de: Blood and sand
ISBN 978-85-61618-63-6
1. Ficção infanto-juvenil inglesa. I. Reis, Paulo. II.
Menegale, Lourdes. III.Título. IV. Série.
CDD: 028.5
08-4899. CDU: 087.5
Bem-vindo, leitor.

Meu nome é Nick Shadow, curador desta


instituição secreta: a Biblioteca da Meia-
noite.

Onde fica a Biblioteca da Meia-noite?,


você pergunta. Por que você nunca ouviu
falar dela? Para sua própria segurança, é
melhor que essas perguntas permaneçam
sem respostas. Contudo... desde que você
prometa não revelar onde descobriu o que
vem a seguir (não importa quem ou o que
exija isso de você), eu revelarei o que
mantenho nos cofres antigos. Após muitos
anos de pesquisa, reuni a mais assustadora
coleção de histórias já apresentada ao
homem. Elas irão aterrorizá-lo, e fazer com
que a carne de seu jovem esqueleto
estremeça. Talvez você devesse tomar
coragem e virar a página. Afinal de contas,
qual a pior coisa que poderia acontecer?...
Volume II
Histórias de Ethan Spicer

Sangue e areia

O melhor amigo do homem

Uma estranha na casa


SANGUE E AREIA

— Tédio! Tédio! Tédio! — gritou John,


abafando o bramido das ondas na praia e os
guinchos das gaivotas no ar.
Sarah nem culpava o irmão por não
conseguir gozar direito aquelas férias. O céu
estava cinzento, e o mar não parecia
convidativo. Parecia frio, perigoso e
traiçoeiro. As ondas espumantes
amedrontavam quem chegasse perto. Um
vento gelado varria a praia, atirando a areia
áspera no rosto deles. A sensação era
cortante, como se a areia tentasse tirar
fatias deles.
Mesmo sem o vento, dificilmente
aquela seria uma praia muito agradável
para passear. A areia estava cheia de lixo e
tinha um odor estranho. Uma espécie de
limo verde e viscoso cobria os rochedos na
ponta da praia. E além dos rochedos ficava o
píer em ruínas, há muito desativado.
Enferrujadas e cobertas de algas marinhas,
as pilastras de ferro permaneciam fincadas
nas águas acinzentadas.
Em resumo, John e Sarah achavam
bem melhor que estivessem num agradável
balneário ensolarado, de preferência no
exterior — com um bom conjunto de
piscinas e uma bela faixa de areia
margeando um oceano azul e quente.
Tentando afastar a tristeza da cabeça
do irmão, Sarah pegou uma concha.
— Escute, a gente consegue mesmo
ouvir o mar — disse ela, segurando a concha
perto da orelha.
— Ninguém aqui precisa pôr uma
concha perto da orelha para ouvir o mar. A
gente está bem perto — rebateu John
incisivamente. Depois se abaixou, pegou um
seixo, virou para a água e fez um
movimento rápido com o pulso. O seixo
deveria deslizar horizontalmente na
superfície, pulando e quicando, mas afundou
logo. Com desprezo, John disse: — Nem as
pedras deslizam direito.
Sarah achou injustiça culpar a pedra,
mas sabia que era melhor não discutir com o
irmão quando ele estava de mau humor. E
agora ele estava de muito mau humor. A
cada ano, John detestava mais aquele
balneário. E Sarah também, para ser
sincera. Mas ali estavam eles outra vez, já
entediados no segundo dia de férias.
John tinha treze anos, e Sarah, doze.
Eles freqüentavam aquele lugar desde que
começaram a andar. Havia fotos que
provavam isso. Instantâneos dos dois
arrastando-se pela areia ainda de fraldas.
Pareciam estar se divertindo muito naquela
época, mas não agora. Quando reclamavam,
a mãe exclamava: “Mas vir para cá já virou
uma tradição na nossa família. Um dia,
talvez vocês também tragam seus filhos
para passar as férias”. “Como castigo, você
quer dizer?”, retrucava John com sarcasmo.
Mas a mãe apenas ignorava o
comentário. Ela se recusava a ouvir
qualquer crítica ao balneário. Simplesmente
não conseguia compreender que nada havia
para John e Sarah fazerem ali.
Sarah olhou da praia para o píer. A
ruína parecia um detrito gigantesco, trazido
pela maré e abandonado ali para apodrecer.
Ela e John se lembravam vagamente de ver
aquilo em pleno funcionamento, com várias
atrações divertidas e até uma cartomante.
Todas as outras coisas interessantes no
vilarejo também pareciam ter fechado. Já
não havia mais espetáculos: os dois cinemas
estavam desativados. O parque de diversões
se mudara para a cidade vizinha. Não existia
mais aquário, nem golfe maluco.
Havia uma única galeria de diversões,
mas era escura, acanhada e entediante. As
lanchonetes serviam uma comida tão
gordurosa que até John se recusava a comê-
la, embora gostasse de uma tranqueira.
Quase todas vendiam frango frito e
hambúrgueres fedorentos. Só havia uma
especializada em peixe com batatas, onde a
comida era pelo menos aceitável. Mas até a
mãe lamentava que o peixe servido ali já
não era fresco e que não tinha mais o
mesmo gosto.
— Deve haver alguma coisa para a
gente fazer — disse Sarah, suspirando.
Depois de hesitar, acrescentou: — E se a
gente entrasse outra vez no concurso de
esculturas de areia?
Ela olhou para a parte da praia ao
longo do calçadão que fora cercada para o
único grande evento anual remanescente no
balneário. Os concorrentes moldavam e
esculpiam a areia molhada, feito argila.
Formavam figuras e arranjos que depois
pintavam. O trabalho mais sugestivo
ganhava um prêmio em dinheiro. No ano
anterior, ela e John haviam participado do
concurso. Pela primeira vez tinham idade
suficiente para isso. E, embora fossem os
competidores mais jovens, tinham se saído
muito bem, tirando o segundo lugar. Mas
John passara a maior parte da semana
emburrado por não ter vencido. Sarah
achara divertido só participar, mas sabia
que o irmão era muito competitivo.
— Não adianta — cortou John. — O
Homem de Areia vai ganhar. E não tem
graça saber que a gente vai perder.
Nenhuma.
Ele atirou outra pedra no mar. Quando
essa pedra também afundou sem quicar,
John se virou e saiu caminhando outra vez
pela praia.
— Devia haver um ano em que o
Homem de Areia não concorresse. Só um —
disse ele, arrastando os pés pela praia.
— Por que ele não pode se afastar e
deixar outra pessoa ganhar, só para variar?
Assim não é justo.
Sarah seguiu o irmão, pensando sobre
o Homem de Areia. Seu verdadeiro nome
era Gavin Bromfield, mas todo mundo
chamava o sujeito de Homem de Areia. Era
um velho esquisito que morava ali mesmo e
esculpia areia feito um gênio. Suas
esculturas eram espantosamente realistas, e
ele ganhava o concurso todos os anos.
Ninguém conseguia se lembrar de alguma
vez em que isso não acontecera, e ele
sempre parecia superar o que fizera no ano
anterior.
Sarah pensou nas participações
anteriores do Homem de Areia. A primeira
de que ela se lembrava fora um enorme
arranjo de frutas. Tudo ali parecia perfeito:
as bananas, os cachos de uvas, e até os
abacaxis. Mas uma das preferidas de Sarah
fora um jumento, tão realista que todos
ficavam tentados a se aproximar e dar
cenouras ao bicho.
— Com o que ele ganhou no ano
passado? — perguntou John.
— Com o Clunkers — respondeu Sarah.
— Ah, é... O Clunkers — repetiu John.
— Nós ainda não vimos o Clunkers este
ano, vimos? — observou Sarah, surpresa. —
Que estranho... Ele está sempre aqui.
Clunkers era um cachorro velho que
parecia morar na praia. Vivia cavoucando a
areia e farejando em busca de comida, ou
agachado à sombra da muralha do calçadão,
nas raras ocasiões em que o sol aparecia.
No ano anterior, o Homem de Areia fizera
uma escultura incrivelmente real de
Clunkers olhando para o mar. Claro que a
obra fora a vencedora.
— Talvez a fama tenha subido à cabeça
de Clunkers quando aquela escultura de
areia ganhou o concurso. Ele pode ter
trocado o balneário por outro melhor —
sugeriu John com malícia.
Sarah riu e disse para o irmão:
— Por que não entramos outra vez? Só
para curtir... e arranjar uma ocupação.
John deu de ombros e respondeu:
— Vou pensar no assunto.
Eles já estavam perto do píer arruinado
e abandonado.
Ali em torno a praia também estava
toda cercada. Era interditada durante o ano
inteiro, tanto para turistas quanto para os
moradores locais. Ao longo da cerca, placas
avisavam às pessoas que se mantivessem
afastadas. Como se alguém fosse querer
entrar ali... até as gaivotas pareciam se
manter longe daquela área.
Pelas frestas da cerca, Sarah viu que a
areia sombreada debaixo do píer parecia
mais suja, coberta por algas marinhas
podres e detritos trazidos pelas marés.
— Este píer parece mal-assombrado.
— Assim como aquela casa ali ao lado
— acrescentou John, apontando para um
velho bangalô improvisado que parecia tão
abandonado e descuidado quanto o píer à
sua frente.
Quando olharam para a casa, viram um
vulto conhecido, trajando um elegante
paletó claro e calças compridas, sair e
trancar a porta da frente.
— É ele! — disse Sarah. — O Homem
de Areia. Deve ser ali que ele mora!
— Pensei que ele morasse num grande
castelo de areia em outro lugar — disse John
brincando.
Sarah ficou olhando para os traços
marcantes do rosto do Homem de Areia. Ele
era exageradamente bronzeado, como se
passasse tempo demais ao sol. Em
contraste, seus olhos pareciam negros feito
o mar noturno. Com um calafrio, ela disse:
— Ele parece ficar mais sinistro a cada
ano...
John virou-se para ver o Homem de
Areia caminhar pelo calçadão.
— Aposto que ele vai trabalhar na sua
escultura de areia — disse ele em tom
pensativo. Depois, acrescentou:
— Acho que até vale a pena participar,
se tivermos alguma idéia do que
precisaremos derrotar...
Sarah olhou para ele.
— Você está sugerindo o que eu acho
que está sugerindo? — perguntou ela,
surpresa. John assentiu e disse:
— Precisamos ver o que o Homem de
Areia está fazendo para o concurso deste
ano. Assim teremos chance de fazer alguma
coisa até melhor.
— Mas você sabe que ele sempre
esconde as esculturas numa tenda especial,
para ninguém espiar antes do dia do
julgamento — disse Sarah. Depois sorriu
com um ar inocente e continuou: — A não
ser que alguém se enfiasse lá dentro...
John já parecia muito mais animado.
— Exatamente. Vamos entrar no
concurso. Seja lá o que o Homem de Areia
inventar, vamos vencer. Só precisamos ver o
que ele está fazendo e depois descobrir uma
coisa melhor.
— Esse é o espírito da coisa! — disse
Sarah, rindo e imitando a voz da mãe.
Eles caminharam para a área vedada
da praia, onde o concurso de esculturas de
areia seria realizado. Viram que algumas
pessoas já começavam a se inscrever. Uma
grande tenda com riscas brancas e
vermelhas cobria uma pequena área da
praia.
— Aquela deve ser a do Homem de
Areia — disse John. Eles foram até a entrada
da área do concurso e pegaram os
formulários de inscrição. Chegaram bem a
tempo, pois o prazo terminava no dia
seguinte.
Ao final da tarde, preencheram os
formulários e pediram à mãe para assinar a
autorização.
— Esse é o espírito da coisa! — disse
ela, com ar de satisfação. — Estão vendo?
Onde mais vocês poderiam se divertir tanto?
Sarah e John sorriram um para o outro.
A mãe era tão previsível.

Na manhã seguinte, irmão e irmã


entregaram os formulários. Depois foram
levados ao seu canteiro de areia na área do
concurso.
— O Homem de Areia falou que está
fazendo uma obra muito especial este ano.
Imagino o que será! — disse o concorrente
vizinho, vendo que Sarah e John olhavam
para a tenda do Homem de Areia. Depois se
voltou para sua própria escultura, que era
um enorme tabuleiro de xadrez espalhado
pela areia.
— Espero que nós não fiquemos muito
tempo imaginando o que há naquela tenda
— disse John entredentes para Sarah.
— Então você ainda quer seguir o
plano? — perguntou Sarah a ele.
John concordou com a cabeça.
Sarah sentiu uma pontada de
arrependimento. Por um lado, ela queria
aproveitar o concurso para se divertir, como
aquele vizinho. Mas John estava muito
empenhado em vencer.
— Tá legal, mas como vamos entrar lá
sem sermos pegos por ele? — perguntou
ela.
— Podemos fingir que estamos
testando algumas idéias na areia. Na
verdade, vamos ficar observando e
esperando — disse John. — Ele vai precisar
sair da tenda em algum momento.
Por sorte, havia um furgão que vendia
sorvetes estacionado perto da área do
concurso. Assim eles podiam se abastecer.
John ficou vigiando enquanto Sarah
trazia casquinhas. Mais tarde, Sarah ficou
vigiando enquanto John trazia picolés.
Finalmente, o Homem de Areia saiu da
tenda, com o paletó dobrado sobre o braço e
as mangas da camisa enroladas.
— Acho que ele vai ao banheiro —
disse John.
— Antes ele do que eu — retrucou
Sarah, fazendo uma careta. Quase todos os
banheiros da praia eram imundos e haviam
sido depredados. Poucos tinham vasos com
tampa ou torneiras, para não falar em sabão
e toalhas. Além disso, todos cheiravam mal.
Sarah detestava precisar usar algum.
John puxou o braço dela e disse:
— Vamos, não temos muito tempo.
Os outros concorrentes estavam
ocupados com as próprias esculturas. John e
Sarah foram se esgueirando para a tenda do
Homem de Areia, por um lado que não era
vigiado.
Sarah levantou a borda da tenda. John
entrou rastejando, e ela foi atrás.
Na penumbra, a escultura parecia
bastante assustadora, e Sarah ficou
arrepiada. Aquilo era um grande retrato da
vida marinha. Havia até um tubarão
pequeno. Ela ficou olhando para
caranguejos, lagostas, peixes e estrelas-
marinhas que pareciam de verdade. No
centro de tudo, havia um polvo. Como as
outras criaturas do mar esculpidas ali, o
bicho era espantosamente real. Os oitos
tentáculos eram feitos com tanta perfeição
que Sarah realmente visualizou o polvo
arrastando-se pelo sombrio fundo do mar.
Centenas de ventosas haviam sido formadas
e moldadas meticulosamente embaixo de
cada um dos longos braços flexíveis.
A escultura do polvo era tão real que
Sarah ficou hipnotizada. Incapaz de resistir,
aproximou-se para tocar um dos tentáculos.
A areia, ainda úmida, esfarelou-se e caiu.
Sarah prendeu a respiração, consternada
por ter danificado a escultura. Mas deu um
salto para trás quando viu o que a areia
revelara por baixo.
Carne de polvo verdadeira.
Sarah gaguejou:
— John, olhe para...
— Shhh — interrompeu o irmão.
Sarah percebeu que ele estava
prestando atenção em algo fora da tenda, e
também se pôs a escutar.
— Não, eu nunca revelo o que será a
minha escultura. Você precisa esperar para
ver — disse uma voz bem-educada e fria,
falando com alguém do lado de fora.
Era o Homem de Areia! Ele estava
voltando para a tenda!
John e Sarah saíram rastejando por
onde haviam entrado. Ao abaixar a lona
listrada depois de sair, Sarah viu de relance
os sapatos do Homem de Areia entrando
pelo outro lado.
— Ufa! Essa foi por pouco — disse John
com um sorriso de alívio, enquanto os dois
voltavam para seu lote de areia.
— Não tivemos tempo de cobrir nossos
rastros — disse Sarah, preocupada. —
Deixamos pegadas lá dentro!
— Não se preocupe — respondeu John.
— O Homem de Areia pode pensar que
alguém esteve espionando sua escultura,
mas não vai saber que fomos nós. Pelo
menos não acho que ele tenha nos visto.
— Mas não é só por ele achar que
alguém viu a escultura, John — disse Sarah,
preocupada. — Ele também vai perceber
que alguém já descobriu suas trapaças...
John olhou para ela e perguntou:
— Do que você está falando?
Sarah contou ao irmão o que vira.
Pensou que ele fosse ficar tão horrorizado
quanto ela, mas em vez disso John riu.
— Não pode haver um polvo verdadeiro
embaixo daquela escultura de areia —
declarou ele. — Você está maluca.
— Mas tenho certeza de que havia —
insistiu Sarah.
— O que você está dizendo? —
retrucou John, irritado. — Que o Homem de
Areia conseguiu arrancar um polvo do
oceano e cobriu o bicho de areia para fingir
que era uma escultura?
— Ou roubou o polvo de algum aquário
— argumentou Sarah. — Há um aquário na
cidade vizinha, não há?
John abanou a cabeça, virou, examinou
a areia do lote. Então, disse:
— Retiro o que falei antes. Você está
completamente maluca.
Sarah bateu o pé, frustrada. Ela sabia
muito bem o que vira.
De repente, lembrou-se de Clunkers e
disse com veemência:
— Tá legal, então onde está o
Clunkers?
Enquanto as ondas quebravam ao
fundo, John se virou, olhou para ela e
perguntou:
— O que isso tem a ver?
— No ano passado, o Homem de Areia
ganhou com uma escultura do Clunkers, não
foi? — disse Sarah. — E este ano ninguém
vê o cachorro em parte alguma. Talvez o
corpo do Clunkers estivesse dentro da
escultura que venceu. E a escultura do
jumento, há uns dois anos? Talvez houvesse
um jumento verdadeiro ali embaixo!
— Bom... era bem realista — disse John.
— Mesmo assim...
— E todo mundo sabe que as
esculturas do Homem de Areia começaram,
de repente, a melhorar há alguns anos —
continuou Sarah. — Lembro que a mamãe
falou que recordava que o trabalho dele não
era muito bom quando ele começou a
competir. Mas, de repente, num verão
qualquer, ele começou a fazer coisas
maravilhosas. Talvez tenha descoberto que
a melhor maneira de criar esculturas
realistas...
— Fosse moldar a areia por cima do
troço verdadeiro? — completou John.
— Pois é! — respondeu Sarah, aliviada
porque o irmão já parecia acreditar no que
ela vira.
— Vamos dar um tempo longe dessa
areia — disse John.
— Tá legal. Aonde você quer ir? —
perguntou ela.
— Até a casa do Homem de Areia —
respondeu John. — Se você estiver certa,
talvez achemos mais algumas provas lá.
Vamos olhar pelas janelas. Não há perigo
enquanto ele estiver ocupado aqui na tenda.
Na frente do velho bangalô do Homem de
Areia, as cortinas estavam cerradas.
— Vamos dar a volta por trás — disse
John. — Se esse nojento tem algo a
esconder, aposto que deve guardar nos
fundos da casa. Ninguém veria coisa alguma
ali. Atrás do quintal há um penhasco até a
praia.
— Só não podemos ficar presos, caso
ele apareça — disse Sarah, inquieta.
Mas John já estava abrindo o frágil
portão. Sarah seguiu o irmão, dizendo com
nervosismo:
— Não devíamos fazer isso. O Homem
de Areia pode voltar a qualquer hora.
Ela se encostou na cerca, tentando
vigiar o calçadão, enquanto John ia espiar
pela janela dos fundos. Vendo que ali as
cortinas não estavam fechadas, mas que as
janelas pareciam cobertas de sujeira, Sarah
perguntou:
— Dá para ver alguma coisa?
John encostou a cara no vidro,
aguçando o olhar, e disse:
— Está difícil, mas, pelo que eu consigo
ver lá dentro, é uma verdadeira bagunça.
— Depressa — disse Sarah. De repente,
o pedaço da cerca em que ela estava
apoiada, mais podre do que parecia, cedeu.
Sarah despencou no vazio, gritando e caindo
sem fôlego na praia lá embaixo. Pelo menos
aterrissara num monte de areia macia e não
se machucara.
— Você está bem, Sarah? — perguntou
John.
— Acho que sim... Só estou tremendo
um pouco — disse ela, apoiando a mão na
areia para se levantar. Sentindo uma coisa
redonda e chata sob a palma, olhou para ver
o que era.
Segundos depois, John já estava ao
lado dela, perguntando curiosamente:
— O que é isso?
— Parece uma moeda velha ou um
medalhão — disse Sarah, erguendo um
pequeno disco prateado cheio de arranhões.
Mas sentiu a garganta gelar quando leu o
nome no disco. Mostrou ao irmão e
arrematou: — Veja você mesmo...
— Parece a plaqueta de um cão —
disse John, posicionando o disco de metal na
claridade para ver melhor e poder ler a
inscrição. Depois, murmurou: — Clunkers...
— Ele olhou para o lugar onde Sarah achara
a plaqueta. Então disse: — Talvez os restos
do Clunkers estejam aqui também.
Sarah estremeceu.
— Aposto que o Homem de Areia
enterrou Clunkers ali, aonde ninguém vai —
disse apontando para o local debaixo do
píer.
— Tudo isso está condenado. O píer
deve ser demolido em breve — disse John,
olhando em volta. — Com certeza vamos ser
denunciados se alguém nos avistar aqui
embaixo. Vamos embora logo.
John e Sarah se levantaram e
caminharam até uma abertura na cerca que
circundava toda a área.
— Precisamos descobrir se o Homem
de Areia enterrou o Clunkers aqui — disse
Sarah para John, enquanto ele aumentava a
abertura na cerca para que ela pudesse
passar. — Se ele está fazendo coisas
horríveis com os animais, é preciso ter
provas para que ele pare.
John parou, refletiu e sentou-se na
areia. Sarah sentou ao lado do irmão, vendo
que ele estava pensando seriamente no
assunto.
— Se formos procurar por aí de dia,
seremos apanhados — disse John
lentamente. — É melhor voltarmos à noite.
Vamos precisar de uma lanterna e de duas
pás.

Sarah e John esperaram até meia-noite. Só


então, armados com as duas resistentes pás
de plástico que haviam comprado na única
loja de praia remanescente no calçadão, os
dois desceram a escada da pequena
pousada em que estavam hospedados.
Passaram pela mesa de recepção
desocupada e saíram pela porta da frente.
Rapidamente, percorreram a rua escura que
levava à orla. Ninguém estava por perto.
Depois do anoitecer, o balneário parecia
uma cidade-fantasma.
A praia também estava deserta,
embora a parte do concurso de esculturas
de areia continuasse iluminada. A luz dava à
areia e às algas marinhas um fraco brilho
sinistro. Sarah afastou o olhar rapidamente.
— À noite os caranguejos não saem
todos das tocas? — disse ela, tentando se
animar.
— Olhe um aqui! — disse John, dando
um beliscão nela e rindo. Depois desceu
correndo os degraus de pedra em direção à
areia.
Sarah hesitou. Àquela hora da noite,
até a melhor parte da praia parecia
assustadora. A área proibida e isolada do
píer, então, ficava apavorante. O mar tinha
uma aparência vítrea e misteriosa, repleta
de formas de criaturas perigosas. Os
choques das ondas na praia lembravam
avisos sussurrados.
— Venha! — insistiu John.
Sarah respirou fundo e desceu os
degraus. Os dois começaram a caminhar ao
longo da areia em direção àquela forma
escura que era o píer.
Quando chegaram perto, Sarah
paralisou. Estava muito escuro ali embaixo.
As sombras pareciam tão profundas quanto
o próprio mar.
— Mas não vejo aviso algum proibindo
a entrada — disse John, sorrindo.
Sarah sabia que ele queria dizer que a
escuridão encobria tanto as tabuletas
quanto os avisos.
— Mas precisamos ter cuidado — disse
ela, cautelosa. — Deve haver lixo de todo
tipo aí. Metal, vidro e...
— Tá legal, tá legal! Você parece a
mamãe! — disse John exasperado,
acendendo a lanterna para procurar uma
abertura na cerca da área sob o píer. O raio
de luz iluminou uma tábua solta, e ele
arrematou: — Bingo!
Depois se apressou a passar espremido
pela abertura, acenando para Sarah fazer o
mesmo.
Com relutância, ela lhe obedeceu... e
imediatamente franziu o nariz. O cheiro de
algas podres era particularmente forte
naquele lado da cerca.
John lançou a luz da lanterna pela área
sob o píer.
Não admira que seja tão fedorento,
pensou Sarah. Ela ficou olhando para a
quantidade de algas que havia por toda
parte. Parecia que um exército dos troços
invadira a praia. Sarah imaginou aquilo
cheio de águas-vivas e enguias. Pensou que
seria terrível prender os pés ali e acabar
sendo engolida por tudo.
— É espantoso o que é trazido pelo mar
— sussurrou John. — Sempre imaginei toda
espécie de criaturas misteriosas vivendo no
fundo e saindo da água à noite. Eram coisas
gordurosas com escamas e tentáculos,
procurando pessoas para arrastar de volta
com elas para o fundo. Aposto que todas
ficam embaixo desse píer. Provavelmente
devem estar à nossa espera.
— Cale a boca, John. Você não me
assusta — mentiu Sarah. Mas ela também
começou a temer que eles tivessem sido
vistos pelo Homem de Areia atravessando a
praia. Ele poderia descer até a areia para
pegar os dois. Ou talvez estivesse
esperando que eles chegassem embaixo do
píer para se lançar sobre os dois na
escuridão profunda.
— Sabia que é por causa desse troço
que precisamos vir para cá todo ano? —
disse John.
— O que você quer dizer? — perguntou
Sarah, escolhendo cuidadosamente onde
pisava.
— A mamãe e o papai se conheceram
aqui embaixo — retrucou ele. — Você não
lembra que eles nos contaram? É por isso
que esta cidade arruinada significa tanto
para eles, e também é por isso que somos
uma das últimas famílias suficientemente
piradas para ainda visitar o lugar.
— Eles se conheceram embaixo desta
coisa? — perguntou Sarah, surpresa. —
Devo ter esquecido!
— Só que o troço não era assim
antigamente — continuou John. — Você se
lembra daquelas fotos antigas das férias da
mamãe e do papai, quando eles eram
moços... antes de nós nascermos? Naquela
época, o píer vivia aberto. Havia
espetáculos, atrações, uma roda-gigante,
um museu de cera, lojas, uma galeria de
diversões e até um teatro onde comediantes
se apresentavam. Essa parte aqui da praia
também era aberta e cheia de turistas. Isso
foi antes da decadência da cidade. Eles
estavam de férias e se conheceram aqui
embaixo. A mamãe falou que foi amor à
primeira vista. O papai levou a mamãe a
alguns espetáculos no píer e a algumas
atrações. Foi assim que eles ficaram juntos.
John dirigiu a luz da lanterna para o
alto, iluminando a carcaça podre que
assomava acima da cabeça deles.
Atualmente, aquilo estava longe de ser o
lugar mais romântico do mundo para um
encontro.
— Por isso a mamãe e o papai não
conseguem enxergar esse lugar como é
agora. Não vêem as medonhas casas de
peixe com batatas, as fábricas falidas, os
prédios caindo aos pedaços — continuou
John, correndo a luz da lanterna pelas
grossas pilastras do píer. — Nem percebem
o monte perigoso de sucata velha e
enferrujada que há aqui. Continuam vendo o
píer como era quando eles se conheceram. E
ainda se enganam, dizendo que isto é um
lugar bom e arrastando a gente para cá todo
ano.
John pegou na areia um pedregulho,
que atirou numa das vigas de ferro,
provocando um grande barulho.
Por um instante, Sarah achou que toda
a estrutura desmoronaria em cima deles.
Irritada, disse:
— Você quer que alguém nos
descubra? Vamos escavar um pouco e cair
fora daqui.
— Tá legal, desculpe.
Eles cavaram em silêncio por algum
tempo.
— Não há coisa alguma aqui — disse
John, arquejando.
— Ei, espere... Encontrei algo. Acho que
existe alguma coisa entre as algas.
Sarah dirigiu a luz da lanterna para o
lugar.
Era uma coleira de cachorro. Ela quase
deixou cair a lanterna de susto. A garota
ficou tão enjoada que precisou cobrir a boca
com a mão.
— Acho que há uma boa razão para o
sumiço do Clunkers — disse John, sério. —
Parece que você tinha razão, Sarah. Vamos
ver o que mais podemos encontrar.
Eles não precisaram cavar muito longe
para descobrir uns restos manchados de
sangue.
— O que é isto? — perguntou Sarah,
segurando um objeto particularmente
fedorento.
John dirigiu a lanterna para aquilo, e
ambos quase vomitaram. Era a pata
apodrecida de um jumento.
O pior ainda estava por vir. John
desenterrou um crânio, com os dentes
expostos pela morte. Ainda havia restos de
pêlos presos ali.
— É o Clunkers — disse ele. — Isto é...
era o Clunkers.
Nessa hora, Sarah realmente passou
mal.
Eles ficaram olhando para aqueles
restos, num silêncio quebrado apenas pelo
marulho das ondas. Uma gaivota gritou,
como se estivesse pranteando o coitado do
velho cão.
— O Homem de Areia matou o Clunkers
para usar o corpo no concurso de esculturas.
E aposto que também matou um jumento.
Se não, por que os restos estariam
escondidos juntos embaixo do píer perto da
casa dele? — disse Sara furiosa, virando-se
para John. — Precisamos contar à polícia... e
aos organizadores do concurso. Eles vão
banir o Homem de Areia para sempre.
— Acho que você tem razão. O Homem
de Areia deve ter feito isso mesmo. Mas nós
não temos provas definitivas de que foi o
Homem de Areia que colocou os ossos aqui,
temos? E não esqueça que todos os
moradores da cidade amam o Homem de
Areia. Não vão acreditar que foi ele. Vão
pensar que somos “gente de fora” e que
estamos com ciúme — respondeu John, com
voz sombria.
Sarah pensou um pouco antes de falar.
Então, propôs, sorrindo:
— A não ser que a gente convença
alguém a investigar a nova criação dele.
John olhou para ela, sorriu e disse:
— Boa idéia. Vamos fazer isso amanhã.
Quando se afastaram do píer, Sarah
notou uma luz acesa num dos aposentos da
casa do Homem de Areia. Será que ele
estava vigiando?
Não foi difícil encontrar os organizadores na
manhã seguinte. O homem e as duas
mulheres que dirigiam o concurso estavam
na praia dando entrevistas à imprensa,
enquanto tiravam fotos com o prefeito da
cidade para promover o evento.
Durante um intervalo, John e Sarah
correram para eles, com palavras e
acusações jorrando sem fôlego de sua boca.
— O Homem de Areia vem trapaceando
há anos! — insistiu Sarah. — Ele mata
animais... animais de verdade... e depois
cobre os corpos com areia.
— Que loucura é essa? — perguntou o
prefeito. Era um gorducho de cara vermelha,
com sobrancelhas que pareciam lagartas
obesas. Tentou ignorar Sarah e John, mas
eles insistiram para que os organizadores
conferissem a escultura do Homem de Areia.
— A prova está na tenda dele — disse
John. — Nós vimos um polvo morto lá.
Venham ver também!
Um ou dois repórteres que
entrevistavam os organizadores e o prefeito
escutavam tudo com interesse.
— Isso parece dar uma boa reportagem
— disse um. John e Sarah ficaram satisfeitos
quando eles foram junto.
Chegaram à tenda do Homem de Areia
e puxaram a porta de lona. O Homem de
Areia estava lá, mas não havia qualquer
escultura representando a vida marinha —
só um monte de areia.
Sarah e John se entreolharam,
perplexos.
— Pediram que viéssemos inspecionar
sua escultura — disse um dos
organizadores, parecendo bastante
embaraçado.
— Supostamente era um polvo, e tenho
certeza de que seria maravilhoso, se
realmente existisse. Nós teríamos ignorado
o pedido, já que partiu apenas destas
crianças, provavelmente travessas, mas a
imprensa estava lá, e...
— Está nos chamando de mentirosos?
— interrompeu John, indignado.
Mas ninguém respondeu.
O Homem de Areia sorriu para o
prefeito, os organizadores e os repórteres.
— Não precisam se preocupar — disse
ele, educadamente.
— Vocês são muito bem-vindos aqui.
Mas, como podem ver, nem comecei o meu
trabalho, que ainda está sendo planejado...
embora eu já possa prometer que não será
um polvo. As crianças têm uma imaginação
muito fértil, não é?
Sarah começou a dizer:
— Somos perfeitamente capazes de
usar nossos olhos...
Mas o prefeito a interrompeu:
— Chega! Crianças, vocês já causaram
muito constrangimento aqui!
Um dos organizadores interveio com
um olhar gélido:
— Esperem um instante! Agora me
lembrei desses dois. Vocês tiraram o
segundo lugar no concurso do ano passado.
Será que o que esta acontecendo aqui é
uma vingança?
Todos os três organizadores se
desculparam outra vez. Depois de lançar
olhares malvados para John e Sarah, saíram
da tenda.
O prefeito virou para os dois irmãos e
disse:
— Vou deixar vocês aqui para se
desculparem com o senhor Bromfield!
Com dificuldade, tirou seu corpanzil da
tenda. Sarah se virou desafiadoramente
para o Homem de Areia. Sentindo o rosto
vermelho de raiva, disse:
— Nós sabemos o que você fez.
Aqueles seres marinhos sumiram daqui
porque você percebeu que nós descobrimos
tudo.
— E sabemos o que você fez com o
Clunkers, no ano passado — acrescentou
John. — Além do jumento no ano anterior, e
de todos aqueles outros bichos.
O Homem de Areia baixou a cabeça e
disse:
— Vocês estão enganados, se acham
que eu matei os animais. Eu amava aqueles
bichos. De verdade. Todos eram velhos e
morreram de causas naturais. Eu só queria
tornar alguns famosos por mais tempo...
Preservar o corpo deles um pouco mais.
Sarah ficou olhando para o Homem de
Areia, sentindo-se confusa. Será que ele
estava falando a verdade ao dizer que não
maltratava os animais? Mesmo que fosse
assim, porém, ele ainda era trapaceiro e
mentiroso.
— Mas você fingiu que as esculturas
eram todas obras suas — denunciou ela. —
Você fingia que começava do zero, usando
só areia e água do mar, como todo mundo!
— Pois é. Vocês me pegaram direitinho
— admitiu o Homem de Areia. Depois, sorriu
e continuou: — Mas este ano eu tive uma
idéia que talvez interesse a vocês.
Sarah não conseguia tirar os olhos
daquele sorriso fingido, com os dentes
brancos à mostra.
— Se vocês voltarem aqui mais tarde
para me ajudar a criar uma escultura de
areia real e verdadeira, eu deixo vocês
inscreverem a escultura em seus nomes,
seja o que for que a gente faça — continuou
o Homem de Areia. — Vocês podem dividir o
dinheiro do prêmio. Este ano está mais alto
do que nunca. Não posso ser mais justo do
que isso, posso? Se quiserem, podem doar o
prêmio a alguma instituição de proteção de
animais.
Sarah e John se entreolharam, sem
saber o que dizer. O Homem de Areia
suspirou e sentou-se na areia.
— Na verdade, eu não sou um homem
mau, sabem — disse ele, levantando os
olhos para os dois com uma expressão
triste. — Voltem mais tarde, e começaremos
a trabalhar assim que vocês chegarem.
— Você vai mesmo nos deixar ganhar?
— perguntou John.
— Vou — respondeu o Homem de
Areia. — Dou a minha palavra.
— E promete não usar mais animais? —
perguntou Sarah.
— Prometo do mais fundo do meu
coração — retrucou o Homem de Areia em
tom solene.

O sol estava se pondo no horizonte quando


John e Sarah voltaram ao lugar onde a tenda
do Homem de Areia estava armada. Podiam
ver o povo que chegara no início da tarde
passeando perto das lojas, mas a praia em
volta estava deserta. Como uma pequena
faixa de luz se projetava da tenda do
Homem de Areia, os dois irmãos perceberam
que ele estava lá dentro esperando.
— Lá vamos nós — disse John, sorrindo.
— Este ano será o da nossa vitória.
Sarah retribuiu o sorriso, e eles
entraram na tenda.

Fazia um dia de sol. Era de manhã. John e


Sarah estavam lá fora outra vez.
Mas não podiam se mover.
Nem podiam gritar. A boca deles
parecia estar cheia de areia. Eles podiam
sentir o atrito nos dentes. Os braços e as
pernas pareciam estar fixados em concreto.
Perto dali, podiam ouvir a voz de seus
pais, falando com o Homem de Areia.
— Que escultura bonita — disse a mãe.
— Essas crianças são surpreendentemente
realistas! Sem dúvida você vencerá o
concurso outra vez este ano.
O Homem de Areia sorriu e disse:
— O John e a Sarah me inspiraram. Eu
não poderia ter feito isso sem eles.
Verdadeiramente.
John e Sarah ficaram olhando por entre
os minúsculos buracos dos olhos da
escultura, vendo seus pais se afastarem.
O Homem de Areia ficou em pé
acenando, enquanto eles sumiam de vista.
O MELHOR AMIGO DO
HOMEM

Era o primeiro funeral a que Ben assistia.


Havia alguns meninos lá, todos tão pouco à
vontade quanto ele, tentando não se mexer
nos trajes pretos comprados às pressas. Mas
quase todos os demais eram tias, tios e,
claro, seus pais.
As lágrimas ameaçavam brotar nos
seus olhos, mas Ben estava determinado a
não chorar. Tinha doze anos e era velho
demais para isso, embora alguns adultos à
sua volta chorassem. Isso era o pior: ver
tantos conhecidos sofrendo.
Ben fechou os olhos quando o caixão
do avô baixou ao túmulo. Ele se sentira
nervoso demais para tomar o café da
manhã, e seu estômago começou a roncar,
mas por sorte o padre começou a ler as
passagens da Bíblia numa voz tão alta que
abafava tudo o mais.
Quando o padre terminou, a mãe de
Ben avançou e jogou um cravo amarelo no
caixão. Ben também avançou e olhou para a
cova. Pensou que um dia ele próprio estaria
deitado numa daquelas compridas caixas de
madeira. A idéia provocou-lhe um calafrio na
espinha.

Ben temia mais a reunião na casa de uma


das tias depois do enterro do que o enterro
em si. Ele sabia que lá todos ficariam
conversando embaraçosamente sobre seu
avô. Não queria ouvir aquilo.
Mas Ben estava enganado. A ocasião
foi longe de deprimente. Em vez de
lamentar, a família parecia estar celebrando
o fato de estarem todos ali ainda vivos e
juntos. Muitos parentes mais velhos
trocavam lembranças de infância sobre
Eddie Stevens, o avô de Ben. Ele foi se
animando... até que uma frase despertou
sua atenção.
— É claro que eu parei de ir lá quando
ele arranjou aquela coisa horrível! — disse
uma das tias, enquanto mordia um
sanduíche de salmão.
Do que ela estava falando? Ben apurou
os ouvidos, tentando não parecer
bisbilhoteiro.
— Todo mundo parou de ir lá — disse
outra tia. — Não entendo por que ele
comprou aquela criatura horrível. Eu
detestava me sentir seguida ao redor da
sala pelos olhos daquilo.
A primeira tia concordou.
— Eu também ficava arrepiada com o
olhar que o bicho dava para a gente. Parecia
tentar ler os nossos pensamentos. Não sei
como ele vivia com aquilo.
Ben pensou em perguntar sobre o que
elas estavam falando, mas então viu sua
mãe. Ela estava sentada numa velha
poltrona de couro, soluçando com um lenço
na mão. O pai estava sentado bem perto,
com o braço em volta dos ombros dela. Ben
nem conseguia imaginar o que seria perder
seu pai. E, afinal de contas, o avô era o pai
da mãe. Essa lembrança afastou da sua
cabeça a tal criatura de olhos penetrantes.

Duas semanas depois do enterro, Ben ainda


pensava muito no avô. Na verdade, a mãe e
o pai quase não falavam sobre outras coisas.
Contaram que o avô deixara uma casa cheia
de trastes, e o proprietário queria que tudo
fosse retirado até o fim do mês. A mãe e o
pai estavam tão entretidos tentando
organizar as coisas que às vezes pareciam
esquecer que Ben estava presente.
Ele já resolvera deixar os dois
ocupados, sem atrapalhar até que tudo
houvesse terminado. Naquela manhã,
porém, a mãe foi ao quarto de Ben e colocou
uma velha bolsa de couro na mesa de
cabeceira, falando que o avô queria que
aquilo fosse dele. Ben abriu a bolsa já gasta
e espiou. Um antigo objeto metálico brilhava
ali dentro. Puxando uma velha corrente
fosca, Ben viu que era um relógio de bolso
bastante antigo. O vidro estava rachado, e o
tiquetaque do relógio era alto feito o de uma
bomba. Ben reparou que a parte traseira
estava tão enferrujada que uma fina poeira
alaranjada manchara suas mãos. Na
verdade ele não queria aquilo, mas se o avô
insistira...
Ben sentiu uma onda de remorso. Não
vira o vovô Eddie muitas vezes nos últimos
anos. Sempre que a mãe e o pai iam visitar
o avô, Ben estava ocupado demais com
alguma outra coisa.
Às vezes, também inventava
desculpas.
O avô não cuidara muito de si mesmo
nem da casa depois que a avó falecera,
alguns anos antes. A casa começara a decair
um pouco, fedendo a roupa suja e a comida
estragada. Quando a gente saía, levava
aquele cheiro junto. Então Ben se mantivera
afastado sempre que possível. E agora era
tarde demais para visitar o avô outra vez.
— Ben? — Ouviu a voz da mãe, levando
um susto. Ela chamara do andar de baixo. —
As outras coisas do seu avô já chegaram.
Você quer descer e dar uma olhada?
Ben estivera tão perdido nos seus
pensamentos que não ouvira o furgão
estacionar. Pegando um jeans e uma
camiseta no encosto da cadeira, ele desceu
a escada. Saindo pela porta dos fundos, viu
que Rex chegara antes dele, correndo e
latindo diante do caminhão na alameda da
garagem.
Rex era o enorme pastor alemão de
Ben. Tinha o dorso marrom-acinzentado,
barriga clara, pernas longas e uma cauda
felpuda. Rex fora um cão perdido, salvo por
eles do canil municipal. A mãe e o pai
haviam levado Ben até lá, para que ele
escolhesse o cachorro que quisesse. Em vez
de um filhote, Ben escolhera Rex.
Rex sempre amedrontava quem não
fosse seu conhecido, principalmente quando
entrava no Ciclo de Latidos. Com Rex por
perto, não era necessário ter um alarme
anti-roubo.
O furgão era grande e tomava toda a
alameda da garagem. Parecia ser capaz de
transportar o conteúdo de um prédio de
escritórios inteiro, não só a coleção de
coisas do avô.
Ben viu seu reflexo no espelho
retrovisor quando o motorista abriu as
portas traseiras. Fora obrigado pela mãe a
cortar o cabelo para o enterro, e gostaria
que os fios crescessem mais depressa.
Correu a mão pelo cabelo, tentando eriçar
as pontas.
— Vamos logo, então — disse o pai.
Ben foi até a traseira e espiou. Ficou ali
examinando todos os pertences e bens
mundanos do falecido Edward Stevens.
Em outras palavras: uma grande pilha
de velhos trastes inúteis.
Ben aguçou o olhar. O furgão estava
cheio de jornais amarelados, torradeiras
enferrujadas e bagulhos similares.
Comparado com a maioria daquelas coisas,
o tal relógio de bolso parecia ser de alta
qualidade.
— O que vamos fazer com tudo isso? —
perguntou ele. O pai pôs as mãos nas
cadeiras.
— Vamos ver o que serve para guardar,
o que pode ser útil para os brechós
beneficentes, e o que só presta para ser
jogado fora, acho eu — respondeu ele.
Depois, recuou e olhou para a enorme pilha
de itens bagunçados. — Quase todos esses
troços são imprestáveis, Ben... mas o
proprietário pediu que retirássemos as
coisas logo depois do enterro. Do contrário,
acho que teríamos jogado quase tudo no lixo
lá na casa do seu avô mesmo.
— Algumas coisas ainda servem —
disse Ben, apontando para certas relíquias
legais. Eram uns pequenos enfeites
estranhos, uma bandeja cheia de selos
antigos, uma máquina de escrever pré-
histórica, e um rádio... ou um sem-fio, como
o avô sempre falava, que parecia muito
velho. Ele vira um programa na tevê em que
as pessoas vendiam antigüidades por uma
fortuna. Talvez valesse a pena guardar
algumas coisas daquele lote.
Acompanhando o entusiasmo de Ben,
Rex pulou para dentro do furgão.
Ben sorriu. Sabia que aquilo para Rex
era o Paraíso Farejante.
Em cima de uma cômoda, o pai pegou
uma caixa que entregou para Ben, dizendo:
— Olhe aqui.
A caixa estava cheia de fotografias
velhas. Algumas já haviam sido reveladas,
mas outras eram só negativos ou contatos
do tamanho de selos. Ninguém nem sequer
pensava em câmeras digitais quando
aquelas fotos foram tiradas. Algumas cópias
estavam amassadas e trincadas. Outras
tinham sido roídas por insetos e atacadas
pelo mofo. Mas muitas estavam ótimas. Ben
examinou rapidamente o conjunto. Uma
delas mostrava o avô e a avó juntos na
praia, ainda jovens, mas com trajes de
banho antiquados.
O pai de Ben olhou por cima do ombro
dele, riu e disse:
— Essas vamos ter de guardar.
— Mas o cheiro é esquisito, pai — disse
Ben. — Eu posso escanear tudo isso num
CD. Então poderia ser guardado para
sempre. A mamãe gostaria disso.
— Boa idéia, Ben, mas não acho que o
cheiro seja das fotos — disse o pai,
apontando para o fundo do furgão.
O pai tinha razão. O cheiro ruim parecia
vir de um lençol coberto de poeira. Ben
passou por cima de Rex e puxou o lençol.
Um currupaaaaaaaaaaaaaaaaaco forte
fez com que ele retirasse depressa a mão.
Ben gritou de susto, quase tropeçando
nos próprios pés. Com o coração batendo
forte, perguntou:
— O que foi isso?
Então recuou e deixou o pai afastar o
lençol.
Embaixo havia uma gaiola metálica de
beleza extraordinária. As grades douradas
formavam espirais, com pequenas janelas
de vidro colorido fixadas entre elas. Em
cima, o gancho tinha a forma de um dragão.
O teto também era cheio de desenhos
intricados.
Mas o que espreitava ali dentro não era
tão bonito.

Rex pulou do furgão como se seu rabo


estivesse pegando fogo, derrubando Ben no
assento de uma velha cadeira poeirenta. O
menino examinou atentamente o interior da
gaiola.
— Um papagaio? — disse para si
mesmo.
Era isso mesmo o que havia ali. Se não
houvesse escutado o grasnado, porém, Ben
pensaria que o bicho estivesse morto,
empalhado e roído por traças.
Os papagaios que ele vira nos
programas sobre a natureza eram animais
bonitos, com olhos luminosos e faiscantes.
Tinham penas limpas e lustrosas. Pareciam
mais vivamente coloridos do que uma
exibição de fogos de artifício. Já aquele ali,
não. O papagaio era torto e feio. Além disso,
era exageradamente grande. Quase
preenchia a gaiola, mas não por enfunar as
penas ou algo assim, pois não tinha muitas
penas. A maior parte do corpo parecia estar
coberta de cicatrizes. As poucas penas que
tinha eram esfarrapadas e cinzentas. Nas
laterais do bico, os orifícios para respirar
pareciam ter sido perfurados por um
carpinteiro com uma venda nos olhos. Em
torno do poleiro, as garras afiadas pareciam
capazes de penetrar profundamente na
carne de alguém e arrancar um pedaço
enorme sem o menor esforço.
— Esse é o Igor — disse o pai.
— Igor? — perguntou Ben. — Que nome
é esse?
— Como você esperava que ele se
chamasse? Tiddles? — disse o pai de Ben,
rindo. Ele tinha razão. Igor era um nome
apropriadamente assustador para uma ave
muita assustadora. — Sabia que esse
camaradinha foi o melhor amigo do seu avô
nos últimos anos de vida? Acho que ele
comprou o bicho num mercado qualquer. Já
ouvi todo tipo de história sobre ele, que
tinha pelo menos cem anos de idade e
poderia viver muito mais.
Para Ben, a coisa parecia já ter morrido
há uns cem anos, mas ainda não percebera.
Ben não gostara do papagaio. Mais
especificamente, não gostava do olhar que a
ave estava lançando para ele, torcendo a
cabeça e fixando um olho preto no seu
rosto.
— O vovô disse à sua mãe que Igor é
bom papo — disse o pai, raspando a grade
com o dedo. — Currupaco! Currupaco!
— Cuidado, pai, você vai ficar sem o
dedo — avisou Ben. Mas o pai estava
ocupado demais tentando fazer a ave falar.
— Currupaco! Currupaco!
Por sorte o bicho não bicou o pai, mas
também não falou. Só fez um barulho baixo
feito um gargarejo, seguido por um som
rascante de lixa.
— Se ficarmos com ele, e ele gostar de
nós, tenho certeza de que vai acabar
falando — disse o pai.
Agora não era só o papagaio que
estava sem fala. Ben mal podia acreditar em
seus ouvidos. Ficar com aquilo? O pai só
podia estar brincando.
— Não se preocupe — disse o pai,
sorrindo. — É brincadeira. Nem em sonho
quero isso. Já a sua mãe talvez precise ser
convencida. Ela sabe que o Igor significava
muito para o seu avô.

Ben não queria partilhar seu lar com aquele


pássaro horrendo. Então passou um tempo
no quarto surfando na internet, à procura de
coisas ruins sobre papagaios para mostrar à
mãe. A maioria das páginas que encontrou
era de admiradores de papagaios, mas
ainda assim havia algumas citações
prestáveis:
Os papagaios são barulhentos,
bagunceiros e potencialmente destruidores.
Têm aquisição e manutenção custosas.
Necessitam de muito tempo e atenção.
Todos os papagaios mordem seus
donos sob certas circunstâncias.
Os papagaios podem ser agressivos.
Quando ficam excitados, sibilam, gritam e
batem as asas. Atacam sempre que se
sentem ameaçados por alguém.
Ben imprimiu o que encontrara e
desceu com a folha de papel.
A gaiola do papagaio já estava na
cozinha. Igor estava agachado no poleiro,
sendo alimentado com gomos de laranja
enfiados entre as grades pelos pais de Ben,
que se revezavam na tarefa. Em troca, a ave
arruinava agradecida, espichando o pescoço
para que a mãe de Ben pudesse afagar sua
cabeça com o dedo metido na gaiola.
Havia algo estranho naquela cena. O
papagaio tinha uma aparência horrível e era
potencialmente violento. Por que estava
sendo paparicado por eles como se fosse um
lindo gatinho? Lá no furgão, o pai parecera
desgostar da ave tanto quanto ele.
Talvez só estivessem satisfeitos porque
Igor finalmente começara a falar com eles.
— Quem é um menino bonitinho,
então? Quem é um menino bonitinho? —
cantarolou Igor com uma voz esquisita.
— Não é você, companheiro — disse
Ben entredentes. — Com toda a certeza.
— Está vendo? Ele é bem simpático —
disse o pai, sorrindo.
— É uma coisinha doce — disse a mãe.
Doce? Como os pais podiam ver todas
aquelas cicatrizes no corpo do bicho, sem se
afastar? Como podiam sentir aquele cheiro,
sem correr para a pia e vomitar? Será que a
velha ave imunda hipnotizara os dois com
aqueles olhos pretos esbugalhados?
— Quem é um menino bonitinho ? —
repetiu Igor.
— O coitado do Igor parece já estar nas
últimas — disse o pai. — Ele não vai viver
por muito mais tempo. Talvez seja melhor
ficarmos com ele até o fim. Pelo vovô.
— Isso é o mínimo que podemos fazer
— concordou a mãe. Ben mostrou a folha
impressa e disse:
— Mas ele pode nos atacar. Está escrito
aqui.
— Pode nos atacar? — disse o pai,
rindo. — Até um passarinho com as asas
atadas nas costas podia dar uma surra no
coitado do Igor!
Tentando convencer a mãe, Ben disse:
— Você não pode ter uma coisa dessas
voando pela casa. Imagine se as garras dele
pegam no seu cabelo.
A mãe deu à ave outro gomo de
laranja, sorriu e disse:
— Ele não ficará voando pela casa,
bobinho. Vai ficar na gaiola. Mas vamos
deixar a noite nos aconselhar. Amanhã de
manhã decidiremos o que fazer. Esta noite
colocaremos a gaiola na sala.
Na sala?
Ben escutara direito? Ele esperava que
a gaiola fosse posta na garagem, embora
preferisse o terreno atrás do quintal. Sua
mãe nunca deixava Rex entrar na sala. Por
que o papagaio podia? Ela tinha tanto
orgulho daquela sala, conservava tudo ali
tão limpo e arrumado. Ben ficou surpreso ao
ver que ela deixaria aquilo ali. Não fazia
sentido.
De boca aberta, ficou olhando
enquanto o pai levava a gaiola para o
melhor cômodo da casa.

Depois de instalar Igor na sala, o pai


desapareceu no escritório, e a mãe foi ao
supermercado fazer compras para o jantar.
Ben ficou sozinho com o papagaio.
Ele detestara a presença da criatura na
casa, principalmente na sala, e nem queria
chegar perto da gaiola. Mas estava na hora
do seu programa favorito. “Acho que preciso
agüentar o bicho”, pensou ele. “Por
enquanto.”
Ben foi para a sala e sentou-se no
chão. Ligou a tevê e pôs o prato no colo.
Enquanto a mãe estava fora, ele aproveitara
a oportunidade para pegar um sanduíche e
um copo de leite. Não era permitido comer
na sala, e a mãe tinha detectores de
migalhas embutidos nos olhos. Ela sempre
mantinha a sala perfeita, para o caso de
uma visita aparecer. Ben olhou para o
tapete imaculado no chão, a mesa polida, o
aparador reluzente, as cortinas pregueadas
na janela, o sofá valioso e as grandes
poltronas. Parecia estranho que a mãe
deixasse entrar ali aquela ave velha,
fedorenta e carcomida.
A gaiola de metal fora colocada perto
do abajur mais alto, que a mãe sempre
mantinha aceso, dizendo que isso era mais
barato do que usar as luzes do teto. Igor era
uma ave grande e lançava uma sombra
ameaçadora na parede.
Ben sentiu os olhos da ave queimando
as suas costas, enquanto assistia à tevê,
mas estava determinado a não olhar para
trás. Quando a música de abertura começou
e os créditos rolaram, resolveu que de
maneira alguma deixaria Igor estragar seu
programa favorito.
— Currupaaaaaaaaaaaaco!
Currupaaaaaaaaaaaaaaco!
O som dava a impressão de que Igor
fora amarrado na mais perigosa montanha-
russa do mundo e lançado num mergulho
profundo em velocidade máxima.
A princípio, Ben tentou ignorar o
barulho, pensando que a ave só queria
atenção. Ele certamente não compactuaria
com aquilo. Lembrou-se de ter lido, numa
das páginas sobre papagaios na internet,
que as aves pareciam criancinhas. Se
fossem ignoradas quando faziam manha,
acabavam ficando chateadas e paravam de
fazer barulho. Caso contrário, podiam passar
a fazer algazarra permanentemente. Ben
pensou que Igor fecharia aquele bico idiota
quando finalmente percebesse que não era
ouvido.
Toda vez que um ator falava, porém, a
ave grasnava mais alto, e Ben perdia cada
palavra do diálogo. Ele apertou o controle
remoto para pôr as legendas, mas mesmo
assim não conseguia se divertir com o
programa.
Quando surgiu o primeiro intervalo
comercial, o papagaio finalmente fechou o
bico. Enfim, paz. De repente, Ben sentiu um
calafrio na espinha. Por que Igor se
aquietara? Certamente o papagaio não
conseguia diferenciar um programa de um
comercial. Então a idéia lhe ocorreu com a
força de um soco: o bicho só estava
interessado em estragar o seu programa. A
prova disso veio quando o intervalo
terminou e a ave imediatamente recomeçou
a grasnar.
Ben não agüentava mais. Virou-se e
gritou para o papagaio:
— Cale a boca! Cale a boca!
A ave parou no meio de um grasnido e
ficou em silêncio.
Ben sorriu. Pelo menos agora o bicho
percebera quem era o chefe ali. Ele se
acomodou outra vez no sofá e tentou voltar
ao programa.
Então, ouviu uma voz baixa ali atrás
dizer:
— Eu matei o seu avô.
O coração de Ben gelou dentro do
peito. Ele se virou lentamente, esquecendo
o programa.
O papagaio estava no poleiro, com a
cabeça torcida para o lado e o olho
esquerdo fixado em Ben. Não era um olho
saudável como os de um papagaio normal,
mas um olho doentio e gelatinoso como a
grande gema de um ovo frito gorduroso.
Ben clicou o botão mute no controle. A
sala ficou silenciosa. Ele podia ouvir a mãe
na cozinha. Ela já voltara das compras e
estava fatiando cenouras na tábua de
madeira. Um carro passou diante da casa,
enquanto algumas crianças gritavam e riam
na outra rua.
Ben levantou e foi lentamente até a
gaiola. Sua garganta estava apertada, mas
ele ainda conseguiu murmurar:
— O que você disse?
O bicho arrastou os pés no poleiro e se
encostou na grade, dizendo:
— Você ouviu! Eu matei o seu avô.

Dessa vez não havia como confundir o que a


voz cavernosa cantarolara. Ben correu da
sala para a cozinha, onde encontrou o pai
ajudando a mãe com o jantar.
— Mãe! Pai! — gritou ele. — O
papagaio... falou!
— Claro que falou, querido — disse a
mãe, sorrindo. — Os papagaios falam. Você
sabe disso. Ele estava falando conosco na
cozinha antes de você descer.
Ben gaguejou:
— Mas o que ele falou...
— O que ele falou? — perguntou o pai,
curioso. — Tudo o que conseguimos tirar
dele foi: “Quem é um menino bonitinho?”...
Cheios de expectativa, a mãe e o pai
ficaram aguardando a resposta de Ben.
— Ele disse que matou o vovô — disse
Ben. Os olhos da mãe se arregalaram de
espanto. O pai pareceu ficar zangado.
— Como você pode falar isso,
principalmente na frente da sua mãe?
— Mas ele disse isso — insistiu Ben. —
Foi o que ele disse. O pai já percebera que
Ben estava perturbado. Em tom mais gentil,
disse:
— Ben, isso é impossível. Nós sabemos
que os papagaios podem falar, mas só
conseguem repetir o que ouvem. Confira
aquelas suas pesquisas sobre papagaios.
— É isso mesmo, querido — disse a
mãe. — Eles só conseguem nos imitar. Não
podem começar uma conversa.
— Mas foi isso o que ele disse —
insistiu Ben. Por que eles não acreditavam
nele?
— Provavelmente você ouviu alguma
coisa no programa da tevê — sugeriu o pai.
—Algum personagem disse aquelas
palavras, e você pensou que fosse o
papagaio.
— Mas o programa da tevê não era
sobre a morte do avô de alguém — disse
Ben. — Por que falariam isso?
— Se o Igor disse qualquer coisa assim,
estava só imitando algo que ouviu em algum
lugar — disse a mãe. — O seu avô também
mantinha o Igor na sala, para poder ver tevê
com ele. Os papagaios têm uma memória
excelente, e você sabe como o seu avô era:
ele nunca desligava a tevê. Provavelmente o
Igor viu milhares de filmes e programas na
tevê. Por isso, devia estar só repetindo o
que ouviu em algum deles.
— Eu não vou voltar para a sala —
protestou Ben. — Não podemos nos livrar do
Igor?
— Eu sabia — disse a mãe, parecendo
zangada. — Você não gostou do Igor desde
o primeiro momento e está dizendo tudo
isso só para nos livrarmos dele. O que o
vovô diria?
— Está bem, esqueça — disse Ben. —
Fiquem com o bicho. Eu não ligo. Só vivo
aqui há doze anos, e aquela coisa já passou
uma hora inteira aqui. Portanto, podem
colocar o Igor em primeiro lugar.
Ben saiu da cozinha, cruzou o corredor
e subiu a escada. Não queria mais ver tevê.
Ficaria no quarto lendo revistas e deixaria os
pais com o papagaio. Já que gostavam tanto
dele, Igor tomaria também o seu lugar no
jantar. Ele não ligava a mínima. Talvez se
recusasse a descer até o bicho ir embora.
Eles iam ver!
Rex esperava na porta do quarto,
gemendo. Ben jamais vira o cachorro
daquele jeito.
— Rex? Você está bem, garoto? —
perguntou Ben, ajoelhando-se e afagando a
cabeça do cachorro. — Você também
detesta aquele bicho, não é, garoto?
Mas não era só que Rex detestasse
Igor. O pulo que ele dera para fora do furgão
indicava que estava apavorado. Parecia que
o cachorro sentira que o papagaio não era
boa coisa desde o primeiro encontro. Como
se ele soubesse. Afinal de contas,
supostamente, os cachorros são mais
sensíveis do que os seres humanos sob
certos aspectos, conseguindo detectar
coisas que as pessoas não conseguem.
— Não se preocupe, garoto, ele vai
embora logo — disse Ben. Ele espalhou uma
seleção de revistas na cama e tentou se
concentrar numa história. Mas as batidas do
seu coração o impediam. Ele não conseguia
esquecer o que o papagaio falara. Eu matei
o seu avô.
Seria verdade? O pai dissera que o
papagaio fora o melhor amigo do avô. Será
que ele poderia mesmo ter matado o velho?
E, caso fosse verdade, como?
Ben deitou na cama, cobriu o rosto com
as páginas abertas da revista e fechou os
olhos. Precisava pensar sobre aquilo...
O sonho começou quase que
imediatamente. Ben se viu de volta ao
funeral do avô. Sentia-se acalorado e
apertado naquele terno novo, preto e
desconfortável. Estava rodeado pelos
parentes, enquanto o padre lia a Bíblia.
Mas alguma coisa estava diferente.
O velho papagaio cinzento estava
empoleirado no túmulo do avô, olhando para
todos e rindo.
Rindo feito louco. E repetindo as
palavras do padre naquele tom de cantoria
zombeteira.
Por mais que o padre falasse alto, o
papagaio ressoava mais alto ainda. Seus
grasnidos soavam pelo cemitério como
sinistros sinos de igreja. Mas ninguém
parecia notar nem ouvir, além de Ben. Então
o vigário disse:
— Descanse em paz.
O papagaio abriu as asas quase
depenadas e avançou para Ben, cortando o
ar.
Ben se atirou ao chão, mas o papagaio
mergulhou, feito um míssil teleguiado, e
conseguiu acertar nele as garras afiadas
feito navalhas. Ben gritou, mas ninguém à
sua volta parecia perceber o que estava
acontecendo. O padre continuou a ler.
Ben pôs a mão no peito, sentindo o
sangue correr pelos dedos.
E então acordou. Sentou ereto na
cama, como se houvesse levado um choque,
com as mãos agarrando o peito.
Percebeu que estivera sonhando, mas
sentia as mãos ainda paralisadas. Não
ousava olhar para elas. Mas não havia
sangue. Tudo o que brilhava nos seus dedos
era baba de cachorro. Rex estava ao lado da
cama. O cachorrão acordara Ben lambendo
a mão dele, quando o braço ficara
pendurado fora da cama.
— Dá-lhe, garoto! — murmurou Ben.
Embora seu estômago estivesse
roncando, ele se recusou a descer. Tentou
se acalmar, mas todo o seu corpo tremia.
Não conseguia esquecer Igor. Precisava
descobrir se o papagaio dissera mesmo o
que ele pensara.
E, se dissera, se aquilo era verdade ou
não.
Era cedo na manhã seguinte, e o sol acabara
de nascer. Ben esperou até ter certeza de
que os pais ainda estavam dormindo,
enquanto tomava coragem. É só um
pássaro, nada mais que um pássaro velho,
repetia para si mesmo.
Quando tomou coragem suficiente,
desceu. Cada passo era mais lento que o
anterior, pois fazia com que ele se
aproximasse da sala. Ou seja, mais perto do
covil do papagaio. Ele ficou parado diante da
porta fechada da sala por um longo período.
“É agora ou nunca”, pensou
finalmente. Girou a maçaneta.
Para sua surpresa, a mãe estava na
sala alimentando Igor com um pedaço de
cenoura através da grade da gaiola. Tentava
fazer a ave falar, dizendo: “Cenoura,
hummm, cenoura, hummm... Olá, bom dia,
olá, bom dia”.
Aquilo não era bom. Ben sabia que Igor
nunca repetiria diante da mãe o que dissera
para ele. Algo lhe dizia que aquelas palavras
eram destinadas somente a ele.
Ben estava prestes a falar, mas nesse
momento seu queixo quase caiu, e ele só
conseguiu soltar um arquejo de descrença.
Olhou em volta da sala, mal acreditando no
que estava vendo. Aquela sala que a mãe
mantinha perfeitamente limpa e imaculada,
sempre pronta para os visitantes, estava
imunda. A sujeira era uma mistura de penas
e serragem que espirrara da gaiola e se
espalhara pelo tapete ao redor do suporte.
A mãe tentava fazer Igor recitar uma
rima, dizendo: “Era uma vez uma ave
bonitinha, que vivia comendo cenourinha...”.
Igor permanecia silencioso feito a
morte.
— Mãe, olhe para isso — disse Ben.
— Olhar para o quê? — perguntou a
mãe. — Você não vê que estou dando
comida para o Igor?
Ben se abaixou, recolheu um punhado
de sujeira e mostrou a ela.
— A sujeira! A bagunça!
Imediatamente se arrependeu de ter
pegado a sujeira. Não havia somente
serragem e penas nos seus dedos. Ele podia
sentir algo mais ali: titica de ave. Atirou tudo
de volta ao tapete com nojo.
— Ora, cresça, Ben — disse a mãe. —
Uma ou duas manchas de sujeira não fazem
mal.
O queixo de Ben caiu mais um pouco.
Aquela era a mesma mulher que
enlouquecia quando Rex punha a cara na
porta da sala? A mesma mulher que
reclamava durante uma semana quando
Ben sacudia migalhas do pulôver em cima
do tapete da sala?
Ela continuou a alimentar a ave,
parecendo já ter esquecido Ben. “Cenoura,
hummm, cenoura, hummm”.
— Tem certeza de que esse bicho não
preferiria cenouras orgânicas? — comentou
Ben com sarcasmo. — Dizem que são mais
gostosas, e é claro que você acha que o Igor
deve ser tratado como um rei.
— Ah, sim, elas são vendidas nos
supermercados, não são? — disse a mãe.
Ben não conseguia acreditar. Ela
estava levando aquilo a sério! Geralmente
dizia que a comida orgânica era muito cara,
mas parecia que nada era bom demais para
Igor.
— É melhor nós sairmos e estocarmos
mais comida para ele. O Igor tem muito
apetite. E devemos comprar alguns
brinquedos também. Você quer vir?
Ben mal podia acreditar que estava
começando a sentir ciúme de um papagaio,
mas disse:
— Não, obrigado. Vou ficar aqui, caso o
Igor precise de alguma coisa. Ele pode sentir
alguma coceira, ou querer que alguém mude
o canal da tevê.
A mãe de Ben sorriu, ainda sem
perceber o sarcasmo na voz do menino.
— Agora está sendo sensato. Eu sabia
que você acabaria gostando do Igor — disse
ela. Depois saiu da sala e chamou o marido.
— Joe, vamos fazer compras para o Igor? O
Ben disse que devemos comprar cenouras
orgânicas para ele. Ainda é cedo, mas acho
que o supermercado do outro lado da cidade
deve estar aberto.
— Ótima idéia — disse o pai. — Já vou
descer.
Ben não acreditava no que ouvia. Seu
pai não gostava de fazer compras e sempre
dava uma desculpa para não ir, mesmo que
precisasse lavar o carro duas vezes numa
semana. Mas ao menos agora Ben tinha a
sua chance.
Esperou até ouvir a porta dos fundos
bater e o carro se afastar. O pai e a mãe
haviam saído. Estava na hora.
Ben ficou na frente da gaiola do
papagaio.
A ave torceu a cabeça para o lado,
como que ouvindo instruções de espíritos
invisíveis e maus. Tinha o corpo todo
aprumado no poleiro, como se soubesse que
Ben era uma ameaça. Parecia ter inchado e
olhava fixamente para ele.
Sem se deixar intimidar, Ben
perguntou:
— O que você disse para mim ontem?
Igor balançou para a frente e para trás
no poleiro, sem dizer nada.
— Vamos, sua ave idiota... fale! —
ordenou Ben.
Como Igor continuou em silêncio, a
confiança de Ben voltou, inchando dentro do
seu peito como um balão. Aquilo era só um
papagaio normal. Claro que era. Como ele
podia ter pensado outra coisa? Fora tudo
imaginação sua, só isso. Ben sorriu ao
pensar como fora tolo. Mas, quando ele se
virou para sair, a tal voz esquisita cortou o
silêncio como uma espada, cantarolando:
— Eu matei o seu avô.
Ben virou-se e olhou para a ave. Ele
tinha razão antes. O que Igor falara na
véspera fora real.
O papagaio olhava desafiadoramente
para ele. O tamanho de suas pupilas crescia
e diminuía. Aquilo era um sinal de agressão,
conforme Ben lera na internet.
— E você é o próximo! — gritou o
pássaro. Ben se sentiu inundado por ondas
de choque.
O papagaio olhou para o menino de
cima a baixo, soltou um grasnido perverso e
disse:
— Um pedaço magrelo de carne e osso
como você. Sem problema, sem problema.
Ben só tinha certeza de uma coisa:
precisava sair daquela casa já. Calculou que
a melhor coisa seria levar Rex para um
passeio.

A manhã estava linda, com tufos de nuvens


espalhados pelo céu azul. Depois de vários
chamados, Rex finalmente veio se
esgueirando nervosamente escada abaixo.
O cachorrão nem esperou Ben colocar a
coleira; voou para fora assim que a porta foi
aberta.
— Não se preocupe, garoto — disse
Ben. — Vamos nos afastar ao máximo
daquele bicho.
No começo não foi divertido, porque
Rex puxava demais a correia. Quanto mais
se distanciava da casa e de Igor, porém,
mais o cachorro parecia se acalmar.
Finalmente, sua confiança voltou.
Relaxando, Rex passou a fazer as coisas
caninas comuns: farejar os outros cachorros,
inspecionar tufos de grama, postes, poças,
árvores e tudo o mais que aparecesse pelo
caminho, como se não houvesse
preocupação alguma no mundo.
Ben e Rex andaram e andaram pelas
ruas ladeadas de árvores. Só paravam por
causa do trânsito e nunca olhavam para
trás. Ben sentiu seu próprio medo diminuir
um pouco. A tranqüilidade da vizinhança
parecia estar entrando na sua pele e
trazendo calma. De repente, ele reparou que
o dia estava realmente muito bonito. Era
uma daquelas tardes preguiçosas de verão,
em que o sol aquece suavemente nosso
rosto enquanto caminhamos.
Aquele bairro era agradável. Às vezes
parecia meio monótono, mas Ben se sentia
feliz por morar ali. As ruas eram limpas. Não
havia muito trânsito. A maioria dos vizinhos
era amável. Uma profunda sensação de
estranheza invadira a vida de Ben desde
que Igor aparecera, mas ali fora a simples
normalidade de tudo era reconfortante.
E tudo continuava normal. As pessoas
colocavam as latas de lixo para o lixeiro
pegar, lavavam os carros, cortavam a
grama, compartilhavam xícaras de chá e
trocavam dicas de jardinagem por cima das
cercas nos jardins. Parecia que toda a
história do papagaio fora um pesadelo e que
a realidade subitamente voltara ao seu
lugar.
Ben sabia que a mãe e o pai tinham
razão. Os papagaios não são como os seres
humanos. Não conseguem conversar. Só
imitam os sinais da fala humana, assim
como imitam o som do telefone ou o do
furgão da sorveteria. O esquema é esse.
Para os papagaios, trata-se só de barulho.
Não sabem o que estão dizendo. Portanto,
Ben não podia ter ouvido aquilo saindo do
bico do papagaio, nem hoje nem na véspera.
A não ser que Igor houvesse aprendido todo
aquele diálogo em algum velho filme ou
programa da tevê... mas qual era a
probabilidade disso?
Chegaram ao parque e Ben se sentou
embaixo de uma árvore, esfregando
pensativamente um pedaço de grama entre
os dedos, enquanto tentava dar um sentido
a tudo aquilo. Deitou e olhou para as nuvens
que passavam. Algumas delas pareciam
coisas: desde uma girafa, até o carro do pai.
Uma delas parecia exatamente o bico aberto
de um pássaro...
De repente, Ben sentiu uma língua no
rosto e um bafo ruim nas duas narinas.
Levantou do chão alarmado. Mas era só Rex,
lambendo o rosto dele.
— Tá legal, tá legal, já estou limpo —
disse Ben, rindo e rolando na grama com o
cachorro. Sentia-se feliz com a presença de
Rex por perto e percebeu algo importante.
— Eu não sou maluco, sou, garoto? Você é a
prova disso, porque ficou tão amedrontado
com aquele bicho velho quanto eu. Você
também sabe a verdade sobre o Igor.
Rex inclinou a cabeça para o lado,
como se estivesse prestando muita atenção.
Ben começou a rir.
Ele resolveu passar pelo cemitério a
caminho de casa. Queria ver o túmulo do
avô. No dia do enterro a lápide ainda não
estava pronta. Ele foi vagueando pelo
labirinto de sepulturas. Era um cemitério
velho, com algumas lápides e inscrições
antigas realmente interessantes. Muitas
estavam tortas e corroídas por séculos de
tempestades. Alguns nomes nas velhas
pedras haviam desaparecido
completamente. Diversas estátuas antigas
de anjos e querubins sinistros espalhavam-
se pelo lugar.
Rex estava mais interessado na grama
alta e nas velhas árvores que lançavam
maçãs bichadas no chão em volta deles.
Finalmente, Ben achou o que
procurava. Leu o que estava escrito na
lápide, enquanto Rex deitava e arfava feliz:

EDWARD STEVENS
AMADO PAI E AVÔ
DESCANSE EM PAZ

Ben pensou no avô. A casa dele podia


estar cheia de trastes velhos, mas o vovô
era um cara legal, e Ben sentia muito a sua
falta. Será que o papagaio realmente matara
o vovô?
— Só você sabe a verdade sobre
aquela ave, vô — disse Ben para si mesmo.
— E já não pode me contar.

Logo que eles chegaram à rua de Ben, Rex


recomeçou a agir de modo estranho, com a
cabeça curvada e o rabo abaixado. Quando
chegaram em casa, Ben precisou arrastar o
cachorro pelo portão para entrar no jardim.
— Não se preocupe, garoto, não há o
que temer — disse ele, mas sem muita
convicção. Sabia bem que havia muito o que
temer ali.
Embora Ben puxasse com força, Rex
não entrava na casa. Ele se recusava
terminantemente. E, quando Ben tentou
forçar a barra, o cachorro arreganhou os
dentes e rosnou.
— Está bem, está bem — disse Ben,
soltando a coleira. Tão logo ele fez isso, Rex
saiu correndo pelo lado da casa. Foi até o
final do jardim e ficou lá, agachado embaixo
de uma sebe.
Ben entrou em casa sozinho.
O pai e a mãe estavam na cozinha,
preparando o que parecia ser o jantar... até
que Ben examinou de perto os ingredientes.
A maior parte da comida era granulada.
Grânulos nojentos para aves. Alguns eram
marrons, e outros tinham cores vivas no
formato de frutas. Havia grânulos em pratos,
em pires e em tigelas. Os grânulos faziam as
sementes de girassol e a ração em pó nos
outros pratos parecerem saborosas. Era
tudo comida para Igor.
Nem tudo estava espalhado pelas
mesas. Uma parte borbulhava e fervia sobre
o fogão. A cozinha parecia o laboratório de
um cientista louco.
A mãe de Ben estava triturando uma
mistura de grânulos e sementes numa tina
grande. O pai estava a seu lado, tirando a
casca das nozes. Havia algo de estranho nos
dois. Eles tinham o olhar vago dos
sonâmbulos.
— O Igor vai se divertir descascando
essas nozes! — ralhou a mãe de Ben com o
pai. — Deixe isso assim mesmo. Já isto aqui
você pode fazer.
Ela despejou um pouco de suco de
laranja numa tigela. Ben leu o rótulo.
Suco Fresco de Laranja Orgânica.
— Coloque alguns grânulos aqui dentro
— disse a mãe para o pai. — Ele vai gostar
mais.
Ben estava espantado. A mãe nunca
comprara suco fresco de laranja orgânica
para ele beber. Mas comprara aquela coisa
cara e saudável para Igor, e ainda
mergulhara grânulos no líquido!
Por alguns segundos, Ben ficou sem
fala. Depois disse:
— Pai, o Rex não quer entrar em casa.
Está apavorado por causa do papagaio.
Ficou lá no jardim e não quer sair do lugar.
O pai pareceu aborrecido por Ben
perturbar sua tarefa de mergulhar os
grânulos. Então disse: — Ora, não
precisamos mais do Rex, não é? Agora
temos o Igor. Não sei como deixamos aquele
cachorro entrar aqui em casa, para começar.
Estou pensando em levar o bicho de
volta para o canil na semana que vem. Ele
dá mais trabalho do que vale. Ben não
acreditou no que ouviu.
— Pai, como você pode falar assim?
O pai sempre gostara de Rex. Os dois
pareciam ser os melhores amigos um do
outro. O pai passava horas brincando com o
cachorro no quintal. Às vezes, ele e Ben
discutiam sobre quem tinha direito a levar
Rex para passear.
— Claro que posso — respondeu o pai.
— Como aquele vira-lata horrível
provavelmente tem pulgas, é melhor que
fique fora de casa.
A mãe assentiu com a cabeça e disse:
— Basta um animal de estimação. E o
Rex será muito mais feliz de volta ao canil,
junto com todos os outros cães sujos,
babões e pulguentos.
— Vocês não podem levar o Rex de
volta para o canil. Eu gosto dele mesmo que
vocês não gostem — gritou Ben. Estava tão
zangado que queria quebrar a mobília.
Como não ousava fazer isso, deu um soco
na mesa da cozinha. Depois apontou para a
bagunça dos grânulos e disse em tom
zangado: — Olhem só para essa gosma! E o
nosso jantar?
— É muito mais prático nós todos
comermos o que o Igor come — disse a mãe.
Ben fez uma careta, como se já tivesse
provado aquilo.
Havia também algumas frutas e
verduras frescas espalhadas sobre a mesa.
Ben tinha esperança de que a mãe quisesse
dizer que eles comeriam aquilo, e não os
grânulos. Mas de maneira alguma comeria
com aquele pássaro, qualquer que fosse a
comida. Não suportava sequer partilhar a
casa com o bicho.
A coisa já fora longe demais. Ben
precisava achar alguma saída, e depressa.
Ele entrou na sala e chacoalhou a gaiola de
Igor.
— Tá legal, se você matou o meu avô,
como fez isso? — Depois, insistiu: — Vamos
lá... o que você fez?
O papagaio olhou para o menino e
torceu a cabeça.
— Empurrei o velho escada abaixo. Um
fracote. Os ossos se quebraram.
O terror foi subindo pela barriga de Ben
e saiu pela boca num arquejo estrangulado.
Ele fugiu correndo da sala, com as passadas
acompanhadas pelas palavras do papagaio:
“QUEBRARAM, QUEBRARAM, QUEBRARAM”.
Ben bateu a porta da sala atrás de si e
se encostou na madeira, ouvindo os
cacarejos zombeteiros do papagaio.
Lá na cozinha, a mãe estava fazendo
um prato com um arranjo bonito de
grânulos. Ben se aproximou e disse em voz
baixa:
— Mãe, como o vovô morreu?
Ela olhou para o filho, intrigada. Por um
breve momento, quase pareceu ter voltado
ao normal.
— Ele caiu escada abaixo, Ben — disse
ela, triste. Depois seu rosto voltou àquela
mascara frígida de antes, e ela continuou a
arrumar os grânulos.
Ben ficou desanimado. Já sabia que
Igor falara a verdade sobre a morte do avô.
E isso significava que o papagaio também
falara a verdade quando dissera para Ben:
“E você é o próximo!”
Ben recusou o jantar bizarro que a mãe e o
pai haviam preparado. Fez um sanduíche e
foi comer no quarto. Por sorte ainda havia
comida de verdade na casa, então ele pôde
colocar no sanduíche geléia em vez de
grânulos. Normalmente, os pais não
permitiriam que ele comesse no quarto ou
que trocasse a refeição principal por um
sanduíche. Agora, pareciam não ligar.
Também pareciam não ligar para ele.
As horas foram passando. Eles não
chamaram Ben para saber como ele estava,
ou onde ele estava. Nem para ver tevê com
eles, como habitualmente faziam. Ben quase
nunca gostava de ver o que eles viam, mas
era bom ser chamado. Agora, era como se
ele não existisse mais.
Ben desceu para dar boa-noite aos pais
e viu uma tempestade lá fora. A chuva batia
nas vidraças com tanta força que parecia
que alguém estava atirando grânulos ali.
Ben pensou em Rex. Será que o
cachorro ainda estava no jardim? Embaixo
daquilo?
Ele correu para a cozinha e girou a
chave na porta. A ventania era tão forte que
Ben quase foi arrastado para fora. Ficou
esperando que Rex corresse para dentro,
fugindo daquele tempo horrível, mas o
cachorrão não saiu do fundo do quintal.
— REX! — gritou Ben, com a voz
trêmula de medo. — REX! Você está aí,
garoto?
Nada. Ben pegou um guarda-chuva
perto da porta e saiu. Uma sombra se
mexeu no final do jardim. Era Rex. O
cachorro estava deitado, afundando na lama
que fora terra algumas horas antes,
enquanto a chuva batia forte no seu pêlo.
Embora Rex tivesse um pêlo grosso, Ben viu
que ele tremia.
— Venha, garoto, venha comigo —
pediu Ben, abrindo a porta do barracão do
pai. Entrou e estendeu alguns lençóis no
chão, dando a Rex um lugar mais
confortável para dormir. O cachorro passou
pelo menino e foi sentar no fundo do
barracão, recuando nas sombras ao
máximo. Depois de ver que o cão estava
aquecido, Ben voltou para casa.
Estava encharcado quando entrou.
Embora não quisesse muito, decidiu dar
boa-noite aos pais rapidamente e
atravessou a cozinha até a sala. Seus dedos
giraram a maçaneta suavemente. Ele enfiou
a cabeça pela abertura e começou a dizer:
— Boa...
Ficou tão chocado que perdeu o fôlego
e não conseguiu terminar. Arregalou os
olhos e esquadrinhou a preciosa sala da
mãe.
Todas as luzes estavam apagadas, mas
o que Ben via era iluminado pelo reflexos
bruxuleantes da tevê. Sentados no escuro,
seus pais olhavam para a tevê como zumbis.
Igor estava empoleirado atrás deles, no
encosto do sofá rasgado e roído. As
poltronas também estavam tão roídas
quanto o velho osso de borracha de Rex.
Assim como o tapete. Assim como os
abajures. Assim como as cortinas.
Aquilo parecia mais a jaula de um
animal no jardim zoológico do que o melhor
aposento de uma casa. O tapete tinha mais
serragem espalhada do que um picadeiro de
circo. Sobressaindo na serragem, havia
muita comida mastigada e titica de
papagaio.
Ben começou a temer pelos seus pais.
Será que eles haviam enlouquecido? O mais
preocupante era que ele não tinha medo só
pelos pais: percebeu que também começava
a ter um pouco de medo deles.
— Boa noite, então — disse Ben.
Eles ficaram sentados lá, enquanto o
brilho do programa da tevê ressaltava a
palidez dos rostos. Nenhum dos dois
respondeu.
Desde que fora obrigado pela mãe a
cortar o cabelo, Ben sempre tentava eriçar
as mechas. Mas não precisava mais fazer
isso. O cabelo na sua cabeça já estava
arrepiado da raiz às pontas.

Ben precisava pensar cuidadosamente.


Precisava ser esperto e pensar depressa.
Aquele bicho acabara com o seu avô e agora
planejava fazer o mesmo com ele. Um dia
inteiro se passara desde que Igor dissera: “E
você é o próximo!”.
Ben calculou que o papagaio já tivera
tempo de sobra para pensar como faria
aquilo. Ele estava preocupado com a mãe e
o pai, mas pensou que por enquanto eles
estariam a salvo: Igor estava usando os dois
como escravos. Ben tinha certeza de que o
pássaro hipnotizara o casal. Eles já haviam
retornado à cidade a fim de comprar mais
comida para Igor, e as lojas haviam acabado
de abrir.
A mãe e o pai podiam estar a salvo,
mas um menino como ele apenas
atrapalhava Igor. Não tinha utilidade.
Ben sabia que precisava agir primeiro...
mas como?
Será que ele poderia envenenar a
comida do bicho?
Era arriscado, porque a mãe e o pai
estavam compartilhando a comida de Igor.
Ben não queria causar mal a eles. Tinha
esperança de que seus pais voltassem ao
normal assim que Igor sumisse.
Uma outra idéia ocorreu a Ben: e se ele
colocasse o papagaio em liberdade?
Talvez funcionasse...
Ele precisava aproveitar a
oportunidade, enquanto os pais estavam
fora de casa.
Entrou na sala, fazendo uma careta
assim que passou da porta. O aposento
fedia a titica de papagaio. Na prateleira
acima da lareira, a mãe sempre punha uma
travessa com ervas para perfumar a sala,
mas agora o troço estava cheio da titica do
papagaio. E isso nem era o pior.
Os jornais da véspera estavam em
frangalhos, espalhados como confete pelo
sofá. Havia pedaços de alface estragada
grudados nas almofadas. Os caules das
flores nos vasos haviam sido quebrados.
“Bom trabalho, Igor”, pensou Ben
atravessando a sala, “mas logo esta sala e
as nossas vidas voltarão ao normal. E você
terá partido”.
O plano era largar a gaiola no jardim
com a porta aberta. Igor seguramente sairia
voando. O menino tinha certeza que o
papagaio não resistiria.
A ave ficou olhando para Ben com
curiosidade, enquanto ele lutava para
levantar a grande gaiola velha. Igor foi
balançando de um lado para o outro no
poleiro, enquanto Ben carregava tudo pela
sala até a cozinha.
A gaiola era pesada, e o menino sentiu
as costas doerem sob aquele fardo. O
papagaio estava muito mais gordo do que
quando chegara. Isso não era surpresa,
pensou Ben, pois os seus pais pareciam
estar gastando todo o orçamento semanal
em comida para o papagaio. Ele só esperava
que Igor não houvesse engordado demais
para sair voando.
Quando imaginou o papagaio
sobrevoando os telhados para nunca mais
voltar, Ben pensou na reação de seus pais
quando vissem que o novo animal de
estimação fora embora. Como ele explicaria
isso aos dois?
Pensaria em alguma coisa. Diria que
estava limpando a gaiola e que
acidentalmente deixara a porta aberta.
Então, antes que ele percebesse, Igor saíra
voando. Talvez eles acreditassem nisso.
Para ser sincero, porém, Ben sabia que não
se importava se eles ficassem zangados.
Qualquer castigo valia a pena para ver
aquela criatura sinistra pelas costas.
Ben deixou a gaiola na mesa da
cozinha e abriu a porta dos fundos.
Ofegando, colocou a gaiola na soleira e
escancarou a portinhola.
Parou e esperou. Será que aquilo
funcionaria?
O medo de que não funcionasse fez seu
estômago começar a latejar, e ele gritou:
— Vá embora, Igor! Vá embora!
Mas Igor não se mexeu.
— Você já está livre — disse Ben,
exasperado. — Livre para voltar ao lugar de
onde veio. Livre para ir aonde quiser.
E, com um pouco de sorte, algum
caçador pode confundi-lo com um pato, ou
algo assim, e lhe meter um tiro mortal
quando você estiver voando pelo céu.
Mesmo assim, Igor não se mexeu.
Ben chacoalhou a gaiola com o pé.
— Você está grudado nesse poleiro?
Saia voando daí, seu bicho idiota. Você está
livre. — disse.
O papagaio se virou, olhando para o
menino, e soltou um grasnado grave, que
mais parecia uma horrível risada irônica.
— Foi isso mesmo o que o seu avô
tentou. E veja onde ele está agora.
Ben sentiu seu coração se partir ao
meio feito um galho de árvore atingido por
um raio. Igor sabia exatamente o que ele
estava tentando fazer e não tinha a intenção
de partir. Ben chutou a gaiola e ordenou:
— Voe. Saia voando!
Igor não se mexeu. Mas Ben resolveu
não aceitar um não como resposta. Levou a
gaiola mais para fora, enquanto a porta
balançava na dobradiça. Colocou a gaiola no
concreto e voltou às pressas para o jardim.
Sabia do que precisava.
O pai usava varas de bambu para
amparar as pesadas flores de algumas
plantas, evitando que se quebrassem com
as tempestades. Ben olhou para todas elas,
dispostas em fila. As varas cumpriam bem a
função. Depois da forte tempestade na noite
anterior, todas as hortênsias continuavam
firmes. Mas as varas funcionariam com Igor?
Ben arrancou uma vara do chão. A
planta e as flores amarradas ali arquearam,
mas ele duvidava de que o pai se
importasse com aquilo. Agora ele só se
importava com Igor.
Ben voltou correndo até a gaiola,
brandindo o bambu como uma espada.
Aquela ave nojenta já tinha mais cicatrizes
no corpo que a maioria dos médicos vira na
vida e ganharia outras tantas caso se
recusasse a sair da gaiola.
— Vai sair ou não? — disse Ben. Igor
ficou no poleiro.
— Está bem — disse Ben.
Ele enfiou a vara na gaiola e começou a
cutucar o papagaio.
— Saia!
Cutucão.
— Voe! Saia!
Cutucão. Cutucão.
O papagaio agiu depressa. Num
movimento veloz, puxou a vara para dentro
da gaiola e partiu o bambu ao meio com
uma bicada.
— Agora é a sua espinha! — guinchou
Igor, como se fosse um carro de corrida com
freios defeituosos. — Pronto ou não, lá vou
eu!
Ben sentiu um calafrio de medo. Tudo o
que ele queria era manter Igor preso dentro
da gaiola. Correu para fechar a porta da
gaiola, trancando a fechadura, antes que as
garras do bicho furioso pudessem arrancar
seus dedos. Dentro da gaiola, Igor se
debatia e bicava violentamente as grades.
— Hora de morrer! Hora de morrer!
Ben correu até o barracão para
apanhar as luvas de jardinagem do pai. Não
havia como pegar a gaiola sem as luvas.
Rex continuava lá, coberto com os lençóis,
como na noite anterior. Ele afagou a cabeça
do cachorro ao passar.
Assim que achou as luvas, voltou à
gaiola. Com o coração batendo feito um
batuque de vodu, tentou puxar o troço para
a casa. O papagaio estava cada vez mais
nervoso. Tentava arrebentar as grades com
o bico, dando repetidas estocadas nas mãos
enluvadas do menino.
Ben finalmente conseguiu colocar a
gaiola de volta perto do abajur, que caíra no
chão. Olhando para ele com um olho
amarelado, o papagaio gritou várias vezes:
— Hora de morrer! É a sua vez! É a sua
vez!
Ben fez o que pôde para ignorar a
ameaça apavorante e saiu apressadamente.
Correu para o barracão, tirou as luvas e viu
que Rex estava encolhido embaixo da
bancada de trabalho.
— Vamos lá, garoto — disse ele. Mas
Rex se encolheu ainda mais na sombra.
Ben se agachou e estendeu a mão. Rex
se esticou e deu-lhe uma lambida. Mesmo
naquele momento, porém, Ben ainda ouvia
ao longe a cantoria mortal do papagaio
maligno.
— Hora de morrer... e vai ser logo!

Naquela noite, qualquer barulho fazia Ben


dar um pulo na cama: o rangido do assoalho
do quarto dos pais, que se preparavam para
dormir; as batidas das asas de um inseto na
janela do quarto; o gorgolejar dos canos nas
paredes; os estalidos em todos os cantos
secretos da casa. Mas Ben fez um esforço
para se concentrar. Já sabia que estava
correndo um sério perigo, e precisava
pensar no que fazer.
Pegando um pedaço de papel e um
lápis, ele fez uma lista dos “prós” e
“contras”. Tratar aquilo como apenas um
problema normal para ser resolvido com
coisas práticas fazia com que se sentisse
menos nervoso. Infelizmente, parecia que
havia só duas opções, e a primeira tinha
mais “contras” do que “prós”.
A primeira era chamar o pessoal do
departamento de assistência social. Se eles
vissem o estado da casa, poriam um fim na
situação. Diriam que não havia ambiente
para criar uma criança ali. Um porco, talvez,
mas não um menino. Pois o andar térreo da
casa estava cada vez mais parecido com um
chiqueiro. O papagaio só saía da gaiola
quando a mãe e o pai estavam na sala, mas
nesses curtos períodos já virava o lugar de
cabeça para baixo. Havia tanta titica
espalhada pelo chão da sala que era preciso
tomar cuidado ao pisar ali. O papagaio
dilacerara a mobília com as garras, tal como
fazia com as frutas na hora de comer. As
poltronas já não estavam só rasgadas; os
estofamentos haviam sido arrancados e
jogados no chão. Parecia que ali dentro fora
solta uma motosserra, e não um papagaio.
Até no papel da parede havia marcas de
garras; eram tão fundas que parecia que um
ancinho arranhara as paredes.
Mas logo surgiam todos os “contras”.
Os assistentes sociais certamente tirariam
Ben da casa. Ele seria levado para um lugar
seguro, e provavelmente seus pais seriam
processados. Não havia como os assistentes
culparem o pássaro. Culpariam a mãe e o
pai. Só que a culpa não era deles. Ben não
sabia como, mas tinha certeza de que Igor
assumira o controle da mente deles. O pai e
a mãe estavam agindo mais como robôs,
programados para obedecer à vontade do
pássaro, do que como pessoas que sabiam o
que estavam fazendo.
Além disso, os fiscais da crueldade
contra animais certamente devolveriam Rex
ao canil, e ele jamais reveria o seu cão de
estimação.
A única alternativa era ir tocando de
ouvido e enfrentar as agruras de cada dia.
Tentar sempre evitar Igor, até ter idade para
sair de casa e ir morar sozinho o mais longe
possível. A desvantagem? Ele tinha só doze
anos, e o dia em que poderia sair de casa
estava anos e anos à frente.
Até esse dia, pensou, ele poderia
passar o maior tempo possível fora de casa.
Ficaria com amigos e parentes sempre que
pudesse. Recém-transformados em zumbis,
os pais provavelmente nem notariam a
ausência dele. Embora Ben agora estivesse
em férias, as aulas recomeçariam em uma
semana, e ele ficaria o dia inteiro fora. Podia
se inscrever num clube e tentar fazer algum
esporte. Assim talvez conseguisse ficar fora
de casa depois da escola e nos fins de
semana. Podia até procurar um programa de
intercâmbio, para trocar de lugar com um
estudante estrangeiro e passar um semestre
em outro país.
Na verdade, porém, Ben não queria
deixar os pais sob o feitiço de Igor. Nem
queria sair de casa. Por que se deixaria
expulsar por aquele papagaio?
Adormeceu pensando nisso.
Ben dormiu profundamente, até que um
ligeiro farfalhar de asas fez com que ele se
mexesse sob as cobertas. Abriu os olhos e
estremeceu.
Ele nunca percebera quantas sombras
havia num quarto escuro. Eram enormes
manchas escuras, cada uma negra feito o
olho de um papagaio. Uma tensão sufocante
pairava ali, como se houvesse um monstro
invisível na escuridão, prendendo a
respiração para não ser notado.
Havia a sombra da porta aberta do
armário, sombras de gavetas entreabertas,
sombras de roupas jogadas no chão, e
muitas sombras que não dava para
identificar direito. Mas então Ben viu uma
sombra inconfundível.
Igor estava empoleirado no pé da
cama, com as asas fechadas: uma grande e
volumosa massa negra, em forma de
pássaro. O gorgolejo baixo da ave soou na
escuridão.
Ben sentiu um suor frio brotar na sua
pele. A criatura desceu para a cama e
começou a enfiar as garras na coberta em
direção a ele.
Antes de dormir, Ben pensava que seu
problema era continuar vivo até ter idade
para sair de casa. Agora, o problema era
ficar vivo até o dia seguinte.
Ele precisava pular fora da cama, mas
estava paralisado de medo. Não conseguia
se mexer. Parecia que estava preso por
mãos geladas. Ele não conseguia gritar.
Sentia que estava sendo sufocado.
Já Igor não tinha dificuldade para falar.
Gritou:
— Hora de morrer.
O pássaro alcançou a parte da cama
em que jazia o corpo de Ben e pulou em
cima dele. Ao cravar as garras na perna do
menino, gritou com voz aguda:
— Hora de morrer!
A ave começou a caminhar sobre o
corpo em direção ao rosto e à cabeça. Ben
sentiu outra pontada daquelas garras
quando Igor deu outro pulo e chegou ao seu
estômago. Depois as garras passaram a
pressionar o seu peito com tanta força que
Ben achou que o sangue começaria a
encharcar os lençóis. Seu rosto se contorcia
diante do fedor do pássaro. Ele tentou se
afastar, mas não havia lugar aonde ir.
A sombra escura da cara da ave se
dividiu, e Ben percebeu que o bico se abrira
para atacar. Ele sabia que o bico era mais
afiado do que uma navalha. Já vira o
papagaio quebrar nozes sem dificuldade e
não tinha dúvida de que quebraria seus
ossos facilmente.
A mão de Ben tateou em volta da
cama, procurando alguma coisa para se
proteger da ave. Achou o despertador, mas
era muito pequeno para causar dano. Seus
dedos esbarraram no abajur, que estava
preso à tomada. Ben ligou a lâmpada e se
encolheu sobre o travesseiro, enquanto a
claridade iluminava a cara de Igor.
A língua da ave se assemelhava a um
dedo seco e retorcido, apontado para ele.
Seus olhos imensos pareciam de alguma
forma mais traiçoeiros, tão pretos quanto
uma camada nova de asfalto. O bico estava
escancarado num sorriso diabólico,
parecendo mais cortante e selvagem do que
nunca.
O bafo da ave fedorenta atingiu o rosto
de Ben como uma repulsiva rajada de vento.
— Igor! Aí está você!
Era a mãe, parada no vão da porta. Ela
olhava para a cama, mas seu olhar era
completamente inexpressivo. Quando
estendeu a mão, Igor voou e pousou no seu
pulso.
— Não conseguia dormir, então fui
limpar a gaiola do Igor, mas ele voou pela
sala até o corredor. A porta estava fechada,
mas ele usou as garras para virar a
maçaneta e sair. Ele é tão esperto, não é?
Depois subiu, procurando o seu quarto.
Deve ter aberto também a sua porta, como
se soubesse exatamente onde você estava
— disse ela, afagando a odiosa cabeça
nodosa de Igor. — Fico satisfeita por ver que
vocês estão se dando tão bem. Talvez a
gente deva mudar o Igor,
permanentemente, para o seu quarto.
— Não! — gritou Ben. — Quer dizer, o
meu quarto não é muito grande. Ele precisa
de mais espaço.
— Acho que você tem razão — disse a
mãe, com uma expressão preocupada. —
Mas talvez a gente deva pensar em dar a ele
liberdade para voar pela casa. Ele sabe
circular por aqui muito bem. E pode abrir
todas as portas com essas garras.
Ben olhou para o despertador na
cabeceira.
— Espere um instante, mãe. Ainda são
seis e meia da manhã. Por que você estava
limpando a gaiola dele tão cedo?
—Ah, fiquei na cama a noite inteira
achando que estava sendo egoísta por
descansar — disse ela. Ben reparou que a
voz dela se tornara artificialmente lenta.
Soava mais como a voz de um robô, com um
pequeno intervalo entre as palavras. — E
fiquei pensando o que posso fazer pelo Igor,
o que posso fazer pelo Igor... — continuou a
mãe. — Então, descobri. Poderia limpar a
gaiola dele outra vez. Não fazia isso desde a
noite passada. É estranho... Na minha
cabeça, era quase como se Igor estivesse
me chamando lá embaixo para abrir a porta
da gaiola. Ele é tão esperto, não é?
Ela sorriu, se virou e saiu do quarto
com a ave no ombro, como uma espécie de
pirata zumbi, cocando distraidamente a
barriga dele.
A mãe já estava completamente
enfeitiçada, e era de esperar que o pai
também estivesse.
Ben se sentiu completamente só.

Cinco minutos depois, o coração de Ben


continuava disparado, com a pulsação
martelando as têmporas. Quando ele
começou a respirar normalmente outra vez,
percebeu que o som nos seus ouvidos já não
vinha do peito. Aquilo parecia vir da gaveta
da mesa de cabeceira. Era um som
mecânico, e não as batidas frenéticas do seu
coração.
Claro! Era o tiquetaque daquele relógio
de bolso, grande e horrendo, que o avô
deixara para ele. Ben lamentou que o avô
não houvesse deixado somente aquilo para
a família.
Ele abriu a gaveta e pegou o relógio,
tentando imaginar por que o avô lhe teria
deixado tal coisa. O vovô provavelmente
sabia que o neto usava um relógio digital.
Não pensara que uma relíquia daquelas
ficaria melhor num velho museu empoeirado
em vez de no bolso de um menino moderno?
Mas o vovô não se limitara a deixar
aquilo para ele no testamento. Também
pedira que a mãe de Ben entregasse o
relógio logo que possível, como se fosse
importante que o neto recebesse a herança
imediatamente.
Ben sentiu seus braços se arrepiarem
quando algo lhe ocorreu. Lembrou que
visitara o túmulo do avô com Rex e que
ficara olhando para a lápide, pensando: Só
você sabe a verdade sobre aquela ave, vô. E
já não pode me contar.
Mas talvez isso não fosse verdade.
Talvez o avô já houvesse encontrado um
meio de contar a verdade para ele. Um meio
de avisar Ben.
Talvez ele tivesse uma razão muito boa
para dar o relógio ao neto.
Era um presente tão estranho que Ben
tinha certeza de que havia algo mais por
trás daquilo. Talvez uma pista sobre o
papagaio. Seria possível?
Ele examinou o relógio, pela frente e
por trás, procurando algum indício.
Atrás havia uma inscrição, mas que
parecia bastante comum:
PARA EDWARD STEVENS
NO DIA DO SEU ANIVERSÁRIO
COM AMOR, DE MAMÃE E PAPAI

Ben leu e releu aquelas palavras,


procurando alguma mensagem cifrada, mas
era só uma dedicatória normal.
Ele virou o relógio e examinou os
números no mostrador. Eram algarismos
romanos, mas isso era comum nos relógios
antigos. Até o velho carrilhão lá no andar de
baixo tinha algarismos romanos. Ben
procurou outra pista.
Não encontrou coisa alguma.
De repente, Ben teve outra idéia.
Talvez dentro da caixa do relógio houvesse,
escondida, alguma espécie de mensagem.
Ele examinou a parte de trás e reparou que
havia uns pequenos parafusos ali; podia
desatarraxá-los e dar uma olhada dentro.
Lembrou que tinha um conjunto de
miniaturas de chaves de fenda numa das
gavetas do quarto. Sentou-se com o relógio
no colo e foi girando os parafusos.
Acidentalmente, espetou o dedo com a
chave de fenda, mas afinal conseguiu abrir o
relógio.
Ali dentro havia um pedaço de papel
bem dobrado. O avô usara o relógio para
enviar uma mensagem a ele.
Ben desdobrou o papel
cuidadosamente. Os dois lados estavam
cobertos por letras. De um lado havia uma
mensagem do avô, manuscrita em tinta
azul. A escrita parecia um grafite feito por
uma aranha. Tomava todo o espaço, e a
letra era miúda. O avô devia estar com
muita pressa quando escreveu aquilo.
Ben deitou na cama com o papel sobre
o travesseiro e começou a ler.

Querido Ben,
Se esta mensagem chegou a você, é
porque eu já morri. Coloquei o bilhete aqui
dentro sabendo que o papel seria
encontrado por você, que sempre foi um
garoto esperto. Igor estará na sua casa e
seus pais estarão enfeitiçados por ele, assim
como eu estou. Eu caie queimei a mão no
fogo; isso me livrou do controle dele por
tempo suficiente para escrever este bilhete,
dizendo o que você pode fazer para matar a
ave.
Aquele papagaio está possuído por um
demônio, Ben. Esse demônio me matará
muito em breve, e eu não tenho como
impedir isso... mas você ainda pode salvar
seus pais.
Encomendei um livro que ensina a
expulsar demônios. Duvido que receba o
exemplar da livraria a tempo, mas você
pode ir buscar a encomenda! Basta dizer
que é para mim...

Ben ouviu um barulho na janela, e seu


coração disparou. Ele ouviu asas farfalhando
e, depois, um bico raspando o vidro. Olhou
para trás com os olhos arregalados de
terror, deixando o papel cair. Mas respirou
aliviado, soltando o ar como se houvesse
levado um soco no estômago. Era só um
galho da árvore batendo na janela pelo lado
de fora. Bem pensara que era a ave. O
papagaio que matara o seu avô.
Continuou a leitura, com o corpo
tremendo.

Você só precisa buscar o livro lá. Esse


demônio TEM de ser detido. Ele entra na
casa das pessoas, brinca com elas e depois
se livra delas... mas elas sempre morrem.
Toda noite ele cacareja e me obriga a
escutar as coisas terríveis que já fez. Isso
está me deixando maluco!
Mas ele nunca conta histórias sobre
crianças que tenha possuído e matado. Acho
que ele não consegue controlar as crianças,
e isso torna você a única pessoa capaz de
nos livrar dele.
Sua mãe e seu pai não acreditarão no
que eu acabo de dizer.
Sua mãe sempre foi sensata demais.
Assim, isso cabe a você,
Ben. Depressa!
Não deixe que ele vença. Pegue o livro,
Ben, e acabe com o demônio. Boa sorte!
Com amor, vovô.

Ben virou o pedaço do papel. Do outro


lado havia o recibo de encomenda de um
livro. O título era Expulsando demônios.
Havia uma data de entrega, e Ben notou que
a encomenda já deveria estar na loja. O
endereço indicava que a livraria era na
cidade do avô, a alguns quilômetros de
distância dali.
Ben levou algum tempo planejando o
trajeto. Imprimiu o mapa a partir de uma
página de busca de endereço na internet,
mostrando exatamente a rua onde ficava a
loja. Anotou o ônibus que precisaria pegar e
o horário.
Antes de ir à loja, levou uma tigela com
ração para Rex no barracão. Reparou que
havia ervas daninhas brotando entre as
flores e que a grama estava alta demais. O
pai já não cuidava do jardim. Antes aquilo
era motivo de orgulho e alegria, tal como a
sala era para a mãe.
Rex estava no barracão, encolhido nos
lençóis.
— Não se preocupe, garoto — disse
Ben. — Vou sair para buscar um livro que vai
me mostrar como acabar com o Igor. E você
sempre teve razão. Aquilo não é só uma
ave. Há um demônio ali dentro. Mas isso não
vai durar muito, garoto. Não vai durar muito.
Rex só ganiu e olhou para Ben.
— Você logo vai voltar para casa,
garoto — disse Ben. — Eu prometo.
Ele ouviu umas marteladas. Pensou que
fosse na casa do vizinho. Mas, quando
atravessou a cozinha, passou pelo corredor
e saiu, viu o pai lá fora, encarapitado numa
escada, ajustando uma enorme grade de
metal na janela do quarto. Apoiadas na
cerca, havia mais grades para serem fixadas
nas outras janelas. Portanto, eles não
haviam ido só comprar comida e brinquedos
para Igor. Também haviam gastado uma
nota comprando metal suficiente para
construir um Titanic.
— Pai, o que você está fazendo? —
perguntou Ben, alarmado. O pai pareceu
não escutar e continuou prendendo as
grades. Tentando quebrar aquele transe,
Ben gritou:
— Pai, porque você está colocando
essas grades?
— O Igor quer — respondeu o pai. —
Nós já lhe demos liberdade para voar pela
casa toda, mas ele está muito infeliz por ter
ficado alguns dias preso na gaiola. Disse que
agora nós vamos aprender o que é viver
atrás das grades. Quando estiverem
prontas, vamos ficar trancados com Igor e
ele vai nos punir. Nós merecemos, não é,
Ben?
Ben começou a se afastar.
— Por enquanto só tenho o suficiente
para todas as janelas da frente — continuou
o pai. — Amanhã vou comprar mais para as
janelas de trás e as portas. Então, Igor vai
ter o que quer.
Ben já não estava escutando. Saíra
correndo pelo jardim rumo ao portão. Só
olhou para a casa uma vez. Achou que a
fachada estava começando a parecer a de
uma gaiola gigante.

Ben tentou se sentar confortavelmente no


banco do ônibus. A almofada fora bastante
rasgada por vândalos, mas ele precisava
admitir que parecia estar em boa forma se
comparada com as cadeiras da sua própria
casa. Olhou pela janela empoeirada, vendo
as ruas se sucedendo à medida que o ônibus
entrava na cidade em que o avô morara.
Ele não gostava de pegar ônibus para
itinerários desconhecidos. Dificilmente sabia
em que ponto exato descer e com facilidade
errava a parada. Pegou as indicações da
internet que imprimira e ficou atento ao
ponto certo.
Ele jamais gostara daquela cidade.
Conjuntos de prédios encardidos
assomavam por toda parte, e o centro da
cidade era empoeirado, sujo e cheio de
fumaça.
Ben desceu do ônibus e tirou o mapa
do bolso. Parecia fácil seguir aquilo, mas,
quando chegou ao lugar onde a rua deveria
estar, no outro lado da cidade, pensou que
fizera alguma coisa errada. O bairro parecia
abandonado, com fileiras de galpões velhos
apodrecendo silenciosamente lado a lado. A
maioria das vidraças estava quebrada, e
havia uma imobilidade estranha nas ruas.
Quando olhou para a placa enferrujada
fixada na parede, porém, Ben viu “Brick
Street” escrito. Era lá que ficava a “Livros
Raros”. Aquele era o lugar certo.
Ele não se sentia muito seguro sozinho
ali. Preferiria que Rex estivesse junto, mas
foi em frente, seguindo os números dos
prédios.
Chegou ao lugar onde a livraria deveria
estar e se viu olhando para uma grade de
ferro. Alguns degraus de concreto quebrado
levavam a um porão escuro. Haveria mesmo
uma livraria enfiada ali embaixo?
Ele hesitou por alguns minutos. Depois
começou a descer, degrau por degrau.
Havia uma loja, espremida no desvão.
Parecia antiga, como se estivesse escondida
ali havia séculos, sem perceber a cidade
sendo construída acima e ao seu redor. Os
tijolos estavam tão sujos que Ben teve
certeza de que nunca tinham visto água. Na
placa em cima da janela, estava escrito
“Livros Raros” com tinta dourada desbotada.
Atrás da vidraça encardida de poeira, o
interior parecia sombrio. Ele não conseguia
ver nada através do vidro; pelo que podia
distinguir, porém, aquilo parecia mais uma
caverna do que uma livraria.
Ben virou a maçaneta e empurrou a
porta, que rangeu como um trem parando
com uma freada súbita. Velhos livros
empoeirados cobriam cada parede, muitos
deles transbordando das estantes. O cheiro
das capas de couro e das páginas que
lentamente se esfarelavam parecia um tapa
no rosto.
Ele jamais gostara muito de sebos. E
tudo naquela loja parecia arrepiante.
Grande parte dos títulos nas lombadas
dos livros era escrita numa espécie de
idioma antigo. Ben pensou que aquilo devia
ser latim: mesmo sem conseguir entender,
percebia que ali não havia livros com boas
histórias ou que propiciassem diversão na
praia. Algumas lombadas tinham cabeças
horríveis de demônios pintadas embaixo dos
títulos; outras ostentavam símbolos mágicos
gravados em relevo.
Ele foi caminhando lentamente pelos
corredores. Aquilo parecia um labirinto,
serpenteando rumo a um grande balcão
antigo. A princípio, o balcão parecia mais
uma prateleira coberta de livros, mas Ben
percebeu uma cabeça se mexendo atrás das
pilhas.
— Olá? — arriscou ele.
Um velho surgiu por trás da pilha de
livros antigos. Era careca, com um apurado
cavanhaque grisalho. Pelas suas roupas,
parecia que o sujeito parará no tempo.
Ele lançou para Ben um olhar aguçado
e desconfiado, dizendo rispidamente:
— Um menino? Este tipo de loja não é
apropriado para crianças, sabia? Vá embora.
Ben ficou calado e estendeu o recibo
do livro.
O homem agarrou o papel, e estreitou
os olhos. Depois, disse:
— Ah, Expulsando demônios. Está
certo, então. Esse livrinho chegou na
semana passada. Precisei encomendar no
exterior, sabia? Você veio pegar o livro para
o senhor Stevens, não é?
— Mais ou menos — disse Ben, olhando
para os medalhões pendurados no pescoço
do velho. Tinham símbolos estranhos, e Ben
ficou imaginando se davam proteção a ele.
— Ele é um sujeito encantador. Mas
parecia terrivelmente preocupado quando
esteve aqui pela última vez. Estava
passando por um caso infeliz de possessão...
O que era mesmo? Uma espécie de ave,
acho. Uma cacatua, não era?
— Um papagaio — corrigiu Ben.
— Ah, é... Lembrei agora. Ele me
contou. Eu recomendei este livro para ele. É
muito raro, sabia? Ele precisou pagar
duzentas libras. Mas funciona, e é isso o que
importa. Onde será que eu guardei a coisa?
— pensou alto o velhote, colocando um
caixote de livros sobre a mesa e começando
a procurar. Correndo os dedos finos feito
ossos pelas lombadas, perguntou:
— E como está senhor Stevens?
— Morto — disse Ben, sentindo-se
subitamente triste. — Foi morto pelo
papagaio.
O velhote lançou a Ben um olhar
pesaroso e murmurou:
— Que desgraça. Mas isso acontece
com bastante freqüência. A gente precisa
agir muito depressa quando um animal de
estimação está possuído pelo demônio. Mas
infelizmente não posso lhe devolver o
dinheiro dele, meu jovem. O livro foi
encomendado e precisa ser levado por você.
— É isso o que eu quero — disse Ben.
— O papagaio está agora na minha casa.
— Não diga! — exclamou o livreiro. —
Então você realmente precisa do livro.
— O senhor pode me dar alguma
ajuda? — perguntou Ben. — Sabe alguma
coisa sobre demônios?
— Um pouco. Já encontrei alguns pela
vida — disse o livreiro, parando de procurar
por um momento. — Existem vários tipos,
sabia? Provavelmente o que está
atormentando vocês é um demônio
terrestre... deve ter sido expulso do mundo
dos espíritos e precisa habitar na terra com
os seres humanos. Geralmente eles ficam
em túmulos, montanhas ou outros lugares
abandonados. O problema é que alguns são
um pouco mais corajosos.
— E eles podem mesmo possuir aves?
— perguntou Ben, imensamente aliviado ao
ver que mais alguém levava aquilo a sério.
— Claro que sim. Podem tomar posse
dos corpos e falar pela boca dos seres
possuídos. Esse papagaio tem dito coisas
perversas?
Ben assentiu. O velhote continuou:
— Está vendo? Pelo menos, o que você
tem é o tipo mais fraco de demônio.
Portanto, ainda há esperança. Só os
demônios inferiores habitam outros corpos.
Eles não têm capacidade de criar um corpo
próprio, entende? Felizmente, não são fortes
o suficiente para possuir seres humanos. Só
conseguem controlar vítimas humanas
adultas.
— Então ele não é tão perigoso assim?
— perguntou Ben.
— Se não é perigoso? Ah, não se
engane... Ele é um assassino. Um demônio
muito perverso e violento... mais mortífero
do que um ninho de víboras — disse o
velhote, puxando um volume fino com capa
de couro. — Ah! Aqui está o seu livro.
Se um livro tão pequeno custava
duzentas libras, devia conter informações
valiosas, pensou Ben.
O livreiro abriu o livro no capítulo de
instruções e disse:
— Aqui ensina tudo o que é preciso
dizer para se livrar dele. Você vai conseguir
controlar o papagaio enquanto faz isso?
— Controlar?
— É. Ele vai se debater muito — disse o
livreiro, virando a página. — Onde ele
dorme?
Ben pensou um instante antes de
responder.
— Na gaiola, eu acho.
— É provável. Deve ser o instinto
natural do pássaro prevalecendo. Ele quer
descansar no poleiro. Então isso é bom. Se
você conseguir trancar o papagaio na gaiola
enquanto executa o ritual, terá menos
chance de ser morto pelo demônio.
— Ser morto? — Ben engoliu em seco.
— É. Você sabe... Ele poderia rasgar
sua garganta, arrancar seu coração do peito
com o bico e as garras, esse tipo de coisa —
disse o velhote, trocando alguns livros
poeirentos de lugar atrás do balcão. — Mas
ele vai lutar. Na realidade, fará todo o
possível para acabar com você. Por isso,
tenha cuidado.
Tentando organizar seus pensamentos,
Ben perguntou:
— Mas, se eu fizer a coisa direito e
disser todas as palavras corretas, o demônio
vai morrer?
— Morrer? Acho que não, meu jovem!
Os demônios são imortais, de modo que não
podem ser mortos por nós. Mas esse
demônio será expulso do corpo do papagaio
e lançado bem longe da sua casa. Ele jamais
encontrará o caminho de volta.
Provavelmente vai acabar do outro lado do
mundo. E achará o corpo de outra criatura
para possuir. Com sorte, acabará dentro de
alguma coisa inofensiva, como um caracol
ou um peixe.
Ele estendeu o livro. Ben reparou numa
instrução, escrita em letras maiúsculas na
primeira página: “É OBRIGATÓRIO
PRONUNCIAR CADA PALAVRA EXATAMENTE
COMO ESTÁ ESCRITA”.
— Obrigado — disse Ben.
— Boa sorte — respondeu o livreiro. —
Acredite: você vai precisar, meu jovem.

Quando Ben voltou, a casa estava ainda


mais parecida com uma gaiola. Ele notou
um casal de vizinhos olhando para as grades
de ferro que o pai fixara nas janelas. No dia
seguinte, o pai compraria mais grades para
as janelas e portas traseiras. Então todos
ficariam trancados lá dentro com Igor. Ben
nem queria pensar no castigo que o
papagaio aplicaria. Sabia que precisava
acabar com o bicho naquela noite, para não
chegar a descobrir qual seria.
Até então, precisava manter o livro
bem escondido. Sabia que o melhor seria
deixá-lo embaixo do colchão, pois a mãe não
chamava a sua atenção para fazer a cama
havia dias.
Ben entrou em casa. Os pais estavam
na sala, falando com Igor atrás da porta
fechada. Ele correu para cima. Uma vez no
quarto, poderia fazer uma barricada na
porta.
Mas, quando chegou ao quarto, viu que
a porta estava aberta. As cobertas estavam
no chão. O colchão fora rasgado e retalhado.
A espuma e as molas haviam sido viradas
para fora. Igor fizera outra visita.
Certamente o papagaio não queria que
ele tivesse outra boa noite de sono. Ou
talvez estivesse anunciando o que faria com
ele em breve.
Ben correu os olhos pelo quarto. Não só
a cama fora danificada. Todas as suas coisas
haviam sido derrubadas da escrivaninha, e a
tela do computador fora arranhada por
garras afiadas.
A porta do armário estava aberta, e
Ben examinou o conteúdo. Todas as suas
roupas pendiam dos cabides em farrapos.
Ele correu os dedos pelos trapos
pendurados, sabendo que o duelo final com
Igor se daria em poucas horas.

Ben entrou na sala silenciosamente e


trancou a porta. Fazendo o menor barulho
possível, arrastou o aparador favorito da
mãe diante da entrada, fazendo uma
barricada ali dentro com Igor. Estava tudo
escuro, e a gaiola do papagaio se perdia nas
sombras ao fim da sala. Com as luzes
apagadas, Ben não conseguiria enxergar
para trancar a portinhola da gaiola.
Já com a mão no interruptor, uma coisa
lhe ocorreu. Talvez Igor não estivesse na
gaiola. Caso a portinhola não houvesse sido
bem fechada, o velho papagaio poderia
estar solto pela sala. Talvez o bicho
estivesse empoleirado à distância de um
braço, escondido nas sombras!
Ben fez força para se acalmar.
Ele logo descobriria.
“É agora ou nunca”, pensou, apertando
o interruptor.
A sala se encheu de luz. Ben se
assustou ao ver dois olhos fixados sobre ele.
Mas eram apenas seus próprios olhos
refletidos no espelho da parede. O espelho
quebrado na parede. Fora despedaçado, e
havia cacos espalhados pelo tapete. Mas ao
menos a ave não estava solta. Na realidade,
uma luxuosa capa de vertido vermelho
escuro fora colocada para ajudar a ave a
dormir. A capa vermelha se amoldava a
cada canto e curva da gaiola com perfeição.
Ben ficou imaginando se os pais teriam pago
para que aquilo fosse feito a mão.
A boa notícia era que Igor estava ali
embaixo, sem saber que as luzes estavam
acesas ou que Ben estava na sala. Aquela
cobertura tampava todas as luzes.
Mas Ben precisaria levantar a capa
para trancar a portinhola da gaiola. E essa
era a única coisa que impediria Igor de ficar
livre.
Ben colocou suavemente o livro
sobrenatural no outrora luxuoso sofá e foi se
esgueirando pela sala.
Parou perto da gaiola.
“E se o Igor estiver acordado aí
dentro?”, pensou. “Os demônios dormem?”
Ele estremeceu ao pensar em Igor bem
acordado ali no poleiro, só esperando que a
capa fosse erguida para se lançar fora da
gaiola e em cima dele.
Mas começou a levantar a capa
vagarosamente, a mão tremendo enquanto
puxava.
A capa foi levantada e... tirada.
Igor estava dormindo, mas Ben
precisou abafar um arquejo quando viu a
posição em que o bicho dormia. O papagaio
ficava pendurado de cabeça para baixo,
como um morcego, preso ao poleiro pelas
garras.
Ben sabia que não podia perder tempo.
Precisava ser rápido. Fechou a portinhola da
gaiola, trancando o ferrolho.
Quando ele fez isso, Igor acordou.
— Desculpe perturbar o seu sono —
disse Ben, recuperando a confiança ao saber
que o ferrolho estava puxado.
O papagaio se empertigou no poleiro,
olhando para ele. Então, disse calmamente:
— Pronto para morrer?
Ben estremeceu, como se um par de
garras geladas houvesse apertado seus
ombros.
Já Igor não parecia absolutamente
preocupado. Mas então viu o livro.
Assim que Ben pegou o exemplar de
Expulsando demônios, a criatura ficou
agitada. Grasnou curiosamente e esticou o
pescoço junto à grade, como se tentasse ver
melhor o livro.
— Fim da linha — disse Ben, olhando
através dos olhos do papagaio para o
demônio escondido dentro do corpo. — Não
sei como você entrou nessa ave, mas está
prestes a partir. Vou mandar você para
centenas e centenas de quilômetros de
distância daqui, e você vai terminar
possuindo uma criatura no fundo de um lago
no meio do nada. Então, não será capaz de
prejudicar mais ninguém.
A ave inclinou a cabeça. Já
aparentando menos confiança, gritou:
— Abra a gaiola!
— Nunca na vida — retrucou Ben.
— Abra a gaiola! — insistiu o bicho,
sacudindo as grades com as garras e
batendo a velha cabeça contra a armação
metálica. — Abra a gaiola! Abra a gaiola!
Abra a gaiola!
Mas Ben só abriu o livro. Releu as
instruções no início. “É OBRIGATÓRIO
PRONUNCIAR CADA PALAVRA EXATAMENTE
COMO ESTÁ ESCRITA”.
Aquilo seria difícil. As palavras não
pareciam pertencer a nenhuma língua que
Ben conhecesse. Ele realmente precisaria se
concentrar para falar corretamente.
Num tom já muito menos ameaçador,
Igor recomeçou a grasnar:
— Abra a gaiola, e podemos ser
amigos. Abra a gaiola, e eu posso dar a você
qualquer coisa. Abra a gaiola, e posso
proteger você. Abra a gaiola, e posso matar
seus inimigos.
Mas Ben sabia que o demônio estava
amedrontado.
— ABRA A GAIOLA! — urrou Igor.
Ben começou a ler a página em voz
alta lentamente. As sílabas daquele idioma
estranho saíam desajeitadamente da sua
língua. Igor se agitava de um lado para o
outro no poleiro enquanto ele falava.
Quando Ben terminou a primeira linha,
recebeu na nuca a travessa com ervas da
mãe, que saiu voando da prateleira acima
da lareira. Por sorte, era de plástico e não
machucou muito, mas cobriu o menino de
titica. Ben percebeu que Igor estava usando
seus poderes para afetar os objetos na sala,
mas sabia que precisava continuar lendo
sem hesitação, por pior que a situação
ficasse.
Ele ouviu um barulho áspero. Duas fitas
de vídeo estavam se arrastando pelo chão
ao lado da tevê. Seriam bem mais pesadas
do que a tal travessa com ervas.
As fitas voaram em direção à cabeça
de Ben. Ele se esquivou, e as duas
passaram. Uma delas se chocou contra as
grades da gaiola. Ben enfim entendeu como
a sala virará aquela bagunça. Ele vinha se
perguntando como as asas de uma ave
podiam ser fortes a ponto de arremessar a
mobília pela sala. Mas percebeu que Igor
não precisava pegar nada. O demônio que
espreitava dentro do papagaio tinha o poder
de mover as coisas com a mente. E estava
usando inteiramente todos aqueles poderes.
Em seguida, os jornais na mesa se
lançaram contra as costas dele, fazendo
flépti, flépti, flépti. Depois, mais titica e
serragem saíram voando do chão em
direção à cabeça de Ben. Parecia que um
fantasma zangado estava esfregando tudo
aquilo no cabelo dele, tapando-lhe os
ouvidos e a boca, para que ele parasse de
ler. Ben cuspiu quando alguma coisa horrível
roçou seus lábios. Em função do ataque, até
errara a pronúncia de uma palavra. Mas não
havia tempo para voltar atrás. Então cobriu
a boca o melhor que podia com a mão livre
e continuou a ler.
Quando chegou à metade da página,
Igor pareceu enlouquecer. Ben quase
pensou que a gaiola arrebentaria, por causa
da força com que o papagaio se atirava
contra a grade. O pássaro arremessava o
corpo sem parar, enquanto berrava
ameaças.
A mobília começou a deslizar pela sala.
A escrivaninha virou de ponta-cabeça e caiu
no chão com estrondo. Um vaso veio voando
para cima de Ben, mas se espatifou na
parede. Então, o pior de tudo: a lâmpada do
teto explodiu feito uma arma, deixando a
sala às escuras. Ben já não conseguia
enxergar a página. Não podia mais ler.
A ave cacarejou satisfeita, mas Ben
planejara tudo muito bem. Acendeu uma
lanterna que tirou do bolso e fez o facho
iluminar a linha que estava lendo.
Quando continuou a leitura, Igor ficou
ainda mais furioso, bicando ruidosamente a
grade. Depois, começou a se balançar para
a frente e para trás, como se quisesse
derrubar a gaiola. Suas garras tentavam
arrancar a portinhola, mas a fechadura se
conservava firme no lugar. Outro pesado
abajur saiu voando pelos ares, e Ben só teve
tempo de se abaixar. O abajur se espatifou
na janela da sala. Ben sentiu o ar frio entrar.
Então ouviu um barulho no andar de
cima. Os pais haviam acordado e estavam
correndo escada abaixo. Ele ouviu a mãe do
outro lado da porta, gritando:
— Igor! Você está bem?
Fora uma boa idéia ter trancado a
porta. A fechadura era bem forte, com uma
lingüeta de aço. Eles levariam algum tempo
para entrar. O mais preocupante era que
Igor talvez conseguisse sair da gaiola muito
antes disso. O demônio deixara de usar seus
poderes para atirar mesas e cadeiras pela
sala. Já parecia concentrado em outra coisa.
Ele estava começando a curvar as
grades da gaiola!
O metal da gaiola estava ficando mole
feito uma massa; tão mole quanto as
entranhas de Ben naquele momento, como
se tudo dentro dele estivesse se
desmanchando de medo. Precisava terminar
o ritual rapidamente.
Chegou à última linha, lendo as
palavras ainda mais alto e com mais ênfase
do que antes: a plenos pulmões, para
encobrir o som surdo das asas que batiam
no metal. Igor tentou um último recurso,
soltando um urro, cuspindo chamas e
rasgando o ar com as garras. Mas
finalmente caiu do poleiro e tombou no chão
da gaiola, com a cabeça inclinada para o
lado.
Ao terminar, Ben sentiu algo invisível
chispar para fora do papagaio, atravessar a
sala e sair pela janela estilhaçada.
Ele conseguira. Expulsara o demônio!
Dirigiu o facho da lanterna para a
gaiola e estremeceu ao ver o corpo do
pássaro começar a se enrugar. Partes
começaram a explodir como feridas
purulentas, salpicando o interior da gaiola.
Então o papagaio virou uma massa lodosa
de carne morta no fundo da gaiola, ainda
espumando e borbulhando, como se
estivesse sendo assado para uma refeição
repugnante. Ben chegou mais perto, vendo
a massa estalar e chiar, para finalmente
sucumbir numa poça repugnante. Parecia
que o papagaio estava morto havia muitos
anos, e somente o demônio que habitava ali
dentro mantinha o corpo animado.
Alguém estava socando a porta.
Ben ouviu o pai gritar:
— O que está acontecendo aí?
Ele foi cambaleando pelo entulho e
abriu a porta.
A luz jorrou da cozinha, quando o pai e
a mãe irromperam na sala. Eles pareciam
ter voltado ao normal. Não tinham mais
aquele olhar entorpecido. Era o olhar ainda
levemente sono-lento de quem acabara de
acordar, certamente, mas não aquele olhar
frio de zumbi. E, quando a mãe falou, não
parecia mais um robô. Falou como sempre
falara.
— O que aconteceu com a luz? —
perguntou ela.
Mas o pai não precisou de luz para ver
que a sala fora completamente destruída. A
lua brilhava lá fora, com o brilho prateado
ressaltando os estilhaços que emolduravam
a janela quebrada. Ele viu os destroços
espalhados pelo chão e toda a mobília
destruída.
— O que aconteceu aqui? — perguntou,
zangado. Parecia que nunca vira a sala
daquele jeito antes.
Ben precisava pensar depressa.
— Eu só desci para comer alguma coisa
— disse ele. — Mas alguns assaltantes
tinham arrombado a sala. Talvez fossem só
arruaceiros, mas estavam destruindo tudo.
Eu entrei, e eles fugiram.
— Onde está o velho papagaio do
vovô? — perguntou o pai.
— Acho que ele conseguiu fugir e foi
embora — disse Ben.
— Se ele foi embora, pelo menos
alguma coisa boa resultou disso — disse o
pai. — Quem teve a idéia de deixar aquela
criatura horrível na sala, em primeiro lugar?
— Eu não fui — disse a mãe. — Não
conseguia nem olhar para ele.
Ben sorriu ao ser abraçado pela mãe.
As coisas estavam decididamente voltando
ao normal.
— Vamos para a luz — disse a mãe,
entrando na cozinha com Ben.
Ele se examinou no espelho: estava
todo machucado e arranhado, além de
coberto de serragem e titica de papagaio.
— Você quer chocolate quente? —
perguntou a mãe.
Ben assentiu e sentou-se na cadeira,
enquanto a mãe acendia o fogo da chaleira.
— Vou chamar a polícia — disse ela.
Ben viu a mãe ir apressadamente para
o corredor, fechando a porta.
— Vou conferir se eles levaram alguma
coisa — disse o pai, afagando o cabelo de
Ben e saindo da cozinha.
Ben sorriu e ficou sentado ali, gozando
a normalidade que voltara à sua vida. Então,
acima do ronco da chaleira, ouviu um
barulho áspero na porta dos fundos.
— Rex! — disse Ben, sorrindo e
correndo para a entrada. Removeu a
corrente, girou a chave e abriu a porta. Rex
se esgueirou para dentro.
— Seja bem-vindo, garoto! — disse
Ben.
Agora as coisas realmente haviam
voltado ao normal. O demônio fora embora.
Seu cão estava feliz por retornar e partilhar
a casa com ele. Todos os males seriam
reparados em tempo. Seus pais comprariam
um novo papel de parede, além de uma
cama nova para ele. Ben recuperaria suas
roupas, item por item. Em poucos meses
seria como se nada tivesse acontecido.
Só que...
Só que Rex parecia diferente. Tinha os
pêlos do dorso todos eriçados.
— O que há, Rex? — disse Ben. — O
demônio já foi embora. Nada ruim ficou na
casa. Nada.
Ben olhou para o cachorrão. Por que
Rex estava rosnando? No corredor, a mãe
continuava falando ao telefone com a
polícia.
Ben estendeu a mão para afagar Rex,
mas alguma coisa no cachorro fez com que
ele retirasse a mão instintivamente.
“Por que eu fiz isso?” pensou ele.
“Porque você quer conservar sua mão, só
por isso”, respondeu seu cérebro num
lampejo.
Ele entendeu. Havia algo diferente em
Rex. O cachorro parecia malvado e olhava
para ele como se tivesse um assassinato em
mente.
— Mãe — exclamou Ben em tom
nervoso, mas o medo parecia prender a voz
dele na garganta.
Ben colocou o pé no chão, mas Rex
rosnou tão forte que ele congelou como uma
estátua. Prontamente, sentou-se na cadeira
outra vez e ficou ali como se estivesse
colado. Pensara em algo que era um
pesadelo.
“E se eu tiver lido errado as palavras
do feitiço de expulsão?”, pensou Ben,
quando o suor começou a escorrer pelo seu
pescoço. Esse erro poderia impedir que o
ritual funcionasse direito? Será que, em vez
de lançar o demônio a centenas de
quilômetros dali, a fim de achar um novo
corpo de animal para possuir, ele
simplesmente atravessara uma curta
distância?
Digamos, até o jardim?
O rosnado ficou mais alto. Tremendo
de medo, Ben viu Rex erguer o corpo inteiro.
Viu a boca do cachorrão se arreganhar,
mostrando os alvos dentes brilhantes.
Naquele momento, Ben se fez uma
pergunta.
O que poderia ser muito pior que
partilhar uma casa com um papagaio
possuído por um demônio perverso?
A resposta veio num estalo.
Partilhar uma casa com um cachorro
enorme possuído por um demônio perverso.
Rex começou a rosnar mais alto. Era
um rosnado profundo e malévolo, que
deixava tensos todos os músculos de Ben.
Cada poro da sua pele formigava e luzia
com um suor frio.
Então o rosnado se transformou em
terríveis palavras guturais.
— Eu matei o seu avô.
UMA ESTRANHA NA CASA

Laura estava atrasada.


Geralmente, ela era tão pontual quanto
o relógio suíço na lareira da sala, chegando
às sete horas em ponto.
Mas naquela noite algo estava
diferente. Já eram sete e vinte, e ela ainda
não chegara. Laura era a babá deles,
embora Jessica, com onze anos, e seu irmão
Robbie, com dez, não fossem mais bebês.
Até Megan, a irmã caçula, já tinha quatro
anos, e Jessica achava que uma nova
palavra precisava ser inventada. Qualquer
coisa, menos babá. Aquilo era muito
vergonhoso.
Jessica queria que Laura chegasse logo.
Assim, sua mãe e seu pai parariam de
discutir e iriam para o jantar de aniversário
de casamento na cidade. O pai estava
inquieto como se tivesse pulgas. A mãe
ligava e tornava a ligar para o celular de
Laura, mas só a caixa postal atendia.
— Por que ela desligou o telefone? —
reclamou a mãe. — Já devia saber que
ligaríamos para ela.
— Isso não é próprio da Laura — disse
o pai. — De forma alguma.
Jessica achava que os pais deveriam
deixar que ela ficasse responsável por isso.
Sabia que era perfeitamente capaz de cuidar
dos irmãos, e seria ótimo poder mandar
Robbie para a cama.
Mas ela precisava admitir que trazer
Laura para cuidar deles era quase tão bom
quanto deixar que eles cuidassem de si
mesmos.
Laura era muito legal. Embora
controlasse com severidade a hora de
dormir e a qualidade da alimentação,
permitia que as crianças fizessem quase
tudo o que quisessem quando ficava
tomando conta delas.
— Talvez esteja na hora de arranjarmos
outra babá — disse a mãe, impaciente.
Jessica fez uma careta. A outra poderia
não ser tão legal quanto Laura.
— Tenho certeza de que não é culpa
dela — arriscou Jessica. — Talvez tenha
havido uma emergência.
— Aqui há uma emergência — disse o
pai, andando pela sala como um leão
enjaulado. — Nós estamos atrasados para o
jantar.
— Jess, você pode subir e dar uma
olhada pela janela, antes que seu pai faça
um buraco no tapete novo? — pediu a mãe.
— Veja se a Laura está descendo a rua.
Jessica assentiu. Ficou feliz em sair da
sala. Havia tanta tensão ali que dava para
sentir no ar.
No corredor havia um interruptor para
acender a luz, mas ela não se preocupou
com isso ao subir correndo a escada.
Quase no topo da escada, a coisa
aconteceu.
Com longas unhas verdes, orelhas
pontudas, uma cara branca feito gesso e
uma boca manchada de sangue, uma
criatura horrenda lançou-se das sombras
sobre ela. Sibilando feito uma cobra, cravou
as garras no peito de Jessica.
Jessica gritou, tropeçou e escorregou,
deslizando como se a escada fosse feita de
gelo. Quase caiu lá embaixo.
— O que é isso? — perguntou o pai. —
O que aconteceu?
Jessica agarrou o corrimão para se
equilibrar e ergueu o olhar. Então percebeu
que a tal criatura era Megan. A irmã caçula
ria com a maquiagem demoníaca. Jessica
correu um dedo pelo rosto de Megan. O pó
saiu na ponta do dedo.
— Foi só mais uma das experiências
idiotas de Robbie com maquiagem — gritou
Jessica. — E desta vez eu quase quebrei a
perna.
Ela não quebrara a perna, mas torcera
bastante o tornozelo. Jessica apostava como
aquilo incharia feito um balão cheio de água
e ficaria roxo como um cacho de uvas. E a
sua escola tinha um jogo de basquete
importante no fim de semana. Jessica era
uma das melhores do time e adorava jogar,
mas agora ficaria sentada no banco.
Assistindo. Robbie era mesmo um idiota!
Idiota!
— Medrosa, medrosa, Jessica é
medrosa! — cantarolou Megan.
Robbie estava parado na porta do
quarto, com um largo sorriso no rosto, e
disse:
— Nada mau, hein? Ela ficou parecendo
uma bruxinha. Muito mais interessante do
que uma garotinha, não acha?
— A sua cara vai precisar de
maquiagem depois que eu acabar com você,
Robbie... para cobrir os machucados! —
gritou Jessica para o irmão.
O sonho de Robbie era ser maquiador
de artistas de filmes de terror. Ele sempre
dizia que, quando crescesse, iria para
Hollywood a fim de criar monstros para os
filmes. Jessica desejava que ele se
apressasse e fosse logo. Então ela
finalmente teria paz.
Robbie vivia treinando maquiagens de
terror e tinha muitos livros com fotos de
monstros, dos quais tirava as suas idéias. Na
maioria das vezes, treinava com Megan. Nos
braços e nas pernas da dela, Robbie já
pintara machucados tão autênticos que a
mãe quase chamara a ambulância.
Geralmente, porém, ele só transformava a
doce e pequena irmã de quatro anos numa
horrível criatura sobrenatural.
— É melhor você tirar essa maquiagem
da Megan antes que a Laura chegue — disse
Jessica para ele.
— Ah, por quê? — disse Robbie. —
Quero dar um bom susto na Laura também.
Megan podia ficar escondida atrás do sofá e
pular quando ela passasse pela...
— Você não devia usar Megan para
esse tipo de coisa — advertiu Jessica. — Ela
pode ter pesadelos.
— Então eu podia transformar você
num monstro, Jess. Nem demoraria muito.
Você leva tanto jeito — sugeriu Robbie. Mas,
quando viu que Jessica não estava rindo,
desistiu. Pegou Megan pela mão e foi
levando a irmã para o quarto a fim de tirar a
maquiagem, dizendo: — Está bem, está
bem...
— Eu gosto da maquiagem! — insistiu
Megan, sendo levada por Robbie. — Gosto
de ficar assustadora!
Apesar de tudo, Jessica sorriu. Embora
fossem chatos em certas ocasiões, Megan e
Robbie eram sempre cheios de surpresas.
Ela seguiu os irmãos, entrando no
quarto de Robbie, que parecia a Câmara de
Terror de um Museu de Cera. Havia
máscaras monstruosas de Frankenstein e de
lobisomem penduradas nas paredes.
Bonecos de vampiros, demônios e zumbis
nas estantes. Livros sobre toda espécie
imaginável de horrendas criaturas
sobrenaturais. Diferentemente de seus
amigos, Robbie não gostava dos filmes de
terror modernos. Preferia os clássicos em
preto-e-branco que gravava da tevê: A
criatura da lagoa negra, A múmia, O
monstro que desafiou o mundo, O fantasma
de Frankenstein, O filho de Drácula. Pilhas e
pilhas de fitas de vídeo cobriam o chão.
Jessica lembrou por que subira e foi
mancando até seu quarto, para procurar
pela janela algum sinal de Laura. Seu
tornozelo doía muito.
Já ia se debruçar na janela quando
ouviu o som da campainha. “Antes tarde do
que nunca”, pensou.
Desceu a escada capengando, pisando
cuidadosamente nos degraus com o
tornozelo dolorido.
Seus pais estavam recebendo Laura,
que disse:
— Desculpem o atraso.
Jessica notou que a voz da babá
parecia um pouco mais grave e profunda do
que o normal, como se ela estivesse
resfriada. Laura também parecia indisposta.
Normalmente, suas faces eram rosadas
como maçãs vermelhas, mas seu rosto
estava pálido. E Jessica notou que ela
arquejava. “Ela deve ter vindo correndo até
aqui”, pensou a menina. Ficou imaginando o
que atrasara tanto Laura.
— Você deveria ter ligado para nos
avisar, Laura — disse a mãe, com rispidez.
Laura recomeçou a falar, mas o pai não
tinha tempo para explicações e interrompeu:
— Não tem importância. Vamos
embora, ou perderemos a mesa que
reservamos.
— Até mais tarde! — gritou a mãe para
Jessica, Robbie e Megan. Depois saiu com o
pai escuridão afora.
Jessica acabou de descer a escada e
ficou ao lado de Laura, acenando para os
dois.
— Nunca pensei que você se atrasaria
tanto, Laura — disse ela com um sorriso
provocante, enquanto observava os pais
percorrerem apressadamente a alameda e
entrarem no carro.
Laura não retribuiu o sorriso. Em vez
disso, lançou a Jessica um olhar sombrio.
Jessica olhou surpresa para Laura.
— Eu só estava brincando, Laura —
disse.
Laura estava diferente, mal-humorada.
“Talvez ela não esteja se sentido bem, ou
tenha tido um dia difícil, pensou Jessica.
Acenando para eles, a mãe e o pai se
afastaram de carro pela rua.
Laura fechou a porta, trancou a
fechadura, passou a corrente e puxou a
cortina pesada com gestos decididos.
Jessica decidiu fazer um esforço para
trazer de volta o bom humor de Laura,
oferecendo a ela uma xícara de café. Mas as
palavras morreram na sua boca quando
Laura tirou o casaco. Ela viu manchas
vermelhas na blusa da babá.
— Laura, você está com manchas de
sangue — murmurou ela, desconcertada.
Laura olhou para o próprio corpo, e
disse friamente:
— Eu me cortei. Mas não foi grave.
Esqueça.
Depois tentou desajeitadamente cobrir
as manchas com o casaco.
— Ah... Tá legal — disse Jessica,
calmamente. Mas parecia que Laura estivera
envolvida numa espécie de luta. Não eram
só as manchas de sangue seco na blusa. O
resto da sua roupa estava amassado. E seu
cabelo, geralmente sempre em ordem,
estava despenteado. E aquilo no seu braço
direito não era um machucado? Jessica
pensou que Laura estivera brigando e não
queria falar sobre o assunto. Talvez, por
isso, tivesse se atrasado.
De repente, Jessica foi distraída por um
tumulto. Eram Robbie e Megan descendo a
escada.
— Oi, Laura! — gritaram os dois.
Normalmente tão falante, Laura fez só
um aceno com a cabeça. Robbie pareceu
não notar e jogou uma bala para ela.
— Pegue essa pastilha de hortelã! —
gritou ele.
Aquilo era rotineiro. Laura agarrava
muito mal, e Robbie adorava jogar coisas
para ela, só para ver tudo cair. Uma de suas
tiradas favoritas era: “Laura, nem resfriado
você consegue pegar”.
Só que Laura ergueu a mão depressa
como um jogador de beisebol pegando uma
tacada, e seus dedos agarraram a pastilha
em pleno ar.
— Puxa — murmurou Jessica para si
mesma. Seu olhar cruzou com o de Robbie.
Ele parecia tão espantado quanto ela.
Megan abriu a boca, incrédula, e,
estampando um largo sorriso, disse:
— Fantástico!
Mas Laura só deu de ombros.
Jessica decidiu tentar outra vez
levantar o ânimo da babá. Laura gostava da
MTV, e Jessica assistia à tevê com a babá
sempre que ela vinha tomar conta deles.
— Nosso programa musical favorito já
vai começar, Laura — disse ela, animada. —
Posso ligar a tevê?
— Não! — retrucou Laura.
Robbie se adiantou, passando por Jess.
— É isso aí, Laura! — disse ele. — Jess
vê demais a essas porcarias com bandas de
garotos.
Jessica fez uma careta para Robbie. Ele
detestava a MTV. Só ouvia a trilha sonora
dos filmes. Filmes de terror, principalmente.
Dizia que todas as bandas de garotos
tinham o mesmo som. Mas Jessica
discordava.
Robbie devolveu a careta. Depois,
virou-se para Laura, querendo continuar a
brincadeira de sempre, e disse:
— Laura, eu sei que hoje você pretende
preparar uma boa refeição para nós, mas
posso comer só batatas fritas e chocolate?
Assim você não precisa cozinhar. Tenho
certeza de que a mamãe e o papai não vão
se importar.
— Tudo bem — disse Laura. — Tanto
faz.
Jessica não conseguia acreditar
naquilo. Robbie sempre tentava aquela
jogada de “batatas fritas e chocolate para o
jantar” com Laura. Era uma de suas piadas
favoritas. Laura sempre dava um sorriso e
dizia que não. Às vezes, também fazia um
longo sermão sobre comida saudável,
enquanto Robbie fingia dormir. Ela jamais
concordara com a sugestão dele.
Olhando para o sorriso espantado na
cara de Robbie, Jessica viu que ele também
não conseguia acreditar que Laura houvesse
concordado dessa vez.
— Está certo — disse ele, correndo
para a cozinha antes que Laura mudasse de
idéia.
Megan olhou para a babá com um olhar
pensativo e perguntou inocentemente:
— Onde está a Laura?
A babá simplesmente franziu a testa
para Megan e passou por ela em direção à
sala.
Jessica olhou para a irmã caçula. Será
que ela estava brincando?
— Megan, o que você quer dizer com
isso? — perguntou. Megan deu de ombros e
disse:
— A Laura toma conta de nós, não é?
Depois saiu correndo em direção à
cozinha, sem dúvida para pedir que Robbie
compartilhasse as batatas fritas e os doces.
Com um suspiro, Jessica seguiu a irmã,
fazendo uma careta ao sentir uma pontada
de dor no tornozelo torcido. Megan
percebera alguma coisa que escapara a
eles? Jessica suspeitava que havia algo de
errado com Laura, mas Megan achava que a
babá nem era Laura. Que era outra pessoa.
Uma estranha. Dentro da casa deles.
Mas, não. Isso era bobagem. Claro que
era Laura. Ela só estava de mau humor.
Talvez houvesse brigado com o namorado.
Talvez estivesse estressada com o curso na
faculdade. Todo mundo tinha dias ruins, e
aquele era uns dos dias ruins de Laura.
Indo para a cozinha, Jessica pisou numa
pastilha de hortelã. Quando sacudiu a meia,
algo mais ocorreu a ela. Pegue essa pastilha
de hortelã!
Quando Robbie jogara a bala para
Laura, ela não só surpreendera a todos
agarrando a pastilha no ar como usara a
mão esquerda para isso. E Laura era destra.
Jessica tinha absoluta certeza disso. Elas
freqüentemente se sentavam para jogar
videogame, e Laura sempre segurava o
controle com a mão direita. Às vezes,
sentava para escrever cartas ou fazer
anotações no seu diário, e Jessica também
tinha certeza de que ela segurava a caneta
com a mão direita.
Jessica sentiu um tremor no estômago
e chamou:
— Robbie?
O irmão estava abrindo um grande
pacote de batatas fritas.
— O que é? — perguntou ele,
oferecendo o pacote para Megan, que tirou
um punhado e correu para a sala, com a
outra mão cheia de biscoitos de chocolate.
— Você notou algo estranho na Laura?
— perguntou ela.
— Você quer uma lista? — disse ele,
brincando. Jessica suspirou.
— Não. Só algo mais estranho do que o
habitual. Veja você — disse Jessica,
apontando para as batatas fritas e as barras
de chocolate que Robbie espalhara na mesa.
— A Laura sempre segue as regras da
mamãe e do papai, mas deixou que você
comesse toda essa porcariada em vez do
jantar.
— É bem esquisito, concordo — disse
Robbie.
— E, quando ela pegou sua bala, usou
a mão esquerda. Mas ela não é canhota, é?
Ela é destra.
— Eu nunca reparei — disse Robbie,
parecendo indiferente. — Talvez fosse a
mão que estava mais perto. A outra devia
estar no bolso. Ou desabotoando o casaco.
Ou limpando o nariz. Ou talvez ela seja...
qual é a palavra? Ambígua?
— Não é ambígua — disse Jessica. —
Você quer dizer ambidestra. Quem é capaz
de usar as duas mãos. Mas acho que a Laura
não é.
— Então, o que você está dizendo? —
perguntou Robbie, cuspindo batatas fritas.
Jessica não sabia se Robbie conseguia
ouvir sua voz acima do som que saía da
boca cheia, nem se valia a pena continuar.
Suspirou e disse:
— Nada. Mas... a Megan perguntou a
ela... Robbie levantou as sobrancelhas.
— Perguntou o que a ela?
— Onde a Laura estava — retrucou
Jessica.
— Verdade? — disse Robbie,
subitamente interessado. — Tem certeza?
Jessica assentiu e disse:
— Tenho. Mas ela só tem quatro anos...
— Mas dizem que não é possível
enganar as crianças pequenas como se
enganam as maiores e os adultos —
respondeu Robbie. — Quando coisas
estranhas acontecem, dizem que elas
percebem melhor do que nós.
— Quem diz? — perguntou Jessica,
curiosa.
— Li isso num dos meus livros. Por
exemplo, se uma casa fica mal-assombrada,
as crianças menores são as primeiras a ver
os fantasmas, sabia? — disse Robbie,
engolindo as últimas batatas. — Por que
você não vai ficar de olho na Laura,
procurando qualquer outro sinal estranho?
Vou pegar mais comida e encontro você
num minuto.
— Tá legal — disse Jessica.
Ela foi mancando até a sala. O
tornozelo estava inchando, como ela temia.
Normalmente, ela esperaria que Laura fosse
mais solidária. Agora nem adiantava
mencionar aquilo.
A babá estava sentada em posição
ereta numa cadeira no fundo da sala.
Apagara o abajur alto que ficava perto da
cadeira. Tinha um ar sinistro sentada ali nas
sombras, com o rosto oculto pela escuridão.
Parecia uma das criaturas dos livros e filmes
de Robbie. Jessica entrou e sentou-se no
chão diante da tevê. Apertou o botão com o
indicador, e a luz bruxuleante do aparelho
apareceu.
O televisor estava sintonizado na MTV.
Um dos vídeos musicais favoritos estava
tocando. Jessica aumentou o volume.
Laura pulou como se alguém houvesse
acendido um pavio de dinamite embaixo da
cadeira. Tampou os ouvidos com as mãos e
berrou:
— DESLIGUE... ISSO!
Jessica ficou tão chocada com a
explosão que seus dedos se atrapalharam
com o controle remoto, que acabou caindo
no chão.
Laura já estava realmente urrando:
— DESLIGUE ISSO AGORA!
Com os dedos trêmulos, Jessica pegou
o controle remoto e apertou o botão de
desligar. A tevê silenciou.
— Não ligue mais essa televisão —
ralhou Laura, olhando para Jessica.
A babá tinha uma aparência quase
mareada. Seus olhos verdes pareciam
querer fixar a menina no lugar. Era um olhar
tão intenso que Jessica esperava que um
raio laser saísse dali e detonasse sua
cabeça.
Olhos verdes?
Seria um truque da luz?
Não parecia ser. Jessica sentiu outra
vez aquele tremor no estômago.
Laura tinha olhos castanhos, e não
verdes.
Megan se aproximou lentamente de
Jessica e sussurrou:
— A Laura não teria feito isso. Por que
não podemos ter a Laura de volta?
A babá olhou irritada para elas e saiu
depressa da sala. Logo depois, Robbie
entrou e perguntou:
— O que está acontecendo? A Laura
estava mais verde do que um campo de
golfe quando passou por mim no corredor!
Jessica acenou para o irmão se
aproximar. Depois sussurrou:
— Sente aqui e converse comigo.
Vamos fingir que estamos jogando
videogame. O barulho vai abafar a nossa
voz e ela não ouvirá o que dissermos, se
tentar escutar.
Robbie assentiu, e Jessica ligou o jogo.
— Eu só liguei na MTV — explicou
Jessica. — Uma das minhas canções
favoritas começou a tocar. Eu sei que a
Laura gosta daquela música também,
porque na semana passada ela me contou
que tinha comprado o CD. Mas hoje ela
detestou a canção. Parecia que o sangue
dela estava fervendo por causa disso.
— Se era uma daquelas suas bandas de
garotos, sei como ela devia estar se
sentindo — disse Robbie, brincando.
Jessica deu um empurrão no irmão e
respondeu:
— A música deixou a Laura louca. Ela
parecia que ia desmaiar. E não é só isso. Os
olhos dela também estavam diferentes.
— Os olhos? Como? — perguntou
Robbie.
— Eles estão verdes — respondeu
Jessica. — Mas são castanhos, não são?
— Eu não lembro, Jess — disse Robbie,
suspirando dramaticamente. — Nunca
reparei. Você tem certeza?
— Absoluta — retrucou Jessica, com
firmeza. Robbie ficou em silêncio. Depois
disse devagar:
— Acho que sei o que está
acontecendo.
Jessica se inclinou para a frente,
interessada em ouvir. Mas a conversa entre
ela e Robbie foi interrompida pelo som de
um grito.
Seguindo o irmão, Jessica foi mancando
até o corredor o mais depressa possível e
encontrou a babá gritando com Megan. A
menina estava parada ali, com os olhos
arregalados e o rosto branco de medo. Seu
lábio inferior tremia.
Cheia de culpa, Jessica percebeu que
ela e Robbie estavam tão distraídos na
conversa que nem haviam percebido Megan
sair da sala.
— Por que você estava vasculhando a
minha bolsa? — gritou Laura. Jessica viu a
bolsa de Laura aberta no chão. Enquanto
isso, a babá continuou: — Não se atreva a
mexer nas minhas coisas! Se você ousar
mexer nas minhas coisas outra vez...
Jessica interrompeu:
— Mas, Laura, você sabe que a Megan
sempre gosta de ver o seu bloco de
desenho. Você sempre pede que ela tire o
bloco da sua bolsa...
Robbie se abaixou para consolar
Megan.
Mas a babá não ficou satisfeita em ser
interrompida.
— Vocês dois podem voltar para lá e
ficar quietos! — gritou. Agarrando
bruscamente Robbie e Jessica pelos braços,
ela empurrou os dois de volta para a sala.
Ali, o videogame ainda tocava alto.
— Mais barulho! — explodiu Laura.
Avançando, ela arrancou os controles do
jogo. Depois atirou o material ao chão e
pisoteou tudo repetidamente.
— Ei! — disse Robbie, zangado.
— Espere até o papai ouvir que você
fez isso — acrescentou Jessica.
Mas Laura continuou até que os dois
controles ficaram despedaçados, com os
fragmentos de plástico espalhados pelo
tapete.
— Agora sentem e calem a boca —
disse ela, ameaçadoramente.
Pelo canto do olho, Jessica viu que
Megan também viera até a sala.
A babá agarrou a mão de Megan e,
puxando a menina do chão, disse:
— E quanto a você... está na hora de
dormir.
— Não gosto de você como gostava da
Laura verdadeira — disse Megan, numa voz
trêmula.
Jessica e Robbie olharam um para o
outro e, depois, para Megan. Pálida, a
menina ia sendo arrastada pela babá para
fora da sala.
Normalmente, Megan fazia o maior
espalhafato para ir para a cama. Ela odiava
perder as coisas divertidas que Jessica,
Robbie e Laura faziam juntos. Geralmente
chorava e gritava enquanto subia a escada,
e também durante a meia hora que levava
até adormecer.
Mas, naquela noite, nada estava
normal. Megan parecia absolutamente
calma.
— Ela nem está chorando — comentou
Robbie.
— É porque está morrendo de medo —
murmurou Jessica. Depois, acrescentou: —
Você disse que achava que sabia o que
estava acontecendo. Conte logo. Você acha
que uma irmã gêmea má de Laura tomou o
lugar dela, ou algo assim? É isso?
— É pior — disse Robbie, sério. — Acho
que a nossa babá... é um doppelganger. É o
doppelganger da Laura.
— Um doppelganger? O que é isso? —
perguntou Jessica, confusa.
— É uma espécie de versão oposta da
pessoa — explicou Robbie. — Li num dos
meus livros que todo mundo tem um
doppelganger em algum lugar. Alguém
muito bom deve ter um doppelganger mau,
e vice-versa. E geralmente a gente
consegue diferenciar os dois, porque não
são completamente idênticos. Podem existir
alguns sinais, como cor dos olhos diferente,
os dentes, ou qualquer coisa... Mas é preciso
estar bem atento para conseguir notar.
— Robbie, você lê muitos livros de
terror idiotas! — disse Jessica. — Tudo isso
não passa de bobagem.
— Então dê a sua explicação —
respondeu Robbie, teimosamente.
Jessica suspirou e disse:
— Mas... está bem, continue. Conte
mais.
— Como eu disse, o doppelganger é o
oposto da pessoa. Eles odeiam o que a outra
pessoa ama, e vice-versa. Diz a lenda que,
quando os dois se encontram, o mais fraco
morre... mas sempre há uma luta feia.
Jessica arquejou de susto e disse:
— Isso explica o sangue na blusa da
Laura! Ela parecia ter lutado... Você acha
que ela pode ter matado a nossa Laura... a
Laura boa?
Robbie assentiu gravemente e disse:
— Isso acontece muito. Na verdade, há
uma página na internet...
Ele foi interrompido pelo toque do
telefone. Jessica correu para atender.
— Jess, querida... Está tudo bem?
Jessica reconheceu imediatamente a
voz do outro lado da linha. Com a voz
inundada de alívio, disse:
— Mãe!
— Tive uma sensação horrível de que
algo estava errado — continuou a mãe. — O
pai diz que é bobagem minha, mas tive um
pressentimento.
— Desta vez você acertou, mãe —
disse Jessica, aflita. — Alguma coisa está
errada! Muito errada!
Então a ligação foi cortada.
— Mãe? — disse Jessica, nervosa. —
Mãe! Alô?
Mas o fone na sua mão era apenas um
pedaço de plástico inútil, silencioso e morto.
— O telefone parou de funcionar —
disse ela para Robbie. Então a porta foi
aberta. A babá estava parada na entrada da
sala, segurando a grande tesoura que ficava
guardada na cozinha. Ela jogou a tesoura
numa cadeira com a ponta virada para
baixo, rompendo a almofada, e disse:
— Não suporto o som da campainha do
telefone. Isto aqui veio a calhar.
Pela cara de Robbie, Jessica viu que ele
achava a mesma coisa que ela: a babá usara
a tesoura para cortar o fio do telefone no
corredor. E eles não tinham celular. A mãe
proibira, porque lera algo sobre os riscos
para a saúde. Mas agora a saúde deles
estava correndo risco. Não havia jeito de
pedir socorro.
A babá atravessou a sala e afundou na
tal cadeira fora da luz. Jessica e Robbie
sentaram juntos no sofá, completamente
imóveis, sem ousar mexer um músculo. O
silêncio na sala chegava a parecer mais
ruidoso do que o jogo do computador.
Jessica só queria saber se Megan
estava bem. Sem telefone ou outro jeito de
comunicação com o mundo lá fora, nem ela
nem Robbie podiam pedir ajuda. Arriscou
um olhar de esguelha para o irmão, sabendo
que ele pensava a mesma coisa. O rosto de
Robbie estava profundamente franzido: ele
parecia estar tentando escutar algum
barulho produzido pela irmã caçula.
Finalmente, Robbie perguntou com voz
trêmula:
— Nós podemos ir à cozinha fazer uma
comida?
“Boa idéia, Robbie!”, pensou Jessica.
“Por favor, diga que sim, seja você quem for.
Assim poderemos sair desta sala e subir
para ver se a Megan está bem.”
— Façam o que quiserem — disse a
babá.
Jessica e Robbie deram um suspiro de
alívio e saíram da sala, tentando não
demonstrar que estavam com pressa. No
corredor, Robbie cutucou Jessica e
sussurrou:
— Ponha a chaleira no fogo. Assim ela
vai ouvir a água fervendo. Mas encha até a
borda, para levar um bom tempo antes de
ferver. Então poderemos subir e ver como a
Megan está.
Jessica concordou e entrou na cozinha.
Levou a chaleira até a pia e abriu a torneira
de água fria. Quando a vasilha ficou cheia,
ela acendeu o fogo. Depois, juntou-se a
Robbie, que aguardava na porta
gesticulando para que ela se apressasse.
— Podíamos tentar sair de casa para
pedir ajuda ao vizinho — disse ele.
— E deixar a Megan aqui? Com ela? —
espantou-se Jessica.
— Claro que não — retrucou Robbie. —
Podemos subir e pegar a Megan. Quando
descermos, ela virá conosco.
Jessica olhou para cima. O silêncio era
total.
— Espero que ela esteja bem — disse
Jessica, ansiosa.
Os dois subiram a escada, Robbie na
frente. Jessica seguia atrás o mais depressa
possível, tentando pôr o peso no corrimão
para aliviar o tornozelo torcido. Quando
chegaram ao topo, Robbie acendeu a luz, e
eles cruzaram rapidamente o corredor.
A porta do quarto de Megan estava
fechada. A maçaneta fora arrancada. O
trinco estava emperrado, e era impossível
abrir a porta.
Jessica soltou um arquejo de susto e
perguntou:
— Laura, ou seja lá quem for, arrancou
a maçaneta só com as mãos?
— Talvez — disse Robbie. — Tente
encostar o ouvido na porta e escutar. Dá
para saber se a Megan está bem?
Jessica aguardou, mas não ouviu coisa
alguma. Colocando as mãos em volta da
boca, começou a sussurrar o mais alto que
ousava:
— Megan... Megan!
Por um lado, Jessica tinha vontade de
arrombar aquela porta, só para ver se
Megan estava bem. Por outro, sabia o que
aconteceria se agisse assim: ela e Robbie
seriam pegos pela babá. Nesse caso, era
melhor deixar Megan ali até conseguirem
alguma ajuda.
Nada de resposta. O quarto de Megan
estava tão silencioso quanto um túmulo.
Robbie bateu de leve na porta e chamou:
— Megan?
Mas não houve resposta. Jessica olhou
à sua volta, desesperada. Devia haver algo,
qualquer coisa, que pudessem fazer.
— Vamos até o meu quarto — disse
Robbie de repente. — Vou mostrar a você no
computador uma coisa que talvez nos ajude
a salvar a Megan.
— O que é? — perguntou Jessica.
— Uma página que eu descobri, criada
por uns meninos. Tem muitos casos de
doppelgangers que invadem a vida das
pessoas e vão tomando o lugar delas, uma a
uma.
— Tem certeza de que não é uma
página falsa? — perguntou Jessica.
— Tenho — confirmou Robbie. — Os
relatos eram muito sérios. As pessoas
estavam apavoradas.
— Também podemos enviar umas
mensagens — disse Jessica, seguindo Robbie
até o quarto. — Talvez alguém venha nos
ajudar. Deve haver alguma maneira de
podermos nos comunicar com a polícia, ou
algo assim.
Quando Robbie acendeu a luz do
quarto, as máscaras de lobisomem, vampiro
e monstros pularam à vista. Mas, naquele
momento, o único monstro que tinha
importância para Jessica era o que estava lá
embaixo.
A tela do computador na mesa de
Robbie estava negra.
— Tenho certeza de que deixei esse
troço ligado — disse ele, mexendo o mouse
para a frente e para trás.
— Quanto tempo leva para ligar? —
perguntou Jessica, procurando escutar
algum movimento lá embaixo.
— Não demora muito — respondeu
Robbie. Ele pressionou a tecla, mas nada
aconteceu.
— Veja a tomada — disse Jessica. —
Talvez o computador esteja desligado da
parede.
Robbie se abaixou ao lado da cama,
afastando uma pilha de revistas de terror e
um busto plástico do Frankenstein. Então
soltou um arquejo.
— O que houve? — perguntou Jessica.
— Ela cortou o fio. Assim como fez com
o fio do telefone! Está cortando toda a nossa
comunicação. Precisamos sair de casa —
disse ele apressadamente.
— Nós não vamos deixar a Megan aqui
— disse Jessica com firmeza.
Os dois ouviram um grito no corredor
da entrada.
— Onde vocês estão?
— Estamos descendo — respondeu
Jessica, fazendo força para não gaguejar.
Virou-se para Robbie e perguntou: — O que
ela está fazendo aqui? Quer dizer... O que
você acha que ela quer aqui?
— Ora, todo doppelganger é o oposto
do seu original — disse Robbie lentamente.
— A Laura boa adora músicas de bandas de
garotos, e a má odeia as bandas. Então...
Ele engoliu em seco.
— O quê? — perguntou Jessica.
— Como a Laura boa queria cuidar de
nós e nos manter em segurança, acho que a
Laura má... vai querer nos fazer mal.
— Vocês dois! — gritou a babá lá
embaixo. — Desçam já!
— Finja que está tudo bem — sussurrou
Robbie.
Os dois saíram do quarto de Robbie e
desceram a escada.
A babá esperava lá embaixo,
parecendo muito zangada. Pegou no braço
de Robbie e começou a subir a escada
puxando o menino, enquanto dizia:
— Está na sua hora de ir para a cama.
Pode subir outra vez.
Jessica viu Robbie tentar se soltar, mas
aquela Laura era claramente muito mais
forte do que a Laura verdadeira. Quando
chegaram ao corredor, ele lançou um olhar
amedrontado para Jessica. Seus olhos
imploravam ajuda.
Jessica ficou ao pé da escada, tentando
desesperadamente descobrir o que fazer.
Sabia que precisava sair da casa e dar o
alarme antes que fosse tarde demais. Mas
também sabia que nunca conseguiria passar
pela porta da frente, trancada com cadeado
e corrente, antes de ser pega pela babá.
Então ela correu para os fundos da
casa.
A porta da cozinha estava trancada, e
não havia sinal da chave. A chave das
trancas das janelas também fora tirada.
Jessica saiu da cozinha e foi para o
corredor. O mesmo acontecera com as
janelas dali. Ela pensou em bater no vidro,
mas tinha certeza de que ninguém
escutaria. Se ao menos fosse noite de
churrasco ao ar livre na casa dos vizinhos,
haveria uma porção de gente no quintal
deles...
— Jessica!
A babá estava parada na porta.
Jessica ficou gelada quando ela
começou a andar em sua direção.
E, então, ouviu uma batida na porta.
— Espere aqui — disse a babá
rispidamente. Virou-se e saiu da sala,
fechando a porta.
Jessica correu até a porta para escutar.
Ouviu a corrente da porta da frente ser
removida. Depois, as duas pesadas
fechaduras serem giradas. Por fim, o
murmúrio de vozes e passos na escada.
Seus pais teriam voltado? Por que Laura
destrancara a porta da frente?
Jessica abriu a porta da sala
silenciosamente e olhou. O corredor estava
deserto. Com a corrente e a tranca abertas,
talvez ela pudesse fugir.
Jessica foi mancando pelo corredor o
mais depressa possível. O tornozelo torcido
enviava pontadas de dor pela panturrilha,
mas ela não ligou. Qualquer coisa era
melhor do que ser capturada por aquele
monstro.
Quando Jessica pegou a maçaneta para
abrir a porta, porém, sua mão foi encoberta
por outra.
Ela se virou e encarou os glaciais olhos
verdes da babá. Qualquer esperança que
ainda tinha de sair da casa se evaporou.
— Acha que eu vou deixar você sair
sozinha no escuro a essa hora da noite? —
disse a babá com um sorriso sinistro. —
Você pode correr tudo que é tipo de perigo...
Jessica percebeu que a babá estava só
criando tormentos para ela. Deixara que ela
pensasse que tinha chance de escapar. E,
então, acabara com a esperança dela.
— Hora de ir para a cama — sibilou a
babá. E, lentamente, começou a forçar
Jessica a subir a escada.
Jessica começou a achar que seria
morta pela babá naquele instante.
Imaginando que ela já matara seu irmão e
sua irmã, sentiu lágrimas arderem nos
olhos. Desesperadamente, pensou em outra
maneira de fugir. Não havia jeito de escapar
pela força. Ela precisava usar algum ardil. Se
fingisse concordar com a babá, talvez ela
abrisse a guarda e lhe desse chance de
pensar em outra coisa. Então teve uma
idéia. Valia a pena tentar.
— Você não precisa me empurrar,
Laura — disse Jessica. — Eu vou para a
cama, sim. Estou cansada demais para
resistir agora...
— Boa menina — disse a babá,
soltando o braço dela. Com um repelão,
Jessica subiu rapidamente a escada até o
quarto. Não sentia dor nenhuma no
tornozelo, que parecia ter ficado dormente
de medo, como o resto do corpo dela. No
patamar da escada, olhou para trás e viu a
babá subindo em perseguição, com uma
expressão sinistra.
Jessica entrou no quarto e correu para
o aparelho de CD.
Sim!
Era como ela lembrava. A capa do
último CD da sua banda de garotos favorita
estava em cima do aparelho de som. Isso
significava que o CD ainda estava lá dentro.
Ela apertou o botão para tocar e ouviu
o disco zumbir.
Depressa, depressa, pensou ela,
colocando o volume no máximo.
Com o rosto branco de fúria, a babá
entrou no quarto e fechou a porta. Enquanto
ela se aproximava de Jessica, a música
começou a sair pelos alto-falantes.
A babá parou e tapou os ouvidos.
Depois abanou a cabeça de um lado para o
outro violentamente. Por fim, saiu do quarto
e desceu correndo a escada.
Jessica se sentiu enjoada de tanto
alívio. Aumentou o volume tanto quanto
possível, mais alto do que jamais ousara. O
lustre pendurado no teto começou a
balançar, e os móveis do quarto
chacoalhavam feito castanholas.
“Logo”, pensou ela, “os vizinhos vão
reclamar. Eles chamarão a polícia... Ou virão
bater na porta aqui. Então tudo vai ficar
bem”.
Mas, de repente, a música parou, e a
casa inteira foi engolida pela escuridão.
Horrorizada, Jessica lembrou que
dentro da despensa havia uma chave que
desligava toda a eletricidade da casa.
Provavelmente a babá desligara essa chave.
Jessica foi mancando até o patamar e
olhou por cima do corrimão.
A babá estava parada no escuro ao pé
da escada.
— Por que você está fazendo isso? Vá
embora da nossa casa! — gritou Jessica para
ela.
A babá começou a subir. Degrau por
degrau, foi subindo a escada para pegar
Jessica.
O facho de luz de um poste na rua
entrava pela janela do patamar. A sombra
da babá subia vagarosamente pela parede,
chegando cada vez mais perto.
Jessica voltou cambaleando para o
quarto. “Desta vez é realmente o fim...”,
pensou ela.
A babá apareceu na porta. Jessica
queria gritar, mas sua garganta parecia
congelada pelo terror.
Então ela ouviu um barulho lá embaixo.
Alguém estava à porta da frente. Seria...?
— Laura? Por que as luzes estão
apagadas? O fusível queimou? Sim! Seus
pais estavam de volta!
A babá ficou parada, claramente
procurando decidir como lidar com aquele
imprevisto.
Então as luzes voltaram a brilhar. Seus
pais haviam ligado a chave. Quando a
música de Jessica tornou a tocar, a babá
correu para fora do quarto e desceu a
escada.
Com o coração aos pulos, Jessica
desligou o som. Ela queria gritar para o pai,
mas estava sem fôlego por causa do alívio.
Mal podia sussurrar, mal podia se mover.
Ouviu uma conversa lá embaixo e
apurou o ouvido.
— Desculpem isso ter acontecido. Eu já
estava procurando a caixa do fusível —
explicou a babá.
— Não se preocupe. Desculpe se fui
agressivo — disse o pai.
— Sem problemas — explicou a babá.
— Eu estou tão cansada que mal consigo
ficar em pé. Pode me dar uma carona até
em casa?
— Claro que sim — concordou o pai.
— Eu vou também — disse a mãe. —
Quero ver a reforma que você fez no seu
apartamento. Você me falou sobre isso, na
semana passada. É logo aqui virando a
esquina, não é? Quando voltarmos, vamos
ver as crianças.
— Não! Não vão com ela! — gritou
Jessica. Mas a voz saiu baixa e rouca.
Desesperadamente, ela voltou
mancando até o patamar da escada, com as
lágrimas escorrendo e o tornozelo latejando.
Lá viu seu reflexo no espelho. O rosto estava
branco como o de um cadáver. Parecia que
Robbie estivera treinando com ela sua
técnica de maquiador.
Mas era tarde demais. A porta da frente
bateu atrás deles.
Jessica desceu a escada o mais
depressa possível e abriu a porta da frente.
Mas o carro da família já estava saindo e
descendo a rua, com aquele monstro dentro.
Jessica não sabia se voltaria a ver seus
pais. Então, tudo ficou negro.
Quando Jessica voltou a si, a porta da
frente estava se abrindo. Com um arquejo,
ela tentou subir a escada depressa, mas
caiu estatelada no chão ao sentir uma
pontada de dor no tornozelo. Já ia deixar
escapar um grito preso na garganta, quando
viu...
O pai, parado na porta, sorrindo e
deixando a mãe passar. Os dois haviam
voltado depois de deixar a babá em casa. E
pareciam estar bem.
— O que você está fazendo deitada aí?
— perguntou o pai, com curiosidade. — Já
devia estar na cama.
Jessica tinha tanto o que explicar a
eles. Começou a gaguejar:
— Pai, nem sei por onde começar. Mas
você precisa chamar a polícia...
— A polícia? — repetiu o pai, parecendo
preocupado. — Venha cá.
Ele estendeu a mão para ajudar a filha
a se levantar.
Jessica esticou o braço, mas recuou,
amedrontada. Era a mão esquerda dele.
Ela olhou do rosto do pai para o rosto
da mãe, vendo os olhos recentemente
esverdeados do pai e os olhos recentemente
esverdeados da mãe.
Apavorada, Jessica se apoiou na perna
boa, levantou-se e começou a subir a
escada.
— Jess, o que é isso? — perguntou o
pai, indo atrás. Sua voz parecia um pouco
diferente.
Era como se ele estivesse resfriado.
Assim como acontecera com Laura.
— Fique longe de mim — disse Jessica.
— Eu sei quem vocês são.
— Quem somos nós? Jessica... você
teve um pesadelo? O pai tentou tocar nela
outra vez.
Jessica se afastou e disse:
— Vocês precisam que eu morra para
me substituir pela minha sósia maligna.
Ela se virou e foi mancando escada
acima, fugindo dos dois, mas parou ao ver
os dois vultos parados no topo da escada,
olhando para ela.
Jessica vacilou por um segundo sobre a
perna boa. Então, exclamou:
— Robbie? Megan? Vocês estão bem?
— Nós estamos muito bem, Jess —
retrucou Robbie, pegando a mão de Megan.
— E agora você também pode estar.
O irmão e a irmã de Jessica avançaram
para a luz. Seus olhos verdes brilhavam,
enquanto eles desciam a escada na direção
dela.
Digitalização/Revisão: Yuna

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