Está en la página 1de 3

Um outro outubro...

Escrevo antes de se completar o ciclo eleitoral que nos levará a conhecer os


governantes escolhidos pelo povo brasileiro. Até agora, o cenário foi alvissareiro: o
cidadão fez de fato valer sua vontade. A duras penas, aliás, e combativamente. Contra,
sobretudo, aqueles que apregoaram a ideia de que a política é uma guerra de duas
trincheiras (do “meu” lado, os amigos, que podem tudo; do lado “de lá”, “eles”, os
“outros”, tratados em regime de corte marcial, designados como inimigos, contra quem
invisto quaisquer armas. Ou, para usar velha fórmula brasileira: do “meu” lado, os
amigos, a quem ofereço o pão, e do lado de “lá”, os inimigos, a quem sobra o pau...), os
eleitores souberam ponderar propostas alternativas (incluídos os votos dados a
candidatos minoritários, a abstenção e o voto nulo), e recusaram, com clareza, a
máquina trituradora da propaganda que veio insistindo em designar como vitoriosos,
antes da hora, candidatos que ainda precisarão se provar, nas regras da civilidade
política, na escolha do 31 de outubro. A lógica de um retrato do Brasil em branco e
preto, que só interessa aos poderosos, foi derrotada nas urnas pela simples vontade, bem
mais matizada, do cidadão brasileiro.
Nem cabe alegar surpresa: o resultado só se apresentou como inesperado
(quando não denunciado como “manipulado”) para aqueles que se deixaram levar pela
falastronice barulhenta das campanhas, como se o cidadão fosse o mais obtuso fantoche
a bailar conforme o desejo de pesquisas de acordes duvidosos. Ao contrário, a incerteza
eleitoral, que nenhuma pesquisa pode prever, garantida pela efetiva competição pelo
voto, é exigência e prática democráticas que o eleitor, experimentado nessas duas
décadas de exercício democrático, fez valer.
Vinda, como venho, de geração que experimentou a ditadura nos corpos e nas
mentes, devem me perdoar o contentamento e o otimismo do momento: creio, mesmo,
que o que quis a Constituição de 1988 está hoje assentado. A pluralidade de interesses,
de opiniões e de opções políticas instalou-se, tornando efetivo um marco estrutural
compatível com o funcionamento de mecanismos decisórios complexos (e plurais)
exigido pelas democracias. Entre a (legítima) adesão ao governo da hora, por exemplo,
e a transferência dessa avaliação positiva às urnas, uma distância (também legítima) se
impôs, grandemente salutar. O eleitor não é tolo e já o afirmou claramente nesse
primeiro turno: há mais matizes na política – como os há entre o céu e a terra – do que
imagina o limbo descarnado dos sonhos mesquinhos de nossos representantes.
Mas entusiasmo que não vem acompanhado da dose adequada de prudência é
burrice, e das perigosas. A democracia, no Brasil, vem avançando, mas vem também
sendo solapada.
As eleições – e esta última não fugiu à norma costumeira – pautam-se pelo
caráter plebiscitário, em franca continuação dos moldes populistas ou da triste
experiência autoritária. Assim, os candidatos, às majoritárias e às legislativas, ignoram a
intermediação partidária e dirigem-se diretamente às “massas”, acentuando o viés
personalista e sobremodo despolitizador das campanhas. Os partidos, de fato,
transformaram-se, entre nós, em facções, não raro criminosas. Frágeis suas capacidades
de mobilizar adeptos, imensas também, do lado do eleitor, as dificuldades de
identificação de programas. Mandatos são obtidos por meio de um azeitado, embora
tosco, arranjo intramuros, cujo cimento são os cargos públicos a servirem de moeda de
troca, as prebendas e as mercês. Para o cidadão, mesmo bem informado, e mesmo em
tempos de campanha, difícil entender a montagem dos palanques, menos ainda de que
acordos procederam ou a que rumos conduzirão. Resulta que a representatividade é
praticamente anulada e mais nula ainda se torna a responsabilização dos eleitos na
condução da coisa pública, tudo servindo a uma espécie de presidencialismo “imperial”,
jamais derrotado. A política se diz sob a forma do paradoxo, ainda de praxe nessa
república inacabada que é a nossa, que obriga a um jogo, jamais transparente, em geral
ímprobo. O resultado não tem nada de errático: demonstra mesmo um padrão repetitivo,
o recurso aos acordos e barganhas com as máquinas e as oligarquias de sempre.
Funciona não a regra da impessoalidade, menos ainda a norma programática de corte
ideológico. O que conta é a lealdade aos seus, os ‘favores’ e as benesses, o toma-lá-dá-
cá, essa ética costumeira com que se exerce o poder no Brasil. A política tornou-se algo
esotérico, sem que ganhe em transcendência. Como, nesse caldo viscoso, entender as
regras do jogo?
O eleitor, o mesmo que se empenha ao voto em raro momento de participação
política e de experiência igualizadora, fica reduzido a cidadão anêmico, incapaz de
responsabilizar aquele a quem emprestou por tempo determinado a atribuição de
governar em seu nome. Apatia, também, da oposição, que desapareceu, estupidamente
temerosa, sob o manto de Pangloss, numa economia remando leve, mas recolhendo
alguma sardinha, e se mostra impotente a apresentar novos projetos de sociedade. Fez-
se, além do mais, dependente de uma suposta tendência (que, aliás, é pura suposição) da
população a acatar soluções societárias retrógradas. Uma mistura, diga-se, explosiva: de
tanto nos habituarem aos jeitos e trejeitos voláteis e duvidosos dos interesses, não
sabemos mais, os cidadãos, aquilo que é inegociável no jogo político. A máquina
política funciona, pode ser, mas funciona de modo a dissolver o cerne do princípio
democrático: é contra, de fato, a vontade de cada membro do corpo político que as
instituições investem. Que o diga a vitória dos Tiririca e dos Tião do Sopão Brasil afora,
para nada dizer dos “ficha sujas”. Ela expressa exatamente, cada uma a seu modo, nessa
ciranda orquestrada em miserável escárnio, a usurpação da soberania popular.
O problema maior – que a tese otimista ignora – é a desqualificação do corpo
representativo e o abismo interposto do eleito ao eleitor, do representante ao
representado. As bases do conservadorismo político podem ter sido erodidas – o ‘voto
de cabresto’ é hoje marginal e certamente mais funciona a regra da competitividade
eleitoral, em busca do mercado de votos. O conservadorismo, porém, permanece, não
como sobrevivência de formas ‘arcaicas’, menos ainda um ‘reflexo’ de sociedade, antes
uma articulação bem urdida, uma maquina azeitada, perfeitamente em marcha, mas
infelizmente, caminhando em trilhos que fazem descarrilar a vida pública e a soberania
popular. O eleitor comportou-se bem, para dizer em outros termos, nesse primeiro
turno. As instituições políticas (a começar pela relação entre os 3 poderes) é que o
degradam, escancarando as portas à sanha devastadora da corrupção que não é,
lembremos, fenômeno moral, mas político. Ela atinge, em cheio, a lógica democrática e
destitui o ‘homem comum’ do poder a ele atribuído como soberano legítimo que é. Daí
que possamos pensar, todos, que políticos são farinha do mesmo saco e, incluído no
saco o mesmo que denunciara a pouca qualidade da farinha, considerar que, se todos
procedem de modo igual, a política é mesmo flor que não se cheira, embora prato do
qual se coma... Nossas instituições consolidaram-se, pensam muitos, mas não há nada
na condução da coisa pública que permita compreender o que é o Estado que, de
instância capaz de nos apontar um rumo comum, transforma-se em uma espécie de
lugar ao qual se acede por meios espúrios e no qual se encastela por procedimentos
criminosos. O custo dessa história toda não é de pouca monta. O preço a pagar é a
própria alma da cidadania. Pudera: na história das instituições brasileiras, o Estado se vê
confundido com o Governo, o Governo com o Executivo, o Executivo com a
Presidência, a Presidência com o presidente e o presidente... com os príncipes... ou com
os santos...
Como a melancolia não é, porém, paixão própria ao ethos democrático, me é
permitido desejar que um dia, em algum outubro espero não muito distante, a vontade
popular combata a arrogância dos que acreditam ser seus ventríloquos. Será então um
outubro de festa!
Ana Montoia
Professora de Ciência Política/UFPB

También podría gustarte