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Nick Shadow

Tradução
Rita Lagoeiro Sussekind
Título original: The Midnight Library — The Cat Lady
Série criada por Working Partners Limited Ilustração de
capa: David Wyatt

Direção editorial
Soraia Luana Reis

Editora
Luciana Paixão

Editor assistente
Thiago Mlaker

Assistência editorial
Elisa Martins

Preparação
Wilson Rioji

Revisão
Ana Cristina Garcia
Rebecca Villas-Bôas Cavalcanti

Criação e produção gráfica


Thiago Sousa

Assistente de criação
Marcos Gubiotti Juliana Ida

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

S537d Shadow, Nick


A dona dos gatos / Nick Shadow; tradução Rita Lagoeiro
Sussekind. — São Paulo: Prumo, 2009. — (Biblioteca da
meia-noite).
Tradução de: The midnight library: the cat lady ISBN
978-85-7927-017-8
1. Literatura infanto-juvenil inglesa. 2. História de terror.
I. Sussekind, Rita. II. Titulo. III. Série.
09-2280. CDD: 028. 5 CDU:
087. 5
Bem-vindo, leitor.

Meu nome é Nick Shadow, curador desta


instituição secreta: a Biblioteca da Meia-
noite.
Onde fica a Biblioteca da Meia-noite?,
você pergunta. Por que você nunca ouviu
falar dela? Para sua própria segurança, é
melhor que essas perguntas permaneçam
sem resposta. Contudo... desde que você
prometa não revelar onde descobriu o que
vem a seguir (não importa quem ou o que
exija isso de você), eu revelarei o que
mantenho nos cofres antigos. Após muitos
anos de pesquisa, reuni a mais assustadora
coleção de histórias já apresentada ao
homem. Elas irão aterrorizá-lo, e fazer com
que a carne de seu jovem esqueleto
estremeça. Talvez você devesse tomar
coragem e virar a página. Afinal de contas,
qual a pior coisa que poderia acontecer?...
Volume 4

A mulher dos gatos

Quem ousa ganha

Não acorde o bebê


A DONA DOS GATOS
— Gatinha medrosa! Gatinha medrosa!
As vozes assustadoras ecoavam nos
ouvidos de Chloe Forrester, enquanto ela
pedalava furiosamente pelo beco que dividia
as novas construções da cidade antiga. Suas
bochechas estavam queimando, ela
acelerou entre as altas grades de madeira
até chegar a um monte de grama aberto,
conhecido como o “Velho Verde”.
Chloe gritou em tom desafiador para
Heather e para o resto do pessoal.
— Eu não estou com medo! Só não
quero fazer!
— A Chloe é muito covarde! — gritou
Heather.
— Covarde! — Maggie e Emma
berraram juntas, aproveitando a deixa de
Heather.
— Calem a boca! — continuou Chloe. —
Calem a boca!
Hayley e Megan se uniram ao coro.
Agora todo o grupo estava gritando:
— Covarde! Covarde!
Chloe agarrou o guidão da bicicleta,
levantando-se do banco para passar por
cima de uma mureta e chegar ao gramado.
Ela pedalou com força, e teve dificuldades
para sustentar a velocidade no aclive. No
topo do monte, freou a bicicleta e virou. Ela
tinha 13 anos, era alta e magra, com
cabelos dourados e um rosto pálido e
sardento — só que agora as bochechas
estavam vermelhas e seus olhos azuis
ardiam com o vento frio.
Tudo começou quando Heather
desafiou Chloe a jogar pedras nas janelas da
Mulher dos Gatos e depois correr. Ela se
recusou. Então Heather a chamou de
medrosa e ela foi embora com sua bicicleta,
humilhada e irritada.
Chloe observou enquanto Heather e o
resto do grupo pedalaram até o final do
beco. Heather disse alguma coisa às
meninas, e todas riram. As bochechas de
Chloe enrubesceram de vergonha — sabia
que estavam rindo dela, e detestava isso.
Enquanto olhava para o grupo, desejou
jamais ter brigado com Tina. As coisas eram
muito mais simples quando as duas eram as
melhores amigas.
A desavença acontecera uns meses
antes — foi uma discussão tola por causa de
uma blusa. Chloe pegou-a emprestada de
Tina para ir a uma festa e, quando devolveu,
havia uma mancha que não saía de jeito
nenhum. Tina disse que a blusa estava em
perfeito estado quando a emprestou — mas
Chloe tinha certeza de que não tinha
manchado a blusa. Nenhuma das duas deu o
braço a torcer.
Chloe saiu irritada, dizendo a Tina que
nunca mais queria falar com ela. Depois,
para provocar ciúmes em Tina, começou a
andar com Heather e seu grupo de amigas,
em parte porque todos achavam que elas
eram legais — mas também sabia que Tina
não gostava delas. Ela achava que pareciam
ovelhas estúpidas — seguindo Heather por
todos os lados. Chloe não gostava muito de
Heather: ela era sarcástica, cruel e também
muito encrenqueira. Mas Maggie, Megan,
Emma e Hayley eram bacanas. Exceto pelo
fato de que sempre faziam tudo que Heather
mandava. Isso era muito irritante.
Chloe olhou para baixo, para o caminho
que havia seguido. A parte com as novas
construções se alongava, bonita, limpa,
organizada e crescendo para o lado
esquerdo do Velho Verde. Para o lado
direito, espalhava-se a velha parte vitoriana
da cidade. Uma estrada dividia o velho do
novo. Era pavimentada e tinha cercas em
ambos os lados. À esquerda, belas portas de
madeira levavam aos jardins da parte nova,
e à direita havia um conjunto antigo de
cercas — decrépitas e entrelaçadas com
vinhas e plantas espinhosas. Na opinião de
Chloe, parecia que as pessoas que puseram
as cercas não queriam que ninguém de uma
parte da cidade entrasse na outra.
Mas isso não freava os gatos! Havia
muitos gatos. A maioria deles vinha da casa
da senhora Tibbalt, um lugar sujo localizado
logo atrás da cerca que limitava as
fronteiras da parte antiga da cidade. A
senhora Tibbalt era um pouco estranha. Era
conhecida como a Mulher dos Gatos. Às
vezes Chloe e as meninas olhavam por cima
da alta cerca e viam o jardim cheio desses
animais. E às vezes Heather balançava a
cerca e gritava para assustá-los. Chloe não
gostava disso — ela achava maldade.
A casa da senhora Tibbalt era um
santuário para o que pareciam centenas de
gatos. Eles ficavam por todos os lados.
Pretos e malhados, machos e fêmeas, velhos
e jovens — de filhotes com olhos brilhantes
e unhas afiadas a velhos gatos ferozes que
sibilavam e exibiam seus dentes amarelos
quebrados a qualquer um que se
aproximasse.
Desde que Chloe se lembrava, corriam
histórias assustadoras sobre a mulher.
Foi Tina quem contou as primeiras
histórias, há anos, quando a família de Chloe
se mudou para a cidade.
— É verdade, é tudo verdade — disse
Tina, com os olhos arregalados, no primeiro
dia de aula. — A Mulher dos Gatos sequestra
crianças.
Chloe não se convenceu.
— Por que ela faria isso? — perguntou.
A voz de Tina se tornou um sussurro.
— Ela leva as crianças para a adega, e
faz picadinho delas para transformar em
comida de gato — disse Tina. — Como você
acha que consegue alimentar tantos gatos?
Chloe encarou Tina, desconfortável.
— Eu não acredito!
Tina riu.
— Pode perguntar a qualquer um! —
disse. — Mas é melhor tomar cuidado. Se
você se aproximar da casa, ela aparece e
oferece doces para convencê-la a entrar. E
depois que você entra, ela oferece uma
bebida que a deixa fraca e sonolenta.
— E depois? — perguntou Chloe, com
os olhos arregalados em sinal de alerta.
— Depois ela arrasta você para a
adega suja e escura — afirmou Tina. — E
sua cabeça vai batendo pelos degraus, e
você não pode fazer nada. Ela tem uma
máquina de moer enorme lá embaixo. E
você fica deitada indefesa enquanto a
senhora Tibbalt liga a máquina. E o aparelho
começa a estalar e fazer barulho, e você vê
uma chave enorme girando. E depois a
Mulher dos Gatos te coloca na máquina,
lentamente, primeiro pelos pés. E a pior
parte é que, apesar de não conseguir se
mover, você continua consciente enquanto é
esmagada em pedacinhos!
Chloe não havia acreditado que a
Mulher dos Gatos realmente transformava
crianças em comida de gato em sua adega,
mas mesmo assim preferiu manter sempre
uma distância segura da casa. A senhora
Tibbalt não era de se ausentar da casa, mas,
quando saía, Chloe a observava com
atenção enquanto ela descia a rua com a
ajuda de uma bengala, toda enrolada em um
casaco pesado e mofado e um cachecol. E
mesmo depois de tantos anos, Chloe
continuava atravessando a rua para não
chegar muito perto da casa.
Havia algum tempo ela fizera essa
confissão para Heather e o resto do grupo.
— Eu sei que é só uma senhora. E
essas histórias a seu respeito não são
verdadeiras, mas mesmo assim ela me dá
arrepios.
Heather gozou de Chloe.
— Isso é patético — Heather disse. —
Quantos anos você tem? Seis? — as outras
se juntaram às gargalhadas de Heather,
apesar de Chloe ter certeza de que elas
também tinham medo da Mulher dos Gatos.
— Você precisa crescer um pouco —
Heather afirmou. — Eu sei como pode curar
o seu medo da Mulher dos Gatos — ela subiu
na bicicleta. — Vem, vamos nos divertir um
pouco.
— Que tipo de diversão? — perguntou
Chloe, rapidamente.
— Bem, para começar nós podemos
jogar pedras na porta da frente da casa dela
— disse Heather. — Isso seria engraçado.
— Eu não quero fazer isso — Chloe
respondeu. — O que ganharemos com isso?
É maldade.
— Divirta-se um pouco, medrosa —
Heather disse, enquanto pedalava para
longe.
O resto do grupo foi atrás, deixando-a
sozinha. Chloe ficou com raiva de Heather
pelas gozações, e irritada com aquelas
quatro garotas estúpidas que seguiam os
passos de Heather como se fossem zumbis.
Ela sabia que Tina tinha razão quanto às
meninas, e isso fazia com que sua sensação
de isolamento e solidão piorasse ainda mais.
Chloe sentiu o estômago embrulhar, e
lágrimas quentes se formaram em seus
olhos; mas estava determinada a não
chorar.
E agora se encontrava na mesma
posição outra vez, sozinha no topo do Velho
Verde enquanto o resto do grupo ria dela.
São todas idiotas, disse para si mesma
enquanto olhava para baixo. Mas se eu não
fizer o que querem, elas vão infernizar a
minha vida. Ela franziu o rosto. Eu vou
colocar um fim nisso de uma vez por todas,
resolveu Chloe, virando sua bicicleta e
descendo novamente pelo monte de grama.
— Olhem meninas! A medrosa está de
volta — zombou Heather,
— O que a medrosa quer? — perguntou
Emma.
Maggie se intrometeu também.
— Você deveria correr para casa, para
o colinho da mamãe, Chloe — ela disse. — A
Mulher dos Gatos pode pegá-la!
— Ah, cale a boca! — irritou-se Chloe.
— O que? — disse Hayley, — Você ficou
corajosa de repente?
Chloe a ignorou.
— Eu cumpro esse desafio estúpido —
disse ela, olhando para Heather. — Não
tenho medo. Eu só acho uma coisa patética,
só isso.
Heather olhou para ela de forma
arteira.
— Você tem que passar pelo portão —
afirmou. — No jardim da frente.
— Que seja — disse Chloe, tentando
soar como se não se importasse a mínima
com isso. Eu vou fingir que estou dando o
meu melhor, mas vou errar a janela e mirar
na parede, pensou. — Farei isso — disse ao
grupo. — É totalmente patético e imaturo.
Heather olhou para ela, e Chloe a
encarou por um instante.
— Tudo bem, se você fizer direito — um
sorriso se esboçou no rosto de Heather,
enquanto olhava para as outras. — Eu já
contei sobre a vez em que fui na casa da
Mulher dos Gatos? — perguntou.
— Não acredito! — engasgou-se
Megan.
Heather fez que sim com a cabeça.
— É verdade — disse. As outras
olharam para ela, impressionadas. — Ela
tinha saído para fazer compras e deixou a
porta da frente aberta. Então eu decidi
entrar e dar uma olhada em volta.
— Como era? — perguntou Emma,
quase sem fôlego.
Heather olhou para Chloe.
— Nojenta — respondeu. — Era escura,
fedorenta, e muito suja. E todos os quartos
estavam cheios de montes mofados de
jornais e revistas presos por uma corda. E
havia sacolas de supermercado lotadas de
lixo; e sacos pretos com mais lixo
transbordando. E havia latas de comida de
gato abertas por todos os lados. E todo o
lugar cheirava a xixi de gato. O cheiro dava
a impressão de que os animais usavam a
casa inteira como um banheiro gigante.
Ouviam-se gemidos e sons que
indicavam repulsa do resto do grupo, mas
Chloe achava que Heather estava
inventando tudo isso para enojar as outras
meninas.
Heather continuou com sua história
assombrosa.
— Os tapetes eram todos grudentos e
esponjosos embaixo dos pés — disse ela. —
E o papel de parede estava todo estragado,
porque os gatos afiavam as unhas ali. Havia
animais por todos os lados! E eles ficaram
me olhando, e alguns deles sibilaram para
mim, mas isso não me incomodou. Se algum
tivesse tentado me atacar, eu teria dado um
belo chute!
— Mas a Mulher dos Gatos poderia ter
voltado e flagrado você! — engasgou
Hayley.
Heather olhou para ela.
— E daí? — disse. — O que ela iria
fazer? Eu não tenho medo dela — olhou para
Chloe, como se estivesse esfregando isso na
cara dela. — Depois fui lá para cima —
continuou. — Eu achei o quarto dela. Só que
não tem uma cama, como as pessoas
normais. Havia apenas uma enorme cesta
redonda de vime no chão, cheia de lençóis
sujos. É lá que ela dorme. E havia uma caixa
enorme com areia de gato ao lado da cesta
— ela deu outra olhada profunda. — E a
caixa estava usada!
Maggie arregalou os olhos.
— Você está querendo dizer que...
Heather fez que sim com a cabeça.
— Era a privada dela!
Houve gritos de horror liberados por
todas, exceto Chloe.
— Isso foi tão nojento que virei as
costas e saí de lá — disse Heather. — Aquele
lugar me deu arrepios.
— Eu não acredito que possa ser tão
ruim assim — interrompeu Chloe. —
Ninguém pode morar assim! E não creio que
ela durma numa cesta de gatos!
Heather deu de ombros.
— Acredite no que quiser — disse. —
Eu sei o que vi — ela lançou um olhar de
provocação a Chloe. — Então, quando você
vai realizar a aposta?
Chloe olhou com ar desafiador.
— Amanhã, depois da aula.
Heather sorriu.
— Estaremos esperando.
— Estarei lá — disse Chloe. Ela pisou
forte no pedal e conduziu a bicicleta pela rua
que levava à sua casa. Ela tinha certeza de
que Heather deveria estar falando mal dela
para as outras nesse instante, dizendo que
não iria aparecer.
Bem, dessa vez ela estava errada.
Mas, mesmo assim, Chloe se sentiu um
pouco trêmula enquanto pedalava de volta
para casa. Mais do que tudo, por raiva de
Heather e de seu grupo idiota, mas uma
parte dela estava nervosa pelo que tinha
concordado em fazer no dia seguinte.

Era uma tarde monótona, nublada e


chuvosa enquanto Chloe passava pelo
cruzamento com sua bicicleta e deixava a
parte moderna da cidade, em direção à
velha. Dobrou a esquina da rua em que a
senhora Tibbalt morava. Ela viu Heather e as
outras ali paradas com suas bicicletas no
extremo oposto da estrada, esperando.
Chloe pedalou até elas e parou.
Heather deu um passo à frente. Ela
estava segurando alguma coisa na mão. Era
uma pedra enorme — quase do tamanho de
seu punho.
— É isso que você vai atirar na janela
da Mulher dos Gatos — disse Heather.
Chloe olhou para aquele pedregulho.
— Você disse pedras!
Heather deu de ombros.
— E daí? É uma pedra grande — disse.
Ela olhou para as outras, que responderam
com um aceno de cabeça. — Todas nós
concordamos — começou Heather — que, se
quiser que ninguém mais chateie você, essa
é a pedra que tem que jogar na janela. Mas
você é quem sabe, é claro. Pode desistir, se
quiser.
Chloe sabia que uma pedra daquele
tamanho destruiria qualquer janela que
atingisse. Ela examinou cada um dos rostos.
Todos tinham a mesma expressão de
ansiedade e petulância. Se se recusasse a
jogar a pedra, as provocações começariam
outra vez. Se ela concordasse, iriam se
divertir um bocado com o ataque à janela da
Mulher dos Gatos. De qualquer forma, Chloe
soube naquele instante que detestava e
desprezava cada uma daquelas pessoas.
Mas não podia recuar. Era tarde demais
para isso.
Ela pegou a pedra da mão de Heather.
— Jogue com força — disse Heather,
com um brilho maldoso nos olhos.
Chloe apoiou a bicicleta na mureta. A
pedra parecia enorme e pesada em sua
mão. Sem dizer uma palavra, virou-se e
caminhou pela rua. Ela só queria acabar
logo com isso.
As casas eram todas cercadas por altas
árvores folhosas e estava sombrio e úmido
sob os galhos gotejantes. A residência da
senhora Tibbalt ficava atrás de um pátio
quebrado, depois de uns arbustos
espinhentos muito altos. Chloe olhou entre
os galhos de espinhos — tentando enxergar
pelas janelas imundas a velha senhora. Mas
estava escuro demais. Ela observou através
de seu casaco de capuz; a chuva fria agredia
sua pele.
Ela podia sentir que estava sendo
observada pelas outras enquanto se
aproximava do velho muro de ferro,
quebrado e gasto. Ele era preso a um pilar
de tijolos. Sobre a base de tijolos havia um
gato de pedra, quebrado e manchado. E o
portão tinha a silhueta de um gato de ferro,
com seus contornos destruídos pela
ferrugem.
Chloe se encolheu e passou pelo
portão. Ela respirou fundo e observou o
pátio malcuidado até a velha casa. Em um
dos lados, notou um galpão caindo aos
pedaços, semiescondido sob as árvores.
Como sempre, a casa se encontrava sob as
sombras da escuridão. Chloe olhou para as
janelas cinzentas. Caminhou
cuidadosamente pelo pátio, desviando dos
espinhos, atenta a tudo.
Parou por um instante, olhando para a
pedra. Era preta e denticulada — imaginou
que deveria pesar um quilo ou mais. Olhou
sobre seu ombro. Podia ouvir ruídos
distantes vindos das meninas — uma
indicação de como se comportariam com
ela, caso desistisse do desafio.
Ela se voltou para a casa e apertou a
pedra que tinha nas mãos. Levantou o braço
e o lançou para trás, preparando-se para o
arremesso. E então mirou uma das janelas
laterais menores, sentindo-se péssima por
isso.
A cortina de rede se mexeu. Chloe
congelou, seu coração estava acelerado.
Através da fresta da janela, viu o rosto de
um gato preto, que a encarava com seus
luminosos olhos verdes. Um segundo gato
se aproximou e sentou ao lado do primeiro;
o rosto, malhado, misturava as cores
marrom e dourada, e seus olhos eram
amarelos.
Eles a observavam.
Chloe não podia jogar a pedra naquela
janela, pois os gatos iriam se machucar com
o vidro quebrado. Depois mais felinos
apareceram atrás do resto dos vidros das
janelas — até que todas as janelas tivessem
rostos que observavam através de olhos
amarelos, olhos verdes e olhos dourados.
Ela ouviu um barulho vindo de trás.
Concluiu que deveria ser a turma de
meninas, escalando a cerca para observar.
Seus pensamentos aceleraram
enquanto os gatos olhavam para ela.
— Eu não posso! — respirou. Em
seguida, ouviu novamente o tom zombeteiro
que vinha de trás da cerca. Se ela não
jogasse a pedra, as meninas nunca mais a
deixariam em paz.
Respirou fundo, tentando acalmar o
ritmo acelerado do coração. Os gatos a
observavam. Ela engoliu em seco, lançou
seu braço para trás e jogou a pedra. Mas ela
mirou baixo de propósito, com o objetivo de
não acertar nenhuma das janelas.
O pedregulho bateu contra as ervas
daninhas sob as janelas.
Houve um barulho seco e perturbador,
seguido de um grito profundo de dor quando
a pedra atingiu alguma coisa escondida na
planta.
Chloe cambaleou para a frente, com
seu estômago se contraindo em uma bola
de choque apavorado.
Ela viu um gato pequeno deitado
contra a parede em uma posição estranha,
com a cabeça torcida. A pedra estava
próxima. Havia sangue manchando o pelo
do animal.
Chloe sentiu-se tonta e enjoada. Ela
estava com medo de se aproximar do pobre
animal ferido, mas sabia que precisava fazer
isso.
Ela se jogou sobre seus joelhos,
afastando cuidadosamente as folhas
espinhosas do bicho. Trêmula, esticou o
braço e tocou no pelo macio, evitando o
sangue. O tórax estreito do gato subia e
descia rapidamente, liberando cada vez
mais sangue através do nariz e da boca.
— Gatinho...? — sussurrou Chloe, com
a voz rouca, a garganta apertada e
queimando. — Foi sem querer... — um choro
doloroso cortou sua garganta como uma
pedra afiada. Seus olhos se embaçaram com
as lágrimas.
A respiração do gatinho ferido perdeu a
uniformidade. Chloe sabia que estava
morrendo. Já tinha ajoelhado, tremendo,
enjoada — extremamente horrorizada com o
que tinha feito.
Chloe gritou.
Ela se levantou cambaleante e correu
desordenadamente pelo pátio. Enquanto
lutava para sair pelo portão quebrado, pôde
ouvir atrás dela os gritos de dúzias de gatos
enfurecidos.
Chloe estava apavorada.
As meninas esperavam por ela, e
Heather sorria.
— Você matou mesmo — disse. — Foi
muito legal!
— Saia de perto de mim — Chloe a
empurrou com força. Heather perdeu o
equilíbrio. Suas pernas se enrolaram com a
bicicleta e ela caiu de costas, com um grito
de raiva e dor.
Chloe sequer notou as outras — que se
afastaram, enquanto ela correu pela rua
onde havia deixado sua bicicleta. Lançou-se
sobre a bicicleta e pedalou para longe
daquele pesadelo horrível o mais rápido que
podia — com lágrimas correndo pelo rosto
enquanto ia para casa na chuva.
Ela conseguiu passar pela porta, subir
as escadas e chegar ao banheiro antes de
vomitar. Ajoelhou-se com a cabeça sobre a
privada, com o corpo inteiramente
dominado pelo sentimento de culpa. Ela
ouviu sua mãe chamando pelas escadas.
Chloe lavou o rosto e secou com uma
toalha, e respondeu com a voz mais normal
que conseguiu.
— Sou eu.
— Você está bem? — gritou a mãe.
— Estou. Tudo bem — respondeu
Chloe.
Ela ouviu vagamente alguns
comentários sobre guardar a bicicleta direito
— e em seguida veio o silêncio. Sentou-se
no chão do banheiro, encostando a
bochecha na fria bancada de porcelana do
lavatório.
Chloe fechou os olhos, e então viu
novamente aquilo que a deixara apavorada
no jardim da Mulher dos Gatos — o que
tinha feito com que ela instintivamente
corresse para se salvar e escapar com vida
daquele lugar horroroso.
Levantou-se com dificuldade, puxou a
válvula de descarga e se inclinou sobre o
lavatório. A imagem do próprio rosto no
espelho a deixou horrorizada. Sua pele
estava manchada, marcada pelos traços de
lágrimas e suor. O cabelo estava grudado na
pele.
Ela abriu a torneira e observou
enquanto a água enchia a pia. Depois
fechou-a e pôs o rosto na água.
Erguendo a cabeça, Chloe se olhou no
espelho mais uma vez. Agora estava
simplesmente pálida — com os cabelos
claros parecendo laços em suas bochechas e
testa. O olhar assombrado estava
começando a desaparecer de seus olhos.
Olhos.
Como os olhos que tinham...
Não!
Ela não ia pensar nisso.
Uma determinação fria e sólida estava
resultando de sua tristeza. Ela não queria
mais saber de Heather e do resto do grupo.
Definitivamente queria manter distância
delas.
Ela estremeceu. Sentia-se suada e fria,
e suas roupas grudavam de um jeito
incômodo no corpo.
Suas pernas pareciam mais fortes
agora.
Ela precisava de um banho.
Um longo banho quente para tentar
lavar seus sentimentos de dor e perda. E
depois resolveria uma coisa muito
importante. Algo que deveria ter feito há
muitas semanas.

Chloe abriu o portão e empurrou sua


bicicleta pelo caminho. Ela a apoiou contra a
parede e subiu à entrada da casa. Respirou
fundo e tocou a campainha.
Durante o longo período que esperou
até que alguém viesse atendê-la, teve
tempo para imaginar todas as coisas
desagradáveis que poderiam ser ditas a ela
quando a porta fosse aberta.
Ela ouviu o barulho de um passo por
trás da porta que se abria.
Sua ex-melhor amiga Tina estava na
entrada. Ela era mais baixa do que Chloe, e
não tão magra; seus cabelos escuros tinham
um corte redondo que contornava a face
amigável. Não que a expressão fosse
amistosa enquanto encarava Chloe. Ela
olhou para a antiga amiga como se fosse
alguma coisa nojenta que encontrasse na
sola do sapato.
— Oi — disse Chloe de forma tímida.
— Oi — a voz de Tina era fria e sem
expressão. Elas não se falavam há sete
semanas e cinco dias. A boca de Chloe
estava seca. Ela tentou sorrir.
— Como você está? — perguntou
Chloe. A voz de Tina foi dura e breve.
— Bem, obrigada — ela se encostou
contra a porta, olhando nos olhos da
visitante, com um olhar de monotonia
satisfatória, como se estivesse esperando
que Chloe acabasse logo com isso para que
pudesse entrar e voltar às atividades
normais.
Chloe engoliu em seco.
— Eu vim pedir desculpas pela blusa —
disse.
— Já está um pouco tarde para isso,
você não acha? — retrucou Tina.
Uma voz chamou de dentro da casa.
Era a mãe de Tina.
— Quem é?
— Ninguém — respondeu Tina. — Chloe
Forrester. — Sua mãe não respondeu.
Chloe respirou fundo.
— Olhe — ela disse. — Eu vim aqui
para dizer que compro uma blusa nova para
você. Tenho um pouco de dinheiro
guardado, e você pode ficar com tudo — seu
coração estava acelerado. — Queria voltar a
ser sua amiga — ela engoliu em seco. —
Mas se você ainda me odiar, e nunca mais
quiser a minha amizade, é só falar e saio da
sua vida para sempre.
Houve uma longa pausa.
Chloe gostaria que o chão se abrisse e
a engolisse. Essa tinha sido uma péssima
ideia. Tina jamais iria perdoá-la. Depois de
um momento, Tina respirou fundo.
— Talvez eu estivesse errada quanto à
blusa — disse. — Vamos esquecer isso —
abriu a porta de maneira receptiva. — A
mamãe fez torta de maçã. Quer um pouco?

Chloe e Tina estavam sentadas de


pernas cruzadas na cama de Tina, comendo
torta de maçã com creme de chantilly.
Durante um longo tempo Chloe se
sentiu muito feliz por conversar
amigavelmente com Tina, descobrindo o que
vinha acontecendo nas últimas semanas, e
pela facilidade com que a amizade voltou.
Parecia até que a briga só tinha durado um
dia ou dois. E Chloe se sentia aliviada por
poder agir naturalmente — e não precisar
parecer descolada o tempo todo a fim de
impressionar Heather e as meninas.
Mas, gradualmente, Chloe percebeu
que estava falando sobre o desafio de
Heather.
Tina balançou a cabeça.
— Às vezes você é tão idiota — ela
disse, enquanto Chloe explicava que tinha
sucumbido às provocações incessantes de
Heather e aceitara jogar a pedra na janela
da Mulher dos Gatos.
Chloe olhou para ela.
— Eu ainda não contei a pior parte —
disse, com a voz derrotada.
— Você quebrou a janela?
Chloe balançou a cabeça.
— Não, eu errei a mira de propósito.
Mas acertei um gatinho — ela se encolheu
ante o olhar de choque estampado no rosto
da amiga. — Eu não o vi — disse Chloe, com
lágrimas correndo por suas bochechas. —
Ele estava atrás de umas plantas.
Tina levantou as mãos para cobrir o
rosto.
— Ele se machucou muito? —
perguntou.
Chloe confirmou com a cabeça, e
sentiu um nó na garganta, enquanto se
lembrava da cena.
— Você ligou para a Sociedade
Protetora dos Animais? — indagou Tina.
Chloe balançou a cabeça.
— Já era tarde demais.
— Chloe! — exclamou Tina.
Chloe mordeu o lábio. Ela não
conseguia olhar para o rosto de Tina.
Enquanto falava, mal reconhecia a própria
voz.
— Ele já estava quase morto — disse,
quase sem fôlego. — Todo contorcido e
sangrando. Mas depois... virou a cabeça...
e... olhou para mim — ela estava tremendo
novamente, revivendo o horror daquele
momento terrível.
Ela encarou os olhos de Tina.
— Seus olhos não eram normais —
sussurrou, sem coragem de traduzir em
palavras o horror que vinha aterrorizando-a
desde então.
— Como assim? — perguntou Tina,
murmurando. Chloe olhou para ela.
— Ele não tinha olhos normais de gato
— disse Chloe. — Tina, ele tinha olhos
humanos!

Naquela noite, Chloe não conseguiu


dormir. Seus olhos já estavam acostumados
à escuridão, e ela percebia com facilidade as
diferentes formas no quarto. A coisa que
mais queria na vida era que esse dia horrível
acabasse, mas seu cérebro não desligava.
Era como se houvesse um farol na cabeça, e
sua luz forte e brilhante acendesse os
cantos mais sombrios e assustadores de sua
mente.
Tina tentara convencê-la de que
imaginara aquela coisa assustadora dos
olhos do gato. Não podia ser real. Devia ter
sido um truque da luz ou coisa parecida.
Fosse o que fosse, como Tina havia dito,
gatos não têm olhos humanos —
simplesmente não têm!
E Chloe concordou com ela.
Mas mesmo assim não conseguia
dormir. Para não parecer fraca na frente de
Heather e das outras meninas, ela havia
feito uma coisa que resultou na morte de
um gatinho. E Heather se impressionara. Ela
sorrira. “Você matou mesmo”. Chloe deu de
ombros.
Ela se lembrou de algo que sua mãe
dissera uma vez: “Uma consciência pesada
jamais dá sossego até que as coisas sejam
consertadas, até que a pessoa corrija seus
erros”.
É por isso que, não consigo dormir,
Chloe pensou consigo mesma. Eu preciso
corrigir o meu erro. Mas como a pessoa
pode corrigir um erro que matou um animal
inocente? O que pode fazer? A resposta veio
de maneira muito clara à sua mente. Eu
tenho que ir à casa da senhora Tibbalt e
assumir a culpa. Devo oferecer alguma
espécie de ajuda. Preciso fazer o possível.
Chloe decidiu que faria isso no dia
seguinte depois da aula.
De alguma maneira, iria consertar seu
erro.
Heather e as meninas esperavam por
ela na porta da escola no dia seguinte.
— É Chloe, a assassina de gatos —
disse Heather, enquanto Chloe se
aproximava. — É assim que vamos chamá-la
a partir de agora. Gostou, Assassina?
Chloe a ignorou, mas Heather não
gostava de ser ignorada. Ela entrou na
frente de Chloe.
— Saia da minha frente — disse Chloe
de forma seca e direta.
— Não fique assim — afirmou Heather
com um sorriso torto. — Ficamos
preocupadas com você, depois que correu
daquele jeito. Mas ficamos muito
impressionadas. Quer dizer, quebrar a janela
é uma coisa. Mas matar um dos gatos da
velha, isso foi incrível!
— Me deixou com nojo, se você quer
saber — disse Chloe.
— Ah. Que pena — salientou Heather.
— Você já está melhor?
Chloe lançou um olhar frio a Heather.
— Não — respondeu.
Heather sorriu, olhando para as outras.
— Dêem a boa notícia a ela agora —
disse Heather.
— Nós fizemos uma votação — afirmou
Emma. — Você é oficialmente parte do
nosso grupo.
Chloe olhou para ela, incrédula.
— Você acha que ainda quero fazer
parte desse grupo patético de vocês? —
perguntou, furiosamente.
— Qual é o seu problema, Assassina? —
indagou Maggie.
— Meu problema é que são doentes,
todas vocês! — Chloe olhou para elas. — Eu
não quero ter vínculo com nenhuma de
vocês. Saiam da minha frente!
— Nossa... melhor tomarmos cuidado
— provocou Hayley. — A Assassina está com
raiva da gente. Tomara que não haja
nenhuma pedra por perto!
Houve muitas risadas.
Chloe passou por elas e cruzou o
estacionamento dos professores. Heather foi
atrás dela.
— Que pena que se sinta assim —
gritou, em tom de desdém. — Mas pelo
menos você nos deu uma ótima ideia para
uma nova brincadeira. — Chloe acelerou,
tentando se afastar da voz sarcástica. —
Chama-se “Jogar Pedras nos Gatos” — gritou
Heather. — Nós vamos jogar hoje, depois da
aula, caso esteja interessada. Você marca
pontos, um ponto se atingir um gato com
uma pedra, cinco pontos se o gato se
machucar feio, e dez se ele morrer — sua
voz levantou. — Ei, Assassina, você já tem
dez pontos a mais que todas nós. Caso
mude de ideia, nos vemos na casa da
Mulher dos Gatos, hoje à noite, depois da
aula — sua voz se encheu de risadas. — E
traga muitas pedras.

Chloe pedalava com força enquanto


sua bicicleta acelerava pela estrada. As
aulas já estavam encerradas por hoje. Ela
precisava chegar à casa da senhora Tibbalt
antes de Heather e do grupo — precisava
alertá-la sobre os planos das meninas. Os
gatos tinham de ser levados para o interior
da casa, para longe da brincadeira cruel das
meninas.
Ela parou e desceu da bicicleta. Chloe
percebeu que, no local em que o gatinho
estava, as ervas daninhas haviam sido
cortadas. Imaginou a pobre senhora, sozinha
e assustada, saindo de lá, na noite anterior,
pegando o corpo do gato e carregando-o
para dentro da casa em seus braços.
Deixando a bicicleta de lado, ela olhou
para cima. Não havia nenhum rosto felino
por trás dos vidros agora. Nenhum olhar
acusatório.
A determinação de alertar a senhora a
respeito do grupo era tão forte que Chloe
até esqueceu o medo enquanto cruzava o
caminho.
Ela viu uma forma escura passar
depressa pelo gramado e desaparecer na
lateral da casa. Um gato. Outro a observava
desconfiado através da sombra do telhado.
Seus olhos se cruzaram por um instante,
depois o animal se escondeu nas sombras.
Chloe respirou fundo e se aproximou da
porta da frente, cuja tinta descascava e
onde havia uma caixa de correio enferrujada
e inutilizada. Ela procurou a campainha, mas
não encontrou. A aldrava de ferro era em
forma de um gato saltando. Chloe se esticou
para alcançá-la. Era pesada e dura, mas se
esforçou e conseguiu movê-la.
Ela esperou, seu coração batia forte e
rápido no peito.
Ninguém atendeu à porta. Ela bateu
novamente, e depois olhou para suas mãos,
que a ferrugem havia sujado de vermelho
escuro.
De repente, ela ouviu um barulho
dentro da casa — o som perturbador de
diversos gatos.
Mas, mesmo assim, ninguém veio
atender à porta.
Chloe se encolheu, abrindo a caixa de
correio. A entrada da casa era escura, com
paredes marrons e uma escadaria marrom
no final.
— Senhora Tibbalt? — gritou pela caixa
de correio. — Olá! A senhora está aí? Eu
preciso falar com você!
Ela se levantou novamente, mexendo
na aldrava. Havia painéis encardidos de
vidros coloridos. Chloe os esfregou com sua
manga para limpar um pouco da sujeira. Ela
olhou através do vidro, mas não conseguia
ver muita coisa — e não havia nenhum sinal
de movimento no corredor sombrio.
Olhou para o relógio, e a frustração e a
ansiedade cresciam. A velha quase não saía
de casa — ela tinha de estar lá; então, por
que não atendia à porta? Chloe estava
ficando agitada — se Heather e as meninas
realmente fossem até a casa da senhora
Tibbalt para jogar pedras nos gatos, então
restavam poucos minutos... elas chegariam
a qualquer instante.
Ela correu para as janelas da entrada.
Esfregou o vidro imundo com as mãos e
tentou enxergar através do véu cinza das
cortinas de rede. Conseguia ver algumas
formas em movimento lá dentro — baixas,
no chão. Gatos. Mas será que a senhora
Tibbalt estava lá? Ela bateu no vidro.
Alguma coisa voou na direção de seu
rosto, surpreendendo-a, e fazendo com que
cambaleasse para trás — um enorme gato
preto, com os olhos em chamas, com a boca
vermelha completamente aberta enquanto
sibilava para ela de forma agressiva.
Enormes garras afiadas arranharam a
janela.
Será que era o mesmo gato que havia
visto na janela na tarde de ontem?
Será que ele reconhecera Chloe?
Será que a detestava pelo que havia
feito?
Ela correu para a lateral da casa. Havia
um beco ali, mas era bloqueado por um
portão preto trancado com um cadeado que
há tempos se tornara permanentemente
fechado pela ferrugem.
Mas Chloe não podia desistir agora. Ela
precisava tentar fazer alguma coisa.
A madeira em volta do cadeado estava
apodrecida. Ela girou bruscamente o objeto
de metal enferrujado. Ele se soltou e o
cadeado caiu no chão, provocando um
barulho forte ao atingir o piso. Empurrou o
portão lentamente, fazendo com que as
dobradiças rangessem. Ela entrou pelo
longo beco estreito. No final, podia enxergar
um pedaço do jardim dos fundos.
Estava cheio de gatos.
Gatos deitados sob o sol da tarde.
Gatos se lambendo. Gatos simplesmente
sentados, observando. Gatos brincando uns
com os outros. Gatos afiando as unhas.
Gatos perambulando. Um mundo inteiro de
gatos.
Um instante mais tarde, cada um dos
olhos em forma de amêndoa a encarava
desconfortavelmente.
Chloe engoliu em seco. Havia algo
muito perturbador no jeito como a olhavam.
Ela começou a caminhar lentamente. Alguns
gatos sumiram de vista, foram para os
fundos da casa. Outros simplesmente
observaram enquanto ela se aproximava do
jardim.
Uma pequena forma escura silvou e
correu para longe dela. Um gato marrom
escuro, magro e com o rosto afinado. Ele
provavelmente estava deitado escondido na
escuridão.
— Desculpe, gatinho — disse Chloe. —
Eu não queria assustá-lo.
Ela saiu no jardim. Mais gatos correram
para longe dela, formando uma tempestade
colorida em direção à porta dos fundos da
casa. Os que não fugiram a olhavam
atentamente.
Alguns silvavam e arqueavam a coluna,
com os rabos erguidos como arbustos
espinhosos, expondo os dentes afiados.
Chloe movia-se lentamente,
determinada a não assustar os animais. Ela
foi em direção à porta.
— Senhora Tibbalt? — chamou. — A
senhora está aí?
Continuou sem resposta.
Ela virou e olhou para uma cozinha
pequena e desbotada. Boa parte do chão
era dominada por fileiras de vasilhas de
comida e água. Havia um cheiro forte de
comida de gato, mas Chloe percebeu logo
que, apesar de o lugar ser ensebado e
velho, e precisar desesperadamente de uma
nova pintura, não era nada como o que
Heather havia descrito.
Alguns dos gatos que estavam na
cozinha correram pela porta. Outros, mais
corajosos, abominavam-na de seus locais
privilegiados — sobre a geladeira e em
prateleiras altas.
A porta da cozinha para o corredor
estava entreaberta. Ela alcançou a
maçaneta, e engasgou-se assustada quando
a porta abriu sozinha. Uma sombra escura
preencheu a entrada. Chloe cambaleou para
trás e seu pé se prendeu em uma das
vasilhas de gato, fazendo com que ela
escorregasse e caísse causando um
estardalhaço com as vasilhas de comida e
de água espalhadas pelo chão.
— Meu Deus do céu! — disse uma voz
gentil, porém assustada. — Que susto você
me deu!
Era a senhora Tibbalt. Ela carregava
uma caixa de papelão nos braços.
— Desculpe — engasgou-se Chloe. —
Mil desculpas — ela se levantou
atrapalhada. — Eu bati na porta, e chamei,
mas a senhora não ouviu, e precisava falar
com você, então entrei pelos fundos — ela
olhou a bagunça aos seus pés. — Eu sinto
muito, desculpe pela bagunça.
— Eu estava na adega — disse a
senhora. — Buscando comida para os meus
bebês — ela entrou mancando pela cozinha
e pôs a caixa na mesa. Era uma caixa de
comida enlatada de gato.
As histórias assustadoras que ouvia no
pátio da escola vieram à mente de Chloe —
a enorme máquina de moer. Agora que ela
estava frente a frente com a senhora Tibbalt
essas histórias pareciam absolutamente
ridículas.
E eu tive medo dela durante todo esse
tempo por causa dessas bobagens, pensou.
Eu sou tão idiota!
Observando a caixa de comida de gato,
ela deu uma risada involuntária, e sufocou-a
colocando a mão sobre a boca. Não havia
nada a temer ali.
A mulher olhou para Chloe. Ela usava
saia e blusa. Sem o casaco com capuz,
parecia praticamente normal. Mancou de
volta para a porta e pegou uma bengala que
estava no canto.
A senhora Tibbalt se apoiou em sua
bengala, franzindo a testa, enquanto
observava Chloe.
— Eu conheço o seu rosto — disse.
— Sou Chloe Forrester — respondeu a
menina. Ela apontou para a porta dos fundos
e depois para o jardim. — Eu moro na
cidade.
A senhora Tibbalt fez um sinal positivo
com a cabeça.
— Você é uma das meninas que ficam
olhando pela minha grade, não é? — seus
olhos se encolheram, em sinal de
desconfiança. — Você gosta de assustar os
meus bebês. Isso não é gentil, sabia?
Chloe engoliu em seco e fez que sim
com a cabeça.
— Sim, eu sei. E peço desculpas. Mas,
por favor, me escute, senhora Tibbalt.
Existem outras meninas, e elas estão vindo
para cá. Elas vão jogar pedras nos seus
gatos. É um jogo horrível que inventaram. A
senhora tem que trazer os gatos para
dentro, senão eles vão se machucar.
A velha senhora lançou um olhar a
Chloe.
— Por que alguém inventaria um jogo
tão cruel como esse? — disse. Chloe tinha a
estranha impressão de que a senhora
Tibbalt sabia exatamente o que ela fizera no
dia anterior.
Chloe sentiu um remorso muito grande
dentro de si.
— Eu estive aqui ontem — disse
lentamente. — As meninas me desafiaram a
jogar uma pedra na sua janela — sua voz
tremeu de vergonha. A mulher a observou
sem falar nada. — Eu errei a janela, mas
acertei um gatinho — engoliu em seco e
olhou nos olhos da senhora. — Eu matei o
gatinho.
— O nome dela era Sophie — disse a
senhora Tibbalt. — Ela tinha seis meses de
idade. Eu a ganhei de uma família que não a
queria. É assim que ganho a maioria dos
meus bebês. Eu dou casa e cuidados a todos
eles.
Lágrimas se formavam por trás dos
olhos de Chloe.
— Eu sei que estou pedindo desculpas
desde que cheguei — disse com a voz
engasgada. — Mas é verdade, estou mais
arrependida do que consigo expressar.
— Eu acredito em você — disse a
senhora Tibbalt. — Agora é melhor nos
certificarmos de que suas amigas não façam
nenhum mal.
— Elas não são minhas amigas — disse
Chloe com firmeza. A senhora Tibbalt sorriu.
Ela caminhou até a porta dos fundos e
assobiou. Segundos depois, os gatos
começaram a passar correndo, ignorando
Chloe enquanto ocupavam rapidamente o
chão da cozinha. Mais gatos vieram
correndo de outros cantos da casa, e logo
toda a superfície estava preenchida por
gatos, se esfregando nas pernas da senhora
Tibbalt e de Chloe, ronronando e miando.
A senhora Tibbalt fechou a porta dos
fundos.
— Pronto — disse. — Todos sãos e
salvos — ela olhou para Chloe com um
sorriso. — Eles acham que está na hora do
jantar, você pode me ajudar a alimentá-los,
se quiser. Assim podem começar a perdoá-la
pelo que fez. O abridor de lata está na
gaveta ao lado do fogão.
Chloe retribuiu o sorriso, ela estava
gostando muito daquela mulher.
— E a senhora vai me perdoar
também? — perguntou.
— Claro que vou — respondeu a
senhora Tibbalt. — Vamos, temos muitas
bocas para alimentar.
— Claro — disse Chloe. Ela caminhou
pelo mar de corpos peludos.
Durante os caóticos minutos seguintes,
ela ajudou a senhora Tibbalt a servir a
comida dos gatos. Logo, cada uma das
vasilhas era ocupada por uma ou duas
cabeças peludas, e toda a cozinha estava
dominada por ronronados satisfeitos.
— Agora é hora de nós ganharmos
alguma coisa — disse a senhora Tibbalt. —
Eu geralmente faço chocolate quente a essa
hora — sorriu para Chloe. — Você gosta de
chocolate quente?
Chloe confirmou com um aceno de
cabeça.
— É uma delícia — disse a senhora
Tibbalt.
Chloe observou enquanto os gatos
comiam e a senhora Tibbalt fazia o
chocolate quente em uma panelinha no
fogão. Ela serviu duas canecas.
— Nada como um chocolate quente em
uma tarde fria — disse a senhora Tibbalt. —
Venha, vamos nos sentar.
Ela levou Chloe por um longo corredor
até a sala. A decoração era bastante
antiquada, com papel de parede escuro, um
sofá e poltronas cobertos por estampas
florais desgastadas. As paredes eram
cobertas por fotos de gatos. Gatos de
porcelana encontravam-se no consolo da
lareira e fotos e desenhos de gatos estavam
dispostos em diversos porta-retratos
antigos.
A senhora Tibbalt sentou-se em uma
poltrona e Chloe acomodou-se no canto do
enorme sofá. Ela sentia-se confortável e
muito à vontade com a amigável senhora.
Tomando um gole de chocolate quente,
olhou para a senhora Tibbalt.
— Está delicioso — disse a menina. A
senhora Tibbalt sorriu.
— É um receita secreta — afirmou.
Chloe se ajeitou no sofá macio.
— Quantos gatos a senhora tem? —
perguntou. — Eu sempre imaginei, mas não
é fácil, contar os gatos.
— Eu tenho 67 — respondeu a senhora
Tibbalt, observando-a com olhos brilhantes e
receptivos sobre sua xícara de chocolate
quente. Ela franziu o rosto. — Não, 66,
agora. Eu estava esquecendo da Sophie.
— Eu faria tudo para que isso não
tivesse acontecido — disse Chloe.
— O que passou, passou — afirmou a
senhora.
— Eu fui muito burra.
— Foi um acidente — disse a senhora
Tibbalt em tom gentil. — Você mesma disse
que não teve intenção de machucar Sophie.
Chloe balançou a cabeça.
— Não foi isso que eu quis dizer —
disse a menina. — Eu quis dizer que fui
muito burra por ter tido medo da senhora
durante todo esse tempo — ela sorriu. — A
senhora não é nem um pouco assustadora.
— Ora, obrigada, Chloe! — disse a
senhora Tibbalt.
— Eu sempre quis um gato — disse
Chloe. — Mas meu pai é alérgico — olhou
para a senhora. — Será que posso vir visitá-
la de vez em quando? Eu adoraria ajudar
com os gatos.
— Eu acho uma ótima ideia —
respondeu a senhora Tibbalt.
— Eu posso vir às vezes depois da aula
— disse Chloe. Ela bocejou. — Desculpe! —
Deu um sorriso leve, sentindo-se aquecida e
confortável, e um pouco sonolenta.
— Eu adoraria — afirmou a senhora
Tibbalt. — Eu não recebo muitas visitas.
— Eu poderia visitar bastante — disse
Chloe. Suas pálpebras estavam começando
a ficar muito pesadas. Ela piscou com força,
tentando lutar contra a sonolência. — Eu
estou tão sonolenta. Não é estranho?
A senhora Tibbalt e toda a sala
estavam saindo de foco. Chloe não
conseguia entender por que estava tão
sonolenta de repente. Talvez fosse por ter
tido uma noite tão agitada — ou porque o
sofá era tão confortável, e o chocolate, tão
morno e doce.
— Eu sei que a senhora já me perdoou
— disse Chloe, com a voz quase falhando, os
membros pesados e a cabeça começando a
fraquejar. — Mas você sabe o que eu
gostaria mesmo de fazer?
— Não, querida, diga o que gostaria de
fazer.
— Eu queria corrigir o meu erro —
suspirou Chloe. — Eu gostaria de...
compensar... o que... o que... eu fiz...
As palavras da senhora Tibbalt vieram
através de uma densa fumaça cinza.
— Eu tenho certeza de que você vai
conseguir arrumar um modo de pagar a sua
dívida.
O queixo de Chloe caiu no peito. Seus
olhos se fecharam. Ela percebeu vagamente
a xícara ser tomada de suas mãos. Ela
tentou combater o cansaço.
— Eu preciso... ir... para... casa... logo...
— murmurou.
— Oh, ainda não, minha pobre
menininha dorminhoca. Você parece tão
boazinha, que acho que vou ficar com você
para mim.
Com grande esforço, Chloe levantou a
cabeça e forçou seus olhos a se abrirem. A
senhora Tibbalt estava inclinada sobre ela e,
através das rugas em seu rosto, os olhos
amarelos e brilhantes de um gato a
observavam.

Chloe acordou. Um vento frio soprava


sobre seu rosto. Ela estava encolhida no
sofá. A senhora Tibbalt não se encontrava
mais lá.
Ela piscou os olhos, imaginando o que
teria acontecido e quanto tempo se passara.
Então lembrou-se de ter se sentido muito,
muito cansada. Ela deveria ter caído no
sono. Sorriu, ainda sentindo-se cansada e
relaxada. Bocejou e tentou levantar-se.
Seu corpo não parecia obedecê-la.
Tentou levantar-se umas duas ou três vezes,
mas ela caiu de quatro em todas elas.
Balançando a cabeça para tentar clarear a
mente, arrastou-se pelo sofá e de algum
jeito conseguiu chegar ao carpete.
O ar frio vinha da porta aberta. Ela se
arrastou até a entrada. A porta da frente
estava aberta. Chloe conseguia ver que
estava escurecendo lá fora. Sua mãe
deveria estar preocupada. Ela precisava ir
para casa.
Novamente, Chloe tentou se levantar
— mais uma vez, ela caiu de quatro.
Ela foi em direção à porta aberta,
batendo nas paredes, enquanto se arrastava
lentamente pelo chão. Chloe saiu no frio
degrau de pedras.
Olhou para o jardim cheio de ervas
daninhas e espinhos por todos os lados.
Tentou imaginar aonde a senhora Tibbalt
teria ido — e por que a simpática velhinha a
deixara dormindo no sofá.
Mas sua principal preocupação era
voltar para casa.
Ela se arrastou para descer o degrau. O
movimento no canto do olho chamou sua
atenção. Tudo estava estranhamente
embaçado, mas muito brilhante e tingido
com uma luz esverdeada, de maneira que as
formas se mexendo destacavam-se com
clareza daquele fundo confuso.
A Mulher dos Gatos estava empurrando
uma bicicleta em direção ao galpão que caía
aos pedaços sob as árvores.
É a minha bicicleta, pensou Chloe. Ela
observou enquanto a senhora Tibbalt abria a
porta do balcão e empurrava a bicicleta para
dentro. Durante o breve instante em que a
porta esteve aberta, Chloe viu muitas outras
bicicletas — e uma pilha de bolas e
brinquedos, uns por cima dos outros. Alguns
pareciam estar ali há anos. Em seguida a
porta se fechou.
Uma lembrança sinistra veio à sua
mente. Algo assustador! A imagem do rosto
da velha senhora olhando para ela —
encarando-a com olhos de gato!
Chloe partiu em direção ao pátio da
frente, a cabeça ainda girava, com os
membros mal a obedecendo enquanto corria
para o portão semiaberto.
De algum jeito ela passou sem ser
vista.
Casa. Tenho que ir para casa, Chloe
pensou consigo mesma. Minha casa é
segura.
Logo estava no beco, e em seguida no
portão dos fundos de sua casa. Mas ela não
conseguia alcançar a maçaneta.
Vai ver que eu machuquei meu braço,
pensou, enquanto tentava novamente.
Concentrando-se, ela pulou para alcançar a
maçaneta, e, para sua surpresa, chegou ao
topo do portão com grande facilidade. A
janela da cozinha brilhava — ela podia ver
sua mãe no fogão.
Ela pulou de cima do portão e correu
pelo pátio de entrada.
— Mamãe! — chamou. — Mamãe, sou
eu! Eu não consigo entrar. Me ajuda! — mas
a voz estava estranha e sua mãe não
parecia conseguir enxergá-la.
A porta abriu de repente.
— Mamãe! — Chloe exclamou, aliviada.
Sua mãe olhou para baixo e a encarou,
surpresa.
— O que está fazendo aqui? —
perguntou. — O que você quer?
— Eu quero entrar — chorou Chloe,
frustrada, novamente. Ela não conseguia
entender as próprias palavras.
— Eu não tenho nada para você —
disse a mãe. — Não pode vir aqui pedir
comida. Se meu marido o visse, ele iria
chutá-lo até a cerca.
— Com quem você está falando,
senhora Forrester? — Chloe ouviu uma voz
familiar e olhou para a porta da cozinha.
Tina estava lá.
— É um gato — disse a mãe de Chloe.
— Eu o ouvi arranhar a porta e miar.
Chloe não entendia o que estava
acontecendo. Será que Tina e sua mãe
faziam uma brincadeira boba com ela?
Braços se esticaram para pegá-la, e ela
sentiu que estava sendo suspensa no ar. O
cheiro de sua mãe era muito forte. Tina se
aproximou e acariciou sua cabeça.
— Não é bonito? — disse. — O pelo é
praticamente da mesma cor do cabelo de
Chloe.
Ela tentou falar, mas de sua boca só
saíam sons incoerentes.
— Nossa Senhora, que criatura mais
barulhenta! — disse a mãe de Chloe. — Eu
tenho certeza que não é de ninguém da
nossa rua. Acho que deve ser um dos gatos
da senhora Tibbalt — ela sorriu e acariciou
entre as orelhas de Chloe. — É melhor nos
livrarmos dele logo, antes que Chloe chegue
em casa. Se ela vir, vai querer ficar com o
gato — franziu o rosto. — Onde ela está? Já
deveria estar em casa.
— Mãe, eu estou aqui! — miou Chloe.
— Estou bem aqui!
— Ela me disse que tinha uma coisa
importante para fazer depois da aula —
disse Tina. — Tenho certeza de que já deve
estar chegando.
A senhora Forrester sorriu.
— Estou feliz em ver que vocês duas
fizeram as pazes — ela disse. — Tina, será
que poderia me fazer o imenso favor de
levá-lo à casa da senhora Tibbalt e descobrir
se é dela?
Chloe se debateu e uivou enquanto
Tina retirava-a dos braços de sua mãe.
— Você tem razão — disse Tina,
segurando Chloe com firmeza. — Ele
realmente é barulhento! E se sacode todo.
Vou levá-lo de volta agora mesmo.
Chloe desistiu de se debater. Já estava
tonta de exaustão pelo choque do que
estava lhe acontecendo. Ela se pendurou
sem ação no colo de Tina enquanto era
carregada pelo jardim, e de volta ao beco.
— Quem é o gatinho lindo, hein? —
brincou Tina, acariciando sua cabeça. —
Chloe adoraria ficar com você, sabia? Isso
mesmo. Ah, isso mesmo.
— Eu sou... a Chloe... — disse Chloe,
em tom de tristeza.
— Mas como você fala! — disse Tina. —
Está com fome? Perdeu-se da sua mãe? Não
se preocupe, estou te levando para casa
agora mesmo.
Chloe desistiu de tentar falar. Ela
precisava de uns instantes de descanso para
pensar em um jeito de explicar tudo a Tina.
Carregando Chloe cuidadosamente em
um dos braços, Tina esticou o outro e bateu
na porta com a aldrava em forma de um
gato pulando; a porta se abriu quase
imediatamente.
— Olá — disse a senhora Tibbalt.
— Nós encontramos esse gato, é um
dos seus? — perguntou Tina.
A senhora Tibbalt sorriu.
— Sim, é minha! — ela respondeu. — É
a minha pequena Sophie. Já estava
preocupada com ela — ela esticou os braços
e pegou Chloe do colo de Tina.
Só mais alguns segundos, Chloe
pensou, depois já vou estar melhor e
poderei explicar a elas quem eu sou.
— Obrigada por trazê-la de volta —
afirmou a senhora Tibbalt. — Foi muito
gentil de sua parte.
— Sem problemas — disse Tina. Ela
virou de costas e caminhou pelo pátio.
— Sophie sua fujona levada! —
repreendeu a Mulher dos Gatos, enquanto
fechava a porta. — Já dá para perceber que
terei que mantê-la trancada em segurança
durante um tempo... você não pode fugir o
tempo todo, pode?
Ela carregou Chloe para uma porta
debaixo das escadas. Abriu-a e jogou Chloe
numa sala escura. A porta se fechou e tudo
ficou preto.
Chloe se sentiu assustada e perdida.
Ela podia ouvir a senhora Tibbalt se
afastando da porta — e escutava o barulho
de todos os outros gatos na casa: garras
estalando no piso de madeira; ronronados
de contentamento; gatos falando mal da
senhora Tibbalt, enquanto ela se movia
entre eles.
Seus olhos logo se acostumaram à
escuridão. Uma sequencia de degraus de
madeira levava até a adega. Chloe desceu a
escada correndo, esperando
desesperadamente encontrar uma saída. O
chão de concreto era frio sob os seus pés.
Ela olhou cuidadosamente em volta,
cheirando, com as orelhas apontadas para a
frente, com seus bigodes tremendo.
Alguma coisa fora feita com ela —
devia aceitar isso agora. Algo monstruoso.
Algo inacreditável.
Ela correu distraidamente pela adega,
buscando um jeito de se livrar — de voltar
para casa. Tinha certeza de que, se
conseguisse escapar, poderia encontrar um
modo de contar a sua mãe o que havia
acontecido. Então tudo ficaria bem outra
vez. Sua mãe saberia o que fazer.
Ela viu uma janela alta e estreita.
Estava coberta por uma camada de papelão,
mas havia um pequeno feixe de luz no canto
superior onde o papelão começara a se
soltar.
Chloe pulou para a janela. Ela
conseguiu se equilibrar no parapeito fino,
enquanto arranhava o papelão.
Preciso ir para casa. Preciso da minha
mãe, pensou freneticamente.
Podia ouviu os gatos miando e
arranhando a porta da adega — como se
todos, de alguma forma, soubessem que ela
estava tentando escapar.
Suas unhas rasgaram o papelão. Ele se
soltou e caiu.
O desespero tomou conta de Chloe —
podia enxergar as plantas, mas elas
estavam na frente de uma cerca de arame.
Empurrou o arame com força. Ele cedeu um
pouco e um buraco se abriu em um dos
lados — mas não era largo o suficiente para
que ela passasse.
Ela ouviu os passos da senhora Tibbalt
se aproximando da porta da adega. A porta
se abriu. Os gatos estavam vindo pegá-la —
ela só tinha mais alguns segundos para
escapar.
Ela lutou bravamente contra o arame
— ignorando a dor quando era arranhada, e
sua pele, perfurada. Fez um esforço final
para se livrar.
Ofegando e fraca depois de tanta luta,
ela se viu nos fundos da casa. Respirando
aliviada, correu pelo jardim em direção à
cerca de trás.

Heather estava decepcionada e


irritada. Ela olhou sobre a cerca, com os
bolsos cheios de pedra. Não havia um único
gato pulguento no jardim da Mulher dos
Gatos. Parecia que seu novo jogo teria de
ser adiado para outro dia.
De repente, ela viu uma única gata
pequena correndo pelo jardim, para longe
da casa — vinha bem em direção à cerca.
— Eu vou acertar em cheio! — disse,
lançando a mão para trás. A pedra em sua
mão era do tamanho de um punho fechado.
Lançou o braço para a frente e a pedra
voou.
— Isso! — disse Heather, triunfante. —
Dez pontos!
QUEM OUSA GANHA
— Iáááá!
Mark Trent rodava o joystick e apertava
os botões do controle do videogame. A
figura de samurai na tela pulava e rodava
num emaranhado de cores. Ouvia-se
barulho de algo sendo cortado, um grito e
um rugido eletrônico. O samurai descansou.
Seu último oponente, o Mestre Ronin, o
bravo, estava deitado, decapitado em uma
piscina vermelha de sangue que se
espalhava. A tela explodiu em uma massa
de fogos e o fliperama começou a tocar uma
música de triunfo.
Mark sorriu ao lado de seu melhor
amigo, Anil Jaffrey, e ficara mais satisfeito
quando seu recorde subiu para 27 —
igualando mais uma vez o de Anil.
— Que legal! — disse um dos meninos
da multidão que se formara em torno dos
dois amigos. Ele olhou para Anil. — Vai, faz
mais um pouco — disse.
Mark se afastou do jogo e Anil tomou o
seu lugar. Ele olhou para todos aqueles
rostos reunidos.
— Qual é o maior recorde de todos? —
perguntou.
— Um amigo nosso disse que o Conor
fez 30 — respondeu um dos meninos.
Anil ergueu uma sobrancelha.
— Moleza — disse, convencido.
Mark sorriu enquanto se encostava a
um dos lados da máquina do jogo.
Ele olhou para uma máquina próxima,
na qual uma garota que jamais havia visto
estava entretida num jogo do qual ele e Anil
não gostavam muito. Ela estava jogando há
algum tempo, e parecia estar indo muito
bem — pelo que Mark podia perceber, ainda
estava na sua primeira vida.
Ela se virou para observar enquanto
Anil apertava o start e começava a jogar. A
tela iniciou produzindo cores e sons,
enquanto o samurai de Anil atacava os
soldados de Ronin. Anil sempre entrava
rápido — como se estivesse tentando
surpreender o jogo. Soco — chute — golpe
fatal! Rápido e feroz.
Mark preferia uma aproximação mais
lenta e calculada. Ele usava estratégia.
Gostava de ser mais inteligente do que seus
adversários.
Mark morava a duas ruas de Anil desde
que nascera. Eles eram grandes amigos e
rivais desde sempre. Se Mark fosse bom em
alguma coisa, Anil tentava ser melhor. E se
este fosse bem-sucedido em algo,
naturalmente Mark se esforçaria para
superá-lo. Agiam assim com esportes, jogos
ou tarefas escolares. Para Mark, a
competitividade não atrapalhava a amizade
dos dois — só trazia um aspecto
interessante.
Mark olhou para o amigo enquanto este
jogava, seu corpo forte e de baixa estatura
inclinado sobre os controles do jogo, e o
cabelo de cuia caía sobre os olhos. Anil
parecia um Buli Temer — destemido,
determinado e sempre buscando vencer.
Mark não era tão agressivo; tendia a pensar
antes de agir. Ele era mais alto do que Anil,
magro e esguio, tinha cabelos castanhos
claros e olhos cor de mel.
Mais pessoas começavam a entrar no
fliperama e, do lado de fora, o dia prometia
ser claro e bonito. Fazia duas semanas que
as férias de verão haviam começado. O
tempo permanecia ótimo, e o próximo ano
escolar estava tão longe que nem valia a
pena se preocupar com isso.
O fliperama ficava de frente para a
praia. Do outro lado da rua, além das cercas,
viam-se muitas pedrinhas na areia,
misturando-se à espuma das ondas que
subiam com a maré.
Mark observava atentamente enquanto
o samurai de Anil abria caminho chacinando
todos no palácio de Ronin.
Ele sofrera três ferimentos — morreria
com seis — e ainda havia muitos adversários
se posicionando no corredor que levava ao
santuário de Ronin.
— Cuidado com o cara que joga
estrelas ninjas — alertou Mark.
— Eu estou vendo — disse Anil, girando
e balançando o joystick. Seu samurai pulou
e rodou, com a longa espada curvilínea
cortando e matando.
Um instante mais tarde fez-se um
barulho, quando o guerreiro de Anil foi
atingido por uma estrela no peito.
— Você se machucou outra vez — disse
Mark, sorrindo.
— Eu não vou ser o único se você não
ficar quieto! — rosnou Anil, com um olhar de
absoluta concentração no rosto enquanto
lutava com o joystick.
— Só estou tentando ajudar — ironizou
Mark, com uma risada. — Não leve tão a
sério.
— Não levar a sério? — protestou Anil.
— É você que sempre quer ser o melhor em
tudo.
— Não mesmo — afirmou Mark. — Eu
só sou naturalmente bom em tudo; é você
que sempre transforma tudo em uma
competição.
— Há! — exclamou Anil. — Então por
que ficou tão irritado quando marquei o
mesmo número de gols que você na última
temporada?
— Porque o seu sétimo gol foi roubado,
por isso — retrucou Mark, rindo. — Cuidado
com aquele cara com o gancho e as
correntes.
— Já sei.
Mark observou silenciosamente
enquanto o samurai de Anil cortava a
cabeça dos últimos guardas e se
aproximava do santuário do castelo.
Quinze segundos mais tarde houve um
grito de aprovação dos meninos que
estavam em volta quando Anil decapitou o
Mestre Ronin.
— Vinte e oito a vinte sete — disse um
dos meninos, olhando para Mark. — Sua vez.
A pressão estava em cima de Mark
novamente. Ele sabia que Anil observava
cada jogada — esperando que o adversário
errasse ou perdesse a concentração.
Mas Mark não deixaria isso acontecer.
Seu samurai rodou, girou e decapitou
soldados até que não houvesse mais
nenhum.
Ele sorriu para Anil.
— Acho que estamos empatados
novamente, certo? — perguntou, saindo do
caminho.
— Não por muito tempo — respondeu
Anil.
Mark olhou novamente para a menina
na máquina próxima da deles. Supôs que
deveria ser da idade dele e de Anil — 13
anos. Ela era alta, magra e estava vestida
de preto — camiseta, jeans, sapatos, tudo.
Ela tinha cabelos legais, pretos, na altura
dos ombros, com uma franja comprida que
caía sobre os olhos.
Estava jogando Spidershadow Havia
uma arma a laser no painel de comandos,
mas não era um simples jogo de tiros. Havia
um joystick com oito direções e seis botões
de comando, além da arma. O objetivo do
jogo era seguir uma gangue de soldados
traidores das forças especiais por diversos
cenários e eliminá-los a tiros.
O problema era que os soldados
trabalhavam em dois grupos de três — e, a
não ser que fosse muito ágil com o joystick,
com os botões e com a arma, algum deles
iria atirar em você antes que tivesse tempo
de acertar todos. Mark e Anil desistiram
daquele jogo depois de uma manhã
frustrante em que foram mortos diversas
vezes. Era impossível vencer; eles
resolveram que não valia a pena jogá-lo.
Mas o desempenho da menina parecia
ser muito bom. Mark observou, enquanto ela
manejava o joystick, com seus dedos
passando rapidamente sobre os botões.
Mark ficou intrigado. Alguma coisa o
fascinava na maneira como ela estava lá —
parecendo descolada e relaxada —
enquanto seus longos dedos controlavam os
botões. Então, com uma velocidade súbita
que o impressionou, ela pegou a arma. Três
tiros soaram. A tela brilhou e explodiu,
enquanto os três corpos caíam mortos.
Ela agarrou o joystick e saiu
novamente, em busca do segundo trio de
soldados. Mark estava impressionado e
intrigado. Como ela tinha conseguido fazer
aquilo?
Havia alguma coisa escrito em branco
na frente da camiseta da menina, mas Mark
só conseguia ver as palavras Estou
acordada e O que mais.
Os dedos velozes passearam pelos
botões novamente, e o joystick balançou e
rodou. Pela segunda vez, ela pegou a arma.
Houve três rápidos tiros, enquanto girava a
arma. Crack-crack-crack. Mais três soldados
mortos. O jogo estava encerrado.
Mark não conseguia acreditar. A
menina havia acabado de chegar e zerou
em menos de meia hora — um jogo no qual
muitas outras crianças gastaram toda a
mesada e não conseguiram ganhar nem
uma única vez. Ela era muito legal!
Ela se afastou do jogo e virou de frente
para eles. Tinha um rosto muito bonito — e
os olhos mais incríveis que Mark já vira. Eles
pareciam prateados. Jamais havia visto
alguém com olhos prateados. Mark não
conseguia parar de olhar para ela.
Ela deu um passo em direção ao grupo
de meninos, cruzou os braços e observou
sem nenhuma expressão, enquanto Anil
jogava. Agora Mark conseguia enxergar o
que estava escrito na camiseta.
Estou acordada e vestida. O que mais
você quer?
Ele sorriu. Era muito legal — ele
gostou. Imaginou onde teria comprado.
De repente, ela virou a cabeça e
aqueles olhos prateados maravilhosos
olharam diretamente para Mark. Um sorriso
se formou em um dos lados de seu rosto.
Era um sorriso estranho — entretido e
um pouco zombeteiro, muito descolado e
controlado.
Mark desviou o olhar depressa,
percebendo que estivera encarando a
menina. Não era o tipo de coisa que fazia.
Gostava de meninas, e se dava bem com
elas na escola — mas jamais havia
conhecido alguma garota que fizesse com
que não conseguisse parar de encarar. Era
estranho.
— Você vai jogar ou não?
Um dedo o cutucou no braço. Ele olhou
para Anil, com a boca semiaberta. Ele se
sentia como se tivesse acabado de ser
arrastado para fora de uma água
intensamente negra.
— O quê?
— Você quer tentar empatar comigo ou
vai desistir? — perguntou Anil, sorrindo.
Mark olhou em volta. Enquanto ele
esteve distraído com a menina, Anil havia
subido seu recorde para 29.
— Você pode admitir a derrota agora
mesmo, se preferir — disse Anil. — No fim
das contas vou ganhar mesmo.
— Vai sonhando — disse Mark,
voltando-se para a máquina.
Mas sua concentração estava
inteiramente quebrada. Mesmo enquanto
acionava o botão start, olhou para trás, para
o local onde a menina estava.
Ela tinha ido embora.
Mark franziu o rosto, olhando em torno
de todo o fliperama, esperando vê-la
novamente. Mas havia muitas pessoas ali
agora — muita coisa acontecendo.
A máquina produziu um som musical.
Mark olhou para a tela. Seu samurai
guerreiro estava no chão do jardim com a
cabeça cortada.
— Patético! — disse Anil, empurrando-o
com os cotovelos e assumindo os controles
do jogo. — Você tem que se concentrar. No
que estava pensando?
Mark saiu de lado. Estava levemente
impressionado, e sentia-se um tanto idiota.
Ele olhou para a pequena multidão,
tentando encontrá-la. Mas ela havia ido
embora, e mal percebeu quando Anil
ganhou o jogo seguinte.

Mark e Anil saíram do fliperama lotado


e foram para a rua. Anil acabou ganhando
de 31 a 29. As ruas estavam lotadas de
turistas. Era hora de sair de lá.
— Bem, você certamente se aniquilou
lá dentro — disse Anil. — O que houve?
Mark deu de ombros.
— Cansei do jogo — respondeu.
— Ah tá! — divertiu-se Anil, respirando
o ar marinho. — Então, quais são os planos?
— Eu não sei — disse Mark. — Quais
são os planos? — ele estava olhando para a
rua em frente à praia.
Anil olhou para ele.
— O que houve com você?
— Nada — Mark franziu o rosto. —
Tinha uma menina — disse. — Ela estava
jogando Spidershadow.
Anil soltou uma gargalhada.
— Boa sorte pra ela. Esse jogo é
impossível.
— Ela ganhou — disse Mark. Anil olhou
para ele.
— Impossível.
Mark concordou com um aceno de
cabeça.
— Ela ganhou. Eu também não
consegui acreditar.
— Foi pura sorte — disse Anil,
ignorando o feito.
— Acho que não — afirmou Mark. —
Você tem que derrubar dois times de
soldados das forças especiais para ganhar.
Um pode ser sorte, mas ela acabou com os
dois. Eu estava vendo. Ela foi incrível.
Anil franziu os olhos.
— Incrível como? — perguntou.
Naquela hora — quando já perdera as
esperanças de encontrá-la novamente —
Mark viu a menina sobre os ombros de Anil.
Ela estava sentada na mureta que passava
ao lado do fliperama. A mureta ficava em
frente a um bar com uma larga varanda
cheia de bancos de madeira que estavam
lotados de pessoas barulhentas.
— Lá está ela — disse Mark, apontando
para a menina com a cabeça. — Não olha
agora — sibilou, porém tarde demais. Anil já
havia virado de costas.
A garota estava olhando para o mar,
com fones no ouvido. Anil foi em direção a
ela, e Mark caminhou constrangido ao seu
lado.
— O que você está ouvindo? — indagou
Anil. Ela olhou para ele.
— O quê? — perguntou.
Anil apontou para os fones de ouvido.
— Qual é a música?
A menina tirou os fones e os colocou
apoiados no pescoço.
— Nada que você conheça — ela disse.
— Seagulls Screaming Kiss Her Kiss Her. Eles
são japoneses. São brilhantes.
— Meu amigo aqui disse que você
zerou o Spidershadow — disse Anil.
Mark deu um sorriso leve — sentindo-
se extremamente envergonhado agora que
Anil havia deixado claro que ele estivera
observando a garota.
A menina se inclinou para a frente, com
as pernas balançando.
— Isso mesmo — ela disse.
— Você já tinha jogado antes, certo? —
perguntou Anil. Ela balançou a cabeça, seus
cabelos negros e sedosos se moviam como
se fossem água em ambos os lados de sua
face.
— Não foi difícil. É só uma máquina,
sempre dá para descobrir o que as
máquinas vão fazer.
Anil sorriu.
— Estou impressionado. Meu nome é
Anil — e apontou por cima do ombro. — Este
é Mark.
— Meu nome é Chrissie — respondeu a
menina.
— Você está aqui de férias? —
perguntou Anil.
— Na verdade, não — ela disse
vagamente.
Mark se sentiu enrubescer. Chrissie era
completamente descolada, e Anil estava
parecendo um bobão de 8 anos de idade.
— Gostei da sua blusa — disse, louco
para se inserir na conversa. — Onde você
comprou?
Ela olhou para baixo.
— Em uma loja — disse. — Não fica por
aqui. Vendem muitas coisas legais lá.
— Então, você gosta de videogames?
— perguntou Anil. Mark franziu o rosto. Ele
queria que Anil ficasse quieto de uma vez
por todas.
— Não muito — respondeu Chrissie. —
Eles são um pouco chatos. Como aquele lá
no fliperama, o tal do Spidershadow. Quer
dizer, é divertido por um tempo, mas depois
que você joga é como se fosse “e aí, qual a
novidade?”.
— Quanto mais você joga, melhor fica
— disse Anil. Ele apontou com a cabeça para
o fliperama. — Eu acabei de quebrar o maior
recorde do Ronin, o bravo. Marquei 31, o
recorde antigo era 30.
Mark sorriu — Chrissie não parecia o
tipo de menina que se impressionaria com
essas coisas.
— Bom pra você — disse Chrissie, com
um tom levemente gozador.
Anil franziu o rosto para ela, sem saber
direito o que pensar a seu respeito.
— Então, como você é tão boa no
Spidershadow? — perguntou Mark.
Ela sorriu.
— Quer saber o truque? — ela
perguntou. — Você fica apertando os botões
“localizar” e “esconder” até dar o primeiro
tiro. Assim eles não podem chegar por trás.
— Como você sabia disso? —
perguntou Anil.
— Eu descobri — disse Chrissie. Ela se
levantou de repente. — Onde é bom comer
por aqui? — perguntou. — Estou morrendo
de fome.
— Têm umas lanchonetes e pizzarias lá
na frente — disse Mark, antes que Anil
tivesse a chance de dizer alguma coisa
estúpida. — Mas geralmente nós vamos a
um lugar ali nos fundos, lá não fica muito
cheio.
— Parece bom — afirmou Chrissie. —
Onde é?
— Nós podemos mostrar a você —
disse Mark. — Não é muito longe.
Sentiu-se nervoso quando ela falou,
mas havia alguma coisa nela que ele
gostava — e queria conhecê-la melhor.

O restaurante retro americano tinha


uma mesa alta e estreita que percorria toda
a extensão da janela. O lugar estava mais
cheio do que Mark esperava, e eles
demoraram um pouco para encontrar três
bancos juntos e continuar conversando.
Eles se sentaram enfileirados: Anil,
Chrissie no meio e Mark no canto, sobre
bancos altos, enquanto comiam.
— Então — Anil perguntou. — Você
está aqui de férias ou não?
Chrissie balançou a cabeça,
mastigando e engolindo.
— Estou aqui com o meu pai. Ele está
trabalhando em uma grande construção em
Links Road.
— Eu sei onde é — disse Mark,
acenando com a cabeça. — Fica no centro
da cidade.
— O que o seu pai faz? — perguntou
Mark.
Chrissie pegou uma batata e molhou
em uma piscina de ketchup que havia
derrubado em seu prato.
— Ele é construtor — ela disse.
— Então você está morando na cidade?
— perguntou Mark. Esperava que ela
respondesse afirmativamente.
— Nós estamos em uma casa perto da
construção — respondeu Chrissie. — É um
pouco ruim, e lá estão as pessoas mais
malucas — ela sorriu. — Tem um cara que
mora em um porão. Eu falei com ele
algumas vezes. Ele adora répteis. Tem
cobras, lagartos e coisas assim. Ele mostrou
pra mim outro dia: deixa-os em aquários
enormes, e os alimenta com animais vivos:
ratos, insetos e minhocas.
Mark deu de ombros.
— Eu não gosto de cobras — disse.
Chrissie deu uma mordida na batata.
— Ah, cobras não me incomodam não
— afirmou. — Elas são bonitinhas.
— Então, se você não tiver planos pode
ficar com a gente, se quiser — disse Anil.
Mark se irritou um pouco — ele estava
prestes a falar a mesma coisa.
Chrissie olhou para ele. Ela franziu o
nariz.
— Jogando videogames? — perguntou,
em tom de dúvida.
— Do jeito que você joga? — afirmou
Mark, com um sorriso. — Acho que não. Nós
com certeza iríamos perder!
Ela sorriu para ele. Não de modo
zombeteiro dessa vez, mas um largo sorriso
impressionante que fez com que Mark se
sentisse como se o sol tivesse aparecido de
repente em um dia nublado.
— Já que detesta videogames, o que
você gosta de fazer? — perguntou Anil.
— Ah, aprecio jogos — respondeu. —
Só não gosto desses videogames tolos — ela
afogou outra batata no ketchup. — Eles são
para os tolos.
— De que tipo de jogo você gosta,
então? — perguntou Mark, quase
recuperado do efeito do sorriso.
— Ah, só de um tipo de jogo — Chrissie
balançou a cabeça —, mas vocês não iam
gostar — disse.
— Por que não nos diz e descobre? —
indagou Anil.
— Não adianta nada — respondeu
Chrissie. — Mesmo que eu dissesse, vocês
não se interessariam. Iriam se assustar.
— É uma coisa perigosa? — perguntou
Mark. Chrissie inclinou a cabeça.
— Não — falou lentamente. Ela sorriu
outra vez, apontando para a cabeça. — Só
aqui. — Mark não entendeu o que ela quis
dizer. Anil balançou a cabeça.
— Ela está blefando — dirigindo-se a
Mark. — Só está brincando com a gente.
— O nome é “Quem Ousa Ganha” —
disse Chrissie. Seus penetrantes olhos
prateados estavam fixados no rosto de Anil.
— Qual é a coisa de que você mais tem
medo na vida? — perguntou.
Anil contraiu os lábios, pensativo.
— De ser beijado pela minha tia —
respondeu com um sorriso. — É nojento.
Mark gargalhou. Ele conhecia a tia de
Anil — entendia direitinho o que o amigo
estava querendo dizer. Mas Chrissie virou os
olhos.
— Ora, cresçam! — disse, com ar
cansado. Ela olhou para a janela. — Vamos
esquecer isso — afirmou.
— Não — disse Mark, ansioso para que
ela continuasse. — Fale mais sobre o jogo,
quais são as regras? O que você tem que
fazer?
— Você precisa encarar as coisas que o
assustam — respondeu Chrissie. — Eu
aprendi com um cara que conheci quando
estava morando na cidade com o meu pai
no ano passado.
— Que tipo de coisas? — perguntou
Mark.
— Coisas diferentes para pessoas
diversas — disse Chrissie. — Por exemplo,
detesto quando pássaros voam perto do
meu rosto, me incomoda muito, por algum
motivo. Parece que eles vão bicar os meus
olhos, ou coisa do tipo — ela tremeu. —
Então, tive que ficar trancada em uma sala
com um periquito solto — sorriu. — Não
parece tão ruim, mas foi muito difícil. Mas eu
fiz, e ganhei — olhou para Anil novamente.
— Então, além de ser beijado pela sua tia,
do que você não gosta?
— Eu não sei — disse Anil. — Não tem
nada que eu deteste assim.
— Ah, tá bom — disse Mark com um
sorriso. — Que tal aranhas?
Anil fechou o rosto.
— Tudo bem, eu não gosto muito de
aranhas, mas também não morro de medo
delas — ele pôs o dedo no rosto de Mark.
— E você, com os tomates enlatados?
Chrissie riu.
— Tomates enlatados? — ela disse. —
Você só pode estar brincando!
Mark deu de ombros.
— Eu sei que é estranho ter problemas
com isso — afirmou —, mas detesto,
especialmente as latas que vêm com
tomates inteiros. Eles são muito nojentos,
parecem corações de animais cobertos de
sangue.
— Isso é a coisa mais doida que já ouvi
— afirmou Chrissie. — Que tipo de pessoa
tem medo de tomates?
— Ele sabe disso — disse Anil. — Mas é
como eu com as aranhas. Não há nada que
se possa fazer.
— Há sim, se você jogar “Quem Ousa
Ganha” — disse Chrissie. — O objetivo é
este: enfrentar as coisas que o assustam e
vencê-las — ela apontou para Mark. — Você
teria que comer um tomate diretamente
saído da lata — voltou o olhar para Anil. — E
você deveria enfrentar uma aranha andando
ao seu redor.
A reação inicial de Mark foi de dizer-lhe
que esquecesse isso — ele realmente
detestava esses tomates. E percebeu pela
expressão que Anil não gostara da ideia da
aranha. Ele olhou para Chrissie, tentando
decidir o que fazer. Topar o jogo ou dar para
trás?
— E você? — perguntou a ela. — O que
teria que fazer?
— Já ganhei nesse jogo — disse
Chrissie. — Então, seria a Mestra do jogo. Eu
criaria as regras e me certificaria de que
vocês jogassem direito. E porque estariam
competindo um contra o outro, nós teríamos
que criar um sistema de derrota, para o jogo
ficar mais interessante. Por exemplo, se um
dos dois desistir, então deveria dar alguma
coisa para o outro.
Mark olhou para Anil.
— Quer jogar? — perguntou ele.
— Por que não? — respondeu Anil, com
um sorriso se formando no lado do seu
rosto. — Se perder, você me dá seus tênis
Nike novos.
— E se você perder, fico com a sua
blusa de futebol — disse Mark, com os olhos
brilhando.
— Então, quando a gente começa? —
perguntou Anil. — E quem é o primeiro?
— Podemos começar agora mesmo —
disse Chrissie. Ela pôs a mão no bolso e
pegou uma moeda. — Mark, cara ou coroa?
— perguntou, lançando a moeda para o ar, e
tapando-a com uma mão assim que ela caiu
na outra.
Mark respirou fundo.
— Cara — ele disse. Chrissie levantou a
mão. Era coroa.
— Tomates enlatados, aqui vamos nós
— disse Anil, com uma risada. Ele sorriu
para Mark. — Você já perdeu seus tênis
novos!

Eles estavam na cozinha da casa de


Mark. Não havia mais ninguém; os pais dele
trabalhavam, e não iam voltar tão cedo.
Mark olhou para Chrissie, sentada
sobre a mesa, balançando as pernas. Ele
estava numa cadeira com um prato vazio,
uma faca e um garfo à frente. Anil
permanecia de pé, no lado oposto, com um
abridor de latas, levantando a tampa da lata
de tomates que tinham acabado de
comprar.
Anil entornou a lata sobre o prato e os
pedaços macios e vermelhos caíram do suco
grosso. Mark olhou para aquela bagunça
horrorosa no prato. Os tomates pareciam
muito nojentos, naquela piscina de líquido
vermelho, macios e molengos, e totalmente
crus.
Anil sorriu para ele.
— Você pode desistir agora, se quiser
— disse. — Eca! — falou. — Corações
boiando no próprio sangue. Eu acho que
alguns deles ainda estão batendo!
Mark lançou um olhar irritado e
balançou a cabeça.
— Você não vai me fazer desistir.
Anil riu.
— Tudo bem — afirmou. — Chega de
truques.
Mark olhou para o prato na sua frente e
não conseguia evitar a sensação de nojo.
— Vá em frente — incentivou Anil. —
Eu detestaria ter que ficar com seus... — ele
se inclinou para a frente, encorajando Mark.
— Vamos, são apenas tomates.
Mark pegou o garfo e a faca.
— Eu preciso comer todos? —
perguntou hesitante.
— Precisa! — disse Chrissie. — Pode
comer tudo, Mark.
Ele olhou para ela, que parecia estar se
divertindo muito com isso tudo.
Anil franziu o rosto.
— Não — ele retrucou. — Só precisa
comer um. Chrissie deu de ombros.
— Tudo bem — ela disse. — Mas terá
que comer com os dedos.
Mark achava que cortá-los em pedaços
pequenos com o garfo e a faca pudesse
facilitar as coisas. A ideia de pegar um
tomate com a mão e morder tornava o
desafio muito pior.
Ele repousou os talheres na mesa e
olhou para o prato.
— Você consegue — afirmou Anil.
Mark respirou fundo. Ele clareou a
mente, pensar a respeito só dificultava a
tarefa. Pegou um dos tomates do prato, ele
mal conseguia segurar, já que escorregava
por seus dedos, com o suco grosso
pingando. Fechou os olhos e abriu a boca.
Ele pôs aquela massa grossa e
nauseante na boca. Inclinou-se para trás,
com os olhos cerrados, fechando os dentes
em torno do tomate. Suas mãos estavam
agarrando a ponta da mesa. Mark mastigou,
sentindo o tecido macio virar uma coisa
nojenta na boca.
Ele engoliu umas três ou quatro vezes.
O tomate acabou.
Ele abriu os olhos e soltou uma risada.
— Isso aí, Mark! — gritou Anil. Mark
respirou fundo.
— Isso foi a pior coisa que já comi na
vida — disse. Seu estômago tremeu.
Levantou-se cambaleante. — Vou vomitar!
— engasgou-se, correndo para a pia.
— Você não vai passar mal — falou
Chrissie. — Basta tomar um pouco de água.
Vai ficar bem.
Mark se apoiou na pia.
Não — ele não ia passar mal.
Recusava-se a vomitar na frente de uma
pessoa tão descolada e fascinante quanto
Chrissie. Não queria que pensasse que ele
era um fraco. Mark pegou um copo de água
e tomou tudo em um só gole.
Ele se afastou da pia, olhando para
Anil. Depois sorriu.
— Você ainda acha que vai ficar com o
meu tênis? — perguntou. — Agora vamos
ver como se sai com as aranhas. Sei que há
umas bem gordas e grandes atrás do galpão
no jardim.
Anil o encarou com um olhar relaxado.
— Sem problemas — disse. — Você
pode colocar uma dúzia delas em mim se
quiser.
— Não — disse Chrissie, descendo da
mesa. — Só uma, mas você tem que comê-
la.
Mark riu, imaginado que Chrissie
estivesse apenas brincando com Anil. Mas a
expressão em seu rosto não sugeria
brincadeira.
Anil estava olhando para ela — ele
tinha ficado pálido.
— Você não pode obrigá-lo a comer
uma aranha — censurou Mark.
— Eu sou a Mestra do jogo — disse
Chrissie. — Decido as regras — ela olhou
para Mark. — Você teve que comer o
tomate, uma coisa com a qual tem
problemas. Anil deverá comer uma aranha,
algo repelente para ele. Qual é o problema?
— seus olhos estavam brilhantes e afiados.
— Ou nós podemos esquecer a brincadeira
— ela deu de ombros, com um olhar
levemente desdenhoso dominando sua
expressão. — A decisão é de vocês.
— Esse jogo é estúpido — disse Anil.
— Isso é exatamente o que dizem os
fracos — falou Chrissie. Então sua voz se
tornou macia e extremamente persuasiva.
— Ora, vamos, Anil. Não desista. Mark
venceu o jogo. Se não enfrentar o medo de
aranhas, ele vai ganhar a sua camisa de
futebol, e, além disso, vai se sentir patético.
Você não quer isso, quer?
Mark olhou para o seu amigo, tentando
pensar em um modo de persuadi-lo a jogar.
Ele comeu um daqueles tomates, e queria
que Anil ao menos tentasse comer a aranha
antes de desistir.
— Você não precisa comer uma
daquelas grandes que ficam no jardim —
disse a Anil. — Que tal uma das magrinhas
que ficam penduradas de cabeça para baixo
no galpão do meu pai? E você pode enrolá-la
em um pedaço de pão; desse jeito nem ia
notar — ele olhou para Chrissie. — Assim
pode, não pode?
Chrissie sorriu.
— Eu preferia uma bem grande que
estourasse na boca quando ele mordesse —
disse. — Mas aranha é aranha — ela deu de
ombros. — Tudo bem. Ele passa no teste se
comer um sanduíche de aranha.
Mark olhou para Anil.
— Vai encarar?
Anil fez que sim com a cabeça; seu
rosto ainda estava um pouco pálido, mas a
expressão mostrava determinação.
Mark pegou uma fatia de pão. Ele
destrancou a porta dos fundos e os guiou
pelo jardim até o galpão. Abriu o cadeado e
entrou, sentindo uma súbita ansiedade. Ele
realmente ficava incomodado em lugares
pequenos e fechados.
Mark não demorou mais de um
segundo para localizar uma das aranhas
penduradas no telhado.
Anil e Chrissie esperaram na porta
enquanto Mark levantou a fatia de pão e a
colocou embaixo da aranha, dando um
peteleco com os dedos. A aranha foi
surpreendida e acabou caindo em cima do
pão. Ele dobrou a fatia rapidamente.
Em seguida, saiu do galpão e entregou
o sanduíche a Anil.
— É difícil para a aranha — disse Mark.
— Uma hora ela está quieta, cuidando da
própria vida; em seguida vira o almoço de
alguém.
— Se Anil comê-la depressa, ela nem
vai ver o que está acontecendo — disse
Chrissie. — Além disso, muitos bichos
comem aranhas.
— Pessoas não se alimentam de
aranhas — retrucou Anil com um sussurro
seco. Por um instante ele ficou parado
olhando para o pedaço de pão.
— Se você passar no teste será
recompensado — ela disse.
Anil olhou para Chrissie.
— O quê?
Ela deu aquele sorriso largo, doce e
luminoso.
— Você vai poder passar mais tempo
comigo.
Mark sentiu uma ponta de ciúme
quando a viu sorrindo para Anil. Mas logo
depois a sensação passou, ofuscada pelo
fato de que Anil deveria comer uma aranha.
Anil se mostrou satisfeito. Logo depois,
ele levou o sanduíche até a boca. Hesitou
por um segundo e pôs todo o pão na boca
de uma vez só. Mark mal conseguia olhar
enquanto ele mastigava a fatia.
— Tem que engolir tudo, tem que
engolir tudo! — exclamou Chrissie.
Anil engoliu. Ele olhou para Mark com
um sorriso triunfante no rosto.
— Eu não senti gosto nenhum — disse.
Ele riu, fingindo secar suor da testa. — Até
que não foi tão ruim.
Chrissie franziu o rosto.
— Eu facilitei muito para você —
afirmou. — Agora que estou pensando
melhor, eu não sei se valeu. Acho que você
deveria comer uma sem pão.
— Nem pensar — disse Anil. — Eu fiz o
que mandou. Você não pode mudar as
regras depois.
— Eu sou a Mestra do jogo — falou
Chrissie. — Eu faço as regras.
— Ele comeu a aranha — intrometeu-se
Mark. — Isso significa que venceu o jogo.
Chrissie olhou para um e depois para o
outro.
— Isso foi muito bobo — disse. — Essas
coisas foram patéticas. Nem um pouco
assustadoras, não de verdade. Vocês não
sabem como se brinca esse jogo direito —
ela virou de costas, com os braços cruzados,
e caminhou pelo jardim.
Mark e Anil se entreolharam,
completamente surpresos.
— Ei! — exclamou Anil. — Qual é o
problema?
Chrissie virou-se ao chegar à porta do
jardim.
— Problema nenhum — respondeu. —
Eu tenho coisas para fazer.
— Você quer nos encontrar mais tarde
em algum lugar? — convidou Mark.
— É o seguinte — ela disse. — Se vocês
conseguirem pensar em alguns medos
melhores para enfrentar, nós podemos jogar
outra vez. Eu vou estar perto do fliperama
amanhã de manhã, por volta das dez. Se
não, esqueçam.
E então ela foi embora.
Mark ouviu a porta da frente bater.
— Mas que garota maluca — disse Anil.
Ele olhou para Mark. — Você acredita nesse
ataque que ela deu?
Mas Mark só pensava no seu sorriso e
em seus olhos prateados — e ficou
imaginando no que teria que pensar para
mantê-la interessada em jogar com ele.

Mais tarde, naquele mesmo dia, eles


estavam sentados no chão do quarto de
Mark, jogando ZOMBEEZ, que ele comprara
há menos de uma semana, e ainda estavam
se acostumando. Passava-se no século XXX,
e eles eram dois policiais enviados em
missão a um antigo cemitério para
encontrar e destruir a nave espacial
escondida de aliens invasores que estavam
ocupados ressuscitando os corpos de
terráqueos, com a intenção de criar um
exército para dominar o planeta.
Nem Mark nem Anil tinham conseguido
se aproximar do coração da nave espacial
antes que sua saúde chegasse a limites
críticos e eles acabassem morrendo.
— O design desse jogo é o máximo! —
exclamou Anil, enquanto seu personagem
circulava uma esquina e entrava em uma
enorme câmara de docas, cheia de navios
de combate. Ele caminhou pelo chão,
observando cuidadosamente a amplitude
daquela sala silenciosa. Nada se moveu.
— Só pode ser uma armadilha — disse
Mark.
— Não tem nada aqui — afirmou Anil,
franzindo o rosto enquanto se concentrava
na tela.
— O chão tem umas formas muito
estranhas — observou Mark.
— Peraí, o que é... — começou Anil.
A tela se encheu de chamas brancas.
Seu personagem soltou um grito
desesperado e o nível de saúde foi a zero. A
tela exibiu a mensagem: Game Over.
— Nós nunca vamos chegar na sala de
controle nesse ritmo — disse Anil. — Tem
algum atalho no manual?
Mark balançou a cabeça.
— Será que a gente consegue achar
alguma coisa na internet? — olhou para Anil.
— Eu aposto que a Chrissie descobriria.
— É claro — disse Anil. — Só que ela só
iria nos dizer o quão idiota nós somos por
jogarmos videogame.
Fez-se um breve silêncio.
— Ela é um pouco estranha, não é? —
perguntou Mark.
— Ela é doida — disse Anil. — Você não
viu como ela ficou descontrolada lá
embaixo?
— Bem, vi, mas...
Anil olhou para ele.
— Mas o quê?
— Eu gosto dela — respondeu Mark. Ele
sorriu levemente e deu de ombros. — Não
sei por quê. Mas eu gosto. Ela é diferente.
— Ela é diferente mesmo — disse Anil.
— Você não gostou dela? — perguntou
Mark.
— Não sei — respondeu Anil. — Talvez.
Mark se levantou. Ele se esticou e foi
até a janela. Olhou para o jardim — vendo o
rosto dela em sua mente, lembrando-se
daquele sorriso.
Ele olhou para Anil por cima de seu
ombro.
— Se a gente fosse brincar aquele jogo
outra vez, no que poderíamos pensar que
fosse realmente assustador?
— Eu contaria para ela que você morre
de medo de cobras, para começar — disse
Anil. — Ou que tem pavor de ficar trancado
em lugares pequenos.
Anil tinha razão. Mark detestava cobras
— era tão claustrofóbico que mal conseguia
entrar em um elevador. Acabara de ficar em
um espaço pequeno e fechado e sentiu-se
como se não pudesse respirar, como se as
paredes estivessem se fechando, tentando
sufocá-lo e esmagá-lo.
— E eu diria a ela como você se sente a
respeito de Ashtead Wood — retrucou Mark.
— E o seu medo de altura.
— Ela provavelmente não acharia nada
disso interessante o suficiente para o jogo
ridículo dela — disse Anil.
Mark se virou.
— Então nós não vamos encontrá-la
amanhã?
— Para mim não faz a menor diferença
— respondeu Anil, desinteressado.
— Nem para mim — Mark olhou de lado
para o seu amigo. — Mas talvez devêssemos
ir até lá. Que tal?
— Tudo bem.
Mark sorriu, aliviado com a decisão. Ele
não conseguia entender Chrissie muito bem
— mas definitivamente queria vê-la outra
vez. Tentou fazer com que sua voz soasse o
mais casual possível.
— Você achou que ela é bonita?
— Achei — respondeu Anil, após uma
pausa.
Seus olhares se encontraram por um
instante, e depois se desviaram.

Mark demorou um pouco para dormir


naquela noite, pensando em Chrissie,
lembrando da sua imagem. E ela foi a
primeira coisa que veio à sua cabeça no dia
seguinte, ao acordar.
Ele desceu para a cozinha. Seu pai já
saíra, mas a mãe ainda estava à mesa,
lendo o jornal local enquanto tomava uma
xícara de café e ouvia rádio.
— Bom dia — cumprimentou Mark,
bocejando, enquanto abria a geladeira. Ele
pegou uma caixa de suco de laranja e bebeu
direto.
— Põe no copo — ordenou sua mãe. —
Você quer que eu prepare alguma coisa?
— Não, eu só vou comer uma torrada
— respondeu, indo na direção do armário,
ainda bocejando.
— Você tem algum plano para hoje? —
ela perguntou. — Já começou aquele projeto
de férias da escola? Eu o conheço; se não
ficar no seu pé, vai deixar para a última
hora.
Mark pôs o pão na torradeira e
procurou o vidro de geleia.
— Já estou quase começando —
respondeu. — Eu tenho tudo resolvido na
cabeça, agora só falta passar para o papel.
— Bem, então tá — ela disse. A mãe
virou-se, esticando o braço por cima das
costas da cadeira. — Lembra-se dos
meninos que caíram daqueles penhascos há
algumas semanas?
Mark fez que sim com a cabeça. Foi
notícia durante alguns dias. Três
adolescentes caíram dos penhascos que
ficavam na parte leste da cidade. Dois dos
corpos foram encontrados, mas o terceiro
ainda estava desaparecido. Os guardas
costeiros concluíram que havia sido
carregado pelo mar.
— Saiu um artigo hoje dizendo que as
pessoas devem ficar longe dos penhascos
até que a prefeitura instale algumas grades
de segurança — continuou sua mãe.
— Mesmo que coloquem grades, algum
idiota com certeza vai escalar de brincadeira
— disse Mark.
— Você nunca sobe lá, sobe? — ela
perguntou, com o rosto sério.
Mark soltou um suspiro dramático.
— Eu não sou um idiota, mãe.
— Eu sei disso. Mesmo assim...
— E caso você não se lembre, Anil
morre de medo de altura — disse Mark. —
Nós nunca subimos nos penhascos.
— Ótimo — sua mãe levou a louça para
a pia. — Então? — ela perguntou. — Quais
são os seus planos?
Mark a olhou de lado.
— Eu e Anil conhecemos uma menina
no fliperama ontem — ele disse. — Talvez a
gente se encontre com ela outra vez.
— Ela é boazinha?
Mark sentiu um sorriso tolo se esticar
em seu rosto. Ele recuperou o controle
rapidamente, mas não antes que sua mãe
percebesse.
— Ela é legal — disse, com ar de
desinteresse. A mãe sorriu para ele. — O
quê? — reagiu defensivamente.
— Nada — ela disse. A mãe caminhou
até ele, tomando o rosto do filho entre as
mãos antes que pudesse escapar. — Tenha
cuidado com as meninas. Elas podem ser
perigosas. O Anil gosta dela também?
— Eu não sei — respondeu Mark,
afastando-se. — Não perguntei a ele. Você
não está atrasada para pegar o trem?
Sua mãe olhou para o relógio da
parede.
— Estou sim — ela pegou a bolsa que
estava pendurada nas costas da cadeira. Na
porta da cozinha, olhou para ele mais uma
vez.
— Lembre-se da minha recomendação
a respeito de meninas. E do que falei sobre
os penhascos.
— Tchau, mãe — disse Mark.
Alguns minutos mais tarde ele estava
sentado à mesa comendo torrada e mel e
olhando para o relógio da parede. Ainda
eram oito e meia.
Eles combinaram que Mark passaria na
casa de Anil às dez e depois iriam encontrar-
se com Chrissie — mas ainda faltava uma
hora e meia.
Parecia muito tempo.
Mark chegou à casa de Anil às nove e
meia. Sua irmã mais velha abriu a porta,
ainda de camisola e com ar sonolento. Após
subir e verificar o quarto de Anil, ela desceu
e disse a Mark que seu irmão já havia saído.
Isso era estranho. Mark sempre
buscava Anil.
Então ele pensou em uma coisa. Algo
que o irritou. Será que Anil tinha ido
encontrar Chrissie sozinho?
Ele caminhou depressa em direção ao
mar. Logo viu Chrissie e Anil. Eles estavam
sentados um ao lado do outro nas cercas
que tinham vista para a praia.
Mark desviou-se do trânsito para
alcançá-los. Inclinou-se na grade que
apoiava o cotovelo de Chrissie.
— Olá — ele disse.
As duas cabeças viraram.
— Oi — cumprimentou Chrissie. Anil
lançou um olhar culpado a Mark.
— Eu passei na sua casa — disse Mark.
— Pensei que tínhamos combinado de nos
encontrarmos lá.
— Eu acordei cedo, então resolvi vir
logo para cá — disse Anil. — Sabia que você
nos encontraria.
Chrissie balançou suas longas pernas
sobre a cerca e pulou para o chão. Hoje ela
estava com uma camiseta com um slogan
diferente:
Eu vou parar de usar preto. Quando
inventarem uma cor mais escura.
— Eu pensei que íamos nos encontrar
às dez — disse Mark. Chrissie olhou para ele
com um semissorriso no rosto.
— Você virou Capitão da hora ou coisa
parecida?
— Não — respondeu Mark, de repente
sentindo-se pequeno e mesquinho. Mas, por
outro lado, foi Anil quem falou que Chrissie
era completamente doida; e, no entanto,
estava lá, encontrando-se a sós com ela.
— Então — Chrissie disse a ele. — Você
é claustrofóbico?
— Um pouco — disse Mark. — Ele
balançou as pernas e pulou para sentar-se
ao lado dela. — Mas espaços pequenos não
me assustam tanto quanto alturas causam
pavor a Anil.
Chrissie olhou para Anil.
— Você não me disse nada disso — ela
censurou.
— E ele comentou alguma coisa a
respeito de Ashtead Wood? — Mark fez um
largo gesto com um dos braços, para indicar
a direção do caminho do bosque atrás da
cidade.
Anil olhou para Chrissie.
— Quando era pequeno, eu tinha uns 5
ou 6 anos, fui andando sozinho e me perdi
no bosque. Anoiteceu e eu morri de medo.
Fiquei alguns dias sem dormir. Não foi nada
de mais.
— Até hoje ele não vai lá — disse Mark,
divertindo-se com o desconforto do amigo.
Chrissie olhou para Anil.
— Isso é verdade?
— Eu não gosto do lugar — respondeu,
cruzando os braços sobre seu peito,
defensivamente. — Mas não tenho medo.
Mark sorriu para Chrissie.
— Para mim isso é medo — disse. — Se
nós formos continuar aquele jogo, então
acho que o desafio de Anil tem que ser uma
visita ao bosque à noite, e ele precisa ficar
por lá durante uma hora.
— Com os olhos vendados e as mãos
amarradas — acrescentou Chrissie, de
repente, entusiasmada. — Isso! Isso seria o
máximo! — ela olhou para Anil. — Você deve
fazer isso. Imagina só como vai se sentir
depois, se conseguir.
— No verão só escurece tarde — disse
Anil. — Meus pais não vão me deixar ir até o
bosque durante a noite.
Chrissie olhou para ele.
— Já ouviu falar em mentira? — disse,
de forma sarcástica.
— Você comunica a eles que dormirá
na casa do Mark, e ele pode dizer aos pais
que vai para a sua casa. Aí vocês dois vêm
comigo até o bosque.
— E o que a gente vai fazer depois do
jogo? — perguntou Mark. — Onde nós vamos
dormir?
— Ora, vamos — disse Chrissie, com os
olhos brilhantes e ansiosos. — Vocês
conseguem ou não pensar em alguma
coisa?
Mark olhou para Anil.
— Nós poderíamos entrar de volta na
minha casa tranquilamente sem que
ninguém ouvisse — afirmou. — Desde que
fiquemos quietos até a hora que eles saírem
para o trabalho; nunca vão saber de nada.
Anil fez um sinal positivo com a cabeça.
— É, suponho que sim — afirmou.
— Então está tudo certo — disse
Chrissie, sorrindo. — Moleza! — ela olhou
para Mark. — E eu sei exatamente o que
podemos fazer com você — ela se inclinou e
sussurrou alguma coisa no ouvido de Anil.
Mark morreu de ciúmes quando viu aquele
sorriso se estampando no rosto do amigo.
— Você consegue arrumar alguma? —
ele perguntou. Chrissie fez que sim com a
cabeça.
— Além de detestar lugares fechados, o
Anil me contou que você não gosta de
cobras — disse. — Então, enquanto ele
enfrenta o medo do bosque, acho que vou
apresentá-lo a uma bela cobra molenga e
rastejante.
Mark olhou para ela, tentando disfarçar
o horror que essa ideia representava.
— Ótimo — ele disse, conseguindo dar
um sorriso casual. — Contanto que não
precise comê-la.
— Não — ela disse. — Você não vai
comê-la. — Ela sorriu.
— Só precisará vesti-la.
— E quais são os planos para hoje? —
perguntou Anil. — Nós não podemos realizar
os desafios até a noite.
— Eu achei que fôssemos ficar juntos —
disse Mark.
— Nós vamos, hoje à noite —
respondeu Chrissie, enquanto se afastava
deles. Ela levantou o braço e acenou sem
sequer olhar.
— Aonde vamos nos encontrar? —
gritou Mark.
— No final da sua rua — respondeu
Chrissie. — Às 21 horas. Não se atrasem.
E então, antes que qualquer um deles
pudesse dizer alguma coisa, Chrissie correu
pela rua, em meio aos carros.
Mark estivera ansioso para vê-la desde
a hora que acordou — e agora ela tinha ido
embora. Ele se sentiu estranhamente vazio.
— Alguns dos meninos disseram que
iam para a praia jogar Frisbee — sugeriu
Anil. — Quer encontrá-los?
Mark fez que sim com a cabeça. Afinal,
o que mais poderiam fazer?

Algumas nuvens cobriam as estrelas do


céu enquanto os três caminhavam até a
cidade naquela noite. Chrissie trazia uma
bolsa de couro preta.
A mãe concordara que Mark dormisse
na casa de Anil. Ela confiava tanto no filho
que nem telefonou para os pais de Anil para
verificar a história. Mark sentia-se mal por
mentir; maldade enganar alguém que
confiava tanto em você.
Anil também não tinha tido problemas.
Os amigos frequentemente dormiam um na
casa do outro. Não era nada de mais. E
depois que o jogo acabasse, eles poderiam
voltar para a casa de Mark e entrar pela
porta dos fundos, sem que ninguém
percebesse.
Eles passaram pelas últimas casas e
caminharam pelo pátio estreito que passava
pelo pé da colina. Ela era cercada por
plantas altas — o que deixava apenas um
céu sem estrelas sobre suas cabeças.
Mark tinha quase certeza de que
Chrissie guardara uma cobra na bolsa, muito
bem fechada, e ela estava carregando com
cuidado. Mas preferiu não perguntar nada.
Seu desafio com a cobra aconteceria em
breve. Era melhor não pensar a respeito por
enquanto.
Mas Anil tinha ideias diferentes.
— O que tem na bolsa? — perguntou,
enquanto ocupavam o pátio.
— O destino de Mark — disse Chrissie,
com uma risada.
— Você trouxe uma cobra? — indagou
Anil. — Sério? Onde arrumou?
— Eu suponho que tenha emprestado
do vizinho do qual ela nos contou — disse
Mark, feliz por não soar tão apreensivo
quanto parecia. — O maluco que guarda
répteis no porão da casa onde ela mora.
— Exatamente — disse Chrissie.
— Legal — afirmou Anil. — Que tipo de
cobra é?
— Uma cobra verde — respondeu
Chrissie. — O maluco a chama de Vampira.
— É venenosa? — perguntou Anil.
Chrissie olhou para Mark com os olhos
brilhantes.
— Tomara que não, né? — falou, com
um sorriso que quase fazia com que o
sofrimento valesse a pena. — Você vai se
sentir tão bem quando enfrentar seu medo
de cobras. Será um herói!
Um silêncio absoluto se abateu sobre
eles.
— Aqui estamos — disse Mark um
tempo depois. — Ashtead Wood — a
sequencia de arbustos foi quebrada por um
portão lapidado de madeira, fechado com
uma corrente enferrujada.
Além do portão, havia uma enorme
área de grama densamente coberta por
árvores.
— Certo — disse Chrissie. — Vamos
começar logo — ela escalou o portão e pulou
para o outro lado.
Mark deu uma rápida olhada em Anil,
que contemplava as árvores com os olhos
franzidos.
— Um monte de árvores não chega
nem aos pés de uma cobra — suspirou Mark.
Ele sorriu. — Talvez nós possamos trocar de
fobias.
Anil deu uma risada nervosa.
— Eu não acho que a Chrissie iria
aceitar isso — disse. Eles escalaram o muro.
A barra de cima estava podre, e havia farpas
e pregos afiados saindo de lá. Chrissie já
estava passando pela vegetação, em
direção ao limite do bosque. Enormes
sombras se formavam sob as árvores. Não
ventava. O topo da colina estava silencioso.
O único barulho vinha do movimento de
suas pernas quando remexiam na grama.
Chrissie parou embaixo da árvore mais
próxima. Ela pôs a bolsa no chão com muito
cuidado, abriu o compartimento da frente e
puxou um pedaço grande de fio e uma tira
de pano preto.
— Pronto — ela disse. — Quem vai
primeiro?
Anil se habilitou. Mark notou que ele
evitava olhar para a escuridão sob as
árvores. Por mais que tivesse tentado
convencê-los de que sua cisma com o
bosque vinha de um desagradável incidente
ocorrido na infância, Mark percebeu que
estava sendo muito difícil para Anil.
Quisesse admitir ou não, tinha de fato medo
daquele bosque.
— Muito bem, Anil — disse Chrissie. —
E, já que você se ofereceu, o Mark vai
primeiro — ela parou novamente, abriu a
bolsa, olhou para ela por um instante e em
seguida pôs a mão lá dentro.
O coração de Mark acelerou. Todos os
pelos em seu corpo se arrepiaram.
A mão de Chrissie surgiu, segurando a
cobra. Mark supôs que ela fosse do
comprimento do seu braço, e era mais fina
que o seu dedão. Estava enrolada
preguiçosa na mão dela, movendo-se em
câmera lenta. A cabeça longa e achatada ia
para a frente e para trás sobre seu pescoço.
Mark deu um passo involuntário para trás
enquanto Chrissie se levantava. Ela
segurava a criatura à distância do braço, e
um sorriso se desenhou em seu rosto
enquanto observava o animal se mexer e se
contorcer no ar.
— Ela é bonita, não é? — perguntou.
Ela caminhou na direção de Mark, que
lutou para se segurar. Todos os seus
instintos lhe diziam para virar as costas e
correr. E o olhar de Chrissie o assustou.
Esqueça o jogo — saia daí. Anil pode ficar
com o par de tênis. Isso não vale a pena.
Mas ele não se moveu. O sangue pulsava
em sua cabeça. Os braços estavam
completamente rígidos, e as mãos, cerradas
em punhos doídos.
Chrissie estava na sua frente. A cobra
havia dado duas voltas em torno de seu
braço. A cabeça levantava e caía. E ela
colocava a língua para fora. Os olhos do
animal pareciam duas contas negras. Suas
curvas brilhantes eram verdes e
assustadoras.
— Não se preocupe — falou Chrissie,
com voz macia e estranhamente gentil. — A
cobra não é venenosa, não vai machucá-lo
— ela deu um passo à frente e desenrolou-a
de seu braço. — Pode confiar em mim —
sussurrou.
Mark ficou apavorado, enquanto
Chrissie colocava a cobra sobre seus
ombros.
— Eu sei algumas coisas sobre cobras
e, pelo que me lembro, esta não vai fazer
nada — falou casualmente. — Ela é gelada,
pois cobras têm sangue frio. Provavelmente
só vai se ajeitar e dormir — ela esfregou
com os dedos as bochechas de Mark. Ele
não sabia se tinha sido acidental ou não.
Então ela se afastou.
— Ótimo — ela disse, num volume mais
alto. — Se você encostar na cobra ou fizer
alguma coisa para se livrar dela antes da
minha autorização, perde o jogo — ela se
voltou para Anil. — Agora é a sua vez.
Mark ficou ali parado, em um mundo de
pesadelos. Ele via o rabo e a cabeça da
cobra e podia senti-la se mexendo
lentamente em sua nuca — fria, macia e
sedosa. Temia o instante em que aquela
pequena cabeça iria se voltar para ele e
abriria a boca revelando dentes afiados
como agulhas. Ele tinha apenas uma vaga
percepção de Chrissie amarrando as mãos
de Anil em suas costas com o fio e cobrindo
os olhos dele com a tira de pano.
— Eu vou levá-lo diretamente para o
bosque — ela disse. — Em seguida o
deixarei lá. Se gritar por socorro, eu vou
buscá-lo, mas perde o jogo. O mesmo
acontecerá se tentar tirar a venda. Mark vai
ficar com a cobra o mesmo tempo que você
permanecer no bosque. Se algum dos dois
desistir, o outro ganha. Se ambos
aguentarem, eu vou declarar um empate.
— Depois de quanto tempo? —
perguntou Anil, e Mark sentiu certo alívio ao
ouvir que a voz de seu amigo estava
trêmula.
— Isso só eu sei, vocês vão descobrir —
disse Chrissie, com um brilho perigoso nos
olhos. Mark percebia que ela se divertia. A
garota tinha os dois sob controle e estava
adorando isso.
E assim ela empurrou Anil para baixo
das árvores. Mark perdeu-os de vista em
poucos segundos. Durante mais algum
tempo conseguiu escutar os passos, depois
tudo se calou.
Ele sentia a cobra se movendo, as
escamas se esfregando contra a pele de sua
nuca. A cabeça do animal se esticou,
balançando-se, com a língua entrando e
saindo da boca. Mark encarou, sem se
atrever a mexer um único músculo, com
medo de que ela de repente atacasse seu
pescoço. Ele praticamente sentia aqueles
dentes penetrando sua carne, injetando um
veneno mortal.
Chrissie havia dito que a cobra não era
venenosa, mas e se estivesse enganada?
Uma voz oca e assustada ecoava em
sua mente. Tire-a de mim! Tire-a daqui!
A cobra se mexia à vontade no pescoço
de Mark. Ele ergueu as mãos, pronto para
retirá-la se ela começasse a apertar.
Chrissie surgiu da escuridão das
árvores.
— Não pode encostar! — alertou,
enquanto se aproximava. — Isso é roubo.
— Eu não me importo — disse Mark,
com a voz completamente seca. — Não vou
permitir que ela me estrangule.
— A cobra não vai estrangulá-lo —
disse. Chrissie levantou a mão e com o dedo
percorreu o corpo do animal. — Você pensa
que são escorregadias, não é? Mas não são.
Na verdade são bem sedosas.
Mark engoliu em seco.
— Por quanto tempo você vai nos
forçar a ficar assim? — ele perguntou.
Ela franziu o rosto.
— Eu não estou forçando ninguém a
fazer nada — disse. — É uma brincadeira.
Pode jogar ou não. É você quem decide. Se
não aguenta, é só tirar a cobra, eu não vou
impedir.
Mark estremeceu; a cobra estava
começando a se apertar em torno de seu
pescoço. Por enquanto não representava
grandes problemas, mas não gostava nem
um pouco da sensação.
Chrissie observou por alguns instantes
enquanto a cobra deslizava sobre a pele de
Mark. Seus olhos brilhavam com estranho
fascínio. Mark podia sentir o suor frio
escorrendo pelo rosto. Mais um segundo e ia
sucumbir! Ele não aguentava mais essa
tortura.
Em seguida, sem dizer nada, Chrissie
esticou o braço e começou a desenrolar a
cobra, com muito cuidado. Ela retirou o
réptil do pescoço de Mark e o deixou lá,
numa mistura de alívio e confusão enquanto
aproximava a bolsa para guardar o animal.
Ela caminhou de volta para Mark.
— Você foi muito bem — disse. — Ela
se moveu subitamente para a frente e lhe
deu um beijo na bochecha.
Mark soltou uma risada sem fôlego, seu
rosto esquentou. Ele de repente se sentiu
tolo por ter pensado que Chrissie poderia ter
deixado uma cobra venenosa passear por
seu pescoço.
—Talvez as cobras não sejam tão ruins
assim — disse, olhando nos olhos prateados
da garota. — Mas ainda as odeio.
Ela sorriu e olhou sobre o ombro em
direção ao bosque.
— Será que devo buscar Anil agora? —
perguntou, com um tom entretido e
malicioso transbordando em sua voz. — Ou
devemos deixá-lo lá por mais algum tempo?
— Ela virou e olhou para ele, seus olhos
eram enormes e brilhavam em meio à
escuridão. — O que você acha?
Mark não sabia o que pensar. O que ela
queria dizer com isso? Estava sugerindo que
deixassem Anil vendado no bosque até que
pedisse socorro? Será que queria ficar mais
tempo sozinha com ele? Mas por quê?
Ele olhou para o rosto da menina,
tentando tirar alguma conclusão.
Depois de um instante, disse:
— Não podemos deixá-lo lá.
Chrissie contraiu os lábios e deu de
ombros de um jeito curioso.
— Tudo bem — respondeu, e começou
a andar sob as árvores.
— Ei! Anil! — gritou. — Acabou o jogo!
Eu vou buscá-lo!
Fez-se silêncio por alguns instantes; em
seguida Mark escutou um grito vindo das
profundezas do bosque. Era Anil, e parecia
apavorado.
Ele correu para a frente. Os gritos de
Anil preenchiam a noite. Chrissie estava ali
parada, olhando para o bosque, sem fazer
nada.
Mark correu sob as árvores, tentando
determinar a direção de onde vinham os
gritos.
— Anil!
Uma voz distante respondeu ao
chamado.
— Mark!
— Eu estou indo — disse, correndo em
direção à voz. — Continue gritando!
Ele avançou pela escuridão sob as
árvores, empurrando os galhos que o
bloqueavam, buscando a origem do som da
voz do amigo.
— Anil?
— Aqui! — a voz continuava assustada,
mas pelo menos o pavor maior parecia ter
desaparecido.
Mark viu uma sombra escura sob a
escuridão noturna — caída no chão. Um
rosto pálido estava virado em sua direção,
os olhos cobertos pelo pano preto. Havia
sangue na testa de Anil e seu rosto estava
todo sujo. Ele retirou a venda do amigo. Os
olhos se encontravam completamente
alarmados.
— Solte as minhas mãos! — engasgou
Anil. Mark logo desamarrou o fio que atava
os pulsos. Ele se sentou, ofegando e com as
roupas cobertas pelo lixo do chão. Examinou
em volta com olhos assustados e
arregalados. Ele estava com a respiração
pesada, seus olhos não demonstravam
nenhuma sensação, além do pânico.
Mark jamais havia visto o amigo desse
jeito.
— O que aconteceu? — perguntou
Mark, enquanto ajudava Anil a se levantar.
— Tem alguma coisa aqui — disse Anil.
— Eu ouvi algo vindo na minha direção.
Vamos embora daqui!
— Como você se cortou? — perguntou
Mark.
— Eu acho que esbarrei em algum
galho baixo — respondeu Anil. — Tá muito
feio?
Mark olhou para o corte. Estava
ensanguentado, mas não era fundo.
— Acho que você vai sobreviver —
disse. Mas estava preocupado com outra
coisa agora. Ele havia entrado no bosque
correndo, sem pensar, e agora não sabia ao
certo o caminho de volta. A escuridão
deixava tudo muito confuso.
Mark respirou fundo.
— Chrissie! — chamou.
O silêncio profundo e escuro do bosque
tomou conta deles enquanto esperavam
ouvir uma resposta.
— Chrissie! — ele gritou outra vez,
agora mais alto. Nada.
Mark franziu o rosto. Ela com certeza
tinha escutado — então por que não estava
respondendo?
Ele olhou para Anil. Seu amigo estava
apoiado em um tronco de árvore. Observava
em volta, como se estivesse esperando que
alguma coisa viesse atrás deles.
— Você está bem? — perguntou Mark.
Anil fez que sim com a cabeça.
— Estou um pouco tonto, só isso.
— Eu acho que consigo encontrar o
caminho de volta.
Eles partiram na direção que Mark
esperava que fosse a certa. Apesar de não
se assustar por estar no bosque, o pânico de
Anil estava começando a incomodá-lo.
— Eu tenho certeza que ouvi alguma
coisa — disse Anil. Mark olhou para ele. Isso
estava começando a incomodá-lo, ele jamais
havia visto Anil tão assustado antes.
— Deve ter sido algum bicho —
respondeu Mark. — Talvez uma raposa.
— Eu acho que não. Parecia grande.
Mark olhou para Anil.
— Como assim, um cachorro solto ou
um... coelho assassino? — Mark perguntou
com um ar de brincadeira.
Anil soltou uma gargalhada. Mark
sorriu.
Por volta de um minuto depois eles
chegaram à parte aberta. Mark ficou
extremamente aliviado. Eles estavam a
cerca de 20 metros de distância do portão
por onde entraram.
— Acho que talvez você tivesse razão,
e o barulho lá atrás fosse de um cachorro ou
coisa parecida — disse Anil, com um sorriso
envergonhado. — E a cobra?
Mark estremeceu.
— Tão assustadora quanto o bosque.
Anil franziu o rosto.
— Onde está a Chrissie? — perguntou.
Não havia nenhum sinal dela.
Caminharam pelos limites do bosque até
encontrarem o lugar onde ela havia deixado
a bolsa preta. Não estava mais lá.
Mark pôs as mãos nos lados na boca e
gritou em direção ao bosque.
— Chrissie!
Silêncio.
Será que ela o havia seguido através
da vegetação? Ou ele teria que voltar para
procurá-la?
— Ei, veja só — disse Anil.
Mark virou e olhou na direção para
onde seu amigo estava apontando.
— Quê?
— A parte de cima do portão está
quebrada.
Mark franziu o rosto.
— Ela deve ter escalado de volta para o
outro lado — disse. Era a única
possibilidade. Aquela parte do portão já
estava relativamente solta, mas não podia
ter caído sozinha, precisaria da pressão de
alguém escalando para quebrar. Anil olhou
para ele.
— Ela simplesmente foi embora? —
comentou, incrédulo. Ele olhou para Mark. —
O que houve? Ela falou alguma coisa?
Mark sacudiu a cabeça.
— Ela pegou a cobra — disse. — Depois
o chamou. Quando ouvi os seus gritos fui
atrás. Ela ficou parada.
— Mas ela não disse nada?
Por algum motivo, decidiu não contar a
Anil sobre o beijo — ou a respeito do fato de
que ela havia sugerido que o deixassem
preso no bosque.
— Eu não sei o que ela está aprontando
— disse Mark, amargamente. — Pode
perder-se que não me importo. Já me cansei
dela.
Eles voltaram para a casa de Mark para
passar o resto da noite. Não era tão tarde
quanto esperavam que fosse, e os pais de
Mark ainda estavam acordados. Ele disse
que tinham desistido de dormir na casa de
Anil porque o Playstation, não estava
funcionando muito bem.
O corte na testa de Anil não passava de
um pequeno arranhão. Nem precisou de
curativo. Anil foi direto para o banheiro e
lavou o rosto sem que os pais de Mark
percebessem.
Apesar de terem jogado algumas
partidas, nenhum dos dois estava com muita
vontade de continuar, e não demorou até
que desistissem e fossem dormir. Eles não
conversaram sobre Chrissie.
Mas Mark ficou deitado sem dormir
durante um bom tempo. Ele se lembrou do
que sua mãe havia dito: meninas são
perigosas.
Ele estava começando a acreditar.

Metade da manhã já havia se passado


quando finalmente acordaram e desceram
para a cozinha.
Tinham a casa só para eles. Os pais de
Mark estavam no trabalho.
Mark pôs alguns pães na torradeira e
serviu dois copos de suco de laranja
enquanto Anil ligava o Playstation na sala.
Lá ficava a televisão grande, de tela plana —
bem melhor do que o aparelho no quarto de
Mark. E eles podiam espalhar as almofadas
do sofá pelo chão e ficar bem confortáveis
enquanto jogavam.
Nenhum dos dois mencionou Chrissie,
apesar de Mark só pensar nela. Anil estava
quieto demais, e Mark teve a impressão de
que também estava pensando na menina —
mas ele não disse nada, então Mark não
perguntou.
Foi só quando estavam comendo um
pacote de salgadinhos e tomando suco de
laranja direto da caixa que Anil finalmente
se pronunciou.
— Eu preciso te contar uma coisa —
disse. — Não ia dizer nada, mas... — sua voz
foi desaparecendo.
Mark soube instantaneamente que ele
ia falar sobre Chrissie.
— Pode falar — disse Mark.
— Ontem à noite... quando Chrissie me
levou para o bosque — começou Anil, sua
voz estava hesitante e os olhos desviaram.
— Ela me beijou.
Mark sentiu uma pancada no
estômago.
— Na bochecha — Anil acrescentou,
depressa. — Mas depois ela disse que se
quisesse podia tirar a venda dos olhos.
Afirmou que deixaria você com a cobra no
pescoço até que entrasse em pânico —
franziu o rosto. — Parecia que ela queria que
perdesse — finalmente, ele olhou para Mark.
— Eu falei que isso não era justo — disse. —
Então ela me deixou lá com a venda nos
olhos.
Fez-se um longo silêncio. Mark não
podia acreditar que ela havia feito os dois de
bobos.
— Ela fez a mesma coisa comigo —
Mark disse, finalmente. — Tirou a cobra do
meu pescoço, depois me deu um beijo na
bochecha e disse que nós podíamos deixá-lo
no bosque durante mais tempo, se quisesse
— olhou para Anil. — Disse que não.
Uma expressão de raiva e choque
tomou conta do rosto de Anil.
— Qual é o problema dessa garota?
— Ela gosta de jogos — afirmou Mark,
irritado. — Estava tentando nos jogar um
contra o outro.
— Ela está brincando com a nossa
cabeça desde o começo — disse Anil. — Na
próxima vez que a encontrar, vou dizer
exatamente o que penso a respeito dela.
— Eu espero não encontrá-la nunca
mais — disse Mark. Fez-se outra longa pausa
na conversa enquanto os meninos
mergulhavam em seus próprios
pensamentos.
— Eu gostava dela — disse Anil.
Finalmente, sua voz era baixa e quieta. —
Queria que não fosse desse jeito.
— Eu também — disse Mark, pensando
em como ela era legal.
Então a campainha tocou.
Mark se levantou, caminhou pelo
corredor e abriu a porta.
Era Chrissie.
Sua camiseta dizia:
Vocês riem de mim porque eu sou
diferente. Eu rio de vocês porque vocês são
todos iguais.
— O que você quer? — perguntou Mark,
com a voz severa e amarga.
Chrissie pareceu surpresa.
— Eu pensei que fossem para a frente
— disse. — Esperei por vocês a manhã
inteira — sua voz se elevou a um tom de
dúvida. — O que houve?
Mark olhou para ela.
— Você não sabe?
Ela balançou a cabeça.
— Não, eu não faço a menor ideia. O
que fiz?
Anil apareceu atrás dele no corredor.
— Nós já cansamos dos seus jogos
estúpidos. Por que você não dá o fora? —
disse.
Chrissie olhou boquiaberta para ele.
— Vocês estão malucos? — perguntou.
Ela engoliu em seco, com o rosto se
enchendo de nervoso. — Eu pensei que
fôssemos nos tornar amigos — disse,
engasgando. — Acho que estava errada —
ela se virou e foi andando pelo caminho que
levava até a entrada da casa.
— Espere — disse Mark. Ela parou e
virou para enxergá-lo. — Por que você
desapareceu daquele jeito ontem? —
perguntou irritado.
Ela pareceu surpresa.
— O quê? — virou totalmente,
franzindo o rosto. — O jogo acabara. Ambos
ganharam. Não tinha motivo nenhum para
continuar ali. Eu estava cansada, então fui
para casa. Por quê? Vocês acharam que eu
fosse passar a noite inteira lá?
— Anil se machucou. Você deve ter
ouvido os gritos — disse Mark.
Ela voltou lentamente pelo caminho,
olhando para Anil.
— Machucou-se como?
— Ele caiu, e cortou a cabeça.
— Mostre-me.
— Não foi nada — disse Anil. — Só um
cortezinho na testa — olhou para ela. — E o
que foi aquilo ontem, beijar os dois e nos
tentar jogar um contra o outro? Nem adianta
negar!
— Eu não ia negar — respondeu. — Era
parte do jogo, para ver se vocês se trairiam
para vencer — ela sorriu. — Nenhum dos
dois traiu. Foi incrível. Eu fiquei
impressionada.
Mark olhou para ela, desejando que
pudesse enxergar a sua mente para saber o
que realmente se passava ali. Será que
estava mentindo? Era muito difícil ter
alguma certeza quanto a ela.
Fez-se um silêncio pesado.
— Posso entrar? — perguntou Chrissie.
— Ou vocês dois me odeiam agora? — então
ela sorriu e Mark retribuiu o sorriso, e tudo
parecia estar bem outra vez.
Ele deu um passo para o lado, para
deixá-la entrar. Ela olhou para Anil.
— Estou perdoada? — perguntou. Ele
balançou a cabeça.
— Você sabe que é completamente
louca, não sabe?
Ela riu.
— Você nem imagina — ela disse.
— Nós estávamos brincando com um
jogo chamado ZOMBEEZ — afirmou Anil. —
Talvez você consiga descobrir por que a
gente não consegue ganhar.
— Tudo bem — disse Chrissie
alegremente. — Como é?
Anil levou Chrissie pela sala. Mark
fechou a porta e foi atrás. Parecia que ia
ficar tudo bem entre eles no final.
Ela sentou com as pernas cruzadas
sobre um monte de almofadas no chão.
Estava inclinada para a frente, olhando para
a tela da TV enquanto manipulava o controle
do videogame. Anil estava sentado de um
lado, relendo o manual de instruções do
ZOMBEEZ. Mark observava Chrissie,
impressionado com a intensa concentração
em seus olhos prateados.
O telefone tocou e Mark correu para
atender.
Era Stuart — um amigo da escola que
adorava videogames, tanto quanto Anil e
Mark.
— Você já encontrou a fase secreta do
ZOMBEEZ? — perguntou Stuart.
— Que fase secreta? — disse Mark. —
Como se faz para descobrir a senha?
Um minuto depois, ele estava na sala
com Anil e Chrissie, transmitindo essas
informações, quase sem fôlego, enquanto
Chrissie manipulava o controle.
Ela não demorou muito para desvendar
o mistério. Em poucos minutos, os três
estavam reunidos em frente ao monitor
enquanto se revezavam para jogar o nível
secreto do jogo. Chrissie assumiu o controle
e conseguiu ganhar deles no final. O jogo
ZOMBEEZ estava zerado, o sistema solar se
encontrava a salvo novamente e acabara o
jogo.
Mark teve uma tarde incrível. As coisas
pareciam se acertar com Chrissie, como
queria que fosse.
— Até que não foi tão ruim, para um
videogame — falou Chrissie, deitando sobre
as almofadas e se esticando. Mark e Anil
estavam um de cada lado dela. — Não se
compara a Quem Ousa, Ganha, é claro —
acrescentou, com um sorriso.
— Isso outra vez não! — exclamou Anil,
rindo. — Você nunca desiste desse jogo?
— Escutem — afirmou, olhando para
um e depois para o outro. — Vocês dois
gostam de vencer, né? Então por que a
gente não joga uma última rodada? — ela
sorriu. — Vocês não querem saber qual dos
dois é mais corajoso?
Mark olhou desconfiado para ela. Ele
sabia como era persuasiva quando queria
convencê-los a fazer sua vontade, mas até
que tinha razão. Ele e Anil foram longe
demais com aquele jogo. Jogaram duas
rodadas, e terminaram empatados. Seria
bom descobrir se conseguia ou não vencer
Anil.
Ele olhou para o amigo.
— Eu topo se você concordar — disse
Mark.
Anil ficou quieto de forma pensativa
por um instante. Depois sorriu.
— Se eu vencer, ganho seus tênis? —
perguntou ele.
— Desde que eu ganhe sua camisa —
concordou Mark. Chrissie bateu palmas,
sorrindo de orelha a orelha.
— Ótimo! — disse. — Eu já pensei em
desafios para vocês dois, e sei exatamente
onde devemos fazer — ela se levantou com
um salto. — Então, quero que me encontrem
no extremo oeste da Links Road às quatro e
meia da manhã.
Anil olhou para ela.
— Mas é no meio da noite! — ele disse.
Chrissie confirmou com a cabeça.
— Tem que ser cedo senão não vai dar
certo — sorriu para eles. — Vai ser tão legal!
— disse. — Mal posso esperar! — ela foi em
direção à porta.
— Aonde você vai? — perguntou Mark,
mal conseguindo acreditar que ela estava
correndo outra vez.
A garota olhou para ele.
— Eu tenho algumas coisas para
preparar — disse. — Lembrem-se, quatro e
meia da manhã. Não se atrasem! — ela saiu
pela porta e alguns segundos depois
ouviram a porta da frente fechar.
— Eu já disse uma vez — entoou Anil —
e vou repetir: essa garota é maluca!
Mark balançou a cabeça e sorriu.
— Mas, como ela disse, pelo menos
vamos descobrir qual de nós dois é mais
corajoso. E é claro que sou eu.
— Vai sonhando! — divertiu-se Anil. —
Não importa o que ela invente, vou fazer
picadinho de você!
— Até parece! Eu acredito tanto nisso!
— disse Mark, olhando para Anil. — Minha
casa é mais perto de Links Road do que a
sua. Acho que você vai ter que passar aqui
de novo.
Anil riu.
— Suponho que sim — disse. — Espero
que você tenha um bom despertador.
Foi na escuridão cinza antes do
amanhecer que Anil e Mark foram encontrar
Chrissie nos limites de Links Road. De vez
em quando passavam alguns carros, e a luz
daquela casa estranha brilhava. Mas a
cidade estava muito quieta. A impressão de
Mark era de que eles eram as únicas
pessoas passeando pelas ruas.
Chrissie estava sentada em um muro,
vestindo uma jaqueta de couro grande
demais para ela, apoiada nos braços,
balançando as pernas, exatamente como
quando a conheceram na praia. Enquanto se
aproximavam, ela saltou do muro. Mark
percebeu que sua camiseta preta tinha
outro slogan, impresso em grandes letras
brancas.
Fique por perto — ainda vai piorar.
— Certo — ela disse. — Nesta rodada, o
vencedor leva um prêmio especial.
— Que tipo de prêmio? — perguntou
Anil.
Chrissie retirou dois envelopes do bolso
interno da jaqueta de couro. Ela deu um
para cada um. Mark virou o dele. Estava
selado. O de Anil parecia igual.
— Aí dentro diz o que vocês receberão
pela vitória e o que vão perder pela derrota
— Chrissie contou a eles. — Mas não podem
abri-los enquanto eu não autorizar.
— Tudo bem — disse Mark. Ele dobrou
o envelope ao meio e guardou-o no bolso da
calça. — Mas você ainda não disse o que
teremos que fazer.
— Vocês já vão descobrir — afirmou
Chrissie com um sorriso. — Venham comigo.
Eles foram atrás dela pela rua
silenciosa. No final, Mark podia ver os
grandes painéis amarelos de madeira que
formavam uma barreira alta em torno da
construção onde ela disse que seu pai
trabalhava. Mark supôs que, não importava
a intenção dela, tinha alguma coisa a ver
com aquele lugar.
Chrissie levou-os até dois enormes
portões de madeira, fechados por uma
corrente e um cadeado. Um painel havia
sido moldado para não interferir com a obra
que estava sendo feita no asfalto. A pessoa
que cortou a madeira deixou um pequeno
espaço.
Chrissie se abaixou e se infiltrou.
Anil hesitou olhando para o pequeno
espaço.
— O que foi? — perguntou Mark.
— Já ouviu falar em invasão de
propriedade? — indagou Anil.
A cabeça de Chrissie apareceu pelo
buraco.
— O que vocês estão esperando? —
perguntou ela.
— Estes lugares são cheios de câmeras
de segurança — disse Anil. — Nós vamos ser
vistos.
— Duvido — afirmou Chrissie. — Confie
em mim — ela olhou para Mark. — Confie
em mim — repetiu.
Mark olhou para ela. Será que
realmente podiam confiar nela? Se
quisessem jogar, eles não tinham muita
escolha.
Ele se agachou ao lado do buraco. A
cabeça de Chrissie recuou e Mark se
espremeu pelo espaço. Ele se levantou e
olhou em volta. Havia materiais de
construção espalhados por ali. Canos que
pareciam intestinos. Vigas de aço. Sacos de
areia empilhados. Pilhas e pilhas de tijolos.
Betoneiras. Maquinaria pesada com braços
tortos e mandíbulas dentuças que
contrastavam com o céu como se fossem
dinossauros dormindo.
A principal área de construção era um
pouco afastada dos escombros e da terra
iluminados pela lua. Um molde básico de
vigas formava uma rede de aço contra o céu
— subindo cerca de dez metros, elevando
uma torre corrugada por laterais de ferro.
Mark estremeceu. Alguma coisa
naquele lugar lhe dava arrepios. Ele sentiu
um toque reconfortante em sua mão. Olhou
em volta. Chrissie estava a seu lado,
sorrindo para ele, colocando sua mão na
dele.
— Vai ficar tudo bem — ela disse, com
a voz macia. — Você vai ver.
Sua mão soltou a dele, enquanto Anil
rastejava através do buraco.
— Meu pai disse que só existem quatro
câmeras de segurança em todo este lugar —
disse Chrissie apontando. — Acho que
ninguém vai ver nada agora.
A câmera mais próxima ficava fixa em
um poste de madeira do lado de fora do
muro. Tinha um saco plástico amarrado por
cima dela.
— Eles não verificam os monitores
antes das sete e meia — explicou Chrissie.
— Até perceberem que alguém cobriu as
câmeras já teremos acabado.
Ela saiu andando pela área. Mark e Anil
foram atrás.
Chrissie estava no meio da escuridão.
Anil parou, mas Mark foi para o lado dela.
Era impossível ter noção exata sob as
sombras da escuridão, mas ele imaginou
que a área deveria ter uns 40 metros
quadrados e dez metros de profundidade.
— Meu pai disse que eles vão colocar
os alicerces em breve — disse Chrissie. —
Por isso precisamos fazer isso agora. Caso
contrário, será tarde demais.
— Mas o que exatamente nós vamos
fazer? — perguntou Anil.
Chrissie sorriu para ele.
— Você enfrentará seu medo de altura
— disse. — E Mark vai encarar de frente o
pavor de espaços confinados.
Anil soltou uma gargalhada.
— Se você acha que eu vou subir
naquelas vigas, pode desistir — afirmou. —
Se cair, morro. De jeito nenhum.
— Você não vai morrer — disse Chrissie
com um sorriso reconfortante. — Usará uma
corda de segurança — gesticulou com a
mão, apontando para onde as quatro vigas
se encontravam. — É lá que vai ter que ficar
— salientou.
Mark observou-a. Ela estava quase
reluzente de tanta empolgação, totalmente
envolvida pela adrenalina do jogo. Alguma
coisa legal a seu respeito acontecia quando
ela estava assim. Ele ficou feliz por ter
concordado em jogar a última rodada. Anil
olhou por um longo instante para o lugar
onde as vigas se encontravam.
— E o que o Mark vai ter que fazer? —
perguntou. Chrissie virou e apontou para um
velho baú de metal.
— Ele tem que entrar ali — disse.
Depois caminhou até o baú e se agachou.
Havia um fecho na frente da tampa, selado
por um enorme prego enferrujado. Ela soltou
o prego e abriu a tampa. O baú tinha alguns
chapéus de operário, jaquetas
fosforescentes e algumas ferramentas
manuais. Começou a esvaziar o baú.
— Mas não vou conseguir respirar —
disse Mark, com uma sensação de medo
cruzando seu estômago.
— Eu vou resolver isso — disse
Chrissie. — Você pode me ajudar?
Com a ajuda de ambos, logo o baú
estava vazio. Chrissie fechou a tampa. Ela
pegou um cinzel pesado e um martelo. Os
dois observaram enquanto Chrissie abria
uma série de buracos na tampa. Ela se
levantou, ofegante, por causa do esforço.
— Pronto — disse. — Buracos de ar —
sorriu. — Viu só? Eu pensei em tudo — ela
olhou para ele. — Então? Vai encarar?
Mark olhou para Anil.
— Se você for eu vou — disse ao
amigo.
— Quem Ousa, Ganha — disse Anil,
olhando para Mark com um ar desafiador. —
Ou seja, eu.
— Não mesmo — retrucou Mark. Ele
olhou para Chrissie.
— Estamos prontos — disse.
— Uma última coisa — Chrissie afirmou
a eles. — É importante que vocês consigam
se ver, para saber que ninguém está
roubando. O baú precisa ficar no buraco —
olhou para Mark.
— Assim pode ver Anil e ele conseguirá
avistá-lo. Certo?
— Parece uma boa ideia — disse Mark.
Não que achasse que Anil fosse roubar. Mas,
se pudesse ver seu amigo sofrendo na viga,
talvez fosse mais fácil lidar com o próprio
sofrimento.
Chrissie sorriu.
— Então vamos começar, arrastem o
baú e joguem ali.
Mark agarrou uma das alças
enferrujadas na lateral do baú. Anil pegou a
outra. O baú. era pesado, mas dava para
carregar. Eles se aproximaram do buraco e
jogaram a caixa. Ela caiu do lado certo, mas
num ângulo em que os cantos afiados
penetraram a terra macia.
Uma escada de metal levava até o
buraco, presa no topo para que não
caíssem. Chrissie desceu primeiro. Ela fez
com que os dois amigos colocassem o baú
no meio do buraco. Mark olhou em volta.
Havia paredes de ferro que lembravam uma
construção futurista de um de seus jogos de
videogame.
Chrissie vestiu sua jaqueta de couro,
como se tivesse sentido um frio repentino.
— Certo — começou ela. — As regras
são simples. — É um teste de resistência. Se
algum dos dois não prosseguir, o jogo
acaba. Se nenhum desistir, encerro a
brincadeira após 15 minutos e o resultado
final será o empate.
— E o que acontece se empatar? —
perguntou Anil.
— Aí vai haver um desempate — disse
Chrissie. — Vocês vão descobrir o que é se
for preciso — ela levantou a tampa do baú e
olhou para Mark. — Pode entrar — afirmou.
Ele entrou no baú. Era apertado — mas
não era impossível. Deitou-se de lado
encolhendo as pernas para cima,
posicionando-se sobre o ombro.
Chrissie olhou para ele.
— É só gritar se quiser — disse.
Inclinou-se sobre ele e sussurrou. — Eu
aposto que você vai ganhar.
Mark olhou nos olhos dela, de repente
seguro de que conseguiria.
Chrissie se esticou.
— Até logo! — ela disse.
Ele viu seu rosto sorridente, e depois a
tampa pesada de metal se fechou e tudo
escureceu. Mark ouviu o barulho enquanto
Chrissie fechava o baú com o prego.
Mark sentiu o medo dominá-lo quando
a realidade do que ele concordou em fazer
se apresentou. Estava trancado no baú.
Naqueles primeiros instantes parecia que as
laterais da caixa se fechavam em torno dele
como um punho esmagador mortal. Mas
enquanto estava deitado no metal frio, seus
olhos começaram a se acostumar à
escuridão. Podia ver pontos de luz
acinzentados sobre ele — os buracos que
Chrissie tinha aberto na tampa.
Levantou-se o máximo que pôde e
espiou através de um dos maiores buracos
na tampa. Ele podia ver a rede de vigas bem
acima: linhas negras contra um céu que
estava começando a clarear com uma fria
luz metálica.
— Ei? — ele chamou. — Tem alguém
aí?
Mas ninguém respondeu. Ele tremeu,
muito assustado, de repente. E se tivesse
sido abandonado?
Acalme-se! Eles não vão fazer isso!
Ele cerrou os olhos nos confins do baú,
tentando enxergar melhor o mundo lá fora.
Encontrou um buraco que permitia que
enxergasse o lado onde estava a escada. Ele
viu que Chrissie e Anil já estavam no nível
térreo. Chrissie amarrava uma corda na
cintura de Anil. Estava muito longe para que
pudesse ver sua expressão, mas supôs que
Anil estivesse em pânico agora.
Mark teve lembranças de quando eram
mais novos. Anil com os olhos arregalados e
o rosto pálido com medo da roda-gigante. E
de ele se assustando quando se apoiaram
em uma janela no topo de um prédio
comercial durante um passeio da escola.
Surpreendentemente, sentiu-se calmo.
Por enquanto. Os buracos de ar permitiam
que se concentrasse em coisas fora do baú
— elas o ajudavam a se esquecer que
estava preso ali. Mas o metal era muito frio,
e essa sensação ultrapassava suas roupas.
Ele observou enquanto Chrissie
caminhou pela viga, com os braços abertos
para se equilibrar e com a ponta da corda de
Anil em sua mão. Amarrou-a em torno da
viga e prendeu a outra ponta na cintura de
Anil. Ela chegou ao local onde as quatro
vigas se encontravam. Era exatamente
acima da cabeça de Mark. Ele mal conseguia
enxergá-la agora.
Mark podia ouvir a sua voz.
— Pronto — ela disse. — Pode vir. Não
olhe para baixo. Tome cuidado. Mantenha os
olhos em mim. Eu não vou deixar você cair.
Pode confiar.
Anil subiu na viga. Mark observou
enquanto seu amigo caminhava lentamente
para a frente, agarrando a corda.
— Muito bem — disse Chrissie,
enrolando a corda em suas mãos enquanto
ele se aproximava dela. — Você está indo
muito bem.
— Isso é o que você pensa — Mark
podia ouvir o tremor na voz de seu amigo.
Agora Anil estava num cruzamento e
Mark só conseguia percebê-lo como uma
sombra estranha e escura contra o céu
cinza. Depois ele viu Chrissie passar por
Anil, de uma viga para a outra, e voltar
lentamente pelo caminho que havia
percorrido, segurando a corda durante o
trajeto.
Ela se aproximou do buraco. Sentou-se
na viga, enrolando a corda.
Ela olhou para o relógio.
— Pronto — disse. — Está valendo!
Apenas 15 minutos e isso iria acabar.
Os braços e as pernas de Mark estavam
começando a ficar apertados e
desconfortáveis. Ele se remexia no baú,
tentando se colocar em uma posição em que
pudesse enxergar sem torcer o pescoço ou
causar nós de tensão nos braços e nas
pernas. O medo de estar no baú continuava
ali, mas estava equilibrado com a vontade
de vencer Anil.
Ele desejou ter-se lembrado de trazer
um relógio. Era difícil imaginar quanto
tempo havia passado. Tentou contar os
segundos, mas sempre perdia a conta — sua
mente estava distraída demais para isso. O
frio começava a incomodar demais, e, à
medida que o tempo se arrastava, ele
percebia quão pequeno e escuro era o baú.
Não podia esticar nem um pouco as pernas.
Nem conseguia sentar-se, e a tampa estava
muito bem fechada. A posição menos
desconfortável era de lado, abraçando os
joelhos. Mas nessa posição os buracos de ar
ficavam muito longe.
Após um curto período, começou a se
sentir sufocado e tonto. Ele levantou a
cabeça para perto da tampa novamente e
pôs a boca em um dos buracos, respirando
ar puro.
Ele ouviu Chrissie chamando.
— Ei, Mark? Como você está se saindo?
— Nada mal! — respondeu, torcendo
para parecer mais positivo do que realmente
se sentia.
— Que bom — disse Chrissie. — Anil?
Tudo bem com você?
— Na verdade, não — ele parecia
realmente muito assustado lá em cima.
— Vai ficar tudo bem. É só não olhar
para baixo — disse Chrissie, com a voz
estimuladora. — Vocês dois estão indo muito
bem.
Mark espiou por um dos buracos. Ele
conseguia identificar a forma escura de Anil
no ponto em que as quatro vigas se
encontravam. Os braços das vigas estavam
esticados, linhas pretas finas contra o seu
braço que agora estava cinza-prateado com
o dia que nascia.
Mark caiu para trás, o ombro e o
cotovelo doíam por causa do esforço de se
manter naquela posição desconfortável. A
sensação de falta de ar voltou. Ele começou
a ofegar, o coração doía no peito. Podia
sentir o pânico crescer.
Ele se esticou para cima outra vez, com
os olhos no buraco. Com certeza uns dez
minutos já deviam ter passado. Ou talvez
cinco. Ele percebeu que não fazia a menor
ideia.
O sol já havia nascido, mas a luz clara
era fria e triste.
Ele precisava se distrair de alguma
maneira. Esticou o braço e puxou o envelope
do bolso. Ele o segurou próximo ao buraco.
O que havia ali dentro? Um prêmio para o
vencedor — uma perda para o derrotado.
Mas o quê?
— Falta pouco, meninos — disse
Chrissie. — Segurem firme.
Os lados do baú davam a impressão de
se fechar ao seu redor — a tampa parecia
descer, acabando com todo o ar, sufocando-
o. E de repente ele não se importava mais
em ganhar — a única coisa que queria no
mundo era sair dali.
Ele estava prestes a gritar quando
ouviu a voz de Anil.
— Chega! Eu desisto. O Mark ganhou.
Basta!
Mark se esticou novamente, com os
olhos no buraco. Podia ver que Anil estava
sobre as mãos e os joelhos na viga, e que
ele se segurava com força.
Chrissie estava se inclinando para a
frente, olhando para ele.
— Você tem certeza? — perguntou ela.
— Tenho! Tire-me daqui!
Ela se levantou. Sua voz era alta e
aguda enquanto gritava para ele.
— Parabéns, Anil! Você é o vencedor!
Mark ficou estarrecido. Anil era o
vencedor? Como assim?
Mas todos os pensamentos foram
afastados da mente quando ele viu Chrissie
pegar a corda de segurança com ambas as
mãos e puxar com força.
Mark viu Anil ser arrastado para a
frente. Chrissie agarrou a corda com as
mãos, contorcendo-se por causa do esforço,
inclinando-se para trás até que a corda
estivesse esticada. Ela puxou novamente,
utilizando todo o seu peso desta vez. Anil
estava escorregando do outro lado da viga.
— Mark! — gritou Anil, aterrorizado. —
Por favor, me ajuda!
Mark girou por cima das costas e
tentou chutar a tampa do baú com as
pernas dobradas. Mas não adiantava nada. A
tampa sequer se mexeu. Ele olhou para
cima, para enxergar o buraco novamente,
desesperado para ajudar Anil, chutando
furiosamente, mas sabendo que não havia
nada que pudesse fazer. Assistiu apavorado
enquanto seu amigo estava pendurado
pelas mãos, diretamente acima dele.
Chrissie deu um puxão final na corda e as
mãos de Anil se soltaram. Anil soltou um
grito.
— Maaaaark!
— Não! — gritou Mark.
Por um segundo, viu seu amigo caindo
sobre ele. Fez-se um barulho ensurdecedor
quando Anil atingiu a tampa do baú. Mark
gritou apavorado quando a tampa o atingiu.
Uma dor penetrante surgiu em sua cabeça.
Então tudo escureceu.
Gradualmente, Mark percebeu duas
coisas. Sua cabeça doía profundamente. E
uma voz lhe chamava. Tentou mover-se,
mas seus pés bateram na parede do baú.
Então se recordou de onde estava e do que
tinha acontecido a Anil. Foi uma queda e
tanto — ele devia ter se machucado muito.
A voz alegre de Chrissie falou.
— Oi, Mark, você está acordado?
A tampa do baú estava afundada e com
uma abertura enorme no topo. A luz entrava
por cima. Ele lutou para se concentrar. Viu
uma larga fatia do rosto de Chrissie
enquanto ela o observava através da
rachadura na tampa.
— Você está bem? — ela perguntou,
parecendo preocupada. — Nossa, por um
instante pensei que ele o tivesse esmagado
como um inseto. Mark? Você está bem?
— O que aconteceu com Anil? — tossiu,
distraído demais para conseguir sentir raiva
ou medo. Apesar de que, no fundo de sua
mente, ambas as emoções começavam a
surgir.
— Não se preocupe com Anil — disse
Chrissie. — Eu cuido dele. Você viu o jeito
que ele caiu? Uau! Foi incrível!
A voz de Mark estava vazia —
espantada.
— Ele morreu? — mas ao dizer as
palavras, foi atingido pela realidade do que
havia acontecido com ele. Começou a socar
a tampa do baú. — Você o matou! — gritou.
— Você matou Anil!
O rosto de Chrissie se aproximou da
tampa, e ele podia ver que os olhos
prateados olhavam para ele.
— Não fique assim, Mark, foi só um
jogo — ela sorriu. — Você pode abrir o
envelope agora. O jogo acabou.
Mark bateu na tampa com o punho.
— Tire-me daqui! — gritou.
O rosto de Chrissie se afastou enquanto
ela se levantou.
— Não, isso eu não posso — disse. —
Mas você pode conversar comigo se quiser,
vou ficar aqui por um tempo.
Mark socou a tampa do baú. Ela
tremeu, mas continuou fechada. Ele chutou
no final, seus ouvidos buzinavam com o
barulho metálico do baú sendo atingido por
seus sapatos. Mas as laterais não cederam
um único centímetro.
— Abra a tampa, Chrissie! — pediu
Mark.
— Estou ocupada! — respondeu.
Mark socou a tampa, gastando energia
com um esforço vão para abri-la, tentando
forçar a abertura — mas a dor de empurrar
as pontas de metal era grande demais e,
quando recuou, ele viu o sangue escorrer
dos cortes profundos em seus dedos.
— O que você fez com Anil? — gritou.
— Eu o deixei confortável — respondeu
Chrissie.
Mark observou por uma abertura
estreita na lateral do baú. Ele viu um monte
de terra fresca ali perto. Uma mão estava
esticada para fora da areia. A mão de Anil.
Uma gota de suor frio de terror escorreu por
sua testa. Chrissie cavou o chão e uma
última pá de terra cobriu a mão.
Ela olhou para o baú. Estava rindo
consigo mesma, como se achasse graça em
alguma piada que só ela conhecia. Mark
sentiu o medo dominá-lo ao olhar para ela.
— Chrissie? — chamou.
— Você já abriu o envelope? — ela
perguntou.
— Não — Mark teve que lutar para que
sua voz não saísse histérica. — Não, ainda
não. Chrissie? Você pode me deixar sair, por
favor?
— Você deveria abrir o envelope —
disse. — Ele explica tudo.
— Por favor, Chrissie. Deixe-me sair.
Ela foi até o baú e bateu com a pá. O
barulho produzido penetrou a cabeça
latejante de Mark como se fosse uma faca.
— Abra o envelope, ou cale a boca! —
gritou Chrissie. — Eu estou ocupada!
Contorcendo-se, Mark olhou para ela. A
garota estava cavando outra vez. Enquanto
ele observava, ela pegou uma pá cheia de
terra e voltou para o baú. Jogou a terra na
lateral, bloqueando sua visão. Ele afastou a
cabeça, cuspindo sujeira.
Ele se sentou, tentando pensar.
Chrissie era louca. Ondas de pânico
percorreram seu corpo. Ele se sentiu como
se estivesse vivendo um pesadelo. Ela era
louca, e tinha matado seu melhor amigo.
Ele ouviu o impacto de outro monte de
terra atingindo o baú.
O que ela estava fazendo? Jogando
terra em volta do baú — mas por quê?
Ele precisava encontrar um modo de
convencê-la a deixá-lo sair do baú.
— Chrissie? — chamou, com a voz
trêmula. — Tudo bem, eu vou abrir o
envelope.
Talvez, se ele fizesse isso, ela o
soltasse.
Ele conseguia ouvi-la jogando cada vez
mais terra nos contornos do baú. Procurou o
envelope. Seus dedos acabaram
encontrando-o embaixo da perna.
Extremamente desconfortável,
conseguiu se ajeitar em uma posição em
que podia segurar o envelope próximo à luz.
Ele o abriu com as mãos trêmulas. Lá dentro
havia dois pedaços de papel. Alguma coisa
atingiu a tampa do baú. A luz diminuiu. Caiu
um pouco de terra pelos buracos de cima.
Chrissie estava jogando terra por cima do
baú também.
Outra pá cheia de terra atingiu a
tampa.
— Pronto — ela disse. — Agora eu
preciso ir.
— Chrissie? Não vá.
— Eu preciso — disse. — Os operários
vão chegar daqui a pouco. Eles vão jogar
cimento em tudo. Eu não posso permitir que
me encontrem aqui, seja realista, Mark! —
Sua voz já parecia distante.
— Por favor, Chrissie! — Mark gritou
desesperado. — Chrissie!
Encontrou um buraco de ar que não
havia sido coberto pela terra. Ele viu
Chrissie subindo a escada e saindo do
buraco. Ela estava sorrindo. Depois ela
andou e desapareceu.
Mark soltou um grito.
Com os dedos trêmulos, desdobrou o
primeiro pedaço de papel, segurando-o sob
a luz. Era uma cópia de um artigo de jornal.
Era uma notícia de algumas semanas
atrás. O artigo que contava a tragédia de
três adolescentes que caíram dos
penhascos. Havia fotos dos três — dois
meninos e uma menina. A garota tinha
longos cabelos louros e olhos grandes. Ela
usava uma camisa com um slogan escrito
em branco.
Eu estou louca. Qual é a sua desculpa?
A menina estava sorrindo — e seu
sorriso parecia o sol nascente.
Era Chrissie.
Chrissie com cabelos louros.
Alguma coisa havia sido escrita na
margem do artigo. Eles não encontraram o
meu corpo porque eu não caí — mas Josh e
Will caíram direitinho na minha brincadeira!
Assim como vocês.
Horrorizado, Mark lutou para abrir o
segundo pedaço de papel.
Nele havia oito palavras escritas em
letras maiúsculas. Oito palavras que quase
fizeram o coração de Mark parar.
O VENCEDOR MORRE DEPRESSA. O
PERDEDOR MORRE DEVAGAR.
NÃO ACORDE O BEBÊ
— Alice! Telefone!
Os dedos de Alice Buchanan pararam
no teclado. Eram 19h30 e ela estava se
apressando para concluir o trabalho de
redação para que pudesse descer para a
sala e assistir ao seu programa favorito na
TV.
— Quem é? — gritou.
— A senhora Wilkins — berrou a mãe.
— Já vou! — Alice salvou o documento
e correu para a porta do quarto. A senhora
Wilkins havia posto um anúncio no mural de
uma loja de revistas há duas semanas:
“Precisa-se de babá confiável”.
Alice correu pelas escadas e pegou o
fone.
— Alô? — atendeu, ofegante. — É Alice.
— Alô, Alice — disse a voz rouca e
didática da senhora Wilkins. — Você ainda
está interessada no emprego de babá?
— Estou, quando a senhora quer que
eu comece? — perguntou Alice, ansiosa.
— Eu e o senhor Wilkins gostaríamos
de sair na sexta-feira. Você consegue vir?
— Sem problemas — respondeu Alice.
— Você poderia chegar aqui às 19h30?
— perguntou a senhora Wilkins.
— Em ponto! — respondeu Alice,
procurando um papel e uma caneta para
anotar o endereço dos Wilkins. — Certo, já
anotei.
— Até lá — disse a senhora Wilkins. —
Até logo, Alice.
— Até logo — Alice sorriu ao desligar o
telefone. Estava muito feliz por conseguir o
seu primeiro trabalho como babá. Ela
finalmente conseguiria o dinheiro para
comprar aqueles jeans que desejava.

O carro parou na frente da casa dos


Wilkins.
— A que horas eles disseram que iam
voltar? — perguntou a mãe de Alice.
— Onze e meia da noite. No máximo —
disse Alice, olhando-se no espelho
retrovisor. Ela queria causar uma boa
impressão nos Wilkins. Passou os dedos por
seus longos cabelos negros, ajeitando
cuidadosamente a franja que caiu sobre os
olhos.
— E você tem certeza que eles vão
levá-la para casa depois? — perguntou a
mãe de Alice.
— Tenho, mamãe — respondeu Alice,
ansiosa. — Vai ficar tudo bem — ela deu
uma piscadela para a mãe e sorriu. — E
amanhã de manhã você pode me levar para
fazer compras!
Alice saiu do carro e observou
enquanto sua mãe se afastava. A ideia da
noite que se aproximava era empolgante,
mas um pouco tensa. Ela esperava que o
senhor e a senhora Wilkins gostassem dela.
Afinal de contas, não se conheciam
pessoalmente. O único contato de Alice com
o casal havia sido a conversa por telefone
com a senhora Wilkins. Ela esperava que
conseguisse lidar com o bebê. Alice respirou
fundo e colocou os nervos no fundo de sua
mente. Então se concentrou para aparecer
como uma pessoa crescida e competente.
A residência dos Wilkins era uma das
casas de dois andares situadas na colina,
atrás de largos jardins frontais. As
dobradiças dos portões de madeira
rangeram quando Alice entrou, e o caminho
até a casa era quebrado e desigual. Ela
notou que as plantas no jardim da frente
eram um pouco malcuidadas, e os arbustos,
cheios de ervas daninhas.
A casa em si tinha dois andares, e uma
pequena janela cuja moldura precisava ser
pintada novamente. Uma luz amarelada
nem um pouco convidativa brilhava através
da janela do segundo andar até o jardim do
lado de fora. A varanda da frente estava
apagada. À primeira vista, parecia um lugar
triste e abandonado.
Alice subiu os degraus até a porta da
frente e tocou a campainha. O som
produzido era forte e eletrônico. Após um
instante a porta abriu. Um homem alto e
magro com óculos grossos foi quem atendeu
— Alice concluiu que deveria tratar-se do
senhor Wilkins. Ele tinha cabelos curtos e
penteados para trás com gel. Seu rosto era
longo e fino, e tinha os ombros curvados. Ela
imaginou que devia ter uns 35 anos. Possuía
uma marca de nascença na bochecha
direita, do tamanho de uma moeda de dez
centavos. Alice fez o que pôde para não
encarar.
— Bem na hora! — ele disse, sorrindo.
— Entre, por favor — abaixou a voz ao
entrar na casa. — A senhora Wilkins está
colocando o Ralphie para dormir — disse,
pondo o dedo sobre os lábios. A porta se
fechou atrás de Alice, surpreendendo-a. Ela
nem percebeu que o senhor Wilkins havia
encostado.
Em seguida Alice notou um cheiro
estranho e mofado no corredor, como se a
casa precisasse tomar um pouco de ar. Ela
tentou não contrair o nariz em sinal de
repulsa. O papel de parede era escuro e
antiquado, e a entrada da casa era
iluminada por uma luminária que precisava
ser limpa para eliminar as teias de aranha.
— Por favor, vá na frente — disse o
senhor Wilkins, esfregando as mãos e
indicando o caminho com um aceno de
cabeça. Alice abriu a porta e adentrou a
sala. O senhor Wilkins entrou deslizando
silenciosamente atrás dela. Uma estranha
música orquestral tocava no rádio antiquado
de madeira em uma prateleira no canto.
Alice analisou a sala com surpresa. Era
decorada em estilo retro, com móveis
antigos e papel de parede floral. Mesmo as
fotos na parede e os ornamentos na lareira
se encaixavam perfeitamente ali. Parecia
com as fotos dos anos 1950 que ela via nos
álbuns da avó.
— A senhora Wilkins já vai descer —
disse o senhor Wilkins.
— Os dentes de Ralphie estão
nascendo — continuou. — Às vezes, ele fica
enjoado e mal-humorado por isso. Nessas
ocasiões é muito difícil colocá-lo para dormir
— levantou o dedo, a cabeça se inclinou
como se estivesse tentando ouvir alguma
coisa, e os olhos se voltaram para cima por
trás das grossas lentes dos óculos. — Ouça.
Alice ouviu por alguns segundos.
— Eu não estou ouvindo nada — ela
respondeu.
O senhor Wilkins fez um sinal positivo
com a cabeça, sorrindo e esfregando as
mãos alegremente outra vez.
— Acho que ele finalmente dormiu. A
senhora Wilkins vai descer logo.
O senhor Wilkins foi até o rádio e se
inclinou para a frente, para ouvir mais de
perto. Cantarolou por um instante e fez
alguns movimentos com o braço, como se
estivesse conduzindo uma orquestra. Ele
sorriu.
— Você gosta de música, Alice?
Ela fez que sim com a cabeça,
decidindo que não seria boa ideia lhe dizer o
que achava daquele tipo de música.
— Todo mundo gosta de música —
disse uma voz que fez com que Alice desse
um pulo. A senhora Wilkins havia entrado na
sala sem fazer nenhum barulho, e estava
em pé ao seu lado.
Era quase da altura do marido, e talvez
até mais magra, com as bochechas ocas e
olhos penetrantes. Ela estava usando um
vestido de flores e um casaco amarelo, e
seus cabelos escuros estavam firmes com
laquê.
— Alice, é um prazer conhecê-la —
disse a senhora Wilkins.
— Eu espero que o senhor Wilkins a
tenha deixado à vontade. Nós gostamos
muito de receber visitas em casa.
— Sim, muito obrigada — afirmou Alice,
tentando se acalmar após o choque da
aparição repentina da senhora Wilkins. —
Essa sala é incrível! — disse, esperando
parecer calma e capaz. — Vocês devem ter
levado um tempão para conseguir todas
essas coisas.
— Desculpe, Alice, como assim? —
perguntou a senhora Wilkins, franzindo o
rosto.
— Essa decoração dos anos 1950 —
respondeu Alice, nervosa. — É bem...
diferente.
O senhor e a senhora Wilkins olharam
intrigados para ela.
— Desculpe, Alice, não entendi — disse
o senhor Wilkins.
— Oh, desculpe. Não tem importância
— afirmou Alice. Ela sentiu uma
manifestação de constrangimento
enrubescer seu rosto. Então a aparência
“retro” não era uma decoração diferente;
mas o jeito que a sala era mesmo.
Foi quando Alice percebeu que o
senhor e a senhora Wilkins tinham investido
completamente no estilo retro. Não apenas
os móveis e a decoração eram de outro
tempo — as roupas, os cabelos, tudo a
respeito deles era característico de 50 anos
atrás.
Muito bem, Alice, ela pensou consigo
mesma. Continue assim, e você vai ser
demitida antes de começar.
— O bebê está dormindo? — perguntou
o senhor Wilkins à esposa.
Ela sorriu.
— Como um anjo.
— O que faço se ele acordar? —
perguntou Alice. — Tem alguma mamadeira
ou devo dar umas voltas com ele?
— Ah, ele não vai acordar — respondeu
a senhora Wilkins.
— Não dará um pio, desde que não
faça nenhum barulho — franziu o rosto. —
Você não vai fazer barulho, vai, Alice?
— Nenhum barulhinho — respondeu. —
Vou ficar aqui quieta, assistindo à televisão,
com o volume bem baixinho — olhou ao
redor da sala, procurando a TV.
— Sinto muito, mas não temos televisor
— disse o senhor Wilkins. — A
radiotelegrafia oferece todo o
entretenimento de que precisamos.
Alice olhou para ele. A o quê? Ele
estava olhando para o velho rádio.
— Ah — ela disse. — Tudo bem. Não
tem problema. Vou ficar ouvindo o... bem...
rádio, então — o estranho casal estava
começando a ser registrado pelo detector de
esquisitices de Alice. Radiotelegrafia? Quem
usa palavras como radiotelegrafia?
A senhora Wilkins apontou para uma
porta.
— Ali temos jogos, quebra-cabeças e
revista, se você ficar entediada — ela disse.
— Eu vou ficar bem — respondeu Alice,
forçando um sorriso, e desejando ter levado
seu aparelho de mp3 ou um livro.
— Bem, querida — disse o senhor
Wilkins para sua esposa, puxando as
mangas do paletó e olhando para o relógio.
— Está na hora de irmos.
— Vocês vão a algum lugar especial? —
perguntou Alice.
— Estaremos de volta às 23h30 —
afirmou a senhora Wilkins, parecendo não
tê-la escutado.
— Tudo bem — disse Alice. — Mas
ainda não sei o que fazer se Ralphie acordar
— ela sentiu um frio na barriga.
— Ele não vai acordar — retrucou a
senhora Wilkins. — Basta você ficar
quietinha aqui embaixo — olhou para Alice.
— Bem, isso é muito importante. Não
pode subir de jeito nenhum. Ralphie tem o
sono muito leve, e qualquer barulhinho faz
com que ele acorde.
— Mas... e se acordar sozinho? —
insistiu Alice, preocupada com o aviso. — E
se ele começar a chorar?
— Ele não vai — repetiu a senhora
Wilkins. Ela apontou para uma enorme babá
eletrônica que estava na estante. — Vamos
ouvir.
Alice ouviu. Ela escutou o barulho leve
e pacífico através do aparelho.
— Tudo bem, então — ela disse,
sentindo-se derrotada.
— Voltaremos às 23h30 — reiterou a
senhora Wilkins. — A cozinha é no final do
corredor. Prepare alguma coisa para você
comer. Tem pão e queijo se ficar com fome.
— Ótimo, obrigada — pão e queijo! Ela
pensou. Nossa!
— O número do lugar para onde vamos
está ao lado do telefone, caso precise falar
conosco — disse o senhor Wilkins. Eles
foram até o corredor e pararam por um
instante.
Havia um cabide de casacos na parede,
e Alice esperou para que os Wilkins
vestissem os casacos. Mas eles não se
mexeram. Depois de um longo tempo, o
senhor Wilkins falou.
— A porta da frente, Alice — ele disse,
apontando para a entrada. — Por favor.
Ela lhe lançou um olhar confuso.
— Oh, certo. É claro — foi até a porta e
abriu. Ela concluiu que eram daqueles tipos
de pessoas que acham que a boa educação
manda os mais jovens abrirem e fecharem
as portas para eles.
Os Wilkins passaram por ela, de braços
dados, e caminharam pelo jardim. No portão
a senhora Wilkins virou e acenou. Alice
retribuiu o aceno, e em seguida fechou a
porta.
Eles tinham ido embora. Alice encheu
as bochechas e respirou aliviada. Mas como
são estranhos, pensou. Ela olhou para o
corredor mal-iluminado. A casa não parecia
mais tão fria agora que estava sozinha.
Alice ouviu atentamente. Não havia
nenhum barulho lá em cima. Ela subiu os
primeiros três ou quatro degraus e escutou
novamente, com a cabeça no corrimão.
A casa estava absolutamente
silenciosa.
Alice voltou para a sala. Ela pegou a
bolsa e catou o telefone celular. Havia
prometido ligar para Emily, sua melhor
amiga, para contar como estavam as coisas.
Tinha que lhe contar sobre esse lugar
— e sobre essas pessoas inacreditáveis! Isso
é viver em seu próprio mundo! Alice
desligou aquela música horrorosa do rádio e
apertou os botões de discagem rápida no
celular e depois o botão verde de chamada.
Ela pôs o telefone no ouvido, mas não ouviu
nenhum barulho. Com o rosto franzido,
tentou novamente, mas o telefone estava
apagado.
— Ah, ótimo — suspirou Alice. — Eu
esqueci de carregar a bateria. Isso é
simplesmente perfeito — olhou para o
telefone da casa. — Tenho certeza de que
eles não vão se incomodar com uma ligação
rápida — ela disse para si mesma. — É só
dar o número daqui pra Emily que ela
retorna a ligação.
Ela levantou o fone pesado e colocou
na orelha. O barulho era estranho e
diferente, não era como o tom de discagem
normal. Alice mexeu no disco de plástico
algumas vezes. O barulho vinha e voltava —
mas nada de tom de discagem.
Ela olhou para o pedacinho de papel
que estava ao lado do telefone. Havia umas
coisas um pouco apagadas escritas nele e
três letras, em maiúsculas — e depois
quatro números. E o pedaço de papel era
desbotado e enrolado. Dava a impressão de
ser muito velho, e a tinta parecia apagada.
Alice franziu o rosto. O senhor Wilkins
dissera que eles tinham deixado um número
de telefone para ela — mas não podia ser
esse, certamente... Confusa, olhou
novamente para o telefone. Ao lado dos
buracos havia tanto letras quanto números.
O 1 tinha ABC escrito ao lado, o 2 tinha
DEF... e assim por diante por todo o círculo.
O aparelho em si era muito pesado e
antiquado, e parecia se encaixar muito bem
com o resto da casa.
— Não que faça alguma diferença —
murmurou para si mesma. — Moderno ou
retro, esta porcaria está quebrada! — então
parou. E se os Wilkins pensassem que ela
havia quebrado o telefone? Talvez fosse
uma antiguidade!
Alice correu para o hall de entrada.
Tinha que tentar alcançar os Wilkins antes
que saíssem — Precisava avisar que o
telefone não estava funcionando.
Ela abriu a porta e foi até a varanda.
Na escuridão da noite, as lâmpadas
permitiam que enxergasse toda a extensão.
Os Wilkins não estavam em lugar nenhum.
— Ótimo! — resmungou Alice.
Começava a ventar e esfriava. A noite
estava caindo sobre as árvores e sobre as
portas antigas.
Ela tremeu, pensando no que deveria
fazer.
Não entre em pânico, pensou, isso não
é nenhuma catástrofe. Ela virou de costas e
voltou para a casa, fechando a porta
cuidadosamente. Olhou para o relógio. Oito
horas. Desde que Ralphie continuasse
dormindo durante as próximas três horas e
meia, não teria problemas. Mas ela estava
com um pensamento perturbador no fundo
da mente.
E se ele não continuasse dormindo?
Certamente tinha que haver uma
mamadeira ou alguma coisa na cozinha —
algo que pudesse dar-lhe caso acontecesse
alguma emergência e ele começasse a
berrar.
Ela caminhou pelo corredor, ao lado da
escada.
— Eu não acredito nisso — suspirou
Alice, ao entrar na cozinha. Se é que era
possível, tinha cara de mais antiga do que a
sala. Havia um enorme armário escuro de
madeira com prateleiras que guardavam
pratos, e uma pia antiga de porcelana no
canto, sob uma coisa que ela reconheceu
ser um antigo aquecedor de água cor de
cobre. A geladeira era minúscula. Não viu
uma máquina de lavar, ou uma lava-louças,
ou um forno de micro-ondas. Era como um
museu estranho.
A esquisitice da casa começou a
intrigá-la.
— Eles devem dar alguma coisa normal
para o bebê — disse para si mesma.
Ela achou algumas coisas em um
armário embaixo de uma bancada de
madeira. Havia um pacote de biscoitos. Alice
o pegou. Ao abri-lo, foi surpreendida por um
cheiro desagradável. Os biscoitos estavam
verdes de mofo.
Alice pôs o pacote no lixo ao lado da
porta e foi até a geladeira. Ela teve que
forçar para conseguir abrir. O que viu foi
uma selva de comida velha e mofada.
— Que coisa mais nojenta! — disse em
voz alta, tapando o nariz enquanto
examinava o leite coalhado, o queijo verde e
o presunto que parecia um papel. Os
legumes na parte de baixo mal podiam ser
reconhecidos. Ao fechar a geladeira ela
olhou para a cesta dos pães, só para ver um
pão de forma inteiro, mais duro que um
tijolo.
Alice deu de ombros, decidindo que
não faria nenhum sanduíche. Ela havia se
imaginado com uma geladeira cheia para
passar a noite. A falta de qualquer coisa
decente — ou de algo que não fosse mofado
ou nojento — para comer era inacreditável!
Qual era o problema dessas pessoas?
— O que eles dão para Ralphie? — Alice
pensou em voz alta. — Ele deve comer
alguma coisa — ela abriu mais armários, e
não havia nenhum sinal de comida de bebê.
Sentiu um desconforto subir pela espinha.
Talvez os Wilkins guardassem as coisas de
Ralphie lá em cima? Ainda imaginando, ela
voltou para a sala. Precisava arrumar
alguma coisa para passar o tempo até as
23h30, para esquecer o quanto a noite
estava estranha.
Ela ligou o rádio. Alguns segundos
depois, mais música orquestral detestável
soou através da caixa de som.
— Não, obrigada — disse, girando o
botão. Fez-se um barulho estranho, como se
alguma coisa estivesse arranhando, mas
não conseguiu encontrar mais nenhuma
estação. Tentou voltar para a primeira
emissora, mas esta também parecia ter
desaparecido. Ela ouviu o barulho eletrônico
irritante por mais alguns segundos e depois
desligou o aparelho.
Foi até a janela e abriu o canto da
cortina. Sem TV, sem computador, sem
rádio que pudesse escutar, sem telefone
que funcionasse, sem aparelho de som, sem
comida — nada. A residência dos Wilkins
fazia Alice se lembrar de casas em
exposição — não parecia haver nada que
funcionasse.
Alice foi até o armário e abriu a porta.
Havia duas prateleiras — a de cima estava
cheia de jornais e revistas; a de baixo,
repleta de jogos em caixas velhas e
desbotadas.
Ela pegou os jogos e os examinou.
Banco Imobiliário. Ludo. Xadrez. Cobras e
Escadas. Uma coisa chamada Turfe, da qual
jamais ouvira falar, mas que parecia
envolver corridas de cavalo. Também
encontrou alguns quebra-cabeças e um jogo
de baralho. Nas sombras do fundo da
prateleira, notou um livro guardado entre
outras coisas. Era de capa dura, com
acabamento de couro. Na capa, com letras
douradas, estava o título: Memórias felizes.
Era um álbum de fotografias. Intrigada,
Alice abriu o livro. As primeiras fotos
pareciam antigas; retratavam pessoas com
roupas esquisitas, que viviam em um mundo
estranho e monocromático.
Ela virou as páginas cuidadosamente.
Encontrou algumas fotos de bebê em uma
manta. Na página seguinte havia diversos
retratos de uma criança com um bebê.
Havia uma legenda escrita em
caligrafia antiga sob uma das fotos: “Nossos
Dois Pequenos Tesouros — Ralphie e
Barbara. Maio, 1931”. Dois pequenos
tesouros? Irmãos, pensou Alice. Havia fotos
de outras pessoas e diversos lugares — de
feriados e ocasiões especiais. Ela encontrou
algumas fotos natalinas. Uma delas
mostrava uma árvore decorada, e fitas de
papel e balões — e duas crianças sentadas
em meio a monte de papéis de embrulho. O
menino parecia ter uns 4 anos de idade, e
segurava um trenzinho.
Alice virou a página. Viu a foto do
garoto trajando um uniforme escolar. Ele
tinha cerca de 11 anos de idade, segundo
supôs, e usava uns óculos estranhos. Então
Alice notou uma coisa que fez seu sangue
gelar. Primeiro, achou que fosse mancha de
caneta em uma velha foto, mas, ao ver mais
de perto, percebeu que não era. Tratava-se
de marca de nascença que parecia uma
moeda.
Era a mesma que havia visto na
bochecha do senhor Wilkins! O menino tinha
que ser o senhor Wilkins. Mas não podia ser.
Alice virou as páginas, assustando-se ao
perceber que o menino tinha a marca de
nascença em todas as fotos — só que elas
eram tão velhas e sujas que não havia
percebido nada antes. Mas não pode ser ele,
pensou. Essas fotos são muito antigas! Ela
voltou para a primeira página, onde havia a
foto da criança e do bebê, e a legenda
“Nossos Dois Pequenos Tesouros — Ralph e
Barbara. Maio, 1931”. 1931? Ou a data
estava errada, ou o senhor Wilkins tinha
mais de 70 anos, e ele não parecia nem
perto disso! A sensação de desconforto que
sentiu na cozinha voltou.
Alice tentou racionalizar o que tinha
visto, mas não conseguia deixar de se sentir
cada vez mais assustada.
Ela se levantou, e o álbum de fotos caiu
no chão. Precisava achar um telefone e ligar
para casa.
Ao correr pela entrada, Alice ouviu a
babá eletrônica voltar à vida na sala.
Ela parou, ouvindo os choros
soluçantes.
Ralphie estava acordado.
Tudo o que Alice queria era sair, de lá o
quanto antes — mas não podia abandonar
um bebê chorando. Ela não podia.
— Volte a dormir! — disse, ofegante,
olhando para o andar de cima. — Não faça
isso comigo! Por favor, Ralphie, volte a
dormir!
Mas o choro não parou. Tornou-se mais
alto, mais insistente e mais contínuo.
Alice correu e pegou o telefone,
rezando para que estivesse funcionando. O
mesmo barulho inútil era produzido pelo
fone.
Agitada, verificou o celular outra vez.
Continuava desligado. Ela começou a ser
dominada pelo pânico. O que deveria fazer?
O choro de Ralphie estava tão alto que
mal conseguia pensar. Os gritos penetrantes
pareciam estar invadindo a sua mente,
confundindo os pensamentos. Alice tomou
uma decisão. Ela ia subir e buscá-lo —
depois sairia da casa com o bebê no colo e
iria até o vizinho pedir ajuda.
Ela respirou fundo e correu para o
andar de cima através da escuridão.
O choro vinha de uma porta no final do
corredor. Alice fez o percurso depressa e,
através das sombras, conseguiu identificar
um banheiro à sua esquerda. Um horror,
com um cheiro extremamente desagradável
saindo de lá.
Alice alcançou a porta de onde vinha o
barulho.
— Tudo bem, Ralphie, já estou
chegando — anunciou. Um ar frio e seco
atingiu o seu rosto enquanto abria a porta
do quarto escuro. Naquele instante seu
medo foi ofuscado pelo choque de ver as
condições em que Ralphie era mantido.
Como podiam deixar um bebê dormir em
um quarto frio como esse? Alice procurou
um interruptor, e de repente o cômodo foi
tomado por uma luz amarelada. O quarto
era vazio, e não tinha carpete, nada além de
um grande berço de madeira no meio do
chão, exatamente embaixo da lâmpada.
Alice entrou. Ralphie já estava
berrando a essa altura, seus gritos faziam
com que ela se encolhesse enquanto
caminhava em direção ao berço. A porta se
fechou atrás, as dobradiças enferrujadas
produziram um som que parecia o de unhas
arranhando um quadro-negro.
— Não chore, Ralphie! — ela disse, sua
voz estava um pouco trêmula. — A Alice
está aqui. Não chore. Bom menino.
Então ela viu uma coisa saindo do
berço. Era um fio. Alice seguiu o fio com os
olhos pelo chão, até uma tomada.
Que pais colocariam um artefato
elétrico num bebê? Pensou Alice. Para que
seria?
Ela se inclinou sobre o berço. Ralphie
estava embrulhado nas cobertas — ela só
conseguia ver os cabelos, ralos e castanhos.
O choro aumentava cada vez mais, e Alice
começou a se sentir extremamente
assustada. Ralphie não se mexia, e ela sabia
que alguma coisa estava muito errada.
Ela esticou a mão para acariciar sua
cabeça. Mas o que tocou era macio e
esponjoso. Alice recolheu o braço, alarmada,
chocada pela sensação nada humana da
cabeça do neném.
Com a mão tremendo, ela esticou o
braço para dentro do berço novamente, para
tirar a coberta.
A cabeça caiu para o lado e rolou para
fora do travesseiro.
O coração de Alice batia forte em suas
costelas. Ela ficou ali parada, sem conseguir
se mexer, mal conseguindo respirar. O suor
começou a fazer com que o cabelo grudasse
em suas têmporas.
Em seguida, por um instante, ficou
aliviada. Ela viu que se tratava apenas da
cabeça de uma velha boneca de plástico —
e não de um bebê.
Ela devolveu as cobertas e ficou
olhando, incrédula.
As cobertas protegiam uma espécie de
máquina. Alice olhou mais de perto, e
percebeu que se tratava de um antigo
gravador.
Um rolo de fitas passava de um lado
para o outro. O choro vinha de um velho
alto-falante de metal no topo da máquina.
Não havia nenhum bebê.
Chocada e estarrecida, Alice pôs a mão
no berço e apertou o botão stop.
O choro parou subitamente, mas Alice
achou o silêncio mais aterrorizante do que
qualquer outra coisa. Onde estava Ralphie?
Será que existia um Ralphie?
Ela tentou aceitar o que havia acabado
de descobrir. Tinha sido contratada pelos
Wilkins para cuidar de um bebê que sequer
existia. De repente, o estranho casal não era
apenas excêntrico. Alice teve a terrível
sensação de que era muito pior do que isso.
Um vento gelado atingiu-a por trás,
fazendo com que sentisse calafrios na nuca
e nos braços.
Ela girou e viu a senhora Wilkins
deslizar pela porta aberta. Alice gritou. Os
pés da senhora Wilkins flutuavam logo
acima do chão.
— Oh, Alice — disse a senhora Wilkins.
— Nós a avisamos que não podia subir aqui.
Alertamos que estava proibida de acordar o
bebê. Vocês jovens nunca dão ouvidos. Nós
só queríamos companhia, um pouco de vida
nesta velha casa, e agora você estragou
tudo.
A senhora Wilkins ergueu o braço, com
a mão esticando como se fosse uma garra
em direção a Alice.
— Não encoste em mim! — gritou Alice,
afastando-se para o lado, escapando da
garra da senhora Wilkins por uma leve
fração. Desesperadamente, correu pelo
corredor, com o coração na boca e o cérebro
rodando.
O senhor Wilkins estava sentado no
topo da escada, bloqueando o caminho. Um
sorriso se alargou em seu rosto enquanto
assinalava para ela com seu longo dedo.
Alice se atirou contra uma porta
fechada naquele andar.
Por favor, esteja destrancada!
A porta se abriu com o barulho das
antigas dobradiças, e ela passou correndo,
batendo a porta logo atrás.
Imediatamente, engasgou e não
conseguiu esperar. O ar no quarto era
dominado por um cheiro horrível e
nauseante.
Alice procurou um interruptor.
— Não... — ela começou quando a
velha lâmpada iluminou a cena diante de
seus olhos. Era um quarto cheio de móveis
antigos. Mas foi a cama que chamou sua
atenção. Ela levou a mão à boca enquanto
engasgava em sinal de repulsa, todo o seu
corpo tremeu ao avistar a cena.
Deitados lado a lado estavam dois
esqueletos, seus ossos branco-acinzentados
eram cobertos por pedaços e tiras de roupas
apodrecidas. Milhares de gritos soaram na
sua mente quando percebeu o que estava
vendo. Os panos decadentes eram as
mesmas roupas que o senhor e a senhora
Wilkins vestiam.
Naquele instante, ela sentiu um arrepio
tomar conta de todo o corpo. Sob aquela luz,
assistiu horrorizada enquanto o senhor e a
senhora Wilkins passaram através da porta
fechada e entraram no quarto. Alice caiu
para trás — seu corpo e seus sentidos
estavam dormentes de pavor.
Ela gritou com todas as suas forças.
O senhor Wilkins levou o dedo aos seus
lábios sorridentes.
— Shhhhh! — sussurrou. — Não acorde
o bebê.
Digitalização: villie
Revisão: Yuna

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