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De SAMUEL BECKETT
Peça em 1 ato
Personagens:
Hamm
Clov
Nagg
Nell
1
Aposento sem mobília.
Luz cinzenta.
No fundo, nas paredes da esquerda e da direita, no alto, duas janelinhas, cortinas fechadas.
No proscênio, à direita, uma porta. Dependurado perto da porta, com a face voltada para a
parede, um quadro.
No proscênio, à esquerda, encostadas uma na outra, cobertas com um lençol velho, duas
latas de lixo.
No centro, sentado numa poltrona de braços com rodinhas, coberto com um lençol velho,
Hamm.
Imóvel, ao lado da cadeira, olhos fixos em Hamm, Clov. Rosto bastante vermelho.
Clov caminha até a janela esquerda. Caminhar duro e vacilante. Ergue o olhar para a janela
esquerda, com a cabeça curvada para trás. Gira a cabeça, olha para a janela à direita.
Caminha até a janela direita. Ergue o olhar para a janela direita, com a cabeça curvada
para trás. Gira a cabeça e olha para a janela à esquerda. Sai, retornando imediatamente
com uma escadinha, coloca-a sob a janela esquerda, sobe, abre a cortina. Desce, dá seis
passos na direção da janela direita, retorna até a escada, pega-a, coloca-a sob a janela
direita, sobe, abre a cortina. Desce, dá três passos na direção da janela esquerda, retorna
até a escada, pega-a, coloca-a sob a janela esquerda, sobe, espia pela janela. Curta
gargalhada. Desce, dá um passo na direção da janela direita, retorna, pega a escada,
coloca-a sob a janela direita, sobe, espia pela janela. Curta gargalhada. Desce, caminha na
direção das latas de lixo, pára, retorna até a escada, pega-a, reflete, deixa a escada no
mesmo lugar, caminha até as latas de lixo, retira o lençol que as cobre, dobra-o
cuidadosamente e coloca-o sobre o braço. Ergue uma tampa, inclina-se e olha para dentro
da lata. Curta gargalhada. Recoloca a tampa. Repete o mesmo jogo com a outra lata.
Caminha até Hamm, retira o lençol que o cobre, dobra-o cuidadosamente e coloca-o sobre o
braço. Vestindo um roupão, uma touca bem enfiada na cabeça, um grande lenço manchado
de sangue sobre o rosto, um apito pendurado no pescoço, um grosso cobertor de lã sobre os
joelhos, grossas meias nos pés, Hamm parece adormecido. Clov observa-o. Curta
gargalhada. Vai até a porta, pára, volta-se, contempla a cena, volta-se para o público.
Clov (olhar fixo, sem entonação) Acabou, está acabado, isto vai acabar, talvez
isto acabe. (Pausa.) De grão em grão, um a um, e um dia, de repente,
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vira um monte, um pequeno monte, o monte impossível. (Pausa.) Não
podem mais me punir. (Pausa.) Vou para minha cozinha, três por três
por três, e esperarei ele apitar. (Pausa.) Agradáveis dimensões,
formidáveis proporções, me debruçarei sobre a mesa, olharei para a
parede e esperarei ele apitar.
(Permanece, por alguns instantes, imóvel. Depois sai. Retorna imediatamente, vai até a
janela direita, pega a escada e sai com ela. Pausa. Hamm mexe-se. Boceja debaixo do lenço.
Retira o lenço do rosto. Rosto bastante vermelho. Óculos escuros.)
Hamm Minha... (boceja) ...vez. (Segura o lenço estendido diante de si.) Velho
trapo! (Tira os óculos, esfrega os olhos, o rosto, os óculos, coloca-os de
novo, dobra cuidadosamente o lenço e coloca-o, delicadamente, no
bolso superior do roupão. Limpa a garganta, une a ponta dos dedos.)
Haverá... (bocejos) ...haverá miséria mais... majestosa do que a minha?
Sem dúvida. Outrora. Mas agora? (Pausa.) Meu pai? (Pausa.) Minha
mãe? (Pausa.) Meu... cachorro? (Pausa.) Claro, estou disposto a admitir
que eles sofrem tanto quanto tais criaturas podem sofrer. Mas isso
significa que nossos sofrimentos se equivalem? Sem dúvida. (Pausa.)
Não, tudo é a... (bocejos) ...bsoluto, (com orgulho) quanto maior for o
homem, mais pleno será. (Pausa. Com tristeza.) E mais vazio. (Funga.)
Clov! (Pausa.) Não? (Pausa.) Bom. (Pausa.) Que sonhos! Aquelas
florestas! (Pausa.) Basta, é hora de acabar, no refúgio também. (Pausa.)
E contudo hesito, hesito em... em acabar. Sim, aí está, é hora de acabar e
contudo ainda hesito em a... (bocejos) ...cabar. (Bocejos.) Sinto-me
cansado. Acho melhor me deitar. (Apita. Clov entra imediatamente.
Pára ao lado da cadeira.) Você polui o ar! (Pausa.) Prepare-me, vou
me deitar.
Hamm E daí?
Clov Não posso ficar levantando-o e deitando-o a cada cinco minutos, tenho
mais o que fazer.
(Pausa.)
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Hamm Você já viu meus olhos?
Clov Não.
Hamm Você nunca teve a curiosidade, quando estou dormindo, de tirar meus
óculos e observar meus olhos?
Hamm Um dia desses eu os mostrarei a você. (Pausa.) Parece que eles ficaram
totalmente brancos. (Pausa.) Que horas são?
Clov Olhei.
Hamm E então?
Clov Nada.
(Pausa.)
Clov Que é?
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Clov Mas pode acabar. (Pausa.) Durante toda a vida, as mesmas perguntas, as
mesmas respostas.
Clov Que é?
Hamm Vou lhe dar apenas o suficiente para impedi-lo de morrer. Você estará o
tempo todo com fome.
Clov Então não morreremos. (Pausa.) Vou buscar o lençol. (Dirige-se para a
porta.)
Hamm Não! (Clov pára.) Eu lhe darei um biscoito por dia. (Pausa.) Um
biscoito e meio. (Pausa.) Por que você fica comigo?
(Pausa.)
Clov Eu tento.
Clov Não.
Clov Antes!
Clov Fez!
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Hamm (aliviado) Ufa, você me deu um susto! (Pausa. Friamente.) Perdão.
(Pausa. Mais alto.) Eu disse, perdão.
Clov Não.
(Pausa.)
Clov Mal.
Clov Mal.
Clov Posso.
Hamm (com violência) Então ande! (Clov vai até a parede do fundo, apóia-se
nela com a testa e as mãos.) Onde você está?
Clov Aqui.
Hamm Volte! (Clov retorna ao seu lugar, perto da cadeira.) Onde você está?
Clov Aqui.
(Pausa.)
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Clov Quando ainda havia bicicletas, eu chorei para ter uma, me arrastei aos
seus pés. Você me mandou pro inferno. Agora, não há mais.
Hamm E suas andanças? Quando você ia ver meus mendigos. Sempre a pé?
Clov É.
Hamm Fora daqui está a morte. (Pausa.) Está bem, vá. (Clov sai. Pausa.)
Estamos avançando.
Hamm (a Nagg) Você ouviu isso? Não há mais papa. Você nunca mais comerá
sua papa.
Hamm Dê-lhe um biscoito. (Clov sai.) Maldito fornicador! Como vão seus
cotos?
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Clov Voltei de novo, com o biscoito.
Clov Papita.
Hamm Tampe-o!
Clov Assim é.
Clov Que é?
Clov Ao redor.
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Clov (muito triste) Nunca houve no mundo alguém que pensasse de um jeito
tão torto quanto a gente.
(Pausa.)
Clov Um escravo.
(Pausa.)
Hamm Isto está muito parado. (Pausa.) Não está na hora do meu calmante?
Clov É.
Hamm Sua luz morrendo! Quanta asneira! Seja como for, ela também pode
morrer aqui, sua luz. Dê uma olhada em mim e depois me diga o que
você acha da sua luz.
(Pausa.)
(Pausa.)
Clov Eu ouvi.
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(Pausa. A tampa da lata de Nagg ergue-se. Suas mãos aparecem, agarradas nas bordas. Em
seguida, surge sua cabeça. Em sua boca, o biscoito. Nagg ouve.)
Clov Não.
Hamm Isto não está muito divertido. (Pausa.) Mas é sempre assim no fim do
dia, não é, Clov?
Clov Sempre.
(Pausa.)
Hamm (com angústia) Mas o que está acontecendo, o que está acontecendo?
(Pausa.)
Clov Estou tentando. (Vai até a porta, pára.) Desde que nasci. (Sai.)
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(Hamm inclina-se na cadeira, para trás, e permanece imóvel. Nagg bate na tampa da outra
lata. Pausa. Bate mais forte. A tampa ergue-se e aparecem as mãos de Nell, agarradas nas
bordas. Em seguida, surge sua cabeça. Touca de renda. Rosto bastante branco.)
Nagg Me dá um beijo.
(Suas cabeças esforçam-se por se aproximar uma da outra, não conseguem, afastam-se de
novo.)
(Pausa.)
Nell Quando?
Nagg O quê?
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Nell Estão.
Nell Não. (Pausa.) Você tem mais alguma coisa para me dizer?
Nell Não.
Nagg Na estrada para Sedan. (Riem com menos entusiasmo ainda. Pausa.)
Você está com frio?
Nell Quero.
Nagg Então entre. (Nell não se move.) Por que você não entra?
(Pausa.)
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Nell Não é serragem. (Pausa. Cansada.) Você não pode ser um pouco mais
preciso, Nagg?
Nell É importante.
(Pausa.)
Nell Antes!
Nagg E agora é areia. (Pausa.) Da praia. (Pausa. Mais alto.) Agora é areia
que ele vai buscar na praia.
Nell Não.
Nagg Biscoito. Guardei metade para você. (Olha para o biscoito. Orgulhoso.)
Três quartos. Para você. Toma. (Oferece o biscoito.) Não? (Pausa.)
Você não se sente bem?
Hamm (exausto) Calem a boca, calem a boca, vocês não estão me deixando
dormir. (Pausa.) Falem mais baixo. (Pausa.) Se conseguisse dormir,
talvez fizesse amor. Poderia ir para os bosques. Meus olhos veriam... o
céu, a terra. Eu poderia correr, correr, eles nunca me alcançariam.
(Pausa.) A natureza! (Pausa.) Esta coisa latejando na minha cabeça.
(Pausa.) Um coração, um coração na minha cabeça.
(Pausa.)
Nagg (em voz baixa) Você ouviu? Um coração em sua cabeça! (Ri bem
baixinho.)
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Nell Não se deve rir dessas coisas, Nagg. Por que você precisa sempre rir
delas?
Nell (sem baixar a voz) Não há nada mais engraçado do que a infelicidade,
concordo com você. Mas...
Nell Sim, sim, é a coisa mais cômica do mundo. E nós rimos, rimos, com
vontade, no começo. Mas é sempre a mesma coisa. Sim, é como aquela
história engraçada que já ouvimos muitas vezes, nós ainda a achamos
engraçada, mas não rimos mais. (Pausa.) Você tem mais alguma coisa
para me dizer?
Nagg Não.
Nagg Não quer seu biscoito? (Pausa.) Eu guardo para você. (Pausa.) Pensei
que você fosse me deixar.
Nagg O buraco. (Pausa.) Você não poderia? (Pausa.) Ontem você me coçou
ali.
Nagg Não poderia? (Pausa.) Quer que eu a coce? (Pausa.) Está chorando
outra vez?
(Pausa.)
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Hamm (voz baixa) Talvez seja uma pequena veia.
(Pausa.)
Nagg O que isso significa? (Pausa.)Não significa nada. (Pausa.) Quer que eu
lhe conte a piada do alfaiate?
Nagg Sempre fez você rir. (Pausa.) A primeira vez pensei que você fosse
morrer.
Nell Foi no lago de Como. (Pausa.) Numa tarde de abril. (Pausa.) Você pode
acreditar?
Nagg O quê?
Nell Noivos!
Nagg Você deu tanta risada que o barco até virou. A gente quase morreu
afogado.
Nagg (indignado) Não, não foi não, foi por causa da minha piada. Feliz! Você
não ri dela ainda? Cada vez que eu lhe conto. Feliz!
Nell Era tão profundo, tão profundo. E podia-se ver o fundo, lá embaixo. Tão
branco. Tão limpo.
Nagg Deixe-me contá-la mais uma vez. (Voz de narrador.) Um inglês (assume
a cara de um inglês, por um instante; retoma a sua) que precisava
urgentemente de um par de calças listradas para a festa de Ano Novo,
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vai ao seu alfaiate, o qual lhe tira as medidas. (Voz do alfaiate.) “Pronto,
volte daqui a quatro dias, estarão prontas.” OK. Quatro dias depois. (Voz
do alfaiate.) “Sorry, volte daqui a oito dias, cometi um engano no
fundilho.” OK, um fundilho feito a capricho deve ser bastante difícil.
Oito dias depois. (Voz do alfaiate.) “Sorry muitissimamente, volte daqui
a dez dias, estraguei a braguilha.” OK, concordo, uma braguilha bem-
feita é algo muito delicado. Dez dias depois. (Voz do alfaiate.) “Sorry
terrivelmente, volte daqui a quinze dias, a braguilha agora está
emperrando.” OK, em caso de emergência, uma braguilha em boa ordem
é algo indispensável. (Pausa. Voz normal.) Eu nunca a contei tão mal.
(Pausa. Triste.) Conto esta piada cada dia pior. (Pausa. Voz de
narrador.) Bom, para encurtar, já tinha chegado a Páscoa e ele em briga
com a braguilha. (Faz o rosto, depois a voz do inglês.) “Mas, sir, mas,
sir, vá pro inferno, é intolerável, há limites! Em seis dias, está ouvindo,
seis dias, Deus fez o mundo. Yes, sir, nada menos do que o MUNDO! E
you, you não tem capacidade para me fazer um par de calças em três
meses!” (Voz do alfaiate, escandalizado.) “Mas, Milord! Mas, Milord!
Olhe... (gesto de desprezo, com repulsa) ...para o mundo... (pausa) ...e
olhe... (gesto afetuoso, com orgulho) ...para as minhas CALÇAS!”
(Pausa. Ele olha para Nell, que permanece impassível, com os olhos vagos; solta uma
sonora gargalhada forçada, interrompe-se, aproxima a cabeça na direção de Nell, solta
outra vez a gargalhada.)
Hamm Silêncio!
Hamm (irritado) Vocês não acabaram? Vocês nunca acabarão? (Com repentina
violência.) Isto nunca acabará? (Nagg desaparece dentro da lata e fecha
muito bem a tampa. Nell não se move.) Mas do que é que eles tanto
falam? Do que ainda se pode falar? (Fora de si.) Meu reino por um
lixeiro! (Apita. Clov entra.) Jogue fora esse lixo! Atire-o ao mar!
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Nell Tão branco.
(Clov solta o pulso dela, empurra sua cabeça para dentro da lata, fecha a tampa, endireita-
se.)
Clov (voltando ao seu lugar, ao lado da cadeira.) Ela não tem mais pulso.
Clov Não.
Clov Tampei.
Clov Estão.
Hamm Pregue as tampas. (Clov dirige-se para a porta.) Não há pressa. (Clov
pára.) Meu ódio se aplaca, estou com vontade de mijar.
Clov É muito cedo. (Pausa.) É muito cedo, em cima do excitante não faria
efeito.
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Hamm Mas ele morreu?
(Pausa.)
Hamm Leve-me para dar um pequeno passeio. (Clov põe-se atrás da cadeira e
empurra-a para a frente.) Não tão depressa! (Clov empurra a cadeira.)
Ao redor do mundo! (Clov empurra a cadeira. ) Perto das paredes,
depois você me leva de volta ao centro. (Clov empurra a cadeira.) Eu
estava exatamente no centro, não estava?
Hamm Precisamos de uma boa cadeira de rodas. Com rodas grandes. Rodas de
bicicleta! (Pausa.) Você está perto das paredes?
Hamm (procurando a parede com a mão) Mentira! Por que você mente para
mim?
Hamm Pare! (Clov pára a cadeira junto à parede do fundo. Hamm coloca a
mão na parede. Pausa.) Velha parede! (Pausa.) Do outro lado está o... o
outro inferno. (Pausa. Com violência.) Mais perto! Mais perto! Encoste
nela!
Clov Tire a mão. (Hamm retira a mão. Clov bate a cadeira de encontro à
parede.) Pronto!
Hamm Você está ouvindo? (Bate na parede com os nós dos dedos. Pausa.) Está
ouvindo? Tijolos ocos! (Bate outra vez.) Está tudo oco! (Pausa.
Endireita-se. Com violência.) Basta! Volte!
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Clov É, este é o seu lugar.
Clov Pronto!
(Pausa.)
(Pausa.)
Clov Já olhei.
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Hamm Com a luneta?
Clov Estou de volta, com a luneta. (Vai até a janela direita, ergue o olhar
para ela.) Preciso da escada.
Hamm Por quê? Você encolheu? (Clov sai, com a luneta.) Não gosto disso, não
gosto disso.
Clov Estou de volta, com a escada. (Coloca a escada sob a janela direita,
sobe, percebe que não está com a luneta, desce.) Preciso da luneta.
(Dirige-se para a porta.)
Clov (pára, com violência) Não, eu não estou com a luneta! (Sai.)
Clov Isto está ficando divertido. (Sobe na escada, aponta a luneta para fora.)
Vejamos... (Olha, movendo a luneta.) Zero... (olha) ...zero... (olha) ...e
zero. (Abaixa a luneta, volta-se para Hamm.) E agora? Está mais
tranqüilo?
Clov Ze...
Hamm (com violência) Espere até eu lhe perguntar! (Voz normal.) Tudo é...
tudo é... tudo é o quê? (Com violência.) Tudo é o quê?
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Clov O que tudo é? Numa única palavra? É isso o que você quer saber? Um
momentinho. (Aponta a luneta para fora, olha, abaixa a luneta, volta-se
para Hamm.) Cadavérico. (Pausa.) Está satisfeito agora?
(Clov desce da escada, caminha alguns passos na direção da janela esquerda, volta até a
escada, pega-a e coloca-a sob a janela esquerda, sobe, aponta a luneta para fora, olha em
toda a extensão. Pára, de repente, com um sobressalto. Abaixa a luneta, examina-a, aponta-
a de novo para fora.)
Hamm A base.
Clov (olhando) É.
Hamm E agora?
Clov (abaixando a luneta, voltando-se para Hamm, irritado) Mas que diabo
poderia haver no horizonte?
(Pausa.)
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Hamm E o sol?
Hamm Rotina. Nunca se sabe. (Pausa.) Esta noite vi o interior de meu peito.
Havia uma enorme ferida.
Clov O que é?
(Pausa.)
Hamm Clov!
Hamm Nós não estamos começando a... a... significar alguma coisa?
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Clov Significar alguma coisa! Você e eu, significar alguma coisa! (Curta
gargalhada.) Essa é muito boa!
Hamm Estou curioso. (Pausa.) Imagine se um ser racional voltasse à terra, ele
não estaria sujeito a conceber idéias em sua cabeça caso nos observasse
durante muito tempo? (Voz de um ser racional.) Ah, claro, claro, agora
compreendo, sim, sim, agora estou entendendo o que eles estão fazendo!
(Clov sobressalta-se, larga a luneta e começa a coçar sua barriga, na
altura do abdome, com as duas mãos. Voz normal.) E mesmo sem
precisar chegar a esse ponto, nós mesmos... (com emoção) ...nós
mesmos... em certos momentos... (Com veemência.) Pensar que tudo isto
não terá sido talvez em vão!
(Clov tira a camisa de dentro das calças, desabotoa a parte superior das calças, puxa-a para
a frente e joga o pó na abertura. Inclina-se, olha, espera, sobrressalta-se, joga mais pó,
freneticamente, inclina-se, olha, espera.)
Hamm Pegou?
Hamm No coito? Você quer dizer acoita. A menos que ela esteja acoita.
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Hamm Pense um pouco. Se ela estivesse no coito, estaríamos fodidos.
(Pausa.)
(Pausa.)
Hamm (com ardor) Vamos embora daqui, os dois! Para o Sul! Pelo mar! Você
construirá uma jangada e as correntes nos levarão, para longe, para
outros...outros... mamíferos!
Hamm Espere! (Clov pára) Ainda não está na hora do meu calmante?
Clov Mal.
Clov O suficiente.
Clov Mal.
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Hamm Em minha casa. (Pausa. Profético e com volúpia.) Um dia você ficará
cego. Como eu. Ficará sentado por aí, uma partícula perdida no vazio,
na escuridão, para sempre. Como eu. (Pausa.) Um dia você dirá a si
mesmo, estou cansado, vou me sentar, e se sentará. Então dirá, estou
com fome, vou me levantar e buscar alguma coisa para comer. Mas você
não se levantará. Você dirá, eu não devia ter me sentado, mas já que me
sentei, vou continuar sentado mais um pouco, depois me levantarei e
buscarei alguma coisa para comer. Mas você não se levantará e nem
buscará nada para comer. (Pausa.) Você olhará durante algum tempo
para a parede, então dirá, vou fechar os olhos, talvez durma um pouco,
depois me sentirei melhor, e você os fechará. E quando tornar a abri-los,
não haverá mais nenhuma parede. (Pausa.) Um infinito vazio o
circundará, todos os mortos ressuscitados de todos os tempos não
poderiam preenchê-lo, e nele você se sentirá como um minúsculo grão
no meio da estepe. (Pausa.) Sim, um dia você saberá como é, será igual
a mim, só que você não terá ninguém ao seu lado, porque você jamais
teve piedade por alguém e porque não haverá mais ninguém para se
apiedar.
(Pausa.)
Hamm De quê?
(Pausa.)
Hamm Exatamente.
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Hamm Você não pode nos abandonar.
(Pausa.)
Hamm Por que você não acaba com a gente? (Pausa.) Eu lhe ensino a
combinação da despensa se você prometer que acaba comigo.
(Pausa.)
Clov É. (Olha fixamente para Hamm.) Você foi isso para mim.
Hamm (orgulhoso) Sem mim (aponta para si mesmo), nenhum pai. Sem Hamm
(faz um gesto largo ao redor), nenhum lar.
(Pausa.)
Clov Nunca.
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Hamm Que aqui nós estamos no fundo de um buraco. (Pausa.) Mas e além das
colinas? Hein? Talvez ainda exista o verde. Hein? (Pausa.) Flora!
Pomona! (Pausa. Em êxtase.) Ceres! (Pausa.) Talvez você não
precisasse ir muito longe.
Hamm Vá buscá-lo.
(Clov entra, segurando um cachorro negro de pelúcia por uma de suas três patas.)
(Clov entrega o cachorro a Hamm, que o coloca nos joelhos, apalpa-o e acaricia-o.)
Clov Quase.
Clov Não.
(Pausa.)
Clov (vexado) Mas ele não está terminado. O sexo a gente faz no fim.
(Pausa.)
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Clov (furioso) Mas ele não está terminado, eu já lhe disse! Primeiro, você
termina o cachorro, e depois põe a fita!
(Pausa.)
Clov Espere.
(Clov se agacha e tenta colocar o cachorro de pé sobre suas três patas, não consegue,
desiste. O cachorro cai de lado.)
Hamm (com a mão na cabeça do cachorro) Ele está olhando para mim?
Clov Está.
Clov Menos.
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Hamm Apagada!
Clov Claro que está apagada! Se não está acesa, está apagada.
Clov Mas é claro que ela se apagou! (Pausa.) O que há com você hoje?
Hamm Você.
Clov Eu! Já não tenho muito o que fazer para ficar enterrando pessoas?
(Pausa.)
Hamm Ela era bonita, outrora, como uma flor no campo. (Num tom de
reminiscência.) E uma magnífica flor para os homens!
Clov Nós também éramos bonitos... outrora. É muito raro não ter sido
bonito... outrora.
(Pausa.)
Clov Faça isto, faça aquilo, e eu faço. Nunca recuso. Por quê?
Hamm Porque você não conseguirá. (Clov sai.) Ah, as criaturas, as criaturas,
precisamos explicar tudo a elas.
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(Clov dá o arpão a Hamm que, usando-o como um ponto de apoio, à direita, à esquerda, na
frente, tenta mover a cadeira.)
Hamm Eu me movi?
Clov Não.
Clov (com violência) Isso significa aquele maldito e terrível dia, há muito
tempo, antes deste maldito e terrível dia. Uso as palavras que você me
ensinou. Se elas não significam mais nada, ensine-me outras. Ou deixe-
me permanecer calado.
(Pausa.)
Hamm Uma vez conheci um louco que pensava que o fim do mundo havia
chegado. Ele era pintor... e escultor. Eu tinha uma grande afeição por
ele. Costumava ir vê-lo, no asilo. Pegava em sua mão e arrastava-o até a
janela. Olhe! Ali! Todo aquele trigo crescendo! E ali! Olhe! As velas
dos barcos de pesca! Toda essa beleza! (Pausa.) Ele arrebatava sua mão
e retornava para seu canto. Horrorizado. Não vira outra coisa senão
cinzas. (Pausa.) Apenas ele havia sido poupado. (Pausa.) Esquecido.
(Pausa.) Parece que essa doença não é... não era tão... tão incomum.
Hamm Oh, há muito tempo, há muito tempo, você ainda não estava neste
mundo.
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(Pausa. Hamm ergue a touca.)
Hamm Tinha uma grande afeição por ele. (Pausa. Coloca novamente a touca.
Pausa.) Era pintor... e escultor.
Clov Que é?
Clov Tão longo como outro qualquer. (Pausa.) A vida toda, as mesmas
banalidades.
(Pausa.)
(Pausa.)
(Pausa.)
(Pausa.)
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Hamm Mas você poderia simplesmente estar morto na sua cozinha.
Hamm Sim, mas como eu saberia, se você simplesmente estivesse morto em sua
cozinha?
Clov O quê?
Clov Está bem. (Começa a andar de um lado para o outro, com os olhos fixos
no chão, as mãos atrás das costas. Pára.) Essa dor nas minhas pernas! É
incrível! Logo, logo, não poderei mais pensar.
Hamm Você não será capaz de me abandonar. (Clov retoma sua caminhada.) O
que você está fazendo?
Clov Espere! (Reflete. Sem muita convicção.) É... (Pausa. Um pouco mais
convencido.) É! (Ergue a cabeça.) Achei! Coloco o despertador.
(Pausa.)
Hamm Talvez não esteja num dos meus mais brilhantes dias, mas francamente...
Clov Você apita. Eu não venho. O despertador toca. Eu parti. Ele não toca. Eu
morri.
(Pausa.)
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Hamm Porque ele já funcionou demais.
Clov Vou ver. (Sai. Jogo do lenço. Curto ruído de despertador. Clov entra
com o despertador. Aproxima-o da orelha de Hamm e liga-o. Eles
ouvem o despertador tocar até acabar a corda. Pausa.) Capaz de
despertar um morto! Você ouviu?
Hamm Vagamente.
Hamm Prefiro a parte do meio. (Pausa.) Não está na hora do meu calmante?
Clov Não.
(Clov vai até as latas de lixo, ergue a tampa da lata de Nagg, olha para dentro dela, inclina-
se. Pausa. Endireita-se.)
Hamm Acorde-o.
(Clov inclina-se, acorda Nagg fazendo soar o despertador. Palavras ininteligíveis. Clov
endireita-se.)
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Clov Negócio fechado. (Caminha em direção da porta. Aparecem as mãos de
Nagg, agarradas nas bordas. A seguir, surge sua cabeça. Clov abre a
porta, volta-se.) Você acredita numa vida futura?
Nagg Jura?
Hamm Juro.
Nagg Dois?
Hamm Um.
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soltei algumas baforadas. Aah! (Pausa.) E então, o que é que você quer?
(Pausa.) Naquele dia, eu me recordo, fazia um frio extraordinariamente
intenso, o termômetro registrava zero. Mas considerando-se que era
véspera de Natal, não havia nada de... de extraordinário nisso. Um
tempo, de certo modo, adequado para essa ocasião. (Pausa.) E então,
que maléficos ventos o trouxeram ao meu caminho? Ele ergueu a face
enegrecida , uma mistura de lama e lágrimas. (Pausa. Tom normal.) Isto
deve servir. (Tom de narrador.) Não, não, não olhe para mim, não olhe
para mim! Ele abaixou os olhos, murmurando alguma coisa, desculpas,
presumo. (Pausa.) Estou muito ocupado, você entende não é, os últimos
preparativos, antes das festividades, sabe como é. (Pausa. Enérgico.)
Vamos, prossiga, qual é o propósito dessa invasão? (Pausa.) Naquele
dia, eu me recordo, fazia um sol verdadeiramente esplêndido, o
heliômetro registrava cinqüenta, mas o sol já mergulhava no...
mergulhava entre os mortos. (Tom normal.) Isto ficou muito bonito.
(Tom de narrador.) Vamos, vamos, prossiga, apresente sua petição, mil
deveres me chamam. (Pausa.) Foi então que ele se decidiu. É a minha
criança, ele disse. Aiaiaiaiai, uma criança, só me faltava essa. Meu
menininho, ele disse, como se o sexo fizesse alguma diferença. De onde
ele viera? Ele mencionou o buraco. Quase meio dia, a cavalo. O que
você está insinuando? Que o lugar ainda é habitado? Não, não, nem uma
alma, a não ser ele próprio e a criança... admitindo-se que ela existisse.
Bom. Perguntei a respeito da situação em Kov, do outro lado do golfo.
Nem um pecador. Bom. E você espera que eu acredite que você tenha
deixado sua criança nesse lugar, totalmente sozinha, e que ainda por
cima ela esteja viva? Ora, vamos! (Pausa.) Naquele dia, eu me recordo,
fazia um vento açoitador, o anemômetro registrava cem. O vento
arrancava os pinheiros mortos e arrastava-os... para longe. (Pausa. Tom
normal.) Ficou um pouco fraco isso. (Tom de narrador.) Vamos,
homem, diga logo, o que é que você quer de mim, preciso preparar
minha árvore de Natal. (Pausa.) Não demorou muito para eu
compreender que o que ele queria de mim era... pão para seu pirralho?
Pão? Mas não tenho pão, não me faz bem. Bom. Então talvez um pouco
de trigo? (Pausa. Tom normal.) Isto deve servir. (Tom de narrador.)
Trigo, sim, tenho trigo, é verdade, em meus celeiros. Mas, reflita, reflita.
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Dou-lhe um pouco de trigo, um quilo, um quilo e meio, você o leva para
sua criança e faz para ela... caso ainda esteja viva... um saboroso prato
de mingau (Nagg reage), um saboroso prato e meio de mingau, bem
nutritivo. Muito bem. As cores voltam a suas pequenas bochechas...
talvez. E depois? (Pausa.) Perdi a paciência. (Violento.) Reflita, vamos,
use a cabeça, você está na terra, não há remédio para isso! (Pausa.)
Naquele dia, eu me recordo, fazia um tempo excessivamente seco, o
higrômetro registrava zero. Tempo ideal, para o meu reumatismo.
(Pausa. Violento.) Mas, em nome de Deus, o que você espera? Que a
terra renasça na primavera? Que os rios e os mares fluam novamente
repletos de peixes? Que ainda haja maná nos céus para imbecis iguais a
você? (Pausa.) Aos poucos, fui me acalmando, pelo menos o suficiente
para lhe perguntar quanto tempo havia gasto na viagem. Três dias e três
noites. Bom. Em que condições ele havia deixado a criança.
Profundamente adormecida. (Enérgico.) Mas profundamente
adormecida como, profundamente adormecida em que tipo de sono?
(Pausa.) Bom, para resumir, disse-lhe finalmente que poderia empregá-
lo como meu criado. Ele me comovera. E depois imaginei que já não me
restava muito tempo de vida. (Ri. Pausa.) E então? (Pausa.) E então?
Aqui, se você for cuidadoso, poderá desfrutar de uma linda morte
natural, em paz e com conforto. (Pausa.) E então? (Pausa.) Finalmente
ele me perguntou se eu aceitaria também a criança... caso ela ainda
estivesse viva. (Pausa.) Era o instante que eu tanto esperara. (Pausa.) Se
eu aceitaria também a criança... (Pausa.) Ainda posso vê-lo, ajoelhado,
as mãos derreadas, fitando-me com seu olhar de demente,
desobedecendo minhas ordens. (Pausa. Tom normal.) Não falta muito
para eu chegar ao fim desta história. (Pausa.) A menos que crie outros
personagens. (Pausa.) Mas onde os encontraria? (Pausa.) Onde os
procuraria? (Pausa. Apita. Clov entra.) Oremos a Deus.
Clov Há um na cozinha.
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Hamm E você não o exterminou?
Clov Não.
Clov De novo?
Nagg (enclavinha os dedos, fecha os olhos, fala rapidamente) Pai nosso que
estais...
Hamm Não há mais bombons! Você nunca mais comerá o seu bombom!
(Pausa.)
Nagg É natural. Mas apesar de tudo, sou seu pai. É verdade que, se não fosse
eu, teria sido outro qualquer. Mas isso não é desculpa. (Pausa.) O doce
sírio, por exemplo, que não existe mais, todos nós sabemos disso, não há
nada no mundo que eu goste mais. E um dia eu lhe pedirei um, em troca
de algum favor, e você me prometerá. Deve-se viver de acordo com os
tempos. (Pausa.) Quem você chamava quando era bem pequenininho e
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ficava assustado, no escuro? Sua mãe? Não. Eu. Deixávamos você
gritar. Depois, o levávamos para bem longe, para que pudéssemos
dormir em paz. (Pausa.) Eu estava adormecido, feliz da vida, e você me
acordou para que eu o ouvisse. Não era necessário, você não necessitava
realmente da minha atenção. Além do mais, eu nem prestei atenção.
(Pausa.) Um dia virá, espero, em que você precisará realmente da minha
atenção, e precisará ouvir minha voz, qualquer voz. (Pausa.) Espero
viver até esse dia, para ouvir você me chamar do mesmo modo que me
chamava quando era bem pequenininho, e ficava assustado, no escuro, e
eu era sua única esperança. (Pausa. Bate na tampa da lata de Nell.
Pausa.) Nell! (Pausa. Bate mais forte. Pausa. Mais alto.) Nell! (Pausa.
Nagg se enfia na lata, fechando a tampa atrás dele.)
(Pausa.)
Hamm Ordem!
Hamm (irritado) Mas o que é que você pensa que está fazendo?
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Hamm Pare com isso!
(Pausa.)
Hamm Não!
Hamm Para me dar a réplica. (Pausa.) Minha história está indo bem. (Pausa.)
Minha história está indo muito bem. (Pausa. Irritado.) Pergunte-me
onde é que eu parei?
Clov Aquela que você tem contado para si mesmo durante toda a sua... vida.
(Pausa.)
Hamm (modesto) Oh, não muito, não muito. (Suspira.) Há dias, como hoje, que
a gente não está muito inspirado. (Pausa.) Não se pode fazer nada, a não
ser que a inspiração venha. (Pausa.) Não adianta forçar, não adianta
forçar, seria desastroso. (Pausa.) Apesar de tudo, estou me saindo bem.
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(Pausa.) Você sabe como é, técnica. (Pausa. Irritado.) Eu disse que,
apesar de tudo, estou me saindo bem.
Hamm (modesto) Oh, não muito, você sabe, não muito, mas melhor do que
nada.
Hamm Vou lhe contar como está. Ele vem rastejando, sobre seu ventre...
Clov Quem?
Hamm O quê?
Hamm Rastejando sobre o seu ventre, suplicando um pedaço de pão para seu
pirralho. Oferecem-lhe um emprego de jardineiro. Em vez de... (Clov
cai na gargalhada.) O que há de tão engraçado?
Clov Ou o pirralho.
(Pausa.)
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Hamm Todos os pequenos serviços.
Hamm Provavelmente.
(Pausa.)
(Pausa.)
(Pausa.)
(Clov vai até a lata de lixo de Nell, ergue a tampa, inclina-se. Pausa.)
(Clov fecha a tampa, endireita-se. Hamm ergue a touca. Pausa. Coloca-a novamente.)
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Clov Parece que não. (Fecha a tampa, endireita-se.)
Hamm Portanto, ele vive. (Pausa.) Você já teve alguma vez um instante de
felicidade?
(Pausa.)
Hamm Leve-me até a janela. (Clov vai até a cadeira.) Quero sentir a luz no
meu rosto. (Clov empurra a cadeira.) Você se lembra, no começo,
quando você me levava passear? Você costumava segurar a cadeira
muito em cima. A cada passo, você quase me derrubava. (Com um
tremor senil na voz.) Ah, como nós nos divertíamos, os dois, nos
divertíamos muito! (Triste.) Mas depois, foi-se tornando uma rotina.
(Clov pára a cadeira sob a janela direita.) Já chegou? (Pausa. Inclina a
cabeça para trás. Pausa.) Está claro?
Clov Está.
(Pausa.)
Clov Não.
(Pausa.)
Clov A terra.
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Hamm Eu sabia! (Irritado.) Mas não há nenhuma luz aí! A outra! (Clov
empurra a cadeira na direção da janela esquerda.) A terra! (Clov pára
a cadeira sob a janela esquerda. Hamm inclina a cabeça para trás.) É
isso que eu chamo de luz! (Pausa.) Parece um raio de sol. (Pausa.)
Não?
Clov Não.
Clov Não.
(Pausa.)
(Pausa.)
Clov Mesmo.
Clov Não.
Hamm (violento) Abra assim mesmo! (Clov sobe na escada, abre a janela.
Pausa.) Abriu?
Clov Abri.
(Pausa.)
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Clov Juro.
(Pausa.)
Hamm Bom...! (Pausa.) Deve estar bastante calmo. (Pausa. Violento.) Estou
lhe perguntando se está bastante calmo!
Clov Está.
Hamm É porque não há mais navegadores. (Pausa.) De repente, você não tem
muito mais o que dizer. Não se sente bem?
Hamm Em que mês estamos? (Pausa.) Feche a janela, vamos voltar. (Clov
fecha a janela, desce da escada, empurra a cadeira de volta ao seu
lugar, permanece em pé atrás dela, cabeça curvada.) Não fique aí, você
me dá arrepios! (Clov retorna ao seu lugar, ao lado da cadeira.) Pai!
(Pausa. Mais alto.) Pai! (Pausa.) Vá ver se ele me ouviu.
(Clov vai até a lata de Nagg, ergue a tampa, inclina-se. Palavras ininteligíveis. Clov
endireita-se.)
Clov Ouviu.
Clov Só uma.
Clov Não.
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Hamm A morte se aproxima. (Pausa.) O que ele está fazendo?
Hamm A vida continua. (Clov retorna ao seu lugar, ao lado da cadeira.) Pegue
um cobertor, estou gelando.
(Pausa.)
Clov Não.
Hamm Na testa.
(Pausa.)
Hamm (erguendo a mão) Dê-me sua mão, pelo menos. (Pausa.) Não vai me dar
a mão?
(Pausa.)
Hamm Não.
Hamm (como antes) Está bem. (Clov sai. Pausa.) Minha vez. (Tira o lenço, desdobra-o,
segura-o estendido à sua frente.) Estamos avançando. (Pausa.) Choramos,
choramos, para nada, para não rir, e aos poucos... uma verdadeira tristeza nos
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invade. (Dobra o lenço, guarda-o no bolso, ergue um pouco a cabeça.) Todos
aqueles que eu poderia ter ajudado. (Pausa.) Ajudado! (Pausa.) Salvado. (Pausa.)
Salvado! (Pausa.) O lugar fervilhava deles! (Pausa. Violento.) Reflitam, vamos,
usem a cabeça, vocês estão na terra, não há remédio para isso! (Pausa.) Saiam
daqui e amem-se uns aos outros! Fodam-se uns aos outros! (Pausa. Mais calmo.)
Quando não pediam pão, pediam bolo. (Pausa. Violento.) Saiam da minha frente e
voltem às suas bacanais! (Pausa. Em voz baixa.) Tudo isso, tudo isso! (Pausa.)
Nem ao menos um cachorro de verdade! (Mais calmo.) O fim está no começo e
contudo você continua. (Pausa.) Talvez pudesse continuar minha história, terminá-
la e começar uma outra. (Pausa.) Talvez pudesse atirar-me ao chão. (Ele se ergue,
penosamente, do assento, deixa-se cair de novo, sentado.) Enfiar minhas unhas nas
fendas e arrastar-me para a frente, com a força dos dedos. (Pausa.) Será o fim e ali
estarei, perguntando-me o que possa tê-lo provocado e perguntando-me o que
possa... (hesita) ...por que demorou tanto a chegar. (Pausa.) Ali estarei, no velho
refúgio, sozinho, diante do silêncio e... (hesita) ...da imobilidade. Se eu conseguir
ficar calado e tranqüilo, estará tudo acabado, o som, o movimento, tudo acabado e
concluído. (Pausa.) Terei chamado meu pai e terei chamado meu... (hesita) ...meu
filho. E até duas ou três vezes, caso não tivessem me ouvido da primeira vez ou da
segunda. (Pausa.) Direi para mim mesmo, Ele voltará. (Pausa.) E depois? (Pausa.)
E depois? (Pausa.) Ele não poderia, partiu para bem longe. (Pausa.) E depois?
(Pausa. Muito agitado.) Todos os tipos de fantasias! Que estou sendo observado!
Um rato! Passos! Respiração retida e então... (exala). Então balbucio, balbucio
palavras, como a criança solitária que se transforma em duas, três, várias crianças,
para estarem juntas e murmurarem juntas, no escuro. (Pausa.) Os segundos se
acumulando, tique-taque, tique-taque, como os grãos de milho de... (hesita)
...daquele antigo grego, e durante toda a vida você espera que isso lhe crie uma
vida. (Pausa. Abre a boca para continuar, desiste. Pausa.) Ah, acabemos com isto!
(Apita. Clov entra com o despertador. Ele pára ao lado da cadeira.) Como? Nem
partiu nem morreu?
Clov Ambos.
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Clov E vice-versa.
Clov Escapou.
(Pausa.)
Clov Está.
(Pausa.)
(Pausa.)
Clov Não há mais calmante. Você nunca mais tomará o seu calmante.
(Pausa.)
(Pausa. Clov põe-se a andar ao redor do aposento. Procura um lugar para colocar o
despertador.)
Hamm (voz baixa) O que é que eu vou fazer? (Pausa. Num grito.) O que é que
eu vou fazer? (Clov vê o quadro, tira-o, coloca-o em pé, no chão,
sempre com a face voltada para a parede, pendura o despertador em
seu lugar.) O que é que você está fazendo?
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(Pausa.)
Clov De novo?
Clov Sua garganta está dolorida? (Pausa.) Quer uma pastilha? (Pausa.) Não?
(Pausa.) É uma pena.
(Clov dirige-se, cantarolando, até a janela direita, pára diante dela, ergue o olhar para ela,
jogando a cabeça para trás.)
Hamm Não.
Clov O que fiz com aquela escada? (Olha ao redor à procura da escada.)
Você não viu aquela escada? (Procura. Vê a escada.) Ah, já era tempo.
(Vai até a janela esquerda.) Às vezes, não sei onde é que estou com a
cabeça. Depois, passa, e fico tão lúcido quanto antes. (Sobe na escada,
olha para fora, pela janela.) Puta que pariu! Ela está debaixo da água!
(Olha.) Como pode ser? (Inclina a cabeça para a frente, espia com a
mão acima dos olhos.) Não choveu. (Limpa a vidraça, olha. Pausa.
Bate com a mão na testa.) Mas que idiota! Estou do lado errado! (Desce
da escada, dá alguns passos em direção da janela direita.) Debaixo da
água! (Volta para pegar a escada.) Mas que idiota! (Leva a escada para
a janela direita.) Às vezes me pergunto se estou em meu juízo perfeito.
Depois, passa, e fico tão ajuizado quanto antes. (Coloca a escada
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debaixo da janela direita, sobe, olha pela janela. Volta-se para Hamm.)
Tem preferência por algum setor em particular? (Pausa.) Ou apenas
pelo todo?
Hamm Clov!
Hamm Ausente, sempre. Tudo aconteceu sem mim. Não sei o que aconteceu.
(Pausa.) Você sabe o que aconteceu? (Pausa.) Clov!
Clov (volta-se para Hamm, exasperado) Você quer que eu olhe para este
monte de merda ou não?
Clov O quê?
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Clov (áspero) Quando a velha mamãe Pegg lhe pediu óleo para sua lamparina
e você mandou-a para o inferno, sabia então o que estava acontecendo,
não é? (Pausa.) Sabe do que ela morreu, a mamãe Pegg? De escuridão.
(Pausa.)
Hamm Vá buscá-la.
(Pausa. Clov olha para cima e ergue os braços com os punhos cerrados. Perde o equilíbrio,
agarra-se à escada. Começa a descer, pára.)
Clov Há uma coisa que está além da minha compreensão. (Desce. Pára.) Por
que eu lhe obedeço sempre? Você pode me explicar isso?
Clov Seria necessário um microscópio para descobrir isso. (Vê a luneta.) Ah,
já era tempo! (Pega a luneta, vai até a escada, sobe, aponta a luneta
para fora.)
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Hamm (mais alto) Dê-me o cachorro!
(Clov larga a luneta, agarra a cabeça com as mãos. Pausa. Desce precipitadamente, procura
o cachorro, encontra-o, pega-o, dirige-se apressadamente na direção de Hamm e golpeia-o,
com violência, na cabeça com o cachorro.)
Hamm Que vá tudo à merda! (Clov vai até a escada. Com violência.) Que vá
tudo pelos ares! (Clov sobe na escada, pára, desce, procura a luneta,
acha-a, pega-a, sobe na escada, ergue a luneta.) De escuridão! E eu?
Alguma vez alguém teve piedade de mim?
Clov Ouça bem. Olharei para esta merda já que você me pediu. Mas será a
última vez. (Aponta a luneta para fora.) Vejamos. (Movimenta a
luneta.) Nada... nada... nada... (Sobressalta-se, abaixa a luneta,
examina-a, aponta-a novamente para fora. Pausa.) Puta que pariu!
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Hamm Mais complicações! Espero que não seja outra tolice!
Hamm (Sarcástico.) Um menino... (Pausa.) É o fim, Clov, chegamos ao fim. Não preciso
mais de você.
(Pausa.)
(Clov dá o arpão a Hamm, dirige-se para a porta, pára, olha para o despertador, tira-o da
parede, olha ao redor em busca de um lugar melhor para colocá-lo, vai até a escada, coloca-
o em cima da escada, retoma seu lugar perto da cadeira. Pausa.)
Hamm Antes de ir... (Clov pára perto da porta.) ...diga alguma coisa.
Hamm Sim. (Pausa. Violento.) Sim! (Pausa.) No fim, nos últimos instantes,
nas sombras, nos murmúrios, todo aquele sofrimento, para terminar.
(Pausa.) Clov... ele nunca me havia dito. Então, no fim, antes de partir,
sem que eu lhe tenha perguntado nada, ele me contou. Ele me disse...
(Pausa.)
Clov (olhar fixo, sem entonação, para o público) Disseram-me, Isto é o amor,
sim, sim, não tenha dúvida, você vê agora como...
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Hamm Com sentimento!
Clov (como antes) Como é fácil. Disseram-me, Isto é a amizade, sim, sim,
não tenha a menor dúvida, você não precisa procurá-la em outra parte.
Disseram-me, Está tudo aqui, pare, erga a cabeça e olhe para todo este
esplendor. Que ordem! Disseram-me, Vamos, você não é nenhum idiota,
reflita sobre todas estas coisas e verá como tudo se torna claro. E
simples! Disseram-me, Todos esses feridos mortalmente, com que
sabedoria cuidam deles.
Hamm Chega!
Clov (como antes) Digo para mim mesmo... às vezes... Clov, você precisa
aprender a sofrer muito mais do que isto, se deseja, um dia, vê-los
cansados de tanto puni-lo. Digo para mim mesmo... às vezes... Clov,
você precisa permanecer aqui muito mais do que isto, se deseja que eles,
um dia, deixem-no partir. Mas sinto-me muito velho, e muito distante,
para formar novos hábitos. Bom, isto nunca acabará, eu nunca partirei.
(Pausa.) Então, um dia, de repente, isto acaba, muda, não sei, morre, ou
sou eu, não entendo isso também. Interrogo as palavras que restam...
dormir, acordar, manhã, noite. Elas não têm nada a dizer. (Pausa.) Abro
a porta da cela e parto. Estou tão curvado que, quando abro os olhos,
vejo apenas meus pés, e entre eles uma pequena trilha de poeira escura.
Digo para mim mesmo que a terra está morta, embora nunca a tenha
visto antes com vida. (Pausa.) É fácil partir. (Pausa.) Quando cair,
chorarei de felicidade. (Pausa. Dirige-se para a porta.)
Hamm Clov! (Clov pára, sem se voltar.) Nada. (Clov se move.) Clov!
Hamm Somos nós que ficamos gratos um pelo outro. (Pausa. Clov dirige-se
para a porta.) Só mais uma coisa. (Clov pára.) Um último favor. (Clov
sai.) Cubra-me com o lençol. (Longa pausa.) Não? (Pausa.) Bom.
(Pausa.) Minha vez. (Pausa. Exausto.) O último lance do velho jogo, há
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muito tempo perdido. (Pausa. Mais animado.) Vejamos. (Pausa.) Ah,
sim! (Tenta mover a cadeira, usando o arpão, como antes. Nesse
ínterim, Clov entra, vestido para a viagem. Chapéu, casaco, uma capa
no braço, guarda-chuva, mala. Ele pára perto da porta e permanece aí,
indiferente e imóvel, com os olhos fixos em Hamm, até o fim. Hamm
desiste.) Bom. (Pausa.) Descartar. (Atira o arpão, faz menção de atirar
o cachorro, pensa melhor.) Calma. (Pausa.) E agora? (Pausa.) Tirar o
chapéu. (Ergue a touca.) Paz, aos nossos... cus. (Pausa.) Pôr o chapéu
outra vez. (Coloca a touca.) Merda. (Pausa.) Um pouco de poesia.
(Pausa.) Tu appelais... (Pausa. Corrige-se.) Tu réclamais le soir... il
vient... (Pausa. Corrige-se.) Il descend... le voici. (Repete, declamando.)
Tu réclamais le soir... il descend... le voici. (Pausa.) Bonito isso.
(Pausa.) E agora? (Pausa.) Momentos vazios, agora e sempre, o tempo
nunca existiu e o tempo acabou, a conta encerrada e a história
terminada. (Pausa. Tom de narrador.) Se ele podia trazer sua criança
com ele... (Pausa.) Era o instante que eu tanto esperara. (Pausa.) Você
não quer abandoná-la? Quer vê-la desabrochando enquanto você vai
murchando? Ter um consolo durante os últimos milhões de seus últimos
momentos? (Pausa.) Ela não compreende, tudo que conhece é a fome, e
o frio, e a morte a coroá-la. Mas você! Você deveria saber o que é a
terra, hoje em dia. (Pausa.) Oh, eu fiz com que ele encarasse suas
responsabilidades! (Pausa. Tom normal.) Bom, aqui estamos, aqui
estou, isso basta. (Leva o apito aos lábios, hesita, larga-o. Pausa.) Sim,
de fato! (Apita. Pausa. Apita mais alto. Pausa.) Bom. (Pausa.) Pai!
(Pausa.) Não? (Pausa.) Bom. (Pausa.) Estamos chegando. (Pausa.) E
para terminar? (Pausa.) Descartar. (Atira fora o cachorro. Arranca, com
violência, o apito do pescoço e atira-o longe. Pausa. Funga. Em voz
baixa.) Clov! (Pausa.) Clov! (Pausa.) Não?(Pausa.) Bom. (Tira o
lenço.) Já que o jogo é assim... (desdobra o lenço) ...joguemos assim...
(desdobra) ...e não digamos mais nada... (acaba de desdobrá-lo) ...mais
nada. (Segura o lenço estendido diante de si.) Velho trapo! (Pausa.)
Você... fica. (Pausa. Cobre o rosto com o lenço, coloca os braços nos
braços da cadeira, permanece imóvel.)
(Silêncio.)
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