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Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LIN.E

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizagáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoríam)
APRESEtSTTAQÁO
DA EDigÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanca a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).
Esta necessidade de darmos
conta da nossa esperanca e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenca católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.
Eis o que neste site Pergunte e
Responderemos propoe aos seus leitores1
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
_ vista cristáo a fim de que as dúvidas se
.... dissipem e a vivencia católica se fortaleca
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abengoar este trabalho assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.
Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.
Pe. Esteváo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR


Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e
passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteudo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicacáo.
A d. Esteváo Bettencourt agradecemos a confiaca
depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados
DOGMÁTICA

morzvl

VNO X N? 85 JANEIRO 1
LIM1NAR

Após dois anos de ausencia, reaparece «Pergunte e Res


ponderemos» em nova serie.

A primeira palavra déste reinício seja dirigida ao «Pai das


luzes de Quem procede toda boa dádiva» : palavra de gratidáo
por haver sustentado o empreendimento de «P. R.» até o dia
de hoje; palavra de súplica a finí de que continué a derramar
suas béneáos sobre a obra em curso.

O programa destas publicacóes é servir: servir a todos .


os que procuram o sentido dos valores desta vida. Buscar a
verdade é urna das mais nobres tarefas que o homem possa
empreender, pois todos foram feitos para a luz e só podem ser
felizes caso vivam de acordó coma luz da verdade. — De modo
especial, os fascículos de «P. R.» visam evidenciar que a fé,
longe de repelir a ciencia e a cultura, só se pode beneficiar com
estas; em nossos dias, mais do que nunca, o homem que deseja
ser auténticamente religioso, necessita de sólida forma^áo; é
esta que lhe permite ver o que é e o que nao é Religiáo. Reci
procamente, a cultura humana só brilha plenamente quando
iluminada por Deus e pelos valores cristáos; urna cultura sem
Deus é urna lacuna profundamente aberta e nao devidamente
preenchida, é um apetite excitado e nao satisfeito.

Solicitamos, pois, aos nossos leitores e amigos, colaboren*


com «P. R.», sugerindo-nos problemas de ordem filosófica, reli
giosa, moral ou histórica; procuraremos estudá-los com hones-
tidade e veracidade. Gratos ficaremos outrossim a todos aque
les que quiserem difundir os fascículos de «P. R.» em seu círculo
de amigos; quem ajuda á dissipar incertezas, tornarse grande
benfeitor. O pao da mente é indispensável para que a criatura
humana se dignifique; é ele que comunica animo e entusiasmo
para grandes empreendimentos.

Dentro destas perspectivas recomecam a circular os fascí


culos de «P. R.». Possam dar gloria a Deus e a alegría da
verdade aos homens!

D. Estéváo Bettencoürt O.S.B..


Caixa Postal 2666
Rio de Janeiro (GB), ZC-00

— 1 —•
ÍNDICE

LIMIÑAR •*

I. CIENCIA E RELIGIAO

1) "Que dizer da descoberta de um mundo novo, extraterreno,


relatada pelo filósofo inglés Aldous Huxley na sua obra 'As Portas
da Percepgáo' e 'O Céu e o Inferno' ?

O uso do ácido lisérgico exigiría a mudanca de nossas cate


gorías religiosas ? Nova Religiáo nos Estados Unidos V S

II. SAGRADA ESCRITURA

2) "A Lei dé Moisés e o Código de Hamurapi apresentam


passagens assaz semelhantes entre si. Como se explica tato, se o
Lei de Moisés foi inspirada por Deus ?" 12

III. DOGMÁTICA

S) "Deus, criando éste mundo, tero, feito o melhor mundo


posslvel ?

Nao poderia ter criado um mundo melhor ?" 20

lj "Se Deus é bom, como se pode justificar o sofrimenió das


crianzas inocentes ?" ^

IV. MORAL

5) "Hoje em dia a mnlirma vai sendo mata e mais afetada


por preocupacocs económico-soñáis. Basta lembrar os convenios
com os Institutos do Estado assim como os greves de médicos.
Do ponto de vista cristáo, que dxzer sobre o assunto ?" 29

V. HISTORIA DO CRISTIANISMO

6) "Que pensar do caso de Teresa Neumann e das suas gracas


extraordinarias (visóes, estigmas, éxtases...), que muito tém sido
controvertidas ?" si

CORRESPONDENCIA MIÚDA (céu e inferno) 4«

COM APROVAC.AO ECXESIASTICA


« PERGUNTE E RESPONDEREMOS »

Ano VIII — N' 85 (Nova serie) — Janeiro de 1967

I. CIENCIA E RELIGIÁO

E. M. (Sao Paulo) :

1) «Que dizer da descoberta de um mundo novo, extra-


terreno, relatada pelo filósofo ingles Aldous Huxley na sua
obra 'As Portas da Percepcao' e 'O Céu é o Inferno' ?
O uso do ácido lisérgico exigirla a mudanca de nossas
categorías religiosas ? Nova Beligiao nos Estados Unidos ?»

O citado livro de Aldous Huxley (que compreende os dois


ensaios ácima nomeados) vem chamando a atencáo de médicos
e filósofos, porque apresenta a descrigáo de experiencias relati
vamente novas nos TDastidores da ciencia. Trata-se de provas
feitas com o chamado «ácido lisérgico», as quais tocam o ín
timo do psiquismo humano e parecem explicar do modo original
certas expressóes da Religiáo e da Ética, tais como o céu e o
inferno; principalmente estes dois conceitos, conforme insinúa
Huxley, teriam que ser entendidos de maneira totalmente di
versa da tradicional.
Após expor em poucas palavras o que representa o ácido
lisérgico no setor da medicina, faremos sumaria análise do
conteúdo do livro de Aldous Huxley. A seguir, examinaremos
a filosofía que o inspira, procurando formular um ju:zo sobre
tais idéias.

1. Que é o ácido lisérgico ?

Há pouco mais de cinqüenta anos, o famoso neurologista norte-


-americano Weir Mitchell mastigou alguns botóes de mescalina pro-
duzidos pelo cacto «Anhalonium Lewinii» (ou, segundo os indios
do México e do SO dos E.U.A., pelote). Contou, a seguir, que lhe
parecerá entáo ter visto desfilar ante os olhos como um rio fulgurante
os milhóes de galácias invisíveis existentes no universo; predisse
outrossim «um perigoso reinado da mescalina,, desde que esta se
tornasse atingivel ao grande público». Ora eis que a previsáo de
1itchéll se vem cumprindo, por efeito nao da mescalina própriamente,
s de urna droga afim e muito mais poderosa : a dietilamína do
p lisérgico (técnicamente, LSD-25, Lisergic acid Diethylamide).

-3-
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 85/1967, qu. 1

O ácido lisérgico provém dé um cogumelo parásita («ergot»)


que vive ñas espigas de centeio. Dissolvido em urna solugáo
de dietilamina, torna-se altamente psicodélico (= manifeátador
do íntimo da «psyché» ou do ánimo do paciente) ou, como diri-
am outros, alucinogénico.

As drogas psicodélicas ou alucinogénicas costumam ser classiíi-


cadas em trés grupos:

a) as mais brandas sao a moscada, a marijuana e as sementes


da videira «Ipomoea purpurea» da familia das convolvuláceas ;

b) as de poder moderado sao a mescalina, a psilocibina (deri


vada do «cogumelo sagrado» dos Indios do México), a'bufotenina e
a dimetiltrip'tamina;

c) o grau mais forte é o do LSD, cem vézes mais atuante do


que a psilocibina e sete mil vézes mais do que a mescalina. Urna onca
(28,35g) de LSD fornece dose capaz de atetar 300.000 pessoas; poucas
libras dessa droga dissolvidas ñas reservas de agua de urna cidade
desorientariam milhoes de cldadaos (1 libra = 04536kg). Urna dose
media de ácido lteérgico (um décimo de miligramo) comeca a produ-
zir eíeito urna hora depois de ingerida, efeito que se protrai por oito
ou dez horas; doses mais fortes aceleram e intensiflcam o pánico
provocado no paciente.

Há vinte anos que se descobriu o LSD. Com efeito, em 1938 o


Dr. Alberto Hofmann, químico pesquisador do Laboratorio Sandoz em
Basiléia (SuÍQa). fez a primelra sintese de LSD-25. quando procurava
novo estimulante para o sistema nervoso. Contudo ésse dentista s6
tomou pleno conhecimento do que havia produzido, cinco anos mais
tarde, quando addentalmente ingeriu pequeña porgao da referida
droga : caiu em estado de delirio, percebendo «visoes extraordinaria
mente vividas acompanhadas de um jógo de caleidoscopio intensa
mente colorido». Sómente nos últimos anos, em vista dos extraordina
rios efeitos fisiológicos e psicológicos do LSD, é que se tem dispensado
a tal produto atencáo e interésse acesos.

Sobre a maneira como age o LSD, pode-se afirmar que


afeta certas porcóes do cerebro (o cerebro anterior, o diencé
falo, o hipotálamo e o hipocampo), onde sao registradas e
ulteriormente elaboradas as informacóes provenientes dos sen
tidos externos. Em conseqüéncia, a pessoa comeca a ter «visóes»:
um bastáo pode-lhe parecer urna serpente a se retorcer; o paci
ente reage entáo com espanto, mas consegue tomar consciéncia
de que tal serpente nao é real e, sim, meramente ilusoria. As
habituáis associacóes de idéias se desfazem na mente da pessoa:
assim esta vé num telefone simplesmente um objeto plástico
de cor preta, e estranha que outras pessoas falem a ésse objeto
como se fóra um cidadáo. O LSD faz também que se dissolvam,
na mente do paciente, as fronteiras que separam os seres uns
dos outros ou as partes do mesmo ser; assim, sob o influxo do

— 4 —
ACIDO LJSÉRGICO, CEU E INFERNO

ácido lisérgico, pode alguém ter a impressáo de que seu tronco


e seus membros se váo liquefazendo e evaporando (sensagáo
de horror!) ou de que está em táo íntimas relaces com outras
pessoas na mesma sala que consegue ler os seus pensamentos
(estado de amor i) ou de que as barreiras da lógica desmoro-
nam, dando lugar a intuicóes maravilhosas ou tremendas como
seria a intuicáo de que vida e morte sao a mesma coisa (estado
de descoberta da «verdade» !)•.
O LSD também torna o individuo profundamente sugestionável.
Digam-lhe : «Estou táo feliz !» e ele passa a saborear deliciosa euforia,
ou «Como sou desgranado!» e correm-lhe as lágrimas de compaixao
consigo mesmo.

Muitas pessoas associam aos efeitos do LSD suas crengas


religiosas : julgam fazer experiencias místicas, descobrir segre-
dos do mundo e da Divindade, dominar os espíritos superiores,
etc... O orientalista británico Alan Watts, que durante seis
anos exerceu o ministerio na Comunháo Anglicana, declarou
que «o LSD vem a ser urna nova religiáo no sentido enfático
da palavra..., tal droga introduz um misticismo técnico». Os
«místicos» psicodélicos voltam sua atencáo principalmente para
as religióes orientáis, ñas quais, como dizia um déles, «vocé
entra em relacóes com o universo, vocé comega a se relacionar
com caes e árvores, e tudo vem a ter sentido»; na última novela
de Hersey, «Too Far to Walk», o demonio alimenta Fausto com
LSD, «o mais próximo equivalente do Infinito na vida cotidiana*.

Nos Estados Unidos, um dos principáis propagandistas do


LSD, o Dr. Timothy Leary, acaba de fundar urna Religiáo na
base désse produto, intitulada «Liga da Descoberta Espiritual».
A sua finalidade é procurar o Divino dentro do homem me
diante o alucinógeno LSD, que assim se torna o principal «sa
cramento» da nova corrente. O Dr. Leary espera que dentro
de dois ou tres anos a Liga possa contar mais de um milháo
de adeptos.

O fato é que grande número de jovens norte-americanos,


de ambos os sexos, se tem reunido a fim de tomar conjunta
mente o LSD e fazer experiencias «místicas» comunitarias.
Pretendem unir-se em urna nova comunháo caracterizada pela
«mística do segrédo». No inicio de 1966, em San Francisco,
organizaram um festival, em que mais de dez mil jovens «co-
mungaram em dangas e transes alucínatenos». O estudioso
protestante W. A. Richards' langou um apelo para que se in
vestigue a utilidade do LSD no aprofundamento do conheci-
mento dos fenómenos místicos.

— 5 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 85/1967, qu. 1

A propósito dessas novas crenjas e teorías religiosas será


emitido um parecer sob o título rr? 2 déste artigo.
Os médicos, principalmente os psiquiatras, reconhecem resultados
valiosos do emprégo do LSD em certos casos de patología mental:
juntamente com o hipnotismo e outras técnicas, tal droga pode concor
rer apreciávelmente para a recuperacáo dos pacientes, proporcionan-
do-lhes mais clara intuicáo de si mesmos. A mestna tem sido aplicada
aos moribundos, a fim de lhes possibilitar uma visao serena do transe
final, com mitÍRacño de suas dores. Os alcoólatras e viciados de
narcóticos tém sido beneficiados pelo ácido lisérgico.

Contudo muito numerosos sao os riscos acarretados pelo uso do


LSD. Pessoas de saúde débil podem tornar-se crónicamente desajus
tadas em virtude de uma experiencia aterradora de LSD. As vézes,
os tristes efeitos da droga só se manifestam semanas após a ingestao :
referese que um agente de policía norteamericana levou para casa
bombons de acucar que havia confiscado, sem, porém, suspeitar que
clandestinamente eontivessem LSD; seu filho. de dez anos de idade,
chupou uma dessas guloseimas, ficando confeqüentemente obrigado
a tratamento de varias semanas até recuperar o equilibrio mental.
Pessoas que tomam LSD, julgam adquirir o poder de voar ou de
caminhar sobre as aguas; um jovem da California, lisergizado, pósse
a passéar diante de um carro que vinha a toda a velocidade, convicto
de que nada Ihe acontecería; assim perdeu a vida...

Estas experiencias levam as autoridades médicas e civis a con


trolar severamente a fabricacáo, a venda e o uso de LSD. A tarefa é ar
dua, mas impSese urgentemente em vista do bem comum da sociedade.

Ora é sobre os efeitos do ácido lisérgico que Aldous Huxley


propóe suas idéias na obra citada no cabegalho déste artigo.

2. «Percepgao, Céu e Inferno» de Huxley

Em 1953, Aldous Huxley tomou contato com dentistas


que estudavam de maneira sistemática as conseqüéncias pro-
duzidas sobre o homem pelo ácido lisérgico. Prestou-se entáo
a uma experiencia com LSD, experiencia que ele relata em
suas «Memorias»...
Um belo dia, ingeriu uma porcáo de tal produto as llh da manhá;
hora e meia depois, comecava a sentir os respectivos efeitos: tres
flores que. postas num jarro, de manha cedo o haviam impressionado
pela dissonáncia de suas cores, já nao Ihe apareciam como «esquisita
combinacáo de flores»; ele via «aquilo mesmo que Adao vira no día
de sua criacáo — o milagre do inteiro desabrochar da existencia, em
toda a sua nudez» (pág. 7).

Dito isto, o autor no seu livro descreve tongamente uma


serie de quadros que passou a ver em sua mente, assim como
as sensacóes daí resultantes. O livro se consomé por inteiro
na apresentacáo de tais imagens e das reflexóes filosóficas que
Huxley propóe para explicar o estranho fenómeno. Táo grande

— 6 —
ÁCIDO LISÉRGICO, CEU E INFERNO

pode ser a euforia causada pelo ácido lisérgico que o autor a


identifica com aquilo que em Religiáo se chama «o céu». Em
certos casos, porém, diz ele, quando o paciente sofre do fígado,
o LSD produz temor e angustia tais que constituem. o que a
teología denomina «inferno». Por conseguinte, mediante o ácido
lisérgico, o homem moderno teria descoberto o segrédo da
felicidade e da desgraga que os antigos exprimiam pelos con-
ceitos de céu e inferno. Estes seriam estados meramente psicu*
lógicos, subjetivos, aos quais nada correspondería, fora do
sujeito.
«Muitas das punicóes do 'Inferno' de Dante sao experimentadas
pelos esquizofrénicos e por aqueles que tomam mescalina ou ácido
lisérgico sob condigóes desfavoráveis» (pág. 88s).

Huxley tenta explicar mais a fundo tais fenómenos, re-


correndo a concepsóes da filosofía hindú, que se podem assim
resumir:
Só existe urna Grande Substancia impessoal, infinita, que é
a Divindade ou a «Mente Cósmica». Esta se toma concreta e
bem definida em cada ser que vemos; o próprio homem nao é
senáo urna forma de existencia pessoal, apoucada, dessa infi
nita e única Substancia. No ser humano, como, alias, em qual-
quer outro ser determinado, as perfeicóes da Grande Substan
cia se encontram confinadas e diminuidas; a personalidade indi
vidual de cada um de nos, em vez de ser perfei"áo, constituí
como que urna atrofia e um depauperamento do Ser Universal.
— Em conseqüéncia, o ideal de todo homem consiste em des-
prender-se dos limites da sua personalidade, «despersonalizan-
do-se, desindividualizando-se» (termos muito freqüentes sob a
pena de Huxley), para mergulhar-se mais plenamente no Gran
de Ser (é a ésse estado de despersonalizagáo completa que os
hindus chamam «nirvana»; cf. pág. 91 de «O Céu e o Inferno»).
Desprendendo-se do próprio en, o homem vai adquirindo a expe
riencia do Infinito ou vai intuíndo mentalmente objetos e reali
dades totalmente novas. Essas realidades novas, a pessoa, no
uso normal de suas faculdades, nao as pode perceber, porque o
cerebro exerce controle sobre a vida psíquica do individuo,
reduzindo-a a conhecer apenas a pequeño mundo que cada um
atinge pelos sentidos (cf. pág. 18 e 21: Huxley fala de «válvula
do cerebro, filtro do ego»).
Eis, porém, acrescenta o escritor, que b LSD retém a acáo
controladora do cerebro, e assim permite ao individuo entrar
mais a dentro na Substancia infinita, da qual todo homem faz
parte (a alma tem esséncia infinita, diz Huxley á pág. 45). Tal
individuo, livre de si mesmo (a alma parece sair do corpo, cf.
■ «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 85/1967, qu. 1

pág. 31 e 88), percebe entáo coisas maravilhosas; vé o mundo


um pouco como a Divindade, em sua infinitude, o vé; e expe
rimenta um pouco aquilo que a Divindade, em sua infinitude,
experimenta (o escritor se refere muitas vézes a urna Onici-
éncia assim adquirida; cf. pág. 11, p. ex.).
Como se compreende, tais intuigóes, numa pessoa normal,
sao causa de extraordinaria euforia; num sujeito doente, porém,
produzem grande terror e espanto. Os homens religiosos de
outrora, impressionados por tais experiencias, julgavam que
a elas deviam corresponder estados de alma postumos, a saber,
o «céu» e o «inferno» das diversas crengas religiosas. Contudo,
após as pesquisas das ciencias modernas, insinúa Huxley, tais
nogóes tém que ser remodeladas; é possível ao homem que vive
nesta térra, entrar no céu e no inferno, pois estes nao passam
de transes que a medicina e a psicologia sao capazes de provo
car recorrendo a métodos adequados.

3. Que pensar de tais idéias ?

1. A mescaüna e o LSD, como outros varios produtos


qu'micos, exercem inegável acáo sobre o cerebro do individuo,
modificando (as vézes, reduzindo; outras vézes, intensificando)
o seu funcionamento. Ora o cerebro é como a central elétrica
da vida sensitiva; a ele sao levadas todas as sensagóes percebi-
das pelos sentidos externos (impressóes visuais, auditivas, olfa^
tivas...); estas, no cerebro, sao associadas entre si, de modo
a dar urna imagem fiel dos objetos que estáo fora de nos.
O cerebro também é a sede de duas outras facuidades : a
memoria sensitiva, faculdade de guardar imagens anterior
mente percebidas, e a imaginagáo ou fantasía, faculdade de
combinar e reproduzir livremente tais imagens.
Em condi"5es normáis, o homem, usando do seu cerebro
assim constituido, utiliza apenas 1/8 (urna oitava parte) dos
seus conhecimentos adquiridos; 7/8 lhe ficam latentes no sub
consciente. A vida psíquica do homem tem sido comparada a
um «iceberg» (montanha flutuante de gélo polar), do qual 1/8
parte apenas emerge ácima das aguas, ao passo que 7/8 ficam
debaixo do nivel do mar.
É com essa oitava parte de nocóes conscientes que o indi
viduo constituí seus horizontes e orienta o seu comportamento.
Dado, porém, que alguma droga (como a mescaüna) altere a
agáo do cerebro e da vida sensitiva da pessoa, compreende-se
que, do respectivo subconsciente, venham á tona (ou ao cons
ciente) variadíssimas imagens e reminiscencias; vém tais como

— 8 —
ÁCIDO LISÉRGICO, OSU E INFERNO

elas foram percebidas outrora, ou livre e confusamente asso-


ciadas entre si (o estado de saúde geral da pessoa e as tenden
cias do seu temperamento muito influem neste processo). Em
conseqüéncia, o sujeito passa a ver mentalmente figuras novas,
talvez estranhas, que ele julga nunca ter percebido neste mun
do. Também comega a experimentar sensagóes imprevistas de
deleite e euforia ou de mal-estar e terror.

É natural que a pessoa assim afetada procure explicar


filosóficamente ésse estado de coisas. Pode entáo afirmar, como
Huxley, que um novo mundo se lhe descortina, que as portas
da percepgáo se lhe abrem, que ele compartilha a oniciéncia,
mergulhando-se no infinito da Substancia Divina, etc.

2. Analisando tais concepgóes, deve-se dizer o seguinte :

1) as concepgóes filosóficas de Huxley partem de urna


tese ilógica ou falsa: a tese de que o homem se identifica com
o universo ou a Grande Substancia do Cosmos, Substancia infi
nita que se acha diminuida e confinada pela personalidade ou
pelo en do individuo. — Esta proposicáo é ilógica porque o
Infinito (por seu conceito mesmo de Infinito) nao pode vir a
ser..., nao conhece nem involusáo nem evolugáo; nada tem a
ganhar e nada tem a perder, pois nao possui partes. O infinito
é simplicíssimo (sem partes) e se possui todo simultáneamente
(sem sucessáo de tempo).
Em outros termos : o Infinito nao é o finito aumentado e prolon
gado a perder de vista...; do finito ao Infinito nao há transicao; o
Infinito nao comeca por ser finito, e nao pode passar a ser finito; é
radicalmente diverso déste; onde quer que haja partes, nSo pode
haver Infinito, pois cada urna dessas partes é finita.
Esta observagáo evidencia como sao inconsistentes as teo
rías filosófico-religiosas que Huxley constrói na base da sua
experiencia de ácido lisérgico. Nao obstante, por essa via mes-
ma, o autor exprimiu urna grande verdade : existe, sim, inato
em todo homem, o anelo do Infinito; todo individuo tem cons-
ciéncia de que as criaturas, limitadas e pequeninas como sao,
nao esgotam toda a realidade; deve haver um Ser infinito, que
concebeu inteligentemente e realizou sabiamente o que vemos;
ésse Ser infinito também realizou (ou criou) cada um de nos,
deixando em nosso íntimo a marca do Criador, isto é, a sede
do Bem que nao se acaba.
Os verdadeiros filósofos e os genuínos homens religiosos
em todos os tempos deram expressáo a essa consciéncia se-
quiosa do Infinito, asseverando que o homem que «se realiza»
ou se consuma, vai gozar para sempre de Deus após a morte

— 9 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 85/1967, qu. 1

num estado que a Religiáo chama «céu» ou «bem-aventuranca


celeste», ao passo que o homem que se frustra, sentirá para
sempre a ausencia do Bem Infinito no inferno. O próprio Deus,
falando aos homens na Revelagáo crista, confirmou essa creñca
e essa esperanza da criatura; apenas as depurou de tudo que a
fantasía do paganismo e da mitología lhes havia acrescen-
tado. Em conseqüéncia, deve-se dizer que céu e inferno nao
sao estados de alma narcotizada ou hipnotizada aqui na térra,
mas sao situacóes em que a alma, fiel ou infiel ao seu Criador,
se colocará para sempre após a morte; a posse plena de Deus
(Deus pessoal e transcendente) constituí a esséncia da bem-
-aventuranca postuma, ao passo que a privacáo désse Bem vem
a ser a pena máxima do inferno (Dante Alighieri, no seu «In
ferno», cedeu poéticamente a fantasía; serviu-se de símbolos,
e nao fez obra própriamente teológica).
2) Aldous Huxley, no livro citado, dá ainda a entender
que os estados místicos experimentados e descritos por santos
cristáos se reduzem a situacóes psicológicas e, em última aná-
lise, sao ocasionados por regimes de alimentaeáo, ingestáo de
drogas, sugestáo, etc. Haja vista a seguinte passagem:
«A mortificacáo do corpo pode produzir um sem número de
síntomas mentáis indesejáveis; mas pode também abrir urna porta
para um mundo transcendental de Existencia, Saber e Bem-aventu
ranca Eis a razáo por que, a despeito de suas dcsvantagens evidentes,
miase todos os que aspiram a urna vida espiritual, no passado,
submeteranHSe a práticas regulares de mortificacáo do corpo.
No que tange as vitaminas, cada invernó medieval era um longo
e involuntario jejum, e a ele se seguiam, pela Quaresma, quarenta
días de abstinencia voluntaria. A Semana Santa encontrara os fiéis
maravilhosamente bem preparados, quanto ao equilibrio bioquímico
de seus organismos, para seus tremendos estímulos ao pesar e a
aleeria para urna conveniente contricáo da consciéncia e urna auto-
transcendente identificacüo com o Cristo ressurrecto. Nessa quadra
da mais alta excitagáo religiosa e do mais baixo consumo de vita
minas, os éxtases e as visóes erara quase que triviais. E era ísso que
se poderia esperar acontecesse.

Para os contemplativos do claustro, havia varias Quaresmas por


ano. E, mesmo entre bs jejuns, sua dieta era parca em extremo.
Dai aquelas agonías de depressao e hesitacáo descritas por tantos
escritores místicos; dai suas terriveis tentacOes para o desespero
e o suicidio. Mas a isso se deviam, também, aquelas 'gracas gratuitas
sob a íorma de visfies e frases celestiais, de IntuicCes proféticas, de
telepática 'compreens&o dos espiritos'. E, finalmente, sua 'contempla-
Cao inspirada', sua 'obscura compreensSo' da ubiqüidade do Impar»
(ob. cit. pág. 11).

As frases ácima exprimem certa confusáo de idéias. Na


verdade, os cristáos praticaram e praticam a mortificagáo do

— 10 —
ACIDO LISfiRGICO, CEU E INFERNO

corpo, mediante jejum, abstinencia de carne, flagelos, cilicios,


etc., porque sabem que o corpo herdado de nossos primeiros
pais é sede de concupiscencia desregrada; os alimentos, prin
cipalmente os mais fortes em proteínas (como a carne), exer-
cem certa influencia sobre as paixóes desordenadas, excitan
do-as e tornando mais difícil o dominio do espirito, com seus
ideáis superiores, sobre as fungóes sensitivas e inferiores do
homem. É, pois, a fim de obter unidade em si mesmos, extin-
guindo o confuto entre paixóes desregradas e aspiracóes ao
bem, que os cristáos se sujeitam a práticas de penitencia.
Esta finalidade é plenamente justificada e basta para explicar
a conduta mortificada dos genuínos cristáos.
Conseguindo vencer ou temperar os afetos desordenados,
os fiéis se elevam mais puramente a Deus na oragáo; destarte
capacitam-se para receber as grasas que o Senhor quer dar a
todo homem que o procura, mas que infelizmente nem todo
homem está disposto a aceitar. Por conseguinte, a penitencia,
para o cristáo, é apenas o meio para que se torne mais recep
tivo dos dons de Deus, ou seja, de urna realidade sobrenatural,
transcendente. Mortificando-se, a alma se une mais intima
mente ao Criador, chegando mesmo a experimentar a presenca
e a agáo do Senhor no seu íntimo. É a essa experiencia que
se chama «mística» ou «estado mistico»; ela nada tem que
ver com transes psicológicos, visóes eufóricas ou deprimentes,
levitacáo, estigmas, éxtases. Tais fenómenos sao acidentais na
vida m'stica; em alguns santos, éles se registraran! por benévolo
designio de Deus; nao é, porém, em visóes e éxtases que consiste
o essencial do estado místico, mas, sim, na experiencia de Deus
realizada no silencio, sem alarde, e sem outra mamfestacao
visível a nao ser a fidelidade da alma á oragáo e as virtudes.
Houve e ha grandes místicos cristáos, pessoas que experimen-
taram vivamente a Deus em sua alma, sem apresentar algo
de extraordinario (visóes, raptos, estigmas...) em seu com-
portamento; tenha-se em vista, por exemplo, santa Teresa de
Lisieux, que viveu e morreu com toda a simplicidade no seu
Convente?.

Nao se pode negar, porém, que regimes de alimentacjio sobria


e sadia, unidos a disciplina de eostumes e trabalho, tenham eíeitos
benéficos para a saúde do corpo; o metabolismo do organismo se
efetua ordenadamente, permitindo á alma o uso mais livre e desimpe
dido de suas faculdades sensitivas e tntelectuais. Contudo os efeitos
terapéuticos ou bioquímicos das práticas de mortificagáo nao bastam
para explicar a auténtica vida mística; esta consiste em atingir o
Ser Infinito ou Deus, que transcende o homem e que a éste se comunica
gratuitamente. Para se dar á criatura, Deus nao pode ssr coagido por

— 11 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 85/1967, qu. 2

métodos ou receitas, mas exige apenas abertura de alma, desprendi-


mento do egoísmo e amor ao Senhor.

Eis o que ocorria dizer sobre as experiencias de ácido lisér-


gico descritas por Aldous Huxley num livro, de resto, assaz
prolixo e confuso.

II. SAGRADA ESCRITURA

CELIO (Sao Paulo) :

'2) «A Lei de Moisés e o Código de Hamurapi apresentam


passagens assaz semelhantes entre si. Como se explica isto, se
a Lei de Moisés foi inspirada por Deus ?»

Antes do mais, importa lembrar brevemente o que é o


«Código de Hamurapi». A seguir, mostraremos como e por que
se relaciona com a Lei de Moisés.

1. Que é o Código de Hamurapi ?

Hamurapi ou Hamurabi (= «o deus Hamm cura») foi o


sexto rei da primeira dinastía da Babilonia (1830 -1550 a.C.),
filho de Sin-muballit. Subiu jovem ao trono e reinou durante
mais de quarenta anos, de 1728 a 1686 a. C. ou de 1795 a 1750.
Foi muito provávelmente contemporáneo do Fatriarca bíblico
Abraáo, quando éste ao Sul de Canaá (regiáo de Siquém)
levava com seus familiares a vida simples de pastores nómades.
Poucos homens na historia da civilizacSo reunlram em si, e no
mesmo grau, as dualidades que caracterizam a personalidade de Hamu
rapi: éste era hábil político, destemido guerreiro. sagaz estadista e
legislador, tornando-se assim um dos grandes vultos da historia uni
versal. Sua obra conslstiu em consolidar o poderlo da Babilonia, criando
ai um famoso Imperio, que ellminou as potencias vizinhas dos reís
RimSin de Larsa, Zimri-Lln de Mari e do soberano de Echnuna.Do
ponto de vista cultural, a Babilonia de Hamurapi ainda foi mais impor
tante do que no setor político; Hamurapi deixou. além de nunrerosas
cartas de teor administrativo, um famoso Código legislativo, que
constituí o seu mais valioso documento.

O exemplar principal de tal Código é um bloco de pedra


da altura de 2,25m, encontrado em Susa (Pérsia) pela missáo

— 12 —
HAMURAPI E MOISÉS

francesa dita «Délégation en Perse» em dezembro 1901/janei-


ro 1902. Ésse exemplar parece ter sido colocado originaria
mente no templo do Deus Chamach (Sol) em Sipar, como se
fósse a mensagem désse mesmo deus dirigida aos seus devotos;
atualmente encontra-se em París, no Museu do Louvre; tradu-
ziu-o para o francés e editou-o em 1902 o Pe. V. Scheil. Além de
um prólogo e um epilogo, o Código de Hamurapi apresenta um
corpo de leis dividido em 282 parágrafos e redigido no estilo cla
ro e preciso da chancelaria do rei; ésse conjunto legislativo divi- •
de-se em tres grandes secgóes: Direito a propriedade, Direito
familiar e Direito social (criminal e civil).
O Código de Hamurapi durante certo tempo íoi considerado como
documento de todo singular e original. Todavía nos anos de 1945 -1947
foram descobertos dois outros Códigos legislativos da Mesopotámia:
o de Echnuna (ou Babilama) e o de Lipit Ichtar, ambos anteriores
ao Código de Hamurapi (o primeiro. dois séculos mais antigo; o se
gundo, um século e meio). Estas descobertas deram a ver que a legis-
laeáo de Hamurapi nao é senáo a expressáo de urna grande tradicao
jurídica existente desde remotos tempos na Mesopotámia; cada mo
narca da Mesopotámia (sumero ou acádio) iazia as vézes de legislador
do seu povo. A originalidade de Hamurapi consiste em ter legislado
para todo o seu vasto Imperio, harmonizando costumes diferentes e
unificando o direito vigente entre os seus súdttos (isto nao quer dizer
que nada haja de próprio no Código de Hamurapi; o rei tinha, sem
dúvida, sua jurisprudencia original, intervindo pessoalmente em casos
mais urgentes ou complexos).

2. Hamurapi e Moisés

Sabe-se que Moisés no séc. Xm a.C. codificou a legislagáo


vigente em Israel. Éste grande chefe do povo de Deus por certó
nao «inventou» as suas leis, mas colheu-as na tradicao anterior
de Israel, ordenando-as e sancionando-as. Por sua vez, as des
cobertas de outras legislagóes de povos orientáis antigos de-
monstram que nem o povo de Israel anterior a Moisés foi o
«inventor» das suas leis; em verdade, nao poucas das normas
jurídicas vigentes entre os hebreus tém passagens paralelas nos
códigos legislativos do Velho Oriente, principalmente no Código
de Hamurapi. Tenham-se em vista, por exemplo, os seguintes
trechos, em que certa consonancia se verifica entre a Lei de
Moisés e a do rei babilónico :

Éxodo 21,23 25 : Código de Hamurapi 196 :

«Urge dar vida por vida, ólho «Se alguém vasar o ólho de
por 61ho, dente por dente máo um homem Hvre, seu ólho lhe
por máo, pé por pé, queimadura será vasado».
par queimadura, ferida por ferl-
da, golpe por golpe».

— 13 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 85/1967, qu. 2

Levítico 24, 19s : C. H. 197:


«Se alguém quebrar o osso
«Se um Jiomem ferir o seu'
de outrem, seu osso lhe será
próximo, assim como fez, assim quebrado».
se lhe fará : fratura por íratura.
ólho por ólho e dente por dente; C. H. 200:
ser-lheá leito o mesmo que ele «Se alguém quebrar um dente
tiver íeito ao seu próximo». a um de seus semelhantes, seu
dente lhe será quebrado».

Deuteronemio 19,18s.21: C. H. 3:

«Se alguém prestar falso tes


«Depois de cuidadosa investi-
temunho num processo, sem po
gacáo feita pelos julzes, caso
der provar a sua afirmacáo. se
se verifique que se trata de fal
so testemunho, e que a teste-
rá condenado á morte, caso se
trate de um processo de vida ou .
munha deu contra o seu irmáo
um depoimento falso, vos a tra . morte».
tareis como premeditara tratar
C. H. 4:
o seu irmáo. Assim tirarás o
mal do meio de ti.... Nao terás
compaixao : vida par vida, ólho «Se prestar falso testemunho
por ólho, dente por dente, máo a respeito de trigo ou prata,
por mao, pé por pé». sofrerá a pena correspondente
ao mesmo processo».

Éxodo 21,28s. 31s : C. H. 250 :

«Se um boi ferir mortálmente «Se um boi, ao caminhar por


um homem ou.uma mulher com urna estrada, percutir um ho
as pontas dos chifres. será ape- mem e o matar, esta causa nao
drejado e nao se comerá a sua estará sujeita a processo».
carne; o dono do boi nao ssrá
punido. C. H. 251:

Mas, se o boi já estava acos- «Se o boi de um homem der


tumado a dar chifradas, e o do chifradas e o seu propxietário
no, tendo sido avisado, nao o ti tiver ocasiao de saber que ele dá
ver vigiado, o boi será apedre- chifradas e se o proprietário nao
jado, se ele matar um homem tiver cortado a ponta dos chifres
ou urna mulher; o seu dono tam- ou atado o boi, caso tal boi es-
bém morrerá... panque com o chifre o filho de
um homem livre e o faga mor-
rer, o proprietário pagará meia-
Se o boi ferir um jovem ou
-mina de prata».
urna donzela, aplicar-se-lhe-á a
mesma lei. Mas, se ferir um es- C. H. 252 :
cravo ou urna escrava, pagar-se-
«Se a vitima fór o escravo de
-áo ao seu senhor trinta sidos um homem livre, o proprietário
de prata, e o boi será apedre- pagará a terca parte de urna
jado». mina de prata».

— 14 —
HAMURAPI E MOISÉS

Os exemplos déste género se poderiam multiplicar. Aínda


citaremos certos costumes, em que aparece afinidade entre o
Código de Hamurapi e as instituigóes vigentes em Israel:

Dote ou presentes de casamentes :

Éx 22,15s; Dt 22,23-29; C.H. 137139. 142. 150. 156.


Gen 34, lis. 159-167. 171-174.

. Direito dos filhos á heranga paterna :

Dt 21,15-17. C.H. 165. 167.

Repudio dos íilhos:

Dt 21,18-21. C.H. 168-169.

Adopcáo de filhos :

Gen 48,5s. C.H. 185-193.

Libertagáo dos escravos:

Éx 21,2. 7-11; Dt 15,12-18; C.H. 117-119.


Lev 25,39s.

Perda de objetos confiados em depósito:

Éx 22,6-8. C.H. 124-126.

Golpes infligidos a mulher grávida com subseqüente aborto:

Éx 21,22-25. C.H. 209-214.

Golpes dos filhos aos país:

Éx 21,15.17; Lev 20,9. C.H. 195.

Em suma, há inegávels pontos de convergencia entre a


Leí de Moisés e os costumes dos povos orientáis. Éste fato
suscita naturalmente a questáo: haverá dependencia do legis
lador israelita para com os juristas do paganismo antigo ? É
para tal dúvida que voltaremos nossa ateneáo no parágrafo
abaixo.

3. Como explicar o fenómeno ?

1. A fim de formular um juízo objetivo sobre o assunto,


convém outrossim relevar certas passagens em que é evidente
a dissonáncia ou a diversidade de tendencias existentes entre
a Lei de Moisés e o Código de Hamurapi:

— 15 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 85/1967, qu. 2

a) A Lei de Moisés só conhece homens livres e escravos.

O legislador babilónico distingue tres classes na sociedade


por ele govemada:
os homens por excelencia (awélum, mar awelim), nobres
ou patricios;
os súditos de classe media e condigáo relativamente mo
desta (muchltenu);
os escravos (wardum ou amtum).

b) O Deuteronómio (23,16s), tratando do escravo fugi


tivo que pega asilo a determinada pessoa, proibia que tal pessoa
devolvesse o escravo ao respectivo patráo.
Ao contrario, o Código de Hamurapi mandava infligir a
pena de morte a quem favorecesse a fuga de um escravo ou
o guardasse em sua casa (15s.l9).

c) As leis de Hamurapi estipulavam um sinal distintivo


para os escravos, a saber: o uso do abuttu, tranca de cábelos.
Quem cortasse ou mandasse cortar sem o consentimento do
patráo tal símbolo de servidáo, expunha-se á amputagáo das
próprias máos (226) ou mesmo á condenagáo á morte (227).
Ao contrario, a Lei de Moisés nada apresenta nesse setor.

d) Embora a lei do taliáo fósse comum a israelitas e


babilonios, verifica-se que o Código de Hamurapi a aplicava
com extrema dureza ou até as últimas consecuencias, ao passo
que a Lei de Moisés era, nesse terreno, mais branda. Assim,
conforme, o legislador babilónico, se um homem causasse por
violencia ou negligencia a morte de um filho ou de urna filha
de um homem livre, devia-se condenar á morte o filho ou a
filha désse homicida (116.210.230). O Código de Moisés nada
contém a éste propósito.

e) Fora dos casos de taliáo, a Lei de Moisés nao impunha


áos réus mutilagóes corporais. O Código de Hamurapi, porém,
assinala urna lista de faltas em punigáo das quais era prescrito
ou arrancar os olhos dos culpados (193) ou amputar-lhes a
lingua (192), as orelhas (205.282), as máos (195.218.226.253)
ou os seios (194).

f) O Código de Hamurapi reconhecia a prostituicáo dita


«sagrada» e a profana, colocando no mesmo plano as sacer-
dotizas e as mulheres públicas (178-182).
Ao contrario, a Lei de Moisés (Lev 19,29) proibia ao pai
de familia deixasse que sua filha se entregasse á prostituigáo;

— 16 —
HAMURAPI E MOISÉS

vedava outrossim que se aceitasse no Templo o salario de urna


prostituta (Dt 23,18s)..

g) O Código de Hamurapi legalizava o empréstimo a


juros (48-52. lOOs); os documentos de contratos da antiga Me-
sopotámia dao mesmo a ver que na Babilonia a quota media
de juros era de 25% para o dinheiro, podendo chegar a 33,33 %,
ao passo que atingía os 50% para os cereais.
A Lei de Moisés, ao contrario, proibia a cobranga de juros
por empréstimo feito a um israelita (Éx 22,24; Lev 25,36s;
Dt 23,20); so autorizava aos israelitas a usura com relagáo aos
estrangeiros (Dt 23,21).
Aínda se poderiam enunciar outros casos de divergencia
entre os Códigos Legislativos de Moisés e de Hamurapi.
2. Fazendo agora um balango geral das consonancias e
dissonáncias mutuas dos dois monumentos legislativos, pode-se
em síntese afirmar o seguinte:

1) A Lei de Moisés, embora redigida posteriormente ao


Código de Hamurapi, apresenta caráter mais primitivo e supóe
um grau de civilizagáo menos adiantado do que o referido Có
digo babilónico.
Mais precisamente: o Direito codificado pelo legislador
israelita conserva, em grande parte, tragos dos costumes de um
povo nómade ou semi-nómade; reflete as condigóes de yida de
urna populagáo pequeña, ameagada por grandes Imperios, a
qual procura preservar a sua fé, as suas tradigóes e a sua inte-
gridade; tem-se-lhe dado, por isto, o título de Direito «prote-
donista» ou «fechado». Ao invés, o Direito babilónico é o de
urna nagáo dada ao comercio, que vive de produgáo, intercam
bio e transagóes de diversos tipos; a sua preocupagáo é garantir
a justica e a seguranga num género, de civilizagáo, ao mesmo ■
tempo, estável e progressista.
2) O Código de Moisés apresenta um cunho religioso mui-
to mais profundo do que o de Hamurapi. Com efeito, conforme
Éx 19s, foi o Senhor Déus quem entregou a Moisés a Lei. Além
disto, a «Torah» de Moisés formula suas prescrigóes de índole
civil dentro de conjuntos de normas rituais; o motivo que ela
assinala para que tais prescrigóes sejam fielmente observadas,
é que a violagáo das mesmas seria «abominável ao Senhor».
Quanto ao Código de Hamurapi, é apresentado logo em seu
cabegalho como dom feito pelo deus Chamach ao rei da Babi
lonia. Hamurapi procura legislar com espirito religioso (pois
os monarcas, na antigüidade, eram sempre chefes religiosos-

— 17 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 85/1967, qu. 2

e civis); todavía mantém sempre a distincáo entre os assuntos


que dizem respeito diretamente á aútpridade sacerdotal, e os
que competem própriamente á autoridade civil. O Código de
Hamurapi nao contém prescrigóes religiosas ou rituais; apenas
visa «aniquilar os maus e perversos, a fim de que os poderosos
nao prejudiquem os fracos» (palavras do próprio legislador).
Em suma, o Código de Hamurapi tem o caráter de código me
ramente civil.

A titulo de ilustracSo, segué se um trecho em que Hamurapi ma-


nlfesta a sua consciéncia de legislador justo, sabio e temente aos deuses:

«Eu Hamurapi, o rei perfeito, nao fui negligente nem covarde


para c,om o povo de cábelos negros que Enlll me confiou e cujo
govérnó Marduque me entregou... Os grandes deuses me chamaram,
e eu fui pastor que distribuía a paz e culo cetro era justo. Minha
sombra benfazeja se estendeu sobre a minha cidade; em meu rega"o
carreguei a tetra de Sumer e de Akkad... Para que o forte nSo opri-
misse o fraco para defender o direito do órfáo e da viüva gravei minhas
preciosas palavras n'este monumento,... a fim de estabelecer a justlca
e assegurar o julgamento nesta térra, a fim de garantir o direito aos
oprimidos... Éu o rei Hamurapi, o rei justo a quem Chamach confiou
a verdade, minhas palavras sao excelentes, meus atos sao incompa-
ráveis...
Se alguém escutar as minhas palavras, que gravei sobre éste
monumento, se nSo violar o meu direito nem reieitar minhas pala
vras,... que Chamach estenda o imperio dé?se homem como o meu,
rei justo; que ele governe o seu povo com justica!
Se alguém nao escutar as minhas palavras. que gravei sobre éste
monumento, se desprezar minhas maldlcñes e nao temer as maldicSes
dos deuses.... que o grande Anu, pal dos deu.°es, o qual me chamou
a realeza despoje ésse homem — rei, principe, governador ou nuem
quer que seja de todo esplendor regio; quebré o seu cetro e amaldicoe
o seu destino! Que o Senhor Enlil, o cjual assinala os destinos, lhe
assinale como destino um reino de suspiros, de dias -de penuria, de
anos de fome; que. com os seus veneráveis labios ele (Enlil) decrete
a ruina da cidade désse homem, a dispersao do seu povo. a queda do
seu reino, a extincáo do seu nome e da' sua fama na térra !... >
(Código de Hamurapi, colunas 24B-26B)

3. Diante de tais observacóes, os estudiosos concluem


que nao há dependencia direta da Lei de Moisés em relagáo ao
Código de Hamurapi; em outros termos: Moisés nao utilizou
a obra legislativa do monarca da Babilonia. Na verdade, ambos
os legisladores dependem de urna tradicáo jurrdica comum aos
povos do Oriente (o próprio Código de Hamurapi parece ter si
do precedido de tres outras colegóes de le's na Mesopotamia).
Leve-se em conta que Abraáo, no séc. XVm, foi originario da
Mesopotamia e provávelmente contemporáneo de Hamurapi; ao
■ emigrar de sua térra (cf. Gen 12, 1-3), terá levado consigo os

— 18 —
HAMURAPI E MOISÉS

costumes e as normas de convivencia social de sua gente; con? '


fiou-as, sem dúvida, aos seus descendentes na regiáo de Canaá,:
onde se estabilizou; nesta nova patria as observancias meso*
potámicas foram tomando feitio próprio, adaptado á índole
do povo de Abraáo ou israelita, que se foi ai formando. Final
mente no séc. Xm Moisés codiflcou na famosa Lei tais normas
já vigentes na tradigáo israelita.
As relasóes mutuas dos Códigos de Moisés e Hamurápi
constituem urna das facetas da pedagogia de Deus para cornos
homens. Ao chamar Abraáo a fim de estabelecer o povo eleito
ou messiánico, o Senhor Deus nao quis mudar bruscamente
as maneiras de pensar e viver do Patriarca e de seus descen
dentes; «aceitou» tudo que ésses homens haviam aprendido
de seus ancestrais, excluindo apenas os conceitos e as práticas
que tivessem sabor de politeísmo, idolatría ou superstigáo; por
conseguinte, Deus permitiu que na linhagem de Abraáo se
continuassem as observancias de índole social ou civil existen
tes entre os antigos povos da Mesopotamia. Eram, sem dúvida,
normas de índole rude, adaptada a gente de mentalidade assaz
primitiva ou infantil; contudo, já que nao eram incompat'veis
com a eren "a num só Deus e com a revelagáo religiosa feita a
Abraáo, o Senhor se dignou tolerar tais observancias em Israel,
a fim de que aos poucos, sob a agáo da Providencia Divina, se
despertasse nos israelitas urna consciéncia moral mais apurada
ou mais aberta para o modo de pensar e viver da Revelagáo
crista.
É o que explica que na própria Biblia Sagrada tenham
sido consignadas leis táo semelhantes ás do Código de Hamu-
rapi; sao prescrigóes anteriores a Moisés que o Senhor Deus
no séc. XIH houve por bem confirmar provisoriamente em
Israel, a fim de que, através de observancias rudimentares, o
povo de Deus, como crianga, aprendesse a lei perfeita da cari-
dade. O bom pedagogo, para ensinar algo a urna crianga, tem
que supor as maneiras de pensar, falar e agir dessa crianca;
dentro désse material rude é que ele deve colocar um espirito
novo e as sementes de um progresso de mentalidade. Alias, o
confronto entre os Códigos de Moisés e Hamurápi demonstra
como o Senhor Deus, em mais de um ponto, quis eliminar
certas práticas grosseiras dos antigos orientáis, purificando e
elevando a mentalidade de Israel.
No tocante á inspirado bíblica em particular, sabemos
que ela nao consiste em revelar nogóes novas, desconhecidas
ao homem (é a profecía que revela conhecimentos novos). A
inspiragáo bíblica supóe simplesmente o cabedal de nogóes cul-

— 19 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 85/1967, qu. 3

turáis, científicas e religiosas do respectivo sujeito humano;


pela inspiragáo Deus ilumina a mente déste sujeito a fim de que
perceba com toda a clareza serem tais e tais hogo.es condizentes
com aquilo que Deus quer ensinar aos homens, ao passo que
tais outras nogóes perverteriam a mensagem divina; sob a luz
de Deus, portante, o autor sagrado faz urna triagem entre os
seus conhecimentos e consigna por escrito apenas aqueles que
sao realmente portadores dos ensinamentos que Deus quer
propor aos homens. Foi o que se deu com Moisés: conhecedor
das diversas observancias vigentes em Israel, o legislador bíbli
co, sob a influencia do Espirito Santo, codificou as normas
que o povo de Israel, em sua rudez, podia compreender, de tal
modo, porém, que, observando tais normas, ésse mesmo povo
aos poucos se fósse educando e enobrecendo.

A respeito do conceito de inspiracáo bíblica, veja-se ulteriormente


«P.R.» 29/1958, qu. 5, pág. 379.

III. DOGMÁTICA

LUÍS (Belo Horizonte) :

3) «Deus, criando éste mundo, terá feito o melhor mun


do possível ?
Nao poderia ter criado um mundo melhor ?»

O filósofo alemáo Leibniz (Godofredo Guilherme, baráo


de), f 1716, jidgava que Deus, sendo infinitamente bom, esta-
va obligado a criar, e a criar o melhor mundo possível. O
mundo que existe, portante, dizia ele, é o melhor dos mundos
possíveis; os males que néle se encontram, só dáo ocasiáo ao
bem, e nao prevalecem sobre éste.

Tais idéias ainda tém voga em nossos dias. Pergunta-se : como


se poderia entender a infinita Bondade de um Deus que nao criasse
o melhor dos mundos possíveis ? Doutro lado, porém, surge a questao:
será de fato este mundo o melhor possivel ?

É sobre estas dúvidas que vamos abaixo refletir, procu


rando por de lado todo antropomorfismo ou a excessiva .ten
dencia a conceber Deus a semelhangá do homem.

— 20 —
O MELHOR MUNDO POSStVEL ?

1. Deas obrigado a criar ?

Logo de inicio, talvez diga alguém:


Deus, que é todo-poderoso, podía criar ou expandir a sua
Bondade.
Ora quem pode causar um bem e nao o faz, é digno de
censura.
Por conseguinte, para que Deus seja irrepreensível ou
possa ser tido como a Bondade Infinita, devia criar.
Que pensar a respeito ?
— Tal raciocinio, aparentemente impecáyel, nada concluí
no caso considerado. De fato, sómente as criaturas (homens
ou anjos) podem incorrer em censura por nao fazerem o bem
que esteja ao seu alcance. Sim; toda criatura, sendo limitada
ou deficiente, pode sempre aperfeigoar-se, e em muitos casos
está mesmo moralmente obrigada a isto. Por sua natureza
mesma, a criatura está sujeita a urna leí: tender ao Absoluto;
ela deve procurar, dentro das suas capacidades, mais e mais
elevar a si e elevar os demais seres finitos que a cercam. Em
outros termos aínda: toda criatura traz em si potencialidades
para o bem e, essas potencialidades, ela nao pode deixar de
querer atuá-las sem frustrar o seu ideal, sem pecar contra.si
mesma e contra a reta ordem das coisas. Por isto «deixar de
fazer o bem» pode ser repreensível para a criatura ou para um
ser que é lacuna capaz de mais participar do Bem.
O mesmo, porém, nao se dá com Deus. — Deus, por defi-
nicáo sendo o Infinito ou Absoluto, nao deve nem pode ten
der...; seria contraditório imaginar que o Altíssimo esteja
obrigado ao que quer que seja.
Dizíamos que, quando urna criatura pratica o bem, ela
ganha aiguma coisa (pois a criatura pode sempre progredir).
O mesmo, porém, nao se dá com Deus. Na hipótese de que Deus
crie aiguma coisa, Ele nao ganha perfeieáo. Quando Deus cria,
Ele apenas dá, nada recebe; é o que nos faz comprender as
palavras de Jesús : «É mais feliz (= mais belo, mais próximo
do comportamento divino) dar do que receber» (At 20, 35).
Nem se pode dizer que, após a criacáo, existe mais perfeicáo
ou existe mais ser; na verdade, existem apenas mais sujeitos
portadores do ser. Isto se comprende bem mediante a seguinte
analogía : quando um mestre comunica a sua ciencia aos discí
pulos, nao se pode dizer que a ciencia do mestre cresce; apenas
se verifica que novos sujeitos se tornam portadores de ciencia:
o nivel de ciencia do mestre nao se eleva pelo fato de que outras
pessoas compartilhem tal ciencia.

— 21 —
«PERGUNTEE RESPONDEREMOS» 85/1967, qu. 3

Por conseguinte, «Deus mais o mundo» (Deus, na hipó-


tese de criar) nao representa mais perfeicáo do que «Deus sem
o mundo» .(Deus, na hipótese de nao criar).
Destas consideragóes se segué que Deus, sendo todo-pode
roso, pode expandir sua infinita perfeicáo segundo infinitas
modalidades. Nao está, porém, obligado a fazé-lo segundo urna
só dessas modalidades sequer.
Eis por que se deve dizer que Deus nao tinha obrigacáo
de criar. Se criou, fé-lo de maneira libérrima, únicamente para
difundir bondade.
Pergunta-se agora : dado que Deus tenha decretado criar,
nao estava obligado a fazer o melhor mundo possível ?

2. O melhor mundo possível ?

Responderemos: a nocáo de «o melhor mundo possível»


é algo de incoerente e imposs^vel (como também incoerente
é o conceito de «o movimento mais rápido poss'vel»).
Com efeito, qualquer mundo, pelo fato mesmo de ser cria
do, é limitado, finito e, por isto, sujeito a deficiencias e falhas.
Sempre se poderá conceber outro mundo, menos limitado e
finito. Nao há um mundo «ótimo» ou um mundo ácima do
qual nao se possa conceber outro melhor; nao pode portante
existir um mundo infinitamente bom e perfeito. Em verdade,
nao se atinge o infinito aumentando a serie ou o grau de per
feicáo dos seres finitos; estes daráo sempre um total finito.
Donde se vé que nao se pode imaginar «algum mundo que seja
o melhor de todos». Tal mundo seria «Nao» e «Sim» ao mesmo tempo:
nao seria Deus, por haver sido criado ou produzido pelo próprio Deus;
doutro lado, seria Deus, por ser infinito ou por nao admitir acréscimo
em suas perfeicóes.

Em conseqüéncia, seja removida de nossas reflexóes a


hipótese de que Deus, ao decretar a criacáo, tiyesse que optar
por um mundo ácima do qual nao se pudesse imaginar outro,
mais perfeito. Exigir, para que Deus seja irrepreensível, que
Ele fizesse o melhor dos mundos possiveis, seria exigir que
fizesse o que nao pode ser feito ou realizasse o absurdo.
Conseqüentemente, interroga-se : a que estava Deus obri-
gado, ao decretar livremente a obra da criacáo ?

3. Obrigado a qué ?
Na frase ácima, «obrigado» nao implica em imposicao apresentafla
a Deus por algum agente extrínseco, mas significa exigencia da própria

— 22 —
O MELHOR MUNDO POSSÍVEL ?

perfeic&o divina (Bondade, Justica, Sabedoria). Km termos negativos,


indagar-se-ia: que é que Deus nao poderla íazer em hipótese alguma,
já que file é a infinita Bondade ou a Perfeicáo absoluta ?

Deus nao poderla criar um mundo radicalmente mau


ou um mundo em que simplesmente triunfasse o absurdo, üm
mundo cuja historia se encerrasse pela vitória do mal sobre
o bem, como admitiram, por exemplo, os filósofos modernos
Arthur Schopenhauer, 11860, e Eduardo von Hartmann,
11906.
Por conseguinte, ao criar seres finitos, limitados e, por
isto, faliveis («seres criados infalíveis» sao algo de impossível,
pois o infalível é incriado, é o ser infinito, é sómente Deus),
o Senhor apenas está obrigado a fazer dos males ou das falhas
de suas criaturas a ocasiáo de triunfo do bem. Figuradamente
diríamos : após haver semeado trigo em seu campo, Deus, ao
ver aparecer o joio, nao está obrigado a arrancar imediatamen-
te esta erva daninha, mas pode deixá-la crescer até profligá-la
definitivamente na consumacáo dos tempos; arrancando o joio,
Ele poderia eliminar também algo do trigo; isto poderia subtrair
ao bem e aos bons a ocasiáo de se exercer e de desenvolver
plenamente as suas facilidades boas.

Equivalentemente : Deus só nao pode permitir que o mal devaste


a sua obra e diga a última palavra;' Ele só pode permitir o mal em
íungáo do bem.
O Criador, par conseguinte, estava obrigado por sua Bondade a
fazer um mundo que, no seu conjunto e na consumacáo da sua historia,
fósse bom; ésse mundo pode, em verdade, apresentar seus aspectos de
lacunas e deficiencias (devidas nao a Deus, mas a falibilidade natural
das criaturas); contudo ésses aspectos particulares obscuros ou pálidos
seráo dominados pela tonalidade boa do conjunto, seráo tragados pela
característica boa do total; as lacunas das criaturas equivalen! assim
ás pausas e aos intervalos silenciosos necessários numa melodía, ao lado
de passagens extremamente vlvazes, para que a harmonía se torne devi-
damente sinfónica e bela.

Estabelecido tal princ'pio, vé-se que restava a Deus urna


vastíssima escala de mundos bons, entre os quais Ele podia
escolher um determinado, ao decretar a obra da criagáo. O
Senhor nao estava obrigado a querer tal mundo bom, de pre
ferencia a tal outro mundo bom.

Sem dúvidai Deus podia criar um mundo em que nao houvesse


nem pecado nem outros males. Para tanto, Ele deveria continuamente
intervir no curso natural das criaturas, impedindo mediante milagros
sucessivos o exercício da falibilidade das mesmas. Deus teria dado as
criaturas a sua respectiva natureza, mas impediría o ritmo natural da
historia, provocando um curso artificial dos acontecimientos; as exce-

— 23 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 85/1967, qu. 4

Cóes se tornariam regra. file nao o quis fazer, Jiem estava obligado a
queré-lo; o que Lhe Incumbía, era servir-se dos próprlos males e pecados
para ocasionar o bem e dar a Vitoria definitiva a éste, ainda que o
faca de maneira misteriosa para nos (é claro que deve haver misterio
ou algo de transcendente ñas obras de Deus infinitamente sabio, algo,
portante», que a criatura nunca conseguirá abarcar com a sua inteli
gencia finita).

Assim se compreende que Deus tenha decretado criar o


mundo que atualmente existe.

Passemos agora a

4. Duas questoes complementares

a) Deus poderia tornar melhor o mundo presente ?

Nao se pergunta se Deus poderia acrescentar partes novas a éste


mundo, produzindo especies de criaturas mais numerosas e mais nobres,
fazendo enfim um conjunto mais vasto e mais rico. Com isto, ter-se-ia
um outro mundo.
O que se indaga é se Deus, conservando o número e as especies
de criaturas existentes, poderia tornáJas mais harmoniosas entre si.
Em particular, no tocante aos seres livres, poderia Deus fazer que os
homens íossem mais virtuosos, mais prudentes, bondosos e sabios ?
Poderia evitar que o avanco do mal fósse táo yultoso e provocador ?
Poderia impedir tantos crimes horrendos.? Poderla também deter tal
ou tal catástrofe, como o desabamento de' um edificio, de urna ponte,
que ocasiona a morte simultánea de bons e maus, de réus e inocentes ?

— Sim; Deus o poderia.


— Como ?
— Mediante intervengóes maravilhosas ou milagrosas.
Neste caso, porém, Deus instauraría um regime mais ou menos
extraordinario neste mundo; tendo estabelecido urna ordem,
Ele retocaría essa ordem para instituir duas ordens de coisas :
a «ordinaria» e a «extraordinaria». E, ainda que Deus assim
impedisse muitos dos males que ocorrem, tornando melhor éste
mundo, dever-se-ia dizer que, após ter feito isso, Ele ainda po
deria meihorar o mundo memorado; todo e qualquer mundo
melhor poderia ainda tornar-se melhor; nao há mundo algum
capaz de exprimir adequadamente a infinita Bondade de Deus;
entre o finito (o mundo, qualquer que seja) e o Infinito (Deus)
há sempre urna distancia intransponívél. .
•por isto conclui-se que Deus, tendo criado um mundo
(finito e, limitado, como é qualquer criatura), está apenas
obligado a fazer que o mal nao prévaleca finalmente sobre o
b masVao contrario, ceda ao bem a Vitoria definitiva.

— 24 —
O SOFRIMENTO DAS CRIANQAS

b) Deus poderia ter criado melhor (ou de melhor modo)


éste mundo ?

Responda-se negativamente. Deus, que podía ter colocado


neste mundo mais justiga, mais sabedoria e mais amor, nao
podía ter aplicado mais justica, mais sabedoria e mais amor na
obra de criagáodo mundo. Foi com justiga, sabedoria e amor
infinitos que Ele dispós a atual ordem de coisas, e é com os
mesmos santos predicados que Ele encaminha todos os acon-
tecimentos, tanto os progressos do bem como os ayangos do
mal, para que produzam o bem comum no fim da historia.
Após tais consideragóes, que se impóem pela lógica (remo
vidos os antropomorfismos e o sentimentalismo), o espirito
humano se queda silencioso diante da transcendente Majestade
de Deus; ao sondar os planos da sua infinita Sabedoria, senti-
mo-nos impotentes para os reduzir as nossas categorías. Ferce-
bemos que a única resposta digna da parte do homem é um ato
de adoragáo profunda, cheia de absoluta confianga e de entrega
incondicional aos arcanos designios de urna bondade que, justa
mente por ser muito maipr do que a nossa, tem que ser incom-
preensível aos nossos olhares. A criatura estará sempre bem
(... muito bem) se se abandonar, com humildade e amor,
ao seu Criador; só existimos porque Deus nos ama.

AL.VES (Sao Paulo) ;

4) «Se Deus é bom, como se pode justificar o sofrimentp


das crianzas inocentes ?»

Esta questáo se prende de perto ao problema do mal no


mundo. Vamos abordá-la considerando primeiramente urna so-
lugáo assaz comum em nossos días, á qual se seguirá a autén
tica explanagáo do assunto.

1. Reencarnacao ?

Há pensadores que julgam s6 poder explicar o sofrimento das


criancas por culpas que tais seres tenham cometido em outra vida ou
em anterior encarnacáo. A lei do «Karma» ohrigaria-todo individuo a
puriíicar-se dos defeitos com que morre ou «se deseiicarna», voltando
a éste, mundo em urna nova encarnacao. Assim se ¿lycldana que até
as criancinhas, desde os seus pri'meiros dias, possam Ser iníelizes; a
sua desventura seria conseqüéncia de deslizes cometidos em putras pas-
sagens pela térra.
Que dizer dessa teoría ?

— 25 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 85/1967, qu. 4

a) A maior dificuldade com que se depara a tese da


reencarnasáo, é a falta de provas positivas que a apoiem; em
estado psíquico normal nao há quem tenha consciénda de já
ter existido no corpo em urna pré-vida. É o que reconhece
um grande adepto moderno da réencarnagáo:

«O mais importante argumento contra a reencamacáo é o esque-


cimento quase geral das vidas passadas; sao extremamente raras as
recordaoóes da reencamacáo; eis por que podem ser consideradas como
ilusdes individuáis... Se é verdade que já vivemos algumas vézes, como
se explica nao só o esquecimento geral das vidas anteriores, mas o
esquecimento dessas vidas por espíritos elevados e sobretudo pelos
místicos, os quais penetram até a esséncia do ser ?» (W. Lutoslawski,
Preesistenza e Reincarnazione 61s).

Ora, para quem ignora o motivo pelo qual está destinado


a se purificar neste mundo (ou pelo qual se reencarnou), vá
é a sancáo ou a reencamacáo. Se o homem desconhece a que
altura de seu roteiro espiritual se acha, se nao sabe qual a
trajetória e as etapas percorridas até o presente momento,
nao se pode orientar para o futuro, afim de caminhar segura
mente pela estrada, aproveitando da «chance» aue lhe é dada
em cada reencarnagáo. A sancáo só se torna eficaz ou medi
cinal para quem saiba por que lhe é infligida.
b) Apontam-se, porém, certos fenómenos ocorrídos em es
tado de transe que parecem fornecer provas de encarnagóes
anteriores.

Haja vista, entre outros, o caso de Bridey Murphy verificado em


1952 nos Estados Unidos da América do Norte : hipnotizada por Morey
Bernstein, a senhora contou o enredo de urna existencia que ela terla
vivido na Irlanda no sáculo passado.

Hoje em dia, porém, tais casos sao científicamente reco-


nhecidos como meros fenómenos parapsicología»: o subcons
ciente de certas pessoas, sugestionado ou traumatizado por
determinados fatóres, manifesta, livre ou fantásticamente asso-
ciadas entre si, nocóes adquiridas nesta vida mesma, através
de leituras, conversas, audbóés radiofónicas, etc.; o pariente
parece entáo apresentar outra personalidade e conta o que
teria experimentado em encamagáo anterior.

Em geral, as pessoas que dizem recordar-se das suas existencias


passadas, apresentamse como personagens importantes. O observador
Dóuglas Home declarava que já tivera a honra de encontrar ao menos
doze María Antonieta, rainha de Franca, seis ou sete Maria Stuart,
rainha da Inglaterra, multidao de Sao Luis e outros reis, uns vinte
Alexandres e Césares. Nunca, porém, se defrontara com personagem

— 26 —
O SOFRIMENTO DAS CRIANCAS

insignificante. Quem entra em urna clínica de debéis mentáis e alie


nados, tem fácil oportunidade de conversar com um bom número de
vultos eminentes da historia passada. As pretensas afirmagóes de re-
encarnacáo nao seráo, pois, expressóes requintadas da megalomanía
latente em individuos psicópatas ?
Ulteriores comentarios ao assunto se encontram em «A vida qué
cometa com a morte» (2? edicáo), c. X, pág. 235-243 (Ed. AGIR); e em
«P.R.» 26/1960, qu. 3, pág. 57; 49/1962, qu. 1, pág. 3; 51/1962, qu. 4,
pág. 112.

2l Luz no enigma

Em termos retos e sobrios, o sofrimento das mancas


inocentes pode ser iluminado mediante as duas seguintes con-
Gideragóes:

a) tal sofrimento é, antes do mais, urna conseqüénda


da sensibilidade ou da natureza sensitiva que integra o ser
humano como tal; pelo fato mesmo de termos órlaos sensitivos,
possuímos um organismo delicado ou vulnerável; nao é neces-
sário recorrer a algum pecado ou culpa para justificar essa
vulnerabilidade. Urna máquina fotográfica nao sofre, mas tam-
bém nao tem sentidos, nao vé. Suprimir a vulnerabilidade dos
órgáos da crianga seria mutilar a própria natureza ou a pro?
pria crianga.
Nao há dúvida, Deus todo-poderoso poderia intervir cons
tantemente no mundo das criaturas mediante milagres, para
impedir o sofrimento das mangas. Assim fazendo, porém, des
truiría a ordem natural que Ele mesmo criou.
Nótese, alias, que a dor na crianca tem, em muitos casos, sua
funcáo providencial. Sim, é íreqüentemente sinal de que alguma de-
sordem sobreveio no organismo ou no ambiente habitual da enanca;
constituí como que urna advertencia salutar que Incita os mais velhos
a indagar onde se -acha o agressox (bacilo, microbio, inseto ou outro
agente...).
Contudo esta funcáo de advertencia nao raro é falha. Há males
que por vézes nao causam grande dor (a tuberculose pulmonar, o
cáncer em seus principios) e há dores que nSo supSem grandes males
(certas dores de dentes e nevralgias). Independentemente, pois, da sua
funcáo de sinal, a dor é plenamente justificável na crianca como algo
decorrente da sua própria constituicáo sensivel.
A titulo de ilustracSo, pode-se recordar que também os animáis
sofrem sem culpa própria: caes, gatos, pássaros de estimagáo, gado
levado ao matadouro... Sofrem precisamente porque tém natureza
mais perfeita do que os seres Inanimados; e sSo dotados da sensibüi-
dade que constituí a sua nobreza em relacao aos seres inferiores.

b) Até aqui a Filosofía... A Teología ou a visáo de fé


acrescenta que Deus, em sua Bondade infinita, quis ¡sentar

— 27 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 85/1967, qu. 5

da dor todos os seres humanos, constituindo-os no estado de


bonanga inicial. Todavía, a culpa dos primeiros país extinguiu
os dons preternaturais que Adáo e Eva possuiam e deviam
transmitir aos seus descendentes. Em conseqüéncia, o sofri-
mento e a morte fazem parte da historia do género humano,
já nao como meras decorréncias da constituigáo delicada e
sensível do ser humano, mas também como sangáo 'devida
ao pecado.
Contudo a explicacáo do sofrimento das enancas nao se
termina com esta observagáo. A fé ensina outrossim que Deus
Pai mandou ao mundo o Redentor, Jesús Cristo, que em sua
absoluta inocencia padeceu para expiar os pecados do mundo.
É á luz do padecimento de Cristo inocente. que, em última
instancia, se devem considerar o sofrimento e a morte das
criancinhas, principalmente quando batizadas. Todas elas res-
suscitaráo um dia com Cristo: as que houverem recebido o
Batismo, participaráo da gloria do Senhor depois de haver
compartilhado a sua dor na térra, ao passo que» os pequeninos
nao batizados gozaráo da felicidade natural no limbo das cri
ancas (sabemos, porém, que, conforme alguns teólogos, mesmo
os pequeninos nao batizados poderáo ser admitidos á bem-aven-
turanga celeste; Deus próveria á sua salvagáo sobrenatural
por vias que escapam ao nosso conhecimento).

«Ouve-se em Rama urna voz,


Lamentos e amargos solucos.
É Raquel que chora os íilhos,
Recusando ser consolada,
Porque éles já hlo existen».
(Jer 31,15)

Isto, antes da vinda do Redentor. Depois de Cristo, cesse máe


Raquel de chorar; lembre-se de que o Senhor tem caminhos, visiveis
e invisíveis, de salvacáo !

— 28 —
SOCIALIZADO DA

IV. MORAL

AMIGO MÉDICO (Sao Paulo) :

5) «Hoje em día a medicina vai sendo mais e mais


aletada por preocupares económico-sociais. Basta lembrar os
convenios com os Institutos do Estado assim como as greves
de médicos. -
Do ponto de vista cristáo, que dizer sobre o assunto ?»

Inegávelmente numerosas questóes referentes a tratamen-


tos de saúde tendem a ser resolvidas em nossos dias na base
de contratos sociais; tenham-se em vista, por exemplo, os
convenios assinados entre Institutos do Govérno e Hospitais
ou Sanatorios, os movimentos coletivos de médicos em favor
de aumento de salarios, as Companhias de Seguros e os exames
de saúde por elas exigidos a fim de ampararem em casos de
doenca, acidente, morte... Em suma, a aplicacáo da medicina
vai tomando mais e mais características de ordem sócio-econo-
mica.
Éste fenómeno de modo nenhum redunda em desdouro
da medicina. ¿ apenas urna expressáo, e expressáo normal,
do tipo de civilizacáo que vamos vivendo; torna-se geral a
tendencia a socializar, e a socializar mesmo algo de táo deli
cado como o tratamento da saúde e as relacóes entre médicos
e pacientes. Por muito remoto que pareca da consciéncia crista,
éste fato nao lhe fica alheio; ao contrario, a sá consciéncia tem
algo que dizer a propósito. É o que procuraremos considerar,
percorrendo tres etapas : 1) a maneira clássica como outrora
se relacionavam entre si o médico e seu paciente; 2) as mu-
dangas nesse estado dé coisas acarretadas pela vida moderna;
3) a palavra da consciéncia crista.

1. Outrora médico e paciente...

Esquematizemos um pouco a realidade dos velhos tempos.

Antigamente, quando alguém se sentía enfermo, chamava á casa


o seu médico de confianca e lhe pedia um diagnóstico sdbre a sua
doenca assim como a receita adequada. O médico, após contato pessoal
com o doente, dava a éste instrucoes oportunas para a situacáo. O
enfermo, caso desejasse recuperar a saúde, devia seguir á risca tais
normas; contudo ficava, em boa parte, entregue a seu criterio segui-las
ou nao; caso o paciente julgasse que o tratamento estava fora de seu

— 29 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 85/1967, qu. 5

alcance íinanceiro ou que a sua molestia era incurável ou que as des


pesas a ser feitas nao eram proporcionáis ás melhoras previstas, podía
simplesmente furtar-se ao tratamento médico, sem que, por isto, a
sociedade interviesse em sua situacáo ou lhe fizesse censura grave;
o paciente era o juiz do seu caso e senhor da sua decisao futura; em
geral, nao tinha que recear a interferencia de alguma coletividadé ñus
suas relances com o respectivo médico.
A ésse tipo clássico de relacñes entre médico e enfermo tem-se
dado o nome de «medicina individual».

2. As mudangas

Em nossos tempos, a realidade tornou-se um tanto dife


rente.
Tenham-se em vista os seguintes pontos :

1) O médico moderno, após diagnosticar tal ou tal mo


lestia em seu cliente, verifica que nao pode ficar nisto. A sua
consciéncia social e o seu tino psicológico lhe fazem ver que
o caso do seu paciente está envolvido em um grande conjunto
de relagóes humanas: hoje emdia, mais do que nunca, os
homens (e conseqüentemente também os médicos) tém cons
ciéncia de que nenhum individuo pode ser considerado isola-
damente, pois na verdade todo sujeito humano, ñas circuns
tancias da vida moderna, está necessáriamente relacionado com
a populado da sua aldeia, da sua cidade, da sua patria, assim
como com os outros membros da Companhia ou da empresa
em que trabalha; em outras palavras : todo indiv'duo tem
dimensóes sociais, de alcance por vézes surpreendente.
Assim o médico moderno é impelido a ocupar-se nao só
com o tratamento do seu paciente individual, mas também
com a profilaxia da molestia no ambiente em que vive o en
fermo (familia, grupo de trabalho, sociedade em geral). Quan-
tas vézes, por exemplo, um surto de tifo nao supere a vacinaqáo
de numerosa massa de gente ainda nao contaminada ?! Como
se propala hoje a vacinacáo preventiva' contra a poliomielite !
Mas nao sómente a profilaxia das molestias solicita o
médico moderno; também a reabilitacáo dos doentes.... Com
eefito, o clínico nao se pode limitar a dar prescri' oes para a cura
do enfermo; é preciso que pense também em restituir o paciente,
urna vez curado, ao conjunto social em que vivia; é necessário
que trate de readaptar o cliente a sociedade, redintegrando-o
no convivio familiar e profissional. Em verdade, a molestia,
urna vez debelada, pode exigir que a pessoa curada se comporté
de modo diferente entre os seus familiares e os seus colegas
de trabalho (terá que abster-se de certas atividades ou terá
que emprender outras, ou poderá ampliar o número de seus

— 30 —
SOCIALIZACAO DA MEDICINA

afazeres). Compete igualmente ao médico adaptar a sociedade


ao convivio com o paciente recém-curado, pois na verdade os
ambientes de familia e de trabalho devem proporcionar ao
indiv'duo as condigóes adequadas para que se recupere pies
ñámente.

2) Está claro que a profilaxia das molestias e a reabi-


litacáo dos enfermos curados sao tarefas que geralmente exce-
dem as possibilidades financeiras e profissionais de um médico
em particular. Por isto, o médico e a medicina se véem, a novo
título, relacionados com a sociedade para desempenhar a sua
grau, está obrigada a possibilitar aos individuos os meios de
se precaver contra as molestias (quando sadios), de tratar da
sua saúde (quando enfermos) e de se reabilitar plenamente
(quando curados). Sem éste auxilio permanente da coletivi-
dade, os individuos nao poderiam viver como membros ativos
da sociedade, portadores de responsabilidades e capazes de
exercer devidamente as suas fungóes na familia e na profissáo
respectiva. Por isto tém-se mais e mais criado Institutos de
Previdencia Social, de Pensóes e Aposentadorias, de Amparo
aos Cegos, Acidentados e Enfermos, Companhias de Seguros,
etc.

Estes traeos, que marcam o exercído da medicina em nossos


dias, sao suficientes para levantar a questáo: quais os ditames que,
nessas situares, a cansciéncia crista toria a propor aos interessados ?

3, Que diz a sá Moral?

Parece que, em resposta. se podem distinecuir tres mensa-


gans da consciéncia crista, dirigidas resnectivamente a socie
dade como tal, aos pacientes e aos médicos em particular.

1) A sociedade como tal deve-se dizer que nao é sómente


louvável, mas também oportuno e necessário, o seu interésse
em favor da saúde dos individuos. Nao será preciso insistir
muito nesta afirmado, táo comprovada pela experiencia. Ne-
nhum cidadáo é capaz de enfrentar por si as complexas situa-
góes da vida moderna; neñhum individuo, portante, é capaz de
garantir a sua subsistencia sem o aux'lio eficaz do grupo social
(fanrlia, empresa de trabalho, nagáo) em que vive. Por isto,
as Companhias de Previdencia e Seguros sao por si aptas a
beneficiar muitos e muitós cidadáos.
Cornudo deve-se observar que a intervengáo da sociedade
(ou do Estado) é muitas vézes insuficiente; os seus recursos
(mesmo quando bem administrados) sao necessáriamente limi
tados. Nao raro as despesas de.tratamento de certas molestias

— 31 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 85/1967, qu. 5

se. tornam táo vultpsas que os Institutos nao as podem endos-


sar; recusam-se entáo a prestar todo o apoio de que precisariam
os interessados; estes, mais do que nunca, tém que contar com
a iniciativa particular, ou seja, com o auxilio do próximo.

Em conseqüéncia, a consciéncia crista lembra a todos os


homens a necessidade de se sentirem solidarios com os seus
semelhantes, de modo especial no setor da assisténcia sanitaria.
A estatizado ou o socializacáo de certos recursos da medicina
nao extingue o valor do apoio fraternal que cada cidadáo pode
prestar ao seu próximo por generosa benevolencia. O auxilio
que os familiares, amigos ou concidadáos prestam espontánea
mente a um enfermo, tem algo que a previdencia estatal geral-
mente nao possui, nem pode possuir, isto é, carinho, aconchego,
empenho cordial. O Estado, por sua natureza mesma, tem que
levar em conta primariamente os interésses da coletividade;
além disto, os servigos .que ele oferece, sao por vézes muito
«mecánicos», impessoais ou «neutros»; a pessoa humana, nesse
conjunto,, corre o risco de ser reduzida a um número entre
muitos outros, número que, por fórca das circunstancias, é
atendido segundo criterios as vézes pouco humanos. Nao basta
que os cidadáos protestem contra as lacunas da assisténcia
sanitaria que o Estado presta aos seus súditos (sabemos que
tais protestos em geral logram exiguo efeito). É preciso que,
antes do mais, cada qual avive em si o seu senso de responsa-
bilidade e se empenhe em prol do bem comum, particularmente
no que diz respeito á saúde do próximo. Onde falta o fino senso
da responsabilidade pessoal, há ocasiáo para que se implantem
a acáo do Estado e da «máquina estatal», a qual é sempre
menos compreensiva, menos cordial e humana do que a inicia
tiva particular.

2) Aos enfermos a consciéncia crista recorda que lhes


é necessário excitar em si mesmos a consciéncia social própria
dos enfermos. Isto quer dizer: saibam claramente que sua
molestia tem dimensóes sociais; pode-se dizer que nenhum
individuo (por conseguinte, nenhum doente) pertence exclu
sivamente a si; na verdade, pertence a urna familia, a um clá,
a urna aldeia, a urna cidade, a urna empresa coletiva..., que
déle esperam a sua colaboragáo; a saúde e a molestia de cada
qual nao podem deixar de se tornar objeto de interésse social,
mormente em nosso sáculo XX.
Em conseqüéncia, cada cidadáo é calorosamente convidado
a se submeter as regras de profilaxia, procurando coibir as
molestias e evitar o contagio de pessoas sadias. Isto, entre
outras coisas, implica em observar as leis de higiene pública,

— 32 —
SOCIALIZACAO DA MEDICINA

como as que se referem á vacina?áo obligatoria erri determi


nadas ocasióes ou a exame médico exigido para a obtencáo
de determinado emprégo.

A propósito, pode-se citar a seguinte passagem do documento


conciliar «Sobre a Igreja no mundo de hoje» :
«Há pessoas que proclamam opinioes magnánimas e generosas,
mas vivem sempre como se nao Ihes importassem as necessidades
da sociedade. Em diversas regiSes muitos sao aqueles que menosprezam
as leis e prescrigóes sociais... Nao raí os sao aqueles que tém em
pouca conta algumas normas da vida social, como, por exemplo, as
que se referem á proteeáo da saúde ou ao tránsito de yeículos, nao
advertindo que, por essa falta de cuidado, colocam em perigo a própria
vida e a dos outros» (n* 30).

O pronunciametnto do Concilio sobre tais assuntos bem manifesta


quanto a S. Igreja os considera importante para que os homens
hoje em dia vivam mais e mais a altura da dignidade humana.

3) Aos médicos propóe a consciéncia crista que se lem-


brem assiduamente de que o tratamento por éles prestado a
um determinado doente tem dimensóes mais vastas do que as
do individuo imediatamente interessado. Na pessoa de tal ou
tal paciente é á sociedade inteira que o médico presta assis-
tcncia. Importa que se recordem disto de modo particular
quando estao para assinar um atestado de. saúde : seja éste
correspondente a realidade do cliente isento portanto de inverdades
que prejudiquem o individuo ou a sociedade;

quando procedem a um exame geral de saúde: é o que se dá


freqüentemente quando um cliente deseja conseguir determinada colo-
cacáo na sociedade; seia o exame imparcial, de modo a evitar passos
erróneos na vida do individuo ou na marcha de determinada sociedade.

A sá consciéncia pede outrossim aos médicos que, por


ocasiáo de exames sanitarios, tratamentos clínicos e interven-
cóes cirúrgicas, respeitem religiosamente o corpo do paciente.
Qualouer" forma dt procedimento inconveniente nesse setor
constituiría nao só urna violagáo das leis de Deus e dos homens,
mas também um serio motivo para que muitos cidadiáos dei-
xassem de cumprir seus deveres para com a higiene pública.
Pede-se também aos senhores médicos, na medida em que isto
déles depende, evitem formalidades desnecessárias e facilitem
o acesso dos cidadáos aos clínicos ou aos Departamentos de
saúde. Nao há dúvida, o comportamento pessoal do médico é
de imenso valor para que funcionem eficazmente as institui-
góes públicas; a conduta do médico pode suscitar boa fama,
como também pode acarretar nota pejorativa para a repar-
ticáo em que trabalha. Sabemos que a opiniáo dos homens

— 33 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 85/1967, qu. 6

tende a identificar as instituigóes com as pessoas que «encar-


nam» tais instituigóes.

Urna vez apontadás as tarefas que cabem á sociedade, aos


pacientes e aos médicos na promogáo da saúde, resta acres-
centar que tais deveres só poderáo ser devidamente preenchi-
dos se todos os interessados se deixarem mover pelo senso de
fratemidade que Cristo veio trazer ao mundo. Tal esp'rito de
solidariedade, que implica em profundo amor ao próximo, só
é possível desde que os indiv'duos se desvenc'lhem do egoísmo
e da procura de interésses mesquinhos..., desde que cultivem
em si a consciéncia do valor que cada homem possui nao por
causa de suas qualidades naturais «simpáticas», mas porque
Deus Pai amou a cada um e Cristo derramou seu sangue por
todos indistintamente. Quem tem conhecimento profundo desta
realidade, está em condi-óes de «se fazer tudo para todos»,
como dizia o Apostólo (cf. 1 Cor 9,22).

V. HISTORIA DO CRISTIANISMO

REGINALDO (Sao Paulo) :

6) «Que pensar do caso de Teresa Neumann e das suas


gracas extraordinarias (visSes, estigmas, éxtases...), que
muito tem sido controvertidas ?»

O caso é assaz recente, pois Teresa Neumann faleceu era


18 de setembro de 1962. A Igreja até hoje nao se pronunciou
oficialmente sobre o assunto. Contudo, sem querer antecipar
a sentenga das autoridades competentes, podemos tentar formu
lar um juízo sobre o mesmo, valendo-nos de estudos já reali
zados, dentre os quais sobressai o de Johannes Steiner («The-
res Neumann von Konnersreuth», München 1963). Éste autor
reuniu dados biográficos, relatos de episodios e numerosos de-
poimentos referentes a Teresa Neumann, analisando-os sobria
e objetivamente. Sua obra é particularmente valiosa, porque
se sitúa após a morte da vidente, quando já se pode falar com
mais isengáo de ánimos e na base de documentos até há pouco
reservados.
Esbocaremos, pois, alguns traeos biográficos de Teresa
Neumann; a seguir, descreveremos aspectos de sua personali-
dade, para finalmente tentar conceber urna conclusáo sobre
o assunto.

— 34 —
TERESA NEUMANN

1. Traeos biográficos
Teresa Neumann nasceu aos 8 de abril de 1898 em Konnersrjuth
(Baviera), de humilde familia de camponeses; era a primogénita
dentre onze irmáos. Foi educada na pobreza, circunstancia esta que
a tornou muito sensivel a todos os dons de Deus (flores e pássaros,
principalmente). Freqüentou a escola em sua aldeia natal, demons
trando inteligencia, aplicacao e piedade.
Sobreveio a guerra de 1914-1918. Seu pai havendo sido mobili-
zado pelo exército, Teresa nesse periodo teve que se entregar as duras
tarefas de casa e da lavoura, a fim de prover k subsistencia de seus
irmáos; nisso dava provas de boa saúde física e mental.

O ano de 1918 havia de ser decisivo em sua existencia.


Aos 10 de margo, Teresa corajosamente empenhada na labuta
de extinguir um incendio em propriedade vizinha, sofreu um
acídente, aue lhe deslocou duas espinhas da coluna dorsal.
Viu-se entáo afetada de paralisia e obligada doravante a per
manecer deitada. Aos seus numerosos padecimentos juntou-se
a cegueira a partir de margo de 1919. Todos os cuidados mé
dicos a ela aplicados foram inúteis.
Passaram-se os anos até 29 de abril de 1923, dia da beati-.
ficacáo de Teresa de Lisieux, a quem Teresa Neumann dedica-
va especial afeto. Nessa data, a enferma, enquanto dormia,
viu a jovem carmelita; ao despertar, havia recuperado a vista.
Continuou, porém, paralitica. Já que só se podia deitar
sobre as costas, estas se recobriram de chagas.
Em abril de 1925, o pé esquerdo se infeccionou de tal
modo que o médico receou ter que o amputar. Contudo, no mes
de maio seguinte, o mesmo pé foi totalmente curado por apli-
cacáo de urna pétala de rosa que havia tocado reliquias de
Teresa de Lisieux.
Dias depois, ou seja, aos 17 de maio de 1925, foi canoni
zada a santa carmelita. Esta entáo mais urna vez se manifestou
á paralitica e, em meio a bela luminosidade, lhe perguntou se
quería ser curada; ao que Teresa Neumann respondeu :
«Regozijome por tudo que me vem do bom Deus. Alegram-me
todas as fl&res, as aves, como também me alegraría um novo sofri-
mentó. Ácima de tudo, porém, alegra-me o amado Salvador».

Prosseguiu a voz misteriosa :


«Urna pequeña alegría hoje te será concedida. Já te podes levan
tar; experimenta-o; eu te ajudareb.

Ouvidas estas palavras, Teresa Neumann sentiu que al-


guém a soerguia, segurando-a pela máo direita. A voz acres-
centou :

4 —35 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 85/1967, qu. 6

«Podes também caminhar; mas ainda has de sofrer Intensa e-


demoradamente; nenhum médico te poderá ajudar. O sofrimento é
o melhor meio de exerceres o teu espirito de sacrificio e a tua vocacáo
de vi tima; assim pederás auxiliar os sacerdotes. Pelo sofrímente-
salvam-se mais almas do que pelas mais brilttantes pregac,des. Ja.
o escrevi há tempos».
Quem assim falava, nao se identificou. Contudo o pároco de
Konnersreuth, Pe. Naber, a quem Teresa contou o ocorrido, verificou
que a frase «escrita há tempos* se cncontra no volume «Historia de
urna alma» de S. Teresa de Lisieux (6a. carta aos missionários).
O oráculo assim transmitido havia realmente de carac
terizar a subseqüente existencia da camponesa de Konners
reuth.
Teresa já caminhava desimpedida, quando em novembro
de 1925 foi obligada a se prostrar de novo no leito, pois febre
e dores pungentes a acometiam. Aos 13 do dito mes, o médica
diagnosticou apendicite supurada; e resolveu operá-la sem de
mora. Cíente disto, a máe de Teresa muito se contristou. Ao
ver a genitora assim aflita, Teresa perguntou ao pároco, que
a assistia, se pedir a cura a fim de consolar sua máe nao
equivaleria a tentar a Deus. Tendo o sacerdote respondido que
a prece seria bem justificada, a enferma rogou á santa de
Lisieux que a auxiliasse, e pediu aplicassem urna reliquia da
carmelita sobre o local de suas dores. Em resposta, novamente
urna voz em meio á luz se fez ouvir:
«Tua entrega total e tua alegria ao soírer nos regozijam. A fim
de que o mundo reconheca urna intervencáo superior, já nao precisarás
de ser operada. Levanta-te, vai ¡mediatamente á igreja e agradece a
Deus. Sem demora, sem demora ! Ainda terás muito que sofrer, cola
borando assim para a salvacáo das almas. T&ns que renunciar cada
vez mais ac próprio eu. E conserva sempre tua candura infantil !>

Teresa Neumann estava mais urna vez curada; o pus


desapareceu, como verificou o médico, a quem ela no dia
seguinte foi levada. Contudo a cruz do Senhor havia de se lhe
apresentar sob novas e dolorosissimas formas...
A partir da Quaresma de 1926, Teresa foi agraciada por
éxtases, em que contemplava a Paixáo do Senhór desde a
agonia no horto das Oliveiras até a morte de cruz. Ao mesmo
tempo, as máos, os pés e o seu flanco esquerdo (na altura da
coragáo) foram marcados por chagas (estigmas) que sangra-
vam veementemente, causando-lhe atrozes sofrimentos, como-
se ela mesma experimentasse o que o Salvador sofreu. Tais
fenómenos passaram a se reproduzir, dessa época em diante,
todas as sextas-feiras do ano (excetuados os períodos festivos
e os dias solenes da S. Liturgia), chegahdo a um total de 700
vézes em sua vida.

— 36 —
TERESA NEUMANN

Quando em 1926 os país de Teresa tiveram conhecimento dos


estigmas, chamaram o médico Dr. Seidl, que' receitou pomadas e
curativos; todavía, quanto mais se aplicavam medicamentos, tanto
mais dolorosas se tornavam as chagas. Em vista disso, Teresa, as 2h
da madrugada de 17 de abril de 1926, pediu a S. Teresinha de Lisieux
um sinal que lhe indicasse o que devia íazer, caso os medicamentos
continuassem a nao produzir efeito. Logo após a prece, sentiu que se
lhe afrouxavam as ataduras; elas lhe íoram entSo retiradas e veri-
íicou-se que, no lugar dos estigmas, se havia formado tenue película
de cdr rósea; o médico reconheceu o fato e suspendeu qualquer medi-
cacjío para o caso, pois os estigmas, deixados a si, nao se infecciona-:
■vam, ao passo que, medicados, provocavam acerbas dores. Teresa,, daí
por diante, usava luvas sem dedos e mangas compridas, a fim de
«vitar indiscricáo; quanto k chaga do pelto. só a mostrava aos familia
res e aos médicos que lhe prestavam assisténcia.

Teresa foi também caracterizada pelo fato de nao tomar


alimento de especie alguma. O fenómeno se implantou aos
poucos. A partir do Natal de 1922, limitou-se a alimentos
líquidos, por causa de paralisia da garganta; em agosto de
1926, comecou a só ingerir urna ou duas colheradas por día;
nao sómerite nao tinha apetite, mas experimentava repudio
pelos alimentos. Finalmente, desde o Natal de 1926 recusou
terminantemente qualquer tipo de nutrigáo. Apenas continuou
a aceitar algumas gotas dágua para ingerir diariamente a S.
Comunhao; todavía suspendeu mesmo éste líquido a partir de
setembro de 1927. Em conseqüéncia, até o fim da vida, ou
seja, por 35 anos a fio, a vidente subsistiu sem comer nem
beber. A S. Comunhao recebida diariamente era o seu único
■sustento. — De resto, as sagradas especies nela nao se dissol-
-viam, mas permaneciam intatas até a próxima recepgáo da
Eucaristía; Teresa sentía que se acabava a presenca sacramen
tal do Senhor em seu íntimo, apressando-se entáo para receber
•de novo a S. Comunhao. Quando lhe perguntavam de que vivia,
respondía com simplicidade: «Vivo do Salvador (vom Heiland)».

Ainda outros dons extraordinarios marcavam a sua exis


tencia.

Teresa possuia a cardiognosia ou o conhecimento do íntimo


dos seus interlocutores: sabia, portanto, se estes se achavam
em estado de graca, se eram sinceros ao falar, se eram fiéis
ao Senhor. Particularmente sensivel era ela ao orgulho e á falta
de caridade, experimentando urna especie de desfalecimento
físico em presenca de pessoas que estivessem contaminadas
por tais faltas (chegava a desmalar e a se tornar febril).
Também discernía os visitantes cujo teor de vida nao era
"honesto. Acontecía que tais pessoas a fóssem ver precisamente

— 37 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 85/1967, qu. 6

durante os seus éxtases; náó raro entáo Teresa voltava a si e


pedia aos parentes ou ao pároco, fizessem que as pessoas
presentes se retirassem.

Distinguia-se também pelo dom da hierognosia ou do dis-


cernimento de reliquias e objetos sagrados.

Narra, por exemplo, o Cardeal Carlos Kaspar, arcebispo de Praga,


que na 6» ieira 22 de marco de 1929 Teresa se achava em éxtase,
padecendo por contemplar a Paixáo do Senhor. Alguém entáo lhe tocou
a máo com urna pretensa partícula da Cruz de Cristo. A vidente
nao reagiu, o que era sinal de nao autenticidade do objeto. A seguir,
o Cardeal Kaspar colocou em máo de Teresa o seu peitoral (que conti-
nha um fragmento da verdadeira Cruz;) logo a visionaria experi-
mentou terríveis dores, levantou a máo e suspirou : «Senhor, de bom
ánimo... Senhor, de bom ánimo !». Na realidade, sentía atrozes sofri-
mentos logo que entrava em contato com objetos que tivessem causado
dor a Cristo; a seguir, reagia, osculando tais objetos.

Contam-se outrossim casos de bilocacáo de Teresa.

Eis o que se lé, por exemplo, ñas anotacSes do Pe. Naber, pároco
de Konnersreuth:

8 de maio de 1931: «Ontcm, um senhor, que cu desconhecia por


completo, referiu-me que, sábado passado, cstava a ponto de se suicidar
em conseqüéncia de tremenda crise moral e financeira. De repente,
porém viu a figura de Teresa Neumann. que o exortava e finalmente
o conseguiu deter do morticinio. — Quanlo a Teresa, ela me contou,
em pleno gozo de suas íaculdades, que sábado passado tanto teve de
sofrer que julgou nao poder mais suportar; depois, por influencia
de urna graca extraordinaria, a mesma Teresa acrescentou que seu
anjo da guarda tomara entáo a aparéncia de Teresa Neumann e fora
exortar o homem desesperado, detendoo do crime; a angustia de
tal senhor era conseqüéncia de veementes ataques que ele havia feito
contra a obra de Deus em Teresa».

A estigmatizada foi vista outrossim em estado de Ievitagao,


ou seja, arrebatamiento extático.

Tal fenómeno se deve ter dado, conforme testemunhas fidedig


nas aos 15 de agosto de. 1938, quando Teresa se achava em visita ao
mosteiro beneditino de Stey] (Tirschenreuth): contemplando a Assun-
gáo da Bem-aventurada Virgem Maria aos céus, elevou-se 15 20cm
ácima do solo e permaneceu certo tempo nessa posicáo.

Em relaeáo a S. Eucaristía, a mística de Konnersreuth go-


zava de privilegios freqüentes; assim pode varias vézes dizer se
o SS. Sacramento estava presente ou nao em igrejas pelas quais
passava em viagem; acontecia-lhe comungar sem sacerdote (a
partícula eucarística que o sacerdote depositasse sobre a sua

— 38 —
TERESA NEUMANN

língua, desapareda por vézes, sem que Teresa fizesse esfórgo


para a enguur (comunháo mística).

Muitos outros fenómenos extraordinarios sao descritos na vida


de Teresa Neumann, aiiangados pelo depoimento de pessoas dignas
de crédito. Nao será necessário enunciá-los para se ter idéia do que
loi o «maravilhoso» na existencia da campónia de Konner&reuth.

Apesar de seus achaques, Teresa nao se furtava ao tra-


balho.

Assim é que se dedicava carinhosamente aos doentes. Até 1947


nao havia médico nem enfermeira residentes em Konnersreuth. Em
conseqüéncia, durante muitos anos, servindo-se de urna carreta puxada
por um cávalo, visitou enfermos da aldeia, a fim de lhes prestar auxiho.
Em casa, íazia curativos a quantos a fdssem procurar. O próprio
médico da cidade de Waldsassen, Dr. Seidl, depois de haver medicado
os seus pacientes, enviava-os a Teresa, a fim de que esta lhes dispen-
sasse os seus cuidados.
Ocupava-se também zelosamente com a ornamentacáo da igreja.
Em vista disto, cultivava flores num pequeño terreno á margem de
sua aldeia, e com elas decorava estéticamente a casa do Senhor.
Com o dinheiro que lhe doavam (as vézes em visitas pessoais,
outras vézes em carta), distribuía numerosas esmolas a pobres, doen
tes, missionários e obras da Igreja. Nos Cutimos meses de vida, Teresa,
procurando satisíazer a um desejo do seu Bispo diocesano, muito se
empenhou pela construgáo de um mosteiro de Carmelitas adoradoras
em Konnorsreuth; para tanto, com grande sacrificio para a sua saúde,
emprocndou uma viagcm ao Lago de Constanga, em visita a um ben-
feitor. Aos 28 de abril de 1963 (após a sua morte) foi lanzada a pedra
fundamental désse cenobio, que hoje é realidade consumada.

Justamente pouco depois de regressar dessa yiagem, ou


seja, aos 15 de setembro de 1962, a vidente foi vítima de um
enfarte card'aco, que a obrigou a manter-se de cama. No día
18 <as llh30min aínda recebeu a S. Comunháo; pouco depois
expirou tranquilamente nos bracos de sua irmá Maria. Os fami
liares que haviam assistido a nao poucos desfalecimentos de
Teresa, julgaram que ela ainda voltaria a si. Todavía, como
humilde serva, havia passado definitivamente para a vida do
seu Senhor.

2. Perfil espiritual

Fora dos seus estados misticos, Teresa se apresentava co


mo simples camponesa, semelhante as da sua aldeia, forjada
por certa rudez de vida e pobreza. Mostrava-se inteligente,
capaz de conversar e deliberar sobre variados assuntos; isso,
alias, era exigido pelo círculo de seus visitantes e corresponden
tes, que abrangia pessoas das mais diversas condigóes e de

— 39 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 85/1967, qu. 6

I
todos os continentes. Suas atitudes e palavras nada tinham de
artificial ou rebuscado; era aberta para tudo que ha de belo
e nobre. No trato com o próximo manifestava alegría e bom
humor. Era sobria em seus conceitos e imaginagóes, o que a
tornava pouco impressionável.

Mostrava-se muito vivaz, tendendo por vézes a se irritar. Em


conseqüéntia. visitantes houve que a julgaram pouco caridosa. Por
certo, nao é fácil a urna criatura humana sustentar sempre o mesmo
ánimo na situacao em que Teresa se via : durante anos a fio, dezenas
ou centenas de pessoas diariamente procuravam aproximar-se déla,
estabelecendo por vézes verdadeira porfía; nao sómente os necessitados
de corpo e alma a solidtavam. mas também curiosos e importunos,
muitos dos quais lhe iam ao encalco dentro de casa, no quintal, na
igreja. na sacristía.... espreitando-a nos recantos com aparemos
fotográficos ou puxando repentinamente tais aparelhos durante urna
visita. A pobre camponesa decvencllhava-se decididamente dos que
apenas procuravam sensacionalismo; quando. porém. percebla que
alguém tinha algo de serlo a lhe expor. dedicava-selhe qualquer que
fdsse a hora do dia, e mesmo por espaco prolongado. Todavía, Teresa,
consc'ente de que nem sempre correspondía ás exigencias da caridade,
combatía a veeméncia de caráter como seu principal defeito. Conforme
o pároco Pe. Naber. exclamou certa vez: «Senhor. auxilia! N. N.; no
próximo mes, serei bem amável em seu favor para com os visitantes».

A piedade de Teresa tinha algo da caridura infantil. Pror-


rompia freqüentemente em palavras de louvor a Deus, ao ver
as flores, ao ornamentar os altares, ao ouvir o canto dos
pássaros; nao tecia entáo doutas consideracóes, mas proferia
pequeñas frases exclamativas. A oragáo parecia ser algo de
espontáneo e constante em sua alma. Quem a visitava, colhia
nao raro a impressáo de que estava intimamente unida ao
Senhor e era feliz.
Sua tempera heroica se manifestava na aceitado magná
nima do sofrimento.

Em suas preces, dizia: «Senhor, recebcl em beneficio de outros


o que eu tiver de sofrer; minhas próprias, faltas, hei de expiá-las no
purgatorio». Ou ainda : «Senhor, uno meus sofrimentos aos vossos.
Podéis repartí los em favor de outras almas, a fim de que todos os
homens Vos amem». Quando certa vez lhe perguntavam o que é
essencial a um bom comportamento religioso, respondeu: «Amar o
Senhor; ter nTSle grande confianca e de boa vontade padecer alguma
coisa para que file a possa distribuir».

Inegávelmente, muito teve que padecer ou, melhor,...


com-padecer: compadecía, física e moralmente, com. Cristo,
com sua Máe Sant'ssima, com os doentes, com os visitantes,
empenhando-se ardorosamente pela expiagáo dos pecados e a

— 40 —
TERESA NEUMANN

salvacáo de todos guantes a procuravam. «O Senhor ha de


julgar tudo na base do amor», asseverava ela.

Feriam-na Intimamente os escarnios e insultos que a seu propó


sito se faziam (multas véaes, de maneira veemente e indigna). Quiindo
eram dirigidos contra sua pessoa, procurava guardar indiferenca;
mas, desde que sevoltassem contra Deus e os santos, mostrava-se
profundamente aíetada. De resto, Teresa íugia a toda ostentacao e
publicidade em torno do seu caso.

As noticias até aqui consignadas já sao suficientes para


permitir-nos procurar formular um

3. Jufzo sobre o assnnto

Enquanto houver testemunhas e documentos a colhér, pes


quisas a realizar em torno do caso Konnersreuth, nao se poderá
proferir sentenga definitiva sobre o mesmo. Alias, só a Igreja
compete pronunciar-se autoritativamente a respeito.
Contudo, nada impede tentemos urna reflexáo que nos
possibilite tomar posicáo diante do caso.

Conforme ensina a teología, para que fatos maravilhosos possam


ser tidos como auténticas intervencSes de Deus, tres conduces háo
de ser preenchidas:
1) os referidos fatos devem ser reals ou verdadeiramente histó
ricos;
2) ... devem outrossim ser de todo inexplicáveis pela ciencia
contemporánea;
3) mais aínda: é preciso que tenham sido produzidos em genui
no contexto religioso, como sinais de Deus para os homens que os
observam. O milagre auténtico se relaciona sempre com as circunstan
cias em que se dá, e tem de ser apreciado á luz destas; é como a res-
posta do Céu a um problema, a urna situacao difícil ou a urna prece.

A propósito de tais condigCes nao nos es tendemos aqui, pois já


íoram estudadas em «P. R.» 59/1962, qu. 3.

Apliquemos os referidos criterios ao caso de Teresa


Neumann.

1) Nao há quem ponha em dúvida a realidade histórica


dos fenómenos extraordinarios de Konnersreuth. Os estudiosos
só comecam a divergir quando cuidam de os interpretar.

2) Sem pretender falar de maneira categórica, pode-se


mencionar que nao poucos médicos e estudiosos, após examinar
urna ou outra das ocorréncias de Konnersreuth, asseveraram
nao haver explicagáo científica para quanto haviam visto.

— 41 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 85/1967, qu. 6

Curas ¡mediatas, total carencia de alimentacáo, habitual repro-


ducáo dos fenómenos das sextas-feiras (estigmas a sangrar dolorosa-
mente, visñes extáticas, palavras pronunciadas em aramaico, etc.)
como ocorreram em Konnersreuth. parecem realmente estar fora do
alcance dos conhecimentos de nossos dias.
Aqui limitamo-nos a reproduzir um trecho do testemunho de
Franz X. Mayr, professor de Química, Biologia, Geologia, qué, aos
18/X/37, assim se exprimía :

«No tocante aos estigmas, deve-se realcar o seguinte: chagas


que durante onze anos permanecem mais ou menos as mesmas, sem
produzir infeccáo nem pus e que resistem a todo tratamento médico,
estáo lora dos conhecimentos da medicina. Quem julga que os estig
mas de Teresa Neumann possam ter sido originados par auto-sugestáo,
procure ver a compressa que na sexta-leira santa de 1936 estava sobre
a chaga do lado de Teresa e que agora se acha em poder de sua
irmá María. A porgáo de sangue que se acumulava na chaga, perma-
neceu adérente á chaga, e dá nítida idéia do tamanho da íerida. Em
comparacáo com esta, todas as feridas e perdas de sangue provocadas
por sugestáo (psicógenas) aparccem como algo de ridículo. Esta con-
clusáo mais aínda se impñe, desde que se leve em canta a totalldade
das chagas que sangravam em Teresa na última sexta-leira santa,
chagas estas cujo tamanho pode ser claramente avaliado pelas man
chas de sangue deixadas sobre a veste e sobre o véu da cabega de
Teresa».

3) Resta agora o exame da terceira condicáo, que é de


importancia decisiva para se aquilatar o alcance religioso do
caso (pois todo milagre de Deus vem a ser essencialmente
um sinal, essencialmente algo de relativo).
a) Teresa Neumann, como asseveram muitos dos que a
conheceram de perto, foi mentalmente sadia; tinha a alma
candida de urna crianga; suas atitudes eram alheias a qualquer
ostentacáo ou síntoma de histeria. Vivia em cheio na realidade
da vida, mostrando-se compreensiva das alegrías e tristezas
que numerosíssimas pessoas lhe comunicavam. Entregava-se
com irrestrita confianca a santissima vontade de Deus, como
atestam as suas palavras :
«Quero tudo que o Senhor quer. Tudo está • bem para mhn:
saúde e doenca. viver e morrer. da íorma que o Senhor dispuser. Se
file quiser que eu trabalhe, trabalhafei; se qulser que eu sofra, sofre-
rei. Se o Senhor me enviar alegría, aceitá-la-ei. Nao quero ter outros
desejos que nao os do Senhor».
«Regozijome todas as vézes que vom um dia de festa. Alegróme
quando o Senhor quer que eu nao sofra. E, quando vem um dia de
sofrimento, digo : Senhor, para mim tudo está bem>.

Teresa nao procurava o sofrimento, como (por inspira^So


divina) o fizeram outras almas generosas; aceitava-o como
vinha das máos do Pai Celeste. Isto diminuí muito, aos ólhos

— 42 —
TERESA NEUMANN

do observador, a probabilidade de que suas atitudes tivessem


algo de vaidade ou desejo de projegáo, pois é necessária maior
abnegagáo para suportar os sacrificios que o Senhor Deus nos
impóe, do que para sofrer aquilo que nos mesmos empreen-
demos.

Disseram-lhe certa vez que merecía ser encarcerada, porquanto


ludibriava o público. Ao que respondeu: «Eu nao me oporia. Teria
comigo o Senhor, e as pessoas me deixariam mais em paz».

Sem multiplicar observagóes déste género, pode-se dizer


que a visionaria de Konnersreuth apresentava as caracterís
ticas de verdadeira alma religiosa, toda devotada a Cristo e
a salvacáo do próximo.

A titulo de ilustracáo, segue-se o depoimento do Cardeal-arce-


bispo de Braga D. Carlos Kaspar (1930) :

«Devo sinceramente confessar que nao observel em Teresa Neu-


mann o mínimo sinal de histeria, sugestáo ou auto-sugestSo. hipno-
se. fraude ou outra ilus&o diabólica. Como há de reconhecer qualquer
pessoa que tenha tido ocasiáo de a ver ou de lhe falar quando se
achava em estado normal, Teresa dá a Impressao de gozar de períelta
saúde mental. É sincera, piedosa; sofre principalmente quando estra-
nhos a perturbam, nao lhe permitindo entreter-se com o Dileto na
solldáo de seu coracáo inocente.
Será, por isto, Teresa Neumann urna santa?
'A ninguém chames bem-aventurado antes da sua morte'. Segundo
o meu modo de ver pessoal, Teresa Neumann é urna alma agraciada.
Cumprindo o mesmo dever que a todos nos incumbe, ela se esforca
por se tornar santa. Nao s&mente se confessa todas as semanas e
recebe diariamente a Santa Comunháo; ela também se preserva de
qualquer vestigio de pecado e vive em continua uniao com o Divino Sal
vador. Assim carrega a sua cruz com paciencia e alegría, nao dése-
jando senáo o que o Senhor quer.
Permanecerá ela assim até o último suspiro? Esperemolo...»
Os posteriores anos de vida de Teresa (1931-1962) nao
desmentiram as observacóes do Cardeal Kaspar.
b) «Pelos frutos se conhece a árvore» (Mt 7,20). Quem
agora indaga quais os frutos derivados dos fenómenos de Kon*
nersreuth, verifica numerosos beneficios corporais e, mais ain-
da, espirituais. Principalmente as conversóes religiosas sao
dignas de nota; délas, duas apenas seráo aqui mencionadas :

O ministro Paúl Schondorf, da provincia de MecWenburg. era


protestante juntamente com seu íilíio Heinz; a esposa e mae de fami
lia, porém, era católica, muito desejosa de que ambos se convertessem
a verdadeira fé. Pediu; pois, a Teresa que se recordasse do caso em
suas oracOes e seus sofrimentos...

— 43 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 85/1967, qu. 6

Nos anos de 1931 e 1933 pal e íilho estiveram respectivamente


em Konnersreuth, onde assistiram aos fenómenos ocurrentes. Isso
calou fundo na alma dos dois visitantes, que, finalmente, após tonga
reflexáo, reconheceram a Igreja: o jovem, aos 17 de maio de 1933,
com 28 anos de idade; o pai, aos 30 de dezembro de 1933, com 60 anos.
— Essas duas conversdes exigiram grande coragem, pois se deram
quando o nacionalsocialismo comecava a desencadear sua campanha
anti-religiosa, provocando a apostasia de muitos; os magistrados des-
diziam a verdadeira fé por oportunismo, ao passo que Paúl Schondorf
a professava em pleno exercfcio de suas íuncSes e num territorio
quase totalmente protestante.

Um dos primeiros e mais abalizados historiadores de Teresa


Neumann é o jomalista e arquivista Fritz Michael Gerlich. Professava
o calvinismo quando era Redator-chefe do jornal de Munique «Münch-
ner Neueste Nachrichten». Justamente por essa época, ou seja. em 1927,
Gerlich comecou a se interessar por Konnersreuth, a titulo de curiosi-
dade jomalfstica. Pediu, pois, a um de seus amigos, Erwein Freiherr
von Aretin. que lhe narrasse, durante um almdco em restaurante de
Munique. as impressóes colhidas em visita recém-feita a Teresa Neu
mann; enquanto o relatar íalava, o jomalista deu numerosos sinais
de ceticismo, julgando tratar-se de histeria e auto-sugestáo de Teresa
ou de sugestáo dos visitantes. Contudo decidiu-se a publicar extensa
reportagem sobre o assunto. Tal artigo logrou extraordinario sucesso;
dentro de dez días, teve que ser reimpresso quatro vézes.

Diante de tal éxito, Gerlich se inquietava, pois tinha a quase


certeza de haver dado tao ampia publicidade a enorme farsa; essa
havia de ser mais tempo, menos tempo, desvendada, recair.do entáo
sobre o jornal a nota de charlatanismo. Em conseqüéncia, aos 14 de
setembro de 1927, resolveu ir a Konnersreuth examinar pessoalmente
o caso, certo de que haveria de descobrlr o embuste.

Gerlich era sincero, inteligente, e nao se deixava influenciar


por opinioes alheias. Cinco dias depois, isto é, aos 19 de setembro de
1927, ao voltar de Konnersreuth, foi logo procurar o amigo Erwein
Freiherr von Aretin, e por duas horas durante a noite falou-lhe de
quanto tinha presenciado junto a Teresa Neumann; ele, que durante
toda a sua vida passada havia procurado a verdade religiosa, estava
certo de a ter finalmente encontrado. E, sem demora, pediu admissáo
na Ig.reja de Cristo. Em 1928 publicou. sobre Konnersreuth, dois gros-
sos volumes, redigidos com reconhecida exatidáo.

Num balango retrospectivo, pode-se agora dizer:

1) Nos fenómenos concernientes a Teresa Neumann, nao


se registra qualquer dos síntomas que caracterizan! embuste
ou intervencáo diabólica, a saber: temperamento histérico,
sugestionável, supersticioso, vaidade, desejo de projecao, cupi-
dez de lucro ou vantagens temporais, exploragáo interesseira
ou comercial. — Ao contrario, Teresa e seus familiares mais
de urna vez deram provas de ser totalmente alheios a tais
atitudes.

44
* '"** ~'t''

TERESA NEUMANN i

2) Doutro lado, freqüentemente. beneficios corporais e,


principalmente, espirituais dimanaram do contato, direto ou
indireto, que o público teve com Teresa; dir-se-ia que, por esta,
Deus se quis dirigir de maneira bem sensível aos homens, fa-
zendo de Konnersreuth um sinal para o mundo incrédulo.

Dito isso, pode-se indagar:

4. Qual a mensagem transmitida por Konnersreuth ?

Suposta a autenticidade dos episodios ou a extraordinaria


intervengáo de Deus na vida de Teresa, parece que duas
' grandes verdades vém a ser incutidas por tais fenómenos. É o
arcebispo D. Miguel Buchberger, de Ratisbona, quem as assi-
nala, após haver observado Konnersreuth durante trinta anos:

1) O valor do sofrimento. Após a Paixáo de Cristo, o


sofrimento, generosamente aceito pelo cristáo e unido aos pa-
decimentos do Salvador, tornou-se extraordinariamente salu-
tar; vem a ser colabo.rac.ao com Cristo na obra de Redencáo
(del mundo.

Ora a humanidade do sáculo XX está profundamente mer-


gulhada na dor causada por duas guerras mundiais e suas
terríveis conseqüéncias. Todavía nesse mar de angustias os
homens parecem ter esquecido Cristo e sua Cruz salvifica;
em conseqüéncia, debatem-se com certo desespero ñas ondas
do tormento.

Foi justamente nestas circunstancias que Deus quis susci


tar os episodios de Teresa Neumann, a qual, de certo modo,
experimentou em si mesma a Paixáo de Cristo e se ofereceu
em uniáo com o Salvador pela expiaejio dos pecados e a salva-
Cáo do próximo. Teresa come-jou a sofrer (paralisia) em 1918,
precisamente quando o primeiro confuto mundial estava para
terminar; seus estigmas tiveram inicio em 1926, época de duras
privacSes materiais na Alemanha, e se protraíram pelos anos
do nacional-socialismo, da segunda guerra e da fome. Em meio
a tanta angustia, ela lembrou e lembra ao mundo que o sofri
mento tem sentido positivo e, por isto, é providencial; nem
eutanasia, nem infanticidio nem suicidio (que a sociedade tanto
pratica e procura coonestar nos nossos tempos) sao solucóes
para o problema da dor; o que Deus pede aos homens por meio
de Teresa Neumann, é que aprendam a transfigurar o sofri
mento, associando-se á cruz gloriosa de Cristo; saibam os que
padecem, que estáo contribuindo valiosamente para o bem de

45
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS* 85/1966

seus irmáos. «Pelo sofrimento salvam-se mais almas do que


pelas mais brilhantes pregagóes»; estas palavras de Teresa de
Ljsieux tornaram-se como que o grande luzeiro da vida de
Teresa Neumann, e háo de ser igualmente estimulo para quan-
tos em nossos dias padecem.
2) A estima á S. Eucaristía. O fato de que durante
quase quarenta anos Teresa se alimentou exclusivamente da
S. Eucaristía, assim como as outras gragas eucarísticas que
lhe foram concedidas (reconhecimento intuitivo da presenga
da Eucaristía, recepgáo direta do sacramento sem ministerio
de sacerdote, conservagáo das sagradas especies em seu inti
mo. ..), sao outros tantos sinais da real presenga de Cristo
na S. Eucaristía. No decorrer da historia, principalmente nos
períodos de incredulidade, Deus providenciou para que tais
manifestagóes sensíveis se dessem, reavivando a piedade euca-
rística. E bem a propósito ocorreram os fenómenos de Kon-
nersreuth- em nossos tempos, quando mais urna vez novas teo
rías sao propostas em contrario da genuína teología da Eu
caristía.

Em conclusáo, pode-se dizer : os cristáos e, de modo geral,


os homens contemporáneos tém ampios motivos para dar gra
bas a Deus por quanto realizou em Konnersreuth. Tais fenó
menos merecem, sem dúvida, a atengáo de todas as pessoas
que acompanham os acontecimentos do século XX, pois parece
que, na verdade, Deus quis falar aos povos por tais sinais.

CORRESPONDENCIA MIÜDA
CONFUSO (Sao Paulo, capital) :

X) "Dizse que o céu e o inferno -nao existem, mas sao estados de


alma. Pode-se dizer entdo que nao liaverá vida futura e que aqui na
térra mestna já se encontram o céu e o inferno ?"

O céu e o inferno existem ou sao realidades no sentido pleno das


palavras.

Nao se pode, porém, asseverar que sejam lugares ditnensionais (como


um parque milito belo ou um tanque de enxófre ardente, fumegante...).
As -realidades do céu e do inferno sao, antes do mais, estados de alma,
estados em que a alma é plenamente constituida após deixar éste corpo
ou áp'ós a morte do individuo. O céu é o estado de felicidade plena que
compete á alma pura de pecado e unida a Deus, de maneira perfeita,
pelo amor ; essa alma, depois da vida presente, contempla a Deus face
a face ; goza da bem-aventuranca do próprio Deus na medida em que o

— 46 —
CORRESPONDENCIA MIODA

seu amor a capacita para tanto. — O inferno, ao contrario, é o estado


de infeücidade que toca á alma após se ter voluntariamente afastado de
Deus por uma falta grave ; toda criatura foi feita para o Criador ;
traz em si a marca e a sede do Infinito ; em conseqüéncia, caso ela
conscientemente diga "Nao" ao Infinito ou a Deus, nao pode deixar de
se sentir dilacerada, tornando-se em si mesma uma contradigáo viva ou
subsistente ; éste é ó maior de todos os tormentos possíveis ; e é nisso
que consiste, antes do mais, o inferno (há no inferno urna pena secun
daria ou o chamado "fogo do inferno", cuja natureza nao tem análogo
neste mundo; cf. "P.R." 12/1958, correspondencia miúda).
Ésses estados (bem-aventuranga celeste, dilaceragáo infernal) em
que a alma é plenamente constituida após a morte, comegam germinal-
mente aqui na térra, quando a alma aínda se acha unida ao corpo. Com
efeito, quem cresce no amor de Deus durante esta vida, se torna mais
e mais feliz, pois vai possuindo cada vez mais desimpedidamente a Deus.
Ao contrario, quem se alheia a Deus pelo pecado, sofre logo depois do
seu ato a dor de estar violentando a sua natureza. Enquanto o hornera, e
peregrino sobre a térra, a felicidade ou o tormento de sua alma sao,
em grau maior ou menor, atenuados pelos objetos e afazeres sensíveis
que o solicitam ; depois desta vida, porém, quando cessa o contato com
as coisas sensíveis, a alma toma plena consciéncia da felicidade ou do
tormento que ela já traz em si nesta térra.

Assim se vé que há realmente uma vida futura (a alma humana é


imortal !). Essa vida futura consiste num estado de bem-aventuranga
indizível (céu) ou de desgraga inaudita (inferno) acarretadas pela pró-
pria alma sobre si mesma mediante a sua conduta moral. — Uma vez
estabelecidos estes principios, caso alguém perguntasse se a alma uaufrui-
rá désses estados em determinado lugar dimensional, deveriamos res
ponder que nao temos dados para localizá-los e que tais estados sao inde
penden tes de localizagáo ; Deus poderá oferecer um ambiente ou um
cenário material á alma feliz ou infeliz após a morte ou o fim dos tempos.
A respeito da "topografía do Além" veja-se "P.R." 14/1959, qu. 4-6,
pág. 66. A propósito do céu, cf. "P.R." 52/1962, qu. 4. Sobre o inferno,
cf. 3/1957, qu. 5 e 8; 8/1957, qu. 2 ; 31/1960, qu. 4.

2) "Qual o objeto da esperanga como virtude teologal ?"

A esperanga teologal tem por objeto a salvagáo eterna e os meios


ncccssárioa para consejrui-la. O cristáo nutre firmemente tal esperanga,
pois sabe que Deus quer que todos os homens se salvem (cf. 1 Tim 2,4)
e que, em vista da nossa Redengáo, o Filho de Deus foi pregado á cruz.
Alias, todo homem, mesmo o mais carregado de pecados, pode _e
deve ter a esperanga de se salvar. Basta que se volte para Deus, acei
tando o dom do Senhor, e procure lutar contra o pecado com o auxilio
da graga que Deus lhe oferece por meio dos sacramentos.

D. Estéváo Bettencourt O.S.B.

— 47 —
A RADIO TUPI
DA GUANABARA

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15.370 kc ondas curtas

96.5 FM

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« PERGUNTE E RESPONDEREMOS

todos os domingos, das 6 h 30 min as 7 h,

na palavra de D. Estévao Bettencourt O. S. B.


NO PRÓXIMO NÚMERO :

«Salvar a vida» e Medicina Moderna

O pecado original

O divorcio

As cabeleiras antigás e modernas

Teresa Neumann desobediente?

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