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MUNDIVIDÊNCIA CRISTÃ

O. INTRODUÇÃO

A pessoa humana é um ser pensante. Devido a esta capacidade, ela consegue pensar e
reflectir criticamente o pensado. Por isso, ela iniciou uma caminhada reflexiva, no
sentido de conhecer o mundo, Deus e conhecer-se a si próprio. Quer dizer, ele tornou-
se sujeito e objecto da sua reflexão, de seu estudo. Desta reflexão, nasceram questões
muito relevantes e até enigmáticas como, por exemplo, o que é o ser humano? O que
é o mundo? O que é Deus?

As tentativas de respostas, dadas a estas questões, podem tomar a “cor” da cultura, da


religião, da corrente de pensamento e de ideologia, etc. Este trabalho é também uma
tentativa de dar resposta às mesmas questões.

Este trabalho está estruturado em cinco partes: a primeira e segunda partes iremos
discutir as perguntas sobre o ser humano (liberdade e transcendência), e sobre o
mundo: Concepções cosmogónicas. Na terceira encontraremos a relação o ser humano
- Deus, numa perspectiva cristã. Na quarta parte, a religião e ética: diferentes tipos de
ética. E, por fim, a quinta parte trataremos de como consultar e citar as fontes
principais desta cadeira.

A Mundividência (cosmovisão), em si, é o modo de o ser humano entender a pessoa


humana, o Mundo e Deus. E a expressão Mundividência Cristã (cosmovisão cristã) é a
compreensão das realidades, acima, pela Igreja. Seria sobretudo uma tentativa de
responder àquelas questões essenciais, que nascem do fundo do coração humano.

As questões acima englobam variadas formulações como, por exemplo, as que se


seguem: 1- Quem sou eu, enquanto pessoa humana? 3- Donde venho? 4- Para onde
vou? 5- Qual o sentido e o fim da dor? 6- Qual a distinção entre o bem e o mal? 7- O
que devo fazer? (Moral) 8- Qual a origem e a finalidade do sofrimento? 9- Qual o
caminho para chegar a verdadeira felicidade? 10- Que é a morte? 11- Qual o sentido, o
fim da vida? 12- Em que consiste, afinal, o mistério último e inefável que envolve a
nossa existência, do qual a pessoa humana tira a sua origem e para o qual ela se
encaminha? 13-Como o mal perpetua no mundo, se Deus é omnipotente?

Estas e outras questões semelhantes constituem enigmas da condição humana que,


hoje como ontem, preocupam profundamente os corações dos seres humanos. Esta
preocupação esteve também presente nos grandes pensadores, como os filósofos da
Antiguidade, da Idade Média, da Idade Moderna e da Idade Contemporânea, a saber:
Platão, Aristóteles, Santo Agostinho, São Tomás de Aquino, Descartes, Kant, Hegel,
Marx e Heidegger. Estes pensadores tentaram responder àquelas questões mas,
infelizmente, nenhuma de suas respostas pudera satisfazê-los plenamente. Quer dizer
o ser humano continuou e continua sendo um mistério para si mesmo.

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Esta inquietação mostra que só o ser humano põe e impõe a si mesmo estas questões
porque manifestamente está votado a interrogar-se sobre si mesmo, sobre a natureza
e sobre o que o rodeia.

Vamos, desde já, ver como a Mundividência Cristã, em suas variadas perspectivas, por
exemplo, a tradicional africana, filosófica, islâmica e católica, tentar dar respostas
àquelas questões essenciais e, ao mesmo tempo, enigmáticas.

CAPÍTULO I: QUATRO PERSPECTIVAS (Tradicional Africana, Filosófica, Islâmica Cristã)

I.Perspectiva Tradicional Africana

Com a expressão Perspectiva Tradicional Africana, queremos abordar a visão a


tradicional africana sobre Deus, o ser humano e o Mundo, que é ao mesmo tempo dar
respostas às questões acima mencionadas, que preocupam profundamente o próprio
ser humano. Para esta parte do nosso trabalho, utilizaremos sobretudo o livro de
Altuna, (CULTURA TRADICIONAL BANTO, LUANDA, 1993). Tentaremos debruçar-nos
sobre a pessoa humana e sua constituição.

1.O ser humano

Para a perspectiva tradicional africana, o ser humano – em Emakhuwa mutthu- é um


ser com corpo, coração, alma/espírito ou sopro vital, sangue, sombra. Conforme Pe
Raul Altuna, o ser humano é um ser com vida e inteligência, que ama. Por isso, o ser
humano entra em contacto com Deus (relação vertical) e com seus semelhantes
(relação horizontal).

A pessoa humana constitui o valor primordial da criação. Ele é inteligente e imortal. A


sua inteligência torna-o superior a todos os seres criados. Altuna, citando Zahan, diz
que “de um extremo ao outro do continente africano, o negro afirma a sua convicção
da superioridade do ser humano em relação a tudo o que existe. O ser humano é a
realidade suprema e irredutível”. O autor em citação continua dizendo que como valor
fundamental da criação, as outras realidades estão-lhe sujeitas e disponíveis para o
seu serviço.

O ser humano é o ponto de convergência activo, na criação, responsável mais


qualificado, o qual pode manejar as outras criaturas livremente, mas com
responsabilidade e respeito do Criador, das outras criaturas e de si mesmo, porque
imagem e semelhança de Deus (Gn 1, 26-27).

O ser humano é força viva, a força suprema, a mais poderosa entre todos os seres
criados, porque ele domina os animais, plantas, minerais, e tem consciência da sua
existência e daquilo que faz. Ele é capaz disto pois é depositário de uma partícula do

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poder divino. Por isso, o ser humano ocupa o centro da pirâmide vital, o que significa
que a toda a criação está orientada para ele.

1.1.A constituição do ser humano

Para a perspectiva tradicional africana, o ser humano é constituído pelo corpo,


coração, sopro vital ou alma espiritual, sangue e sombra.

a) Corpo

Para a população bantu, o corpo, a parte material, é o suporte físico, a exteriorização


da riqueza interior do ser humano e o receptáculo das sensações. O corpo desaparece
após a morte. O corpo vive acompanhado de sombra, que é como que a sua irradiação
para o exterior, de maneira imperceptível para os sentidos. A sombra desaparece com
a morte, como o ser humano.

b)O sangue

Por sangue, entenda-se, aqui, aquele componente fluído do organismo de coloração


vermelha, com funções de oxigenação, nutrição, remoção de metabolismos e
transporte de hormónios para diversos tecidos. Em geral, para a população bantu, no
sangue assenta a vida, a alma espiritual, que sobrevive à morte e é o princípio vital e
de inteligência do ser humano.

c)O coração

Para a população bantu, o coração, enquanto o elemento motor central da circulação


do sangue, possui a função de perceber o sentido vital de tudo quanto existe e
harmoniza-o com a sua própria percepção. Constitui o órgão mais humano e o centro
unitário do ser humano. O coração é o centro vital de todo o sangue. Ele concede a
imagem cabal da qualidade da pessoa humana. Por isso, a ética do ser humano
africano baseia-se profundamente no seu coração. Neste sentido, a pessoa humana é
e vale por aquilo que vale o seu coração, isto é, a pessoa humana nunca é concebida
somente como matéria limitada à vida terrena, mas reconhece-se nela a presença
eficiente do elemento espiritual.

O elemento espiritual faz com que a vida humana esteja sempre posta em relação com
a vida do além. Este elemento espiritual, além de animar e mover o ser humano, é
eterno. Tudo isto é perceptível na vida tradicional africana. A população bantu define o
coração em dois sentidos.

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Sentido Positivo: o coração é o pensamento, memória, sentimento, sensação,
interioridade, sensibilidade, amor, apetite, paixão, pena, atenção, carácter, disposição,
pressentimento, tendência, intenção.

Sentido Negativo: o coração é entendido como melancolia (característica dominante


de qualquer coisa que inspira tristeza), ódio, depressão, intenção e tendência.

A vida afectiva, volitiva, intelectiva, a consciência, a interioridade, amabilidade brota


do coração. Este é a personalidade do ser humano. Ele representa a interioridade da
pessoa humana. Em síntese, coração - murima em macua - é a pessoa humana interior.
É, por esta razão, que se afirma, com frequência, que esta ou aquela pessoa tem ou
não bom coração. Em Emakhuwa: Mutth’ola orera murima (esta pessoa tem bom
coração). Ou murim’aya ala khuri sana (O coração desta pessoa não é bom); olá
mutthu òtakhala murima (esta pessoa tem coração mau).

Posto isto, fica explicado que o coração encerra toda a riqueza do ser humano. Este
coração diferencia-se do coração físico da pessoa humana.

Ligado a este ponto do coração, Altuna sustenta ainda que o delicado humanismo
bantu: hospitalidade, calor humano, solidariedade, agradecimento e cortesia revela o
refinamento do murima. Assim, o grande desejo, desta população, é possuir um
coração “poderoso”, magnânimo, sensível, pois ele define e valoriza o ser humano.
Analisar o coração é o mesmo que analisar a totalidade do ser humano, conclui o autor
em citação.

d)Alma espiritual

Entenda-se, aqui, por alma o princípio imaterial de vida. Partindo desta definição,
podemos sublinhar com Altuna que, para a população bantu, o coração é um princípio
essencial do ser humano, origem da inteligência, liberdade e personalidade humanas.
Por outro lado, esta população acredita numa alma, num princípio incorpóreo,
qualidade, essência, que faz do ser humano diferente do animal. Assim, o corpo é
movido pela alma, mediante o sopro vital. Da alma dependem as manifestações vitais,
sensações, sentidos, pensamentos, consciência, a ética.

i)A ética virada para a vida

Segundo o autor que estamos citando, a ética bantu tem origem na sua ontologia (ser)
e religião. A ética bantu é antropocêntrica porque o centro da pirâmide vital, a pessoa
humana, dá significado ético a todas as acções. Altuna considera a essência da moral
bantu como sendo uma moral da sociedade e do comportamento, razão pela qual,
pode ser denominada como uma ética dinâmica. Ele justifica sua afirmação,
apresentando duas razões:

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Primeiro, porque a ética africana define o que um indivíduo faz e não o que é.
Segundo, reciprocamente, um indivíduo é o que é, em virtude do que faz. O ser
humano por natureza nem é bom nem mau. Ele é aquilo que faz. O ser humano é bom
ou mau em função da sua conduta. O maior mal, a acção mais imoral é o atentado
contra a vida humana.

ii)Preceitos

Existe na ética tradicional bantu dois tipos de preceitos: Positivos e negativos.

Preceitos positivos: referem-se a fidelidade matrimonial e à palavra dada,


generosidade, hospitalidade, verdade, justiça, amor maternal, paternal e filial, ajuda ao
necessitado, e protecção ao fraco. Em resumo, o respeito pela vida humana e o
cuidado em preservá-la e rodeá-la dos meios mais eficazes apresenta-se como a
súmula dos preceitos.

Preceitos negativos: trata-se da proibição de homicídio, do roubo, sobretudo no


próprio grupo, de falso testemunho, desprezar os outros, a mentira, a calúnia,
maldição, o dano nos bens alheios, ferir o próximo, a avareza, a inveja, a ira e a
preguiça, a fornicação em certas idades e situações. É, ainda, proibido dizer palavras
obscenas, matar pessoas e fazer qualquer tipo de feitiçaria.

Na sua apreciação crítica, Altuna diz que a ética bantu é omissa e imperfeita porque,
na prática, ela limita-se ao âmbito da comunidade. Não consegue transcender os
limites da parentela e do grupo.

Mas este ser humano vive no Mundo e o próprio mundo o circunda e lhe provoca
inquietações no fundo de seu coração. Tais inquietações necessitam de respostas. Por
isso, o próximo passo será uma tentativa para responder a questão: O que é mundo?

2.O Mundo

Há uma variedade de mundos, com seus respectivos significados. Assim, para


evitarmos qualquer equívoco, iremos usar o termo mundo, neste nosso estudo, no
sentido de Universo, onde o ser humano nasce, vive e morre, como tentativa de dar
resposta à pergunta o que é o Mundo, para a perspectiva tradicional africana?

A concepção africana bantu do mundo e da vida é dinâmica conforme a qual o mundo


está constantemente em “nascimento”, a criação vai se fazendo sempre e sendo feita
pelo ser humano.

2.1.O Mundo, criação de Deus

Para a população bantu, o Mundo – em Emakhuwa: olumwenku - é o Universo que o


circunda, composto por seres vivos e não vivos. Este mundo foi criado por um Espírito,
maior de todos, chamado Deus. Esses seres vivos: pessoas humanas (vivas e mortas –

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viventes), animais e plantas; seres não vivos (pedras e minerais) têm em si uma força
vital, entre si se comunicam e, assim, resulta o equilíbrio do Universo.

Uma desordem moral ou ecológica provoca um desequilíbrio do mundo. Deste


desequilíbrio emergem consequências para a vida prática. Nestas situações, há que se
procurar curas, uma re-ligação, um reordenamento na interação e inter-relação dos
seres com a sua força vital. Para o efeito, são feitas as devidas cerimónias
propiciatórias. Tudo isto acontece porque, segundo Placides Tempels citado por Altuna
(CULTURA TRADICIONAL BANTO, 1993: 47) o mundo das coisas é como uma teia de
aranha na qual não é possível fazer vibrar um só fio sem destruir toda a malha. Neste
mundo, os seres sucedem-se incessantemente num ritmo de nascimento, morte, vida
e inter-acção. Mas na série destes seres, sobressai o centro da pirâmide, o ser
humano.

2.2. O ser humano, centro da pirâmide da criação.

O mundo visível está integrado por forças pessoais e impessoais. A força pessoal é o
ser humano, centro da pirâmide, por ser o único existente activo, inteligente, sensível
amante e capaz de aumentar a sua vida e de dominar as forças inferiores.

Para a população bantu, segundo Altuna, existem dois mundos: visível e invisível.

Mundo visível: este é composto por chefes de reinos, tribos, clã, família, especialistas
da magia, anciãos, a comunidade, a pessoa humana, animais, vegetais, fenómenos
naturais e astros.

Mundo invisível: este é também formado por Deus, Fonte da vida; fundador do
primeiro clã humano, fundadores de grupos primitivos, heróis civilizadores; espíritos
(génios); antepassados qualificados: chefes, caçadores, guerreiros, especialistas da
magia; antepassados da Comunidade.

Estes dois mundos não estão independentes, porque Deus marcou para todos os seres
a lei da inter-acção e interdependência do dinamismo vital, resultante da lei de
participação. Entre os seres existe uma misteriosa inter-acção de vida, que os sustenta.
Por consequência, no universo nada se move sem influir com seu movimento em
outros seres; nenhum ser criado existe independente dos demais; vive receptivo e
exposto a um aumento ou diminuição da sua vida. Só Deus não pode ser influenciado.
E é este Deus que vai ser objecto de discussão no número a seguir.

3.Deus, o Ser Supremo

A população bantu é religiosa, monoteísta radical, isto é, acredita num só Deus, o Ser
Supremo, o Criador de tudo quanto existe, visível e invisível.

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Para uma compreensão, podemos tomar um povo concreto, como exemplo, dentro
desta grande família bantu, para nosso estudo, do qual teremos a visão global de Deus.
Este povo se chama amakhuwa. Posto isto, pode-se perguntar: o que é Deus, para
amakhuwa? Como tentativa de responder a esta questão, usaremos sobretudo o livro
de Francisco M. Lerma (O POVO MACUA E A SUA CULTUR. Ministério da educação, IICT,
Lisboa, 1989.). E para clarificar o nosso estudo, falaremos de etimologia de Deus, de
Deus Criador, de sua existência, de seu culto e oração. Para isso, tomaremos, como
exemplo, o termo MULUKU, Deus em português.

3.1.Etimologia

Muluku é o nome de Deus, em Emakhuwa. Mas para efeitos de melhor compreensão,


é importante mostrar a etimologia da palavra Muluku. Assim:

MU: que está dentro, significa constância, força poderosa, interioridade.

LU: partícula com sentido de essência, particularidade, isto é, qualidade intrínseca.

KU: partícula derivada da palavra wuka, que significa reunir.

Unidas estas três partículas, componentes da palavra MULUKU, notamos que ela
indica aquela realidade onde o importante tem sua consistência (firmeza). Significa o
centro, a origem e unificador de tudo quanto existe.

Portanto, como se nota, Deus, para a população macua, é aquele que mantém o
mundo unido; é ele a união do mundo, o centro do universo, que conserva a ordem e o
dinamismo de todo o Cosmos. Se Ele é a origem do mundo, então é o seu criador.

3.2.Deus Criador (Muluku Mpattuxa )

A palavra Muluku ocorre com muita facilidade na conversa normal deste povo,
mediante exclamações comuns, provérbios, enigmas e contos. Nas orações principais
de sacrifícios tradicionais macuas, antes de se nomear os antepassados, invoca-se,
sempre Deus, com esta expressão ou outras semelhantes: Xontte Muluku… (Por favor,
Deus…).

Muluku Mpattuxa… (Deus Criador…).

Na cultura tradicional macua não há escola formal, onde se possa aprender noções
relativas a Deus. A escola é a própria consciência tradicional, que foi ditando ao ser
humano que Deus é o seu Criador. A escola é a própria vida, a escola é a própria
tradição cultural macua e africana, na qual o Ser Supremo faz sentir sua presença. O
enigma da própria vida e da existência ensinou e continua ensinando ao ser humano
que ele não pode ser origem de si mesmo. E a partir disto concluiu que existe um Ser
Supremo, do qual tira sua origem e a de outras criaturas.

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Assim para a população bantu, Deus é o Criador, o inicio da vida, a origem de todo o
processo vital. Sem Muluku, nada teria origem. Ele não só é a origem de tudo quanto
existe, mas também a garantia de continuidade da vida, de tudo quanto existe, visível
e invisível.

Esta verdade, Deus Criador, se encontra igualmente nos outros povos africanos. Por
isso, Paulo VI, em sua Carta Apostólica, Africae Terrarum, nr. 8, afirma que a ideia de
Deus, como causa primeira e última de todas as coisas, é o elemento comum
importantíssimo na vida da cultura tradicional africana.

Em resumo, o sentimento da existência e da presença de Deus, como ser pessoal e


misterioso, penetra toda a existência da pessoa humana africana, em geral, e a da
população macua, em particular.

3.3.Culto a Deus

Na visão de Altuna, a população bantu não rende a Deus um culto oficial, público e
institucionalizado. Na religião tradicional africana não há templos, altares, oferendas e
sacrifícios públicos, festas, sacerdócio; nem precisa de lugares, momentos fixos ou
tempos dedicados ao culto e adoração a Deus. Volta para Ele e adora - O sempre que
sente necessidade disso. Não é necessária liturgia oficial ou ritos prescritos pois, na
religião tradicional africana, cada pessoa humana pode ser, simultaneamente, fiel e
sacerdote do culto privado. Esta situação levanta uma pergunta: por que esta ausência
de culto oficial e público?

Para Altuna, há esta ausência porque a população bantu entende Deus como sendo
Imenso, Omnipotente, que enche tudo, e por isso está próximo do ser humano em
qualquer lugar e tempo. Assim, confinar a adoração a lugares e momentos, seria pô -
Lo em dúvida e limitá– Lo.

3.3.1.Oração

Ainda conforme o autor em citação, Altuna, os bantu rezam porque têm consciência da
sua situação na pirâmide vital. A sua fé é uma opção pela vida. O facto de se sentir
submerso numa incessante acção vital com repercussões na vida privada e social, o
bantu deve agradecer, suplicar, reparar e atender às potências pessoais criadas e à
Potência incriada. Por isso, ele reza por e para a vida, valor supremo e fim último da
pessoa humana. Para a população bantu, segundo Altuna, a oração recria a harmonia
desejada, pois previne o perigo, consolida a vida, corrige a desordem, repara a ofensa
e intercede pelas necessidades.

Todos os lugares e qualquer tempo podem servir para oração, lugares de cultos e
momentos de fé activa. Nesta perspectiva, a oração aparece como o elemento
principal pelo qual a pessoa humana bantu crente comunica com o seu Deus.
Mediante a oração, a população bantu percebe que é possível haver um diálogo entre
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dois seres: o divino e o humano. Mas como é entendida a existência de Deus, entre a
população bantu?

3.4. Concepção bantu sobre a existência de Deus

Para a população bantu, o modo da existência de Deus é como o das pessoas


importantes da comunidade, que vivem próximas e afastadas, ao mesmo tempo.

Proximidade: As pessoas importantes vivem aparentemente afastadas da vida normal


das outras pessoas da comunidade. E, devido a essa importância, elas devem ser
deixadas tranquilas; devem ser respeitadas por causa do estatuto que ocupam. Porém,
apesar disso, elas têm conhecimento de tudo quanto se passa na comunidade, na
sociedade. Este conhecimento dos acontecimentos importantes faz com que elas
sejam próximas das pessoas da sua comunidade, da sua sociedade.

Nesta perspectiva, embora Deus pareça viver “afastado” da vida e da vivencia das
pessoas humanas tal como fazem as pessoas mais importantes da comunidade, ele
está “próximo” das pessoas e tem em mente tudo o que se passa com suas criaturas.

Afastamento: O alegado afastamento ou distanciamento de Deus é um modo de dar


relevo à sua transcendência, e não tem nada a ver com a aludida “ociosidade”, sua
absoluta separação da vida e interesses das pessoas humanas. E só assim fala ou
pensa, quem não conhece ou não entrou no coração da religiosidade deste povo.

Portanto, a consciência da proximidade, da presença de Deus na vida da população


bantu, é manifestada, por exemplo, entre os amakhuwa, mediante estas expressões
ou outras idênticas:

 Muluku erimu, onnikhunela elapo yothene. (Deus é como o céu, cobre toda a
terra).
 Muluku khanaliyala an’awe. (Deus não se esquece de seus filhos e filhas).

As expressões, acima, mostram que Deus está presente na vida das pessoas humanas,
como causa primeira e última da sua existência, garantia da sua força ou união vital
entre os membros da comunidade, visível e invisível. Aquelas expressões mostram
ainda que a população bantu, em geral, e a macua, em particular, experimenta na sua
vida a necessidade absoluta de uma força super humana, que dê à própria vida e à
sociedade garantias de sua subsistência. Mas este Deus é uno e único. Por isso, falando
da existência de Deus entre a população bantu, Pe Altuna sustenta ser o monoteísmo
bantu uma realidade inquestionável e o mais iminente valor da Religião Tradicional
Africana (R.T.A.). Assim, a existência de Deus é tão certa, continua o autor acima, para

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a população bantu, que a pode levar à revelação primitiva, a confirmação da história
universal.

Chegados aqui, pensamos ter tentado dar resposta àquelas três questões, inicialmente
colocadas. Você, como nyungwe, sena, nyanja, ronga e outros grupos, que formam o
mosaico cultural moçambicano, agora pode também tentar responder àquelas três
questões essenciais, a partir da visão cultural do povo a que pertence. A sua reflexão é
bem - vinda, porque vai enriquecer-nos. Mas, desde já, lhe convidamos, para juntos
passarmos à perspectiva filosófica.

II.PERSPECTIVA FILOSÓFICA

Iremos tratar nesta perspectiva filosófica o que a Filosofia, enquanto Ciência humana,
afirma sobre a pessoa humana, o mundo e Deus. Iremos ainda com a mesma
expressão tentar dar resposta filosófica, embora não cabal, àquelas três questões
essenciais e enigmáticas.

Nesta perspectiva, vamos usar os termos ser humano, pessoa humana como
sinónimos. Teremos a oportunidade de discutir aquilo que faz de nós pessoas humanas
ou seja o que é que nos distingue, filosoficamente, dos outros seres que não são
pessoas humanas?

1.O ser humano

Com a pergunta acima, pretendemos saber o que é a humanidade do próprio ser


humano. Neste sentido, a pessoa humana aparece como sujeito e objecto da pesquisa
científico - filosófica. É o ser humano estudando o ser humano; o ser humano
estudando a si próprio. Esta capacidade de se fazer sujeito e objecto de estudo faz com
que o ser humano seja essencialmente diferente do animal irracional, porque só ele
faz questionamentos e se questiona a si mesmo.

Partindo disto, se denota que a “noção de pessoa é a expressão do mais elevado


conceito que o ser humano tem de si próprio e nela se conjugam algumas notas
constitutivas”(In Do Vivido ao Pensado – Introdução à Filosofia 10ª. Ano; Porto Editora;
1995).

1.1.Definição de Pessoa

Há dentro da Filosofia várias definições do ser humano, razão pela qual poderemos
encontrar, neste nosso estudo, várias definições, desde a Antiguidade a época
moderna. Neste sentido, para alguns pensadores da actualidade, o conceito de Pessoa
deve ser abordado sob duas vertentes, mas partindo da questão: Quem sou eu?

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Vertente clássica: esta vai cingir-se a alguns filósofos, da Antiguidade e de Idade
Média, como Cícero, Boécio e São Tomás.

 Cícero (106-43 a.C.): Pessoa é o sujeito de direitos e deveres.


 Boécio (c.480-524): Este entende Pessoa como uma “substância individual de
natureza racional”.
 São Tomás de Aquino (1225-1272): Pessoa é um “subsistente de natureza
racional”.

Há, nestes últimos dois filósofos (Boécio e Tomás), algo comum: referência à individuo
subsistente, coeso, uno, total, e de natureza racional. A natureza racional confere ao
ser humano a capacidade de saber que sabe, consciência de ter consciência. Esta
racionalidade subentende na Pessoa uma dimensão espiritual.

Vertente moderna: nesta linha sobressaem Descartes (1596-1650), Kant (1724-1804) e


Martin Buber (1878-1965). Difere-se da clássica por esta ressaltar, nas suas direcções
definitórias, as características psicológica, ética e social. Mas é necessário sublinhar
que os elementos, tanto da vertente clássica como os da modernidade, se completam.

 Psicológica: Esta direcção toma como referência Descartes, o qual toma


consciência como a característica definitória da Pessoa.
 Ética: esta direcção, conforme Kant, citado por Ernesto Chambisse (A
EMERGENCIA DO FILOSOFAR – 11ª.12ª. Classe: 2003: 38), sublinha a liberdade
como o constitutivo da Pessoa.
 Social: esta direcção, segundo o autor acima, juntando-se ao Personalismo e,
de modo particular, ao Martin Buber, destaca na definição de Pessoa a relação
desta com o (s) outro (s). Importa ressaltar que o Personalismo, segundo Julián
Marías, tem como o traço geral a sua insistência na realidade e no valor da
pessoa e sua tentativa de interpretar a realidade e a afirmação da liberdade
humana e do fundamento pessoal da realidade (HISTÓRIA DA FILOSOFIA, 1ª.Ed
em Português, 2004:442- 443).

Immanuel Kant (1724-1804): Este filósofo concebe ainda o ser humano como
necessitado por ele ter necessidades, enquanto pertence ao mundo sensível, e nesse
aspecto, a sua razão tem uma missão de se ocupar dos seus interesses, elaborando
máximas práticas com vista à felicidade desta vida e de uma vida futura (cf. PISSARRA,
MÁRIO et alli. Rumos da Filosofia. 10ª, edições Rumo, 1ª ed. 1993: 311).

Karl Marx (1818-1883): Para este filósofo, a pessoa humana é, ao mesmo tempo,
social e natural, portanto meramente material, sem a dimensão espiritual e
transcendental, já que tudo no universo do real, incluindo o ser humano, se reduz à
matéria.

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 A pessoa humana como um ser social: a sociedade é a união perfeita do ser
humano com a natureza, a verdadeira ressurreição da natureza.
 A pessoa humana como um ser natural: O ser humano é directamente um ser
natural, porque ele sofre, condicionado e limitado como animais e plantas.
(Opus cit. p. 315).
 O trabalho, essência da pessoa humana: Esta é o produtor e o produto de seu
trabalho. A essência da pessoa humana está em seu trabalho ( homo faber). O
espelho para ver quem é o ser humano é o seu trabalho. O ser humano é o
criador de si mesmo.

Importa sublinhar que Marx não se apercebe da dimensão transcendental da pessoa


humana limitando-se apenas aos aspectos sensíveis, à materialidade. Portanto, o ser
humano fica reduzido a ser simplesmente natural, resultante da evolução da natureza
natural.

Aliados a estas tentativas de definir o ser humano, alguns filósofos existencialistas,


como, por exemplo, J.P.Sartre e Karl Jaspers, depois de tanta investigação no sentido
de conhecer o ser humano, expressaram seu pensamento, um desapontamento neste
termos.

J.P.Sartre: “o estudo do ser humano trouxe-nos muitos conhecimentos, mas não nos
deu a conhecer o ser humano na sua totalidade”.

Karl Jaspers: na mesma linha, este autor manifesta o que poderíamos denominar de
desilusão, dizendo que “o ser humano é profundamente mais do que o que pode saber
acerca de si mesmo” (Opus cit. p. 316).

Chegados a esta parte, podemos afirmar que, todas estas direcções definitórias acima
referenciadas, levam-nos a concluir que o ser humano é essencialmente diferente do
animal.

1.2. O ser humano, diferente do animal

A diferença decisiva entre o animal e o ser humano está já na própria pergunta: O que
é o ser humano? Por aquilo que sabemos e experienciamos, até este momento, só o
ser humano possui a capacidade de fazer questionamentos e o animal irracional não.

A questão acima colocada indica - nos que apenas o ser humano é o único ser que se
indaga; que se questiona, que procura conhecer a essência da sua própria natureza;
que faz de si mesmo um problema; que reflecte sobre suas sensações, ideias e acções.
Tudo isto resulta do facto de esta pessoa humana ser pensante.

Eis então alguns elementos ou qualidades que tornam o ser humano diferente do
animal irracional.

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Razão/raciocínio: conforme Urbano Zilles, a primeira definição referente a pessoa
humana parece a de ser vivo dotado de raciocínio. Entenda-se, aqui, por raciocínio,
segundo o autor acima, citando Franz von Kutschera, a capacidade e disposição de o
ser humano poder orientar-se no que objectivamente é certo, verdadeiro, bom e belo.
Diz, ainda, o autor em citação que a razão é a possibilidade de seguir o certo, a
liberdade de decidir-se por aquilo que se reconhece como certo.

Auto-orientação: A razão permite ao ser humano orientar-se em valores objectivos,


engajar-se por metas que transcendem suas conveniências privadas e individuais.

Auto-consciência: Graças a razão, ao raciocínio, o ser humano fica esclarecido sobre


sua grandeza e sua miséria. Assim, graças a auto-consciência, o ser humano se
entende, por um lado, como sujeito, que experiencia o mundo e nele intervém através
de sua acção. Por outro, este ser humano é parte deste mundo.

Produção de meios/instrumentos de trabalho: Esta capacidade de produzir meios de


trabalho ou de subsistência mostra-nos, conforme Cruz Malpique, que a pura
inteligência, só por si, talvez não tivesse feito surgir a civilização. Referimo-nos aqui à
mão, que desentranha a inteligência em suas possibilidades latentes, servindo-lhe de
parteira. A mão que materializa as concepções da inteligência, dando-lhes uma
realidade tangível e incontestável. Em conclusão, podemos dizer com Malpique que
“se não fora a mão, ignoraríamos se o ser humano era animal mais inteligente que os
outros” (O HOMEM, CENTRO DO MUNDO, 1936: 139).

Partindo desta consciência, que mostra ao ser humano sua grandeza e sua
fraqueza/miséria, ao mesmo tempo, Blaise Pascal, citado por Urbano Zilles, atesta: “O
ser humano parece um caniço, o mais fraco da natureza, mas é um caniço pensante.
Uma gota de água basta para matá-lo. Mas mesmo assim, ele sairá mais nobre do que
aquilo que o mata porque sabe que morre e sabe a vantagem que a água tem para
ele”.

Insatisfação incessante: O ser humano não se satisfaz com o que existe a ser redor.
Por isso, ele rompe os limites que o cercam, transformando o meio ambiente em que
vive. Para viver e bem viver, a pessoa humana precisa de trabalhar e adaptar o mundo
que o circunda. Ela precisa de trabalhar a terra, para melhorar cada vez mais a sua
vida. Por esta razão, para ela a vida não só significa estar aí mas também bem-estar,
bem-viver.

Religiosidade: Feuerbach, citado por Bruno Odélio Birck, afirma que a “religião baseia-
se na diferença essencial que existe entre o Homem e o animal. Os animais não têm
nenhuma religião” (In GHELLER, Erinida G.(org.) CULTURA RELIGIOSA: O Sentimento
religioso e sua expressão. 2002:9). É surpreendente ver Feuerbach, considerado o pai
do ateísmo, no século XIX, reconhecendo a religiosidade como sendo o critério de
distinção entre o ser humano e o animal. Isto mostra que não é possível eliminar no

13
ser humano aquela necessidade de buscar uma razão e esperança para viver, mas um
viver com sentido. E a verdadeira religião oferece ao ser humano uma razão última,
um sentido fundamental para a existência do ser humano.

Falando desta diferença entre o ser humano e o animal, o autor acima diz ainda que,
“as abelhas se comunicam, as formigas providenciam seu alimento e os macacos
catam piolhos mas, nenhum deles reza ou realiza qualquer culto a Deus (Opus cit p. 9-
10). Mas por que razão, o ser humano não vive sem religião?

Urbano Zilles, como que a responder a esta questão, diz o seguinte: “o problema
religioso toca o ser humano em sua raiz ontológico. (…) Quer isto dizer que, a religião
tem a ver com o sentido último da pessoa, da história e do mundo” (FILOSOFIA DA
RELIGIÃO: 1991: 6).

Battista Mondin: o ser humano é homo somaticus: dimensão corpórea. Neste sentido,
o ser humano é homo vivens, loquens, politico, culturalis, socialis, faber, ludens
(lazer), religiosu e espiritual.

Animal irracional: Este, com instintos altamente especializados que lhe garantem a
sobrevivência, a ajustar-se ao que encontra ao seu redor. Ele contenta-se em viver
com o objectivamente necessário para existir. Por isso, ele não precisa de técnica.

Apesar de a razão poder ser considerada como a primeira qualidade que define o ser
humano e constituir um dos elementos qualificativos, que diferenciam o ser humano
do animal, ela não é absoluta, tem limites.

1.3. Limites da razão humana (para o Curso Nocturno)

Entenda-se, aqui, por limite, conforme Abbagnano, “o último ponto além do qual não
existe parte alguma da coisa e aquém (parte de cá) do qual estão todas as partes dela”
(DICIONÁRIO DE FILOSOFIA, 2007:708).

As insuficiências próprias da razão que a natureza humana impõe ao próprio ser


humano, as quais se manifestam no seguinte:

Ignorância: o primeiro limite é a nossa ignorância e a das outras pessoas. Quer dizer,
no dia após dia, percebemos a distância entre o que reconhecemos como certo e o
que fazemos na nossa vida prática.

Incertezas inevitáveis: Convivemos com dúvidas e incertezas inevitáveis. O nosso


conhecimento sensível sempre é condicionado e limitado. Por exemplo, ninguém sabe
ou melhor, é difícil para uma pessoa humana, em condições normais, ter a certeza de
que vai ou não atingir, por exemplo, 80 (oitenta) anos de vida. Portanto, apesar de
avanços da Ciência e da Tecnologia, o ser humano permanece ainda um enigma para si
mesmo.

14
1.4. O ser humano, um enigma

Por enigma entenda-se, aqui, algo que é descrito em termos obscuros, ambíguos, e
que deve ser decifrado. É dentro desta definição, onde se enquadra o ser humano
como mistério. Na verdade, dificilmente o ser humano se compreende a si mesmo. Por
isso, embora conheça sempre o Universo e, com a sua inteligência, penetre o espaço
cósmico e microcósmico, o ser humano permanece o grande enigma para si mesmo.
Por esta mesma razão, podemos concordar, outra vez, com Karl Jaspers, citado por
Mário Pissarra (et alli), segundo o qual o “Homem é fundamentalmente mais do que o
que pode saber acerca de si próprio” (RUMOS DA FILOSOFIA: Introdução à Filosofia.
10º Ano, Ed. RUMOS: 1993: 316).

Santo Agostinho: Muito mais antes, este Santo, procurando entrar dentro de si, na
ânsia de compreender o grande problema em que se tinha colocado para si mesmo,
disse: “O ser humano é magna quaestio” (cf. Confissões IV, 4). Também João Paulo II
reconhecendo o ser humano como mistério destacou o seguinte: “Uma das fraquezas
mais vistosas da moderna civilização é a incapacidade moderna das Ciências Humanas
para darem resposta adequada ao mistério do ser humano”.

1.5. O ser humano: drama para si mesmo

O ser humano vive sempre inquieto. Ele se questiona constantemente sobre o que ele
é, donde vem e para onde vai. Devido a esta realidade, ele vai procurando dar resposta
a si mesmo, de várias formas, mas jamais encontra respostas definitivas e cabais. Por
consequência, esta situação faz do ser humano cada vez mais inquieto e o obriga a
entrar cada vez mais no seu drama. Este drama humano se manifesta por algumas
expressões como a finitude, a contingência, a fragilidade (expressão metafísica),
temporalidade, mortalidade, o mal físico e o sofrimento (expressão física).

1.5.1. Expressão metafísica do drama humano

a) Finitude

O ser humano se sente finito. E ser finito significa que, por sua natureza, o ser humano
é um ser contingente e, por isso, não é necessário. Como não é necessário, ele é um
ser que é, mas que podia não ser. Para o ser humano o ser é algo que acontece, porém
podia não acontecer (contingência). Neste sentido, se pode dizer que o ser humano
existe acidentalmente.

Diante desta vivência, o ser humano sente que o seu ser não está completamente sob
a sua autoridade e seu controle, não está na autonomia absoluta e independência
total. O ser humano sente que depende grandemente de um Outro, que é um Ser
necessário: um ser que tem de ser, que não pode não ser, que não pode não existir. E
somente a partir desse Outro é que o ser do ser humano tem firmeza ontológica,
solidez e segurança.
15
b) Contingência

Por contingência se compreende, aqui, o carácter do que é eventual; a possibilidade de


que algo acontece ou não. A contingência implica, ao mesmo tempo, uma fragilidade
radical do ser e uma inconsistência. O ser humano é um quase-nada suspenso no
abismo do nada, um perpétuo risco de ser dissolvido no nada.

c) Fragilidade

Fragilidade implica vulnerabilidade, possibilidade de ser ferido no seu ser. Implica


ainda ser exposto a toda espécie de anti-ser. Porque é frágil, o ser humano se
corrompe e se fere física e moralmente. Por isso, pela experiência vivencial,
constatamos que o ser humano se rodeia de muitos cuidados. Estes dados são uma
evidência da consciência, de que o ser humano tem essa inconsistência, essa
fragilidade. A título de exemplo, uma doença, um acidente e ameaça são suficientes
para o fazer tremer de medo, colocando-o entre a vida e a morte.

1.5.2. Expressão física do drama humano

a) Temporalidade

O ser humano é um ser no tempo e o seu existir é contemporizado. E ser-no-tempo é


também ser-deixando-de-ser. É igualmente um permanente vir-a-ser e um deixa-de-
ser. Ver os aniversários das crianças e jovens: vir a ser; os aniversários adultos:
contínuo deixar-de-ser.

Eis aqui o drama humano: o conflito entre o seu desejo profundo de transcender o
tempo, eternizando-se, e a realidade de ver a sua vida inevitavelmente a ser devorada
pelo tempo que não perdoa.

b) Mortalidade

A temporalidade está prenhe de mortalidade. Viver no tempo é viver na certeza e na


urgência da morte. Tudo o que é temporal é mortal. E o ser humano, sendo natural,
não escapa essa lei, que é também natural.

c) O mal físico

O mal, na Filosofia clássica, é tudo o que constitui privação de bem, em seres, aos
quais por natureza é devido. Assim, a doença, por exemplo, é um mal. A guerra, a
injustiça, a opressão, um acidente, a morte, a catástrofe são males.

d) O sofrimento

O sofrimento, embora seja visto, muitas vezes, ligado mais ao mal físico, possui sua
expressão moral. Assim, o sofrimento moral pode resultar da dor física, na medida em
que ele é interiorizado pela consciência humana. Mas pode também ser independente
16
dele. Por exemplo, um sofrimento pode ser causado ou por um desgosto, ou por uma
profunda frustração ou opressão, pela morte de alguém muito querido.

É verdade que os animais também sofrem, a seu modo. Todavia o seu sofrimento se
difere do humano, pois ele se reduz ao sofrimento objectivo, sensitivo, enquanto o
sofrimento humano assume uma dimensão interior, subjectiva, de alma, de “coração”.

Este drama, de finitude, contingência, fragilidade, temporalidade, mortalidade, o mal


físico e o sofrimento, é comum ao crente e ao não crente. A única diferença é que o
crente encara aquele drama com uma certa esperança, fruto da sua esperança no
Além. Mas o não crente mergulha-se no drama de modo desesperado.

Depois desta exposição, constatamos ainda que não conseguimos definir, de modo
satisfatório, o ser humano, responder cabalmente aquela questão enigmática. Por isso,
podemos concordar com Nietzsche, que após uma busca descomedida para entender
o ser humano e não tendo satisfeito seu desejo, concluiu: “O ser humano é o animal
que não se define nunca” (In GUERRA, L. Maria. TEMAS DE FILOSOFIA, 1980: 11).

2.O Mundo

Por mundo entendemos, aqui, como conjunto de tudo quanto existe, inclusivamente a
Terra onde vive o ser humano. O desejo de conhecer o que o mundo é, como ele
surgiu, levou alguns filósofos a que formulassem teorias ligadas à natureza, como os
abaixo mencionados.

Tales (624-562), de Mileto, procurando responder à questão como surgiu o mundo,


afirma ter o mundo surgido da água, do fogo e ar. Destas três realidades, sobressaiu a
“água, que para ele, é o princípio do qual se originam todas as coisas. Da água deriva,
por condensação, a terra; por rarefacção, o ar e o fogo” (In MONDIN, Battista. CURSO
DE FILOSOFIA. Os Filósofos do Ocidente, Vol. 1, 1981:17-18).

Por que água é o princípio (arqué) de todas as coisas? Tales responde dizendo: o
“alimento e as sementes dos animais e das plantas são húmidos. A terra flutua sobre a
água” (MARÍAS, Julián. HISTÓRIA DA FILOSOFIA, 2004: 15-16).

Anaximandro: para este, “o princípio primeiro deve ser alguma coisa indeterminada
(ápeiron). Este princípio é imortal e incorruptível” (cf. Opus cit, p.16). E o que é o
mundo?

Pitagóricos: o mundo é uma ordem, é cosmos.

Empiristas: o mundo é a circunferência do céu, que abraça os astros, a terra e todos os


fenómenos.

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Aristóteles (384-322): o mundo é a constituição, estrutura da totalidade. O mundo é a
ordem imutável do universo (In ABBAGNANO, Nicola. DICIONÁRIO DE FILOSOFIA, 2001:
727).

3.Deus

Cada povo vai construindo, ao longo da sua caminhada na história, sua visão sobre
Deus. E, muitas vezes, esta visão é feita com base em vários sistemas, sejam eles
religioso, moral, político, social e até filosófico, que pode ser cristão ou pagão. E é esta
última filosofia, a que vamos nos ocupar, agora.

3.1. Filosofia pagã

Desde os primórdios da humanidade existiu, na pessoa humana, uma preocupação


interior tremenda ligada ao desejo de conhecer o princípio primeiro, originante,
unificante, causa primeira e última de tudo quanto existe. Esta preocupação nasce com
a própria humanidade. Neste sentido, o termo “Deus é um símbolo que indivíduos,
grupos e culturas usam de várias formas e com significações distintas, para indicar e
exprimir sua visão sobre aquilo que poderia denominar realidade última” (cf.
HARNACK, Adolf von et alli, in ENCICLOPÉDIA MIRADOR INTERNACIONAL. Vol 7, 1983:
3285). Diz ainda o autor acima que desde os seus primórdios, a filosofia grega tentou
responder às perguntas:

a) “Qual a explicação para a unidade do mundo sensível?


b) Se o mundo, tanto nos seus aspectos cosmológicos quanto humanos, é
denominado por um fluxo dissolvente permanente, como explicar que ele não
se transforme em caos?
c) Qual a realidade permanente que subjaz à impertinência de tudo o que ocorre
no tempo”?

Estas perguntas, segundo o autor em citação, mostram uma “intuição fundamental


daquela cultura: os processos de mutação por que passa o mundo material se dão
sobre uma unidade básica, estável e atemporal”.

A filosofia grega concluiu que Deus é o fundamento ontológico do existente e o


princípio lógico para a sua inteligibilidade. Quer isto dizer que Deus é o primeiro
princípio (em grego arkhé) sobre o qual a existência e a explicação do mundo se
assentam.

18
Aristóteles: Para este filósofo, “Deus é forma pura, actualidade completa porque nele
não existe nenhuma potencialidade não realizada. Por isso, Deus é a causa primeira do
movimento, sem ter sido causado por coisa nenhuma. Em conclusão, Aristóteles diz
ainda que Deus é pensamento, ideia pura ou acto puro, que tem a si mesmo como seu
único objecto de conhecimento” (cf. Opus cit p. 3285-3287).

A necessidade de responder à questão o que é Deus? também foi uma das


preocupações dos filósofos cristãos, para dar cobro às correntes ideológicas e
religiosas, que tentavam desviar a fé verdadeira dos cristãos daquela época.

3.2. Filosofia cristã

João Paulo II considera a expressão filosofia cristã, em si mesma, legítima, mas toma
atenção para que não se dê margem a equívocos. Neste contexto, para este autor,
com a expressão filosofia cristã, não se pretende aludir a uma filosofia oficial da Igreja,
já que a fé enquanto tal não é uma filosofia. Mas, com aquela designação, deseja-se
sobretudo indicar:

1. Um modo cristão de filosofar, uma reflexão filosófica concebida em união vital com
a fé.

2. Todos aqueles importantes avanços do pensamento filosófico, cristãos e não


cristãos, que não seriam alcançados sem a contribuição, directa ou indirecta, da fé
cristã (FR, 76).

Santo Agostinho: Deus é o inexplicável, é aquele que é; a essência ou a substância, o


ser que é sempre e plenamente aquilo que é”. Deus é o mistério que se revela no
mistério da Trindade: Pai, Filho e Espírito Santo” (cf. opus cit Vol 2, p. 222-223).

Santo Anselmo (1033-1109): Deus é o mais alto pensamento possível. id quo nihil
majus cogitari potest (aquilo de que de maior nada pode ser pensado). E diz mais: “o
mais alto pensamento possível não pode existir apenas, ele corresponde a um ser
existente”. Portanto, para este autor, há uma correspondência entre o pensamento e a
realidade.

Santo Tomás: Este pensador tenta dizer aquilo que Deus é, em cinco moldes, a partir
daquilo que ficou conhecido por cinco vias da existência, como segue abaixo:

1. O primeiro motor imóvel, que move sem ser movido.


2. A causa primeira, não causada (incausada).
3. O ser necessário, sem o qual nada poderia existir.
4. O ser sumamente perfeito, causa de todas as perfeições.
5. O ser inteligente que ordena a natureza e a encaminha para seu fim.

19
Para mais aprofundamento, aconselhamos a leitura das cinco vias sobre a existência
de Deus, criação de São Tomás, (In. MARÍAS, Julián. HISTÓRIA DA FILOSOFIA,
2004:184).

Quanto à sua natureza, o mesmo autor diz ainda que “Deus é uno, incorpóreo,
perfeito, infinito, imutável, eterno, sendo, essencialmente, inteligência e vontade” (cf.
opus cit, Vol 19, p.10940).

A partir do que acima dissemos, podemos dizer, em forma resumida, que Deus é a
Fonte e o Garante de tudo quanto existe. Ele é o Artífice do mundo.

A discussão que acabámos de fazer sobre aquilo que o ser humano, Deus e o mundo é,
trouxe-nos uma compreensão relativa a estas três realidades, nas perspectivas africana
e filosófica. E o que a perspectiva islâmica diz sobre aquelas três realidades: o ser
humano, Deus e o mundo?

III.PERSPECTIVA ISLÂMICA

É sempre importante esclarecer, logo no início, o significado do objecto de estudo.


Torna-se ainda mais importante quando se trata de um tema, que pode ser
considerado novo, para os nele interessados. Na verdade, é este o primeiro passo a ser
feito no princípio de um novo campo de estudo: definir o significado do objecto em
discussão.

1.O significado do termo Islam

Explicando o termo Islam, Muhammad Abdalati apresenta dois sentidos/significados:


O original e religioso.

 Sentido original: O termo Islam deriva da raiz árabe Salama, que significa paz,
pureza, submissão, obediência.
 Sentido religioso: o mesmo termo Islam significa ainda submissão voluntária à
vontade de Allah e obediência à sua Lei.

Assim, a relação existente entre estes dois sentidos – original e religioso – é forte e
evidente, pois só mediante a submissão voluntária à Vontade de Deus e obediência à
sua Lei, o ser humano crente pode desfrutar da verdadeira paz e pureza duradoiras.

Posto este significado, podemos questionar ao Islam: O que é, para ele, o ser humano?

2.O ser humano

Criatura: O ser humano é criado por Deus, a fim de cultivar a terra e enriquecer a vida,
de conhecimentos, virtudes, finalidades e significados. O conhecimento faz parte
integrante da sua personalidade e do seu ser. É o conhecimento que confere à pessoa
20
humana, à qualidade de vice-rei do seu Criador e o direito de exigir respeito e
obediência a Deus.

Relação Liberdade - Responsabilidade: o ser humano é agente livre, dotado de livre


vontade. Esta é a essência da sua humanidade e a base da sua responsabilidade diante
de seu Criador. Sem o livre arbítrio, o ser humano seria totalmente incapaz de
qualquer responsabilidade. Mas a responsabilidade pelo pecado só é assumida pelo
pecador. Portanto, cada pessoa humana é responsável pelas suas próprias acções.

Dignidade e honra: O ser humano é um ser digno e honrado. A sua dignidade resulta
do facto de ele ser penetrado pelo espírito do seu Criador. Esta dignidade é um direito
natural do ser humano, de qualquer pessoa humana, o ser mais honrado da terra.

Acrescido a estas qualidades de criatura, liberdade, responsável, digno e honrado, para


o Islam, o ser humano é também um conjunto de duas naturezas complementares, em
correlação extremamente íntima, e em permanente interacção: A natureza interna e
externa.

2.1.Natureza externa

Esta é formada pela vida pessoal, familiar, social, económica, política e internacional.

Vida Pessoal: Trata-se da pureza, limpeza, dieta alimentar equilibrada, vestuário,


adornos, divertimentos e passatempos.

Vida Familiar: Para o Islam, a família é um grupo social humano, cujos membros estão
unidos por laços de consanguinidade e/ou relações conjugais. Estão inclusos na vida
matrimonial os direitos e obrigações do marido - esposa e vice-versa; os direitos e
obrigações dos pais – filhos e vice-versa. O bom tratamento dos empregados, dos
outros membros da família, dos conhecidos e vizinhos está estreitamente relacionado
com a vida familiar (cf. ABDALATI, Muhammad. O Islão em Foco, 1995: 176-187).

Vida social: A vida social do verdadeiro muçulmano baseia-se em princípios, que


garantem a felicidade e prosperidade ao indivíduo e à sociedade no seu todo. Segundo
o autor acima, o Corão e as Tradições de profeta Muhammad sublinham a unidade da
humanidade na natureza e na origem. E disse mais: “É nesta unidade de origem e fins
últimos como base da vida social no Islão, que assentam as relações entre o indivíduo
e a sociedade” (cf. opus cit, p.191).

Vida económica: Esta baseia-se em alicerces sólidos e mandamentos divinos. Assim, o


ganhar a vida trabalhando honestamente não é só um dever, mas também considera-
se virtude.

21
Vida política: O sistema político do Islam é único, na sua estrutura, funcionamento e
na sua finalidade. Para apreciá-lo é preciso saber que ele assenta-se em princípios
abaixo:
 Cada acção individual do muçulmano deve inspirar-se e guiar-se pelo Corão,
que é a constituição que Deus escolheu para os seus verdadeiros servidores
(Corão, 5: 47-50).
 No Estado islâmico, a soberania pertence a Deus e ao povo. Este exerce-a por
autorização d’Ele, para impor a sua Lei e cumprir a sua vontade (Corão, 67:; 4:
58; 5:20).
 A finalidade do Estado Islâmico é garantir a justiça, segurança e protecção a
todos seus cidadãos, sem distinção.

2.2.Natureza interna

No Islam a vida interior é constituída pela dimensão espiritual e intelectual.


Dimensão espiritual: De acordo com Muhammad Abdalati, o Islam organiza a vida
espiritual ou moral do ser humano de modo a fornecer-lhe plenamente o alimento
espiritual necessário à piedade, probidade (honestidade), à segurança e à paz (Op. cit.
1995: 165).
Dimensão intelectual: O autor em referência diz ainda que “a natureza intelectual da
pessoa humana é formada pela mente ou inteligência ou a capacidade de raciocinar”
(cf. opus cit, 166-168).

3.O mundo no Islam

Para esta religião, o mundo é uma entidade em transformação, criada pela vontade de
Deus Criador e sustentada por Ele, para certas finalidades. As correntes históricas
verificam-se conforme a sua vontade e seguem leis bem estabelecidas (cf. opus cit, 86-
90).
No Islam a vida emana (origina-se) de Deus. Ela é uma fase de transição, após a qual
tudo voltará para seu Criador. Portanto, a vida neste mundo não é finita nem é ela
mesma uma finalidade (cf. opus cit, p.91).
Na verdade o mundo que nós habitamos foi criado por Deus. Mas o que o Islam afirma
sobre Deus que vai anunciando, em várias partes deste globo terrestre?

4.Deus (Allah) no Islam

Muhammad Abdalati sustenta ser o verdadeiro nome desta religião, o Islam, e os seus
adeptos designados de muçulmanos. Assim, o termo árabe Allah significa o Deus
único, Eterno, Criador do Universo, Senhor de todos os senhores, e Rei de todos os
reis. Allah é a Grande Força, o Grande Artista, que cria as mais encantadoras obras de
arte e produz tudo para uma certa finalidade na vida. Esta Força é a mais forte de

22
todas as forças, e este Artista é o maior de todos os artistas. Após esta comparação,
este autor coloca a definição de Allah (Deus) nestes termos.

a) Deus é o Criador de tudo quanto existe. Ele é a Força Activa e o Poder Efectivo
dentro da natureza. Para sustentar sua ideia de Deus Criador, o autor em
referência cita o Corão, que diz: “Allah fez a noite para ti, para poderes
repousares e o dia para veres. (…). Assim, é Allah, o teu Senhor, o Criador de
todas as coisas. (…). Louvado seja Allah, Senhor dos mundos” (40: 61-64).
b) Allah: é o Senhor Supremo do mundo inteiro. Ele é só Um, o Absoluto, Ser que
não gerou nem foi gerado, e nada se assemelha a Ele (cf. Corão, 112).
c) Allah: é o Clemente, o Misericordioso, o Protector, o verdadeiro Guia, o Senhor
Justo e Supremo, o Criador, o Vigilante, o Primeiro e o Último, o Consciente, o
Conhecedor, o Sábio, a Testemunha, o Glorioso, o Atento, o Capaz e Poderoso,
o Generoso, o Paciente, o Benevolente, o Rico, o Independente, o Redentor, o
Apreciador, o Juiz, e a Paz (cf. Corão, 57: 1-7; 59: 22-24; 3: 31; 11:6; 35: 15; 65:
2-3).
d) Allah é Excelso e Supremo, mas fica sempre ao pé de quem pensar n’Ele com
piedade. Ele responde às suas orações, ajuda-o e ama quem O ama e perdoa-
lhe os pecados. Ele ensina ao ser humano a ser boa pessoa, a afastar-se do mal.
Terminamos de apresentar a visão islâmica sobre a pessoa humana, o Mundo e, por
fim, Deus. E o que a Igreja diz no que concerne às mesmas realidades?

IV.PERSPECTIVA CRISTÃ
Desde o início, deste nosso estudo, estávamos discutindo as perspectivas, tradicional
africana, filosófica e islâmica, na tentativa de responder àquelas três questões, que
sempre suscitam debate, sobre a pessoa humana, o mundo e Deus. Vimos que aquelas
perspectivas deram respostas, segundo sua visão e natureza. A partir de agora, vamos
concentrar a nossa atenção na perspectiva cristã, portanto naquilo que a Igreja
Católica afirma, referente ao ser humano, ao mundo e a Deus.

1.O ser humano

É importante explicar, desde já, que a discussão relativa ao ser humano, Deus e mundo
deve necessariamente obedecer ao desenvolvimento destes conceitos. Quer isto dizer
que devemos partir do Antigo Testamento ao Novo até a Igreja.

1.1.O ser humano na Sagrada Escritura

Para a Bíblia, o ser humano é criatura de Deus, indivisível (uno) e capaz de relações. É
um ser criado com o qual Deus entra em diálogo de aliança. Contudo, no Antigo
Testamento, a humanidade está centrado em Adão e, no Novo, está centrado em
Cristo, a medida do ser humano perfeito.

23
a) Antigo Testamento

Para Calmeiro Matias, a Bíblia distingue no ser humano dimensões diferentes, que
constituem uma totalidade vital da complexidade da vida humana. Esta complexidade
é expressa mediante uma série de palavras fundamentais, como são o ser humano-
nefesh, leb e basar (O HOMEM NOS PLANOS DE DEUS, 1987: 8-11). O ser humano-
nefesh: O termo nefesh tem dois significados.

 Significado mais primitivo: nefesh significa as vias respiratórias. Assim, o


humano é um ser que respira.
 Por analogia: nefesh significa respiração (Jer. 15, 9).

Sopro vital de Deus: Com o conceito de criação surge a noção de que o ser humano
possui, no ser interior, o sopro vital de Deus. Este sopro faz dele um ser original no
grupo dos seres vivos. Conforme o livro de Génesis, o «Senhor Deus formou/criou o
ser humano do pó da terra e insuflou-lhe pelas narinas o sopro vital (ruah) e o ser
humano tornou-se um ser vivo» (Gn. 2. 7). Portanto, o ser humano é nefesh, isto é,
uma interioridade habitada e dinamizada pelo Espírito de Deus. Através da sua
interioridade, o ser humano passou a ser visto como um ser com capacidade de
relações de aliança. Por isso, Deus entra em diálogo com o ser humano e faz com ele
uma aliança/pacto (cf. Gn. 2,16-17).

Quando Deus retira seu nefesh (sopro vital) do ser humano, este morre e por
consequência deixa de comunicar-se e de dialogar (Job 34, 14-15). Neste sentido o ser
humano-nefesh é o humano vivo e animado pelo sopro vital, mas dependente de
Deus.

O ser humano-leb : Segundo Calmeiro Matias, o “termo leb é traduzido em português


por coração” (cf. opus cit, p. 10). Trata-se da outra característica da vida interior
humana. A palavra leb designa o ser humano como interioridade de opção e decisão.
Por isso, o coração da pessoa humana é:

 O espaço interior dos intuitos mais secretos (Jz 16, 15-17). Só agrada a Deus o
coração misericordioso e fraterno (Am 5, 21-25; Os 6,6). O coração
 A fonte das disposições secretas que só Deus pode sondar (Sl 44, 22; Jer 17,
95).
 A fonte da sabedoria humana (Sl 90, 12). Mas Deus detesta os corações, que
elaboram planos perversos (Prov 6,18).

Portanto, dizer coração bom ou mau é dizer o ser humano bom ou mau (cf. Jz 18, 20;
Dt 28, 47). O ser humano pode tentar ocultar a maldade do seu coração, mas Deus
sonda e julga o coração perverso (Sl 7, 9-13; 16, 7-9; Jer 11, 19-20; 12, 1-13). O ser
humano com mau coração é responsável por esse facto e infiel a Deus. Não há pessoa

24
humana boa ou má por natureza. Ela faz-se má ou boa pelas atitudes e opções que faz
no seu coração. Lembre-se do que dissemos sobre o coração, na perspectiva
tradicional africana.

O ser humano-basar: O basar tem duas designações e dois significados.

a) Como designação antropológica, basar significa o ser humano como um todo


orgânico com a humanidade.
b) Designa, o ser humano exterior (Gn 2, 21), mas sempre em ligação/relação com
os outros (Gn 2, 23s), com a natureza, animado pelo sopro vital de Deus (Núm
16, 22; Gn 17; 7,22). Ligado a nefesh, a palavra basar significa a totalidade da
vida humana. Sem a ruah o ser humano está morto.

Pela ruah o ser humano-basar fica interligado com toda a humanidade pelo mesmo
Espírito, porque ruah é, na perspectiva de Calmeiro Matias, o princípio relacional que
conduz o ser humano à comunhão com Deus e com os outros (cf. opus cit, p.13). Mas
após o Exílio, o ser humano-basar é fragilidade. É pecador (Is. 31, 1-3; Gn 17, 5-7).

1.2.O ser humano na Novo Testamento

Há neste Testamento uma continuidade das perspectivas antropológicas do Antigo.


Porém no Novo dá-se-lhes uma nova dinâmica, porque a humanidade tem como
centro Jesus Cristo e não o velho Adão. O Novo Testamento parte de um princípio:
Cristo ressuscitado, medida do Homem perfeito
Cristo ressuscitado, medida do Homem perfeito: Apesar de perfeito, este ser humano
está inacabado porque deve nascer todos os dias pelo princípio do Espírito, que o
anima (Jo 3, 6-8), que o modela, fazendo-o conforme a Cristo, o Filho perfeito de Deus
e «o Primogénito de muitos irmãos (Rm 8, 29).
A acção modeladora do Espírito opera no ser humano interior, que vai nos
transformando interiormente de acordo com Cristo, imagem perfeita de Deus,
conforme diz São Paulo: “Ainda que em nós se destrua o ser humano exterior, o
interior renova-se diariamente” (2Cor. 4,16). Portanto, o Novo Testamento concebe o
ser humano em duas dimensões, é o que podemos chamar de dialéctica paulina.

O ser humano novo/interior: Falando do Homem novo, São Paulo diz: “Se alguém está
em Cristo é uma nova criatura, pois o ser humano velho, distorcido pelo pecado, foi
vencido em Cristo. N’Ele inicia o Homem novo” (2Cor. 2,17). Assim, o nascimento do
ser humano novo supõe a morte do velho. Trata-se, em suma, do ser humano novo
que está emergindo no nosso interior, como um processo de espiritualização.

O Homem novo/interior, que se deixa dinamizar e modelar pelo Espírito, tem como
frutos, a caridade, alegria, paz, paciência, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão,
temperança (Gal. 5, 22).

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O ser humano velho/exterior: Este está corrompido, por todas as paixões. Ele está
dominado pela lei da violência, a lei do mais forte, do mais esperto, do predomínio, da
exploração das outras pessoas. O Homem velho guia-se pela lei de idolatria, dos
malefícios, da impureza, da desonestidade, inimizades, contendas, ciúmes, rixas,
discórdias, invejas, homicídios, embriagues, orgias/desordem, adultério (Gal. 5, 19).

O ser humano-leb (coração): O Novo Testamento apropriou-se do conceito leb


(coração), e entendeu ser no coração onde o ser humano recebe a Palavra de Deus
(Mt. 13, 3ss; Mc. 4, 3ss). Por isso, a verdadeira pureza consiste não em abluções
ritualistas, mas a do coração (Mt. 15, 1ss; Mc 7, 1ss). A centralidade do coração, no
Novo Testamento, está também patente na alusão à Maria, a qual meditava no seu
coração o sentido dos acontecimentos ligados ao seu Filho ( Lc 2, 16-21).

O ser humano-basar: Transcendendo a compreensão da palavra basar, que se tinha no


Antigo Testamento, Jesus afirma que «o espírito é que dá vida … As palavras que vos
disse, são espírito e vida» (Jo. 6,56.60.63). Portanto, com Jesus chega-se a
sensibilidade de superioridade do espírito sobre o corpo, porque o Espírito é a
dinâmica relacional. Mas esta superioridade não autoriza a depreciação do corpo
humano. O espírito circula no interior da fraternidade humana. Mas, para isso, é
necessário que o ser humano esteja sempre ligado a Ele, como a vara não pode dar
fruto por si mesmo se não estiver na videira … (Jo. 15, 4b-5).

O ser humano imagem e semelhança de Deus (Gn 1,26-30): Este Deus é criador, quer
dizer Ele, para fazer surgir coisas, não precisa de material pré-existente, mas do nada,
ex nihilo. A sua palavra basta para surgirem as coisas: “Que a terra produza verdura… A
terra produziu verdura, erva com semente…” (Gn 1, 11).
Partindo disto, chega-se a conclusão de que o ser humano, pelo facto de ser imagem
de Deus e, também por ter sido confiado a tarefa de “…dominar a terra” (Gn 1,28)
significando isto aperfeiçoar, humanizar a terra, ele passou a ser co-criador de Deus.
Portanto, quando o ser humano realiza qualquer trabalho dignificante, conforme a
vontade de Deus, ele está necessariamente cumprindo um dever, para que o próprio
ser humano seja dignificado e Deus glorificado.
Já que o ser humano, pelo facto de ser imagem e semelhança de Deus, ele é, por isso
mesmo, seu co-criador. Neste sentido, quem renuncia a ser imagem e semelhança de
Deus?

Renuncia a ser imagem e semelhança de Deus, o ser humano:

 Inactivo, que deixa tudo como está.


26
 Que se conforma passivamente com as circunstâncias.
 Que não trabalha seriamente para melhorar as condições da natureza, a fim de
torná-la mais humana e ao serviço da própria pessoa humana.
 Quem pensa e age como que entregue ao destino e ao fatalismo.
 Que vê tudo e em todos os acontecimentos adversos como realização da
vontade divina e, por essa razão, estaria proibido de lutar contra eles.

1.3.O ser humano na visão da Igreja


Quando se fala do ser humano na visão da Igreja, é importante sublinhar que ela deve
baseia-se na Sagrada Escritura, Patrística, Idade Média e terminar nesta era
contemporânea.

1.3.1.O ser humano na Igreja Antiga (Patrística)


No geral, a Igreja Antiga tinha uma visão negativa do corpo humano ou seja do Homem
todo, excepto Irineu, como abaixo veremos:

Santo Irineu (c. 140-200): Este pensador, apoiando-se no mistério da Incarnação de


Cristo, sublinha a dignidade do corpo, do ser humano, na sua dimensão material. A
fundamentar esta sua visão positiva em relação ao ser humano, Irineu diz:
“…o ser humano, e não apenas uma parte dele, se torna imagem e semelhança de
Deus. Ora, a alma e o espírito podem ser parte do ser humano, mas nunca o Homem.
O Homem perfeito é mistura e a união da alma que recebeu o espírito do Pai e que
foi misturado à carne modelada segundo a imagem de Deus.” (cf. Adversus Haereges,
V, 6,1 in MATIAS, Calmeiro. O HOMEM NOS PLANOS DE DEUS, 1987: 73).
A seguir Irineu sentenceia: “Se separamos a alma do corpo, por si só, não é o ser
humano, como a alma também não” (cf. opus cit.).
Foi com muita pena que os autores que vieram posteriormente não tiveram a mesma
sagacidade, a mesma visão com relação ao ser humano todo.

Orígenes (c. 185-c.250): Este vê o ser humano como um composto de uma alma
preexistente e do corpo. Para este pensador, no nosso estado presente, o nosso corpo
é animal. Mas é a partir deste corpo animal que vai nascer um corpo espiritual.
Enquanto animal, o corpo não merece qualquer valorização especial. É fonte de
pecado. Só a alma é a imagem de Deus.
Orígenes tinha uma visão negativa do corpo humano, da sexualidade. Por causa disto,
ele castrou-se, convencido de estar a cumprir o celibato (cf. opus cit.).

Tertuliano (c.160-225): Para este rigorista, a beleza corporal, apesar de revelar o


acabamento da acção modeladora de Deus, deve ser temida e disfarçada, pois é um
perigo para a castidade. (Os adereços da mulher, II, 6. In opus cit, p. 75). E diz mais:
“Todo o marido exige o tributo da castidade: se é cristão não exige da esposa a beleza,
pois não somos seduzidos pelas coisas que os pagãos” (cf. Ibid, IV, 2. In opus cit).

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Tertuliano defende o princípio de deixar o corpo com seu aspecto natural, como
acontece nos animais. Portanto, para ele o ser humano é este corpo e alma, mas
dominado pelo pecado.

Na óptica de Calmeiro Matias, Tertuliano não sabia que o “bebé humano, abandonado
à natureza, não se humaniza” (O HOMEM NOS PLANOS DE DEUS. 1987:75).

Santo Agostinho: Este destaca dois princípios autónomos: alma e corpo. A alma mora
no corpo e orienta-o. Assim, o ser humano é um corpo animado por uma alma
espiritual. O corpo é concebido como um perigo para a alma. Para se evitar este
perigo, que pode ser causa de condenação eterna para a alma, o corpo deve ser
castigado com jejuns e penitência (cf. opus cit. p.78). Estamos outra vez diante de uma
visão negativa com relação ao corpo humano.

1.3.2.O ser humano na visão da Igreja da Idade Média

São Tomás: Este recusa a visão negativa de Agostinho com relação ao corpo. Por isso
traça seu posicionamento nestes termos:
 O ser humano resulta de dois princípios diferentes: Os pais e Deus. A alma, diz
Tomás, é a forma do corpo. Assim o ser humano é uma unidade substancial,
que está fundamentada nos aspectos, físico e espiritual. Ela, a alma, é essência
do ser humano.
 O corpo e a alma jamais se separaram, mas esta possui funções independentes
do corpo, embora ela não seja uma realidade espiritual separada do corpo,
utilizando-o como princípio autónomo. A alma é o princípio informador do
corpo, mas a acção deste depende sempre da alma (cf. opus cit, p.78-79). Está
aqui uma visão que subordina o corpo à alma.

1.3.3.O ser humano na visão da Igreja Contemporânea

Debruçando-se sobre a centralidade do ser humano, no Universo, Cruz Malpique


mostra o dever da “literatura, arte, ciência, filosofia, religião, tudo está condicionado
ao interesse humano” (O HOMEM, CENTRO DO MUNDO. 1936:13). Como que a
justificar sua posição, este autor diz mais: “… O ser humano é o universal padrão por
onde tudo é auferido: o mal e o bem, Deus e o diabo, o amor e o ódio, o invisível e o

28
visível, o céu e a terra” (Opus cit). Este autor coloca a pessoa humana no centro de
tudo quanto existe.

Também a visão da Igreja contemporânea, mediante o Concílio Vaticano II, vai


também na mesma linha, mas começando por reconhecer que essa pessoa humana é,
antes de tudo, criatura de Deus, criada sumamente por amor.

O ser humano, criatura de Deus: O Concílio Vaticano II sustenta que, a pessoa humana
por ser uno, composto de corpo e alma, sintetiza, em si, pela sua natureza corporal, os
elementos do mundo material. Por essa razão, ela deve considerar o seu corpo como
bom e digno de respeito, porque criado à imagem e semelhança de Deus (GS 12; 29).
Mas pela sua interioridade, a mesma pessoa humana transcende o universo das coisas.
Esta transcendência constitui o conhecimento profundo que ela atinge quando reentra
no seu interior, onde Deus, que sonda os corações (1Reis 16,7; Jer 17, 10) o espera, e
onde ela sob o olhar do mesmo Deus, decide da própria sorte (cf. GS 14). Portanto, a
pessoa humana é o senhor e centro da criação. Por isso, o Concílio Vaticano II
sentenceia: “Tudo quanto existe sobre a terra deve ser ordenado em função do ser
humano, como seu centro e termo” (GS 12).

Constituição interna: Este ser humano está dotado de igualdade essencial, da


dignidade (GS 29), de consciência, razão, liberdade, responsabilidade no agir (DH 1); de
sexualidade para propagar a vida (GS 51), que há-de desenvolver-se na família. E, por
fim, ele está dotado de natureza espiritual (GS 23), idêntica no homem e na mulher
(GS 29).

Embora dotado destas qualidades, este ser humano erra. Porém, apesar de errar, ele
conserva sua dignidade pessoal (GS 28). Na visão da Igreja, Deus é o fundamento e
protecção da dignidade humana. O ser humano busca incessantemente a Deus,
porque tem uma inquietação religiosa (GS 41), resultante dos problemas que espera
resolvê-los. Ele pode conhecer a Deus tanto pela fé como pela razão (DV 6). Apesar
destes problemas, que podem ser traduzidos em temores, o ser humano possui
esperanças.

29
Temores e esperanças: Para a Igreja contemporânea, hoje, o ser humano vive, num
mundo de profundas e rápidas transformações provocadas pela inteligência e
actividade criadora do ser humano. Podemos chamar esta situação de verdadeira
transformação social, cultural, mas com reflexos também na vida religiosa. Estas
transformações trazem igualmente efeitos negativos ao próprio ser humano, como,
por exemplo, a continuação ainda de, actualmente, milhares de pessoas humanas
atormentada pela fome, miséria, analfabetismo, agudos conflitos políticos, sociais,
económicos, raciais, ideológicos, religiosos, étnicos, com o perigo duma guerra de
armas nucleares, que tudo destrua. Mas apesar destas situações que ameaçam a vida
humana e a das outras espécies, há ainda sinais de esperanças, a partir dos quais
podemos afirmar que o mundo não vai descarrilar.

Esperanças: O ser humano caminha esperançado, devido aos aspectos abaixo:

 Poderio económico e interdependência: O aumento de abundância de riqueza,


de possibilidades, poderio económico, experiência de unidade e
interdependência - basta pensar em vários organismos nacionais e
internacionais, como a ONU, União Europeia, União Africana, SADC-
incremento de intercâmbio de ideias, empenho na procura de uma ordem
temporal mais perfeita, embora sem um progresso espiritual proporcionado.
 Domínio sobre a natureza: Cresce continuamente a convicção de que o género
humano deve aumentar cada vez mais o seu domínio sobre as coisas criadas,
mas de forma responsável, e lhe compete criar uma ordem política, social,
económica, que sirva cada vez melhor e ajude pessoas a afirmarem e
desenvolverem a própria dignidade (GS 9).
 Direitos Humanos: O ser humano estima a liberdade (DH 15; GS 17), os direitos
e deveres (GS 26). Ele é autor responsável da cultura (GS 55), que se realiza e se
eleva pelo trabalho e cultura (GS 57). Ele é o centro da vida económica (GS 63),
com direito ao trabalho (GS 67), à associação no trabalho (GS 68), à
propriedade (GS 69), de participar na vida política, com direito ao matrimónio e
à procriação (GS 26).

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 Obrigações e direitos: Mas este ser humano tem também obrigações e direito
de procurar a verdade, sobretudo em matéria religiosa. Ele deve buscar e
abraçar a verdade, de colaborar para o bem comum, de trabalhar, de
desenvolver a sua cultura, de votar com liberdade, de respeitar os direitos dos
demais (DH 7).

Em suma, para a Igreja contemporânea, o ser humano está agitado entre a esperança
e a angústia, esta manifestada pelo sentimento de opressão e inquietação (GS 4).
Apesar destas situações, a pessoa humana continua valendo não tanto pelos bens que
tem, mas por aquilo que é. Portanto, não são tanto os bens do mundo que contam,
mas o bem da pessoa, o bem que é a própria pessoa, porque ele é imagem e
semelhança de Deus.

2.O Mundo na visão da Igreja

Cada grande religião apresenta uma visão do mundo, elabora uma concepção total das
coisas e do ser humano; propõe valores e normas de conduta e oferece respostas a
questões existenciais. Todavia, uma visão religiosa do mundo é sempre transcendente
e aberta para algo maior.

É dentro desta visão religiosa que assenta a narrativa do Génesis, que é sobre a
criação do mundo. O centro desta narrativa está a afirmação de que o mundo é obra
de Deus, que é boa e com sentido. A visão religiosa do mundo decorre da revelação e
da fé. A fé não se propõe pesquisar o divino, mas busca seu significado existencial e
seu papel para a nossa vida. Nada sabemos sobre o processo da criação, porque não
há descrições objectivas nem explicações de fenómenos naturais. As imagens da
narrativa, contudo, revelam uma visão do mundo como uma ordem racional e uma
atitude de responsabilidade por ela diante do mundo e de Deus.

Portanto, quando a Igreja fala do mundo refere-se à família humana e a todas as


realidades no meio das quais o ser humano vive. Refere-se ainda ao mundo onde
ocorre a história da humanidade, assinalado pela sua criatividade (cf. GS 2). Este
mundo foi criado por Deus, e para o ser humano. Este deve aperfeiçoa-lo, mediante o

31
saber de diferentes vertentes como, por exemplo, as ciências, a história, a literatura, a
arte e teologia (cf. GS 62).

Características (negativas) do mundo hodierno: Actualmente o mundo é caracterizado


pelo dinamismo constante, do qual derivam situações que afligem o ser humano, tais
como, a fome, a miséria, o analfabetismo, conflitos políticos, sociais, raciais, religiosos,
étnicos e ideológicos. É ainda caracterizado pelos desequilíbrios entre a procura de
uma ordem temporal mais perfeita e a falta de progresso espiritual proporcionado,
pela incapacidade de se fazer um discernimento dos valores verdadeiramente
permanentes e de os harmonizar com os recentemente descobertos (cf. GS 4).

3.Deus na visão de Igreja


Para a Igreja Deus é o princípio e fim de todas as coisas. Este Deus pode ser conhecido
através da luz da razão natural, a partir das criaturas (cf. DV 1). O termo principio
significa, aqui, que Deus cria a partir do nada, em Latim ex nihilo isto é, sem matéria
pré-existente. Estamos diante de um Deus Criador.

a)Deus, o Criador (Gn 1-5)

Dizer que Deus é criador, significa que Ele é a origem de todas as coisas. Implica, além
disso, a ideia de senhorio, mas no centro do projecto criador de Deus está o ser
humano. É pensando no ser humano que Deus cria as coisas.
Este Deus fez tudo em seis dias, descansando no sétimo dia (Gn 2,2-3). Este Deus
Criador, criou o ser humano à sua imagem e semelhança. Ele é imagem e semelhança
de Deus, por duas razões:
 Essência divina (Gn 1,27): Porque ele é um ser capaz de se relacionar
amorosamente com os outros seres humanos em dinâmica de aliança. Isso é
possível graças à essência divina.
 Aliança matrimonial (Gn 2,24): Porque ele é um ser capaz de se relacionar
amorosamente com os outros seres humanos em dinâmica de aliança
matrimonial.

b)Deus Libertador (Ex 3ss)


Este Deus liberta seu povo da escravidão material e de pecado, como fez com Israel,
seu povo. Trata-se da dimensão social, económica, política e espiritual da libertação.

C) Deus da Promessa, da bênção (Gn 12ss)

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Este Deus promete a Abraão uma protecção, bênção e uma terra. Deus vai cumprir sua
promessa, mas a sua realização exigirá um trabalho árduo por parte de Israel, seu
povo.

d)Emanuel, Deus connosco (Is 7,149)


Deus não só promete a terra, como também promete e cumpre sua promessa,
enviando seu Filho Unigénito, Jesus Cristo, que se encarnou – tornou-se homem - e
habitou entre nós. Jesus nasce de uma mulher concreta, Maria, sem a intervenção da
força humana, mas somente pela força do Espírito Santo. Por isso, Jesus nasceu
misteriosamente (cf. Lc 1, 26-56; 2,1-20). Na sua vida pública, que dura mais ou menos
três anos, anuncia a Palavra de Deus, a Boa Nova da salvação. Por isso, Ele é Salvador.

e)Deus Salvador (cf Lc 2, 29-32; 1Tm1,1; 2Tm 1,10)


É por amor das pessoas humanas que Deus envia seu Filho Unigénito, Jesus Cristo,
para salvar aquelas pessoas que acolherem e puserem em prática seu Evangelho, sua
Boa Nova (cf. Jo 3,13-17). Contudo, para salvar essas pessoas, Ele deve de passar pela
Paixão, morte de cruz e no terceiro dia ser ressuscitado por Deus (cf. Jo 18-20). Trata-
se do triduo pascal.

f)Jesus Cristo, Verdadeiro Deus e Verdadeiro homem (Jo.10,30-36)


Conforme a Bíblia, Jesus é o Filho primogénito e unigénito de Deus. A primeira
fundamentação concernente a esta verdade aparece logo que Ele é baptizado por João
Baptista: “Uma vez baptizado, Jesus saiu da água e eis que rasgaram os céus e viu o
Espírito de Deus descer como uma pomba e vir sobre Ele. E uma voz vinda do Céu
dizia: Este é meu Filho muito amado, no qual pus o meu agrado ” (Mt. 3,16-17). A
segunda fundamentação relativa à mesma verdade, se encontra na discussão entre
Jesus e os judeus. Nesta discussão, os judeus acusam-no de blasfemar, pelo facto de
Ele ter dito: “Eu e o Pai somos Um” (Jo 10, 30-36).
Com base nestas passagens e noutras semelhantes, fica bem explicado que Jesus
Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro homem.

g)Espírito Santo, terceira pessoa da Santíssima Trindade


Os cristãos são baptizados em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo (Mt 28, 19).
O mistério da Santíssima Trindade é o mistério central da fé e da vida cristã. É o
mistério do próprio Deus. É fonte de todos os outros mistérios da fé, e a luz que os
ilumina. É o ensinamento mais fundamental e essencial na hierarquia das verdades da
fé.

3.1.A revelação de Deus como Trindade

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Conforme Nicola Abbagnano, a “revelação é a manifestação da verdade ou da
realidade suprema aos seres humanos”. Este autor distingue duas formas de
revelação: a histórica e natural.
Assim, para o autor em citação, é “histórica a revelação que toda a religião positiva
adopta como fundamento. Ela consiste na iluminação com que foram agraciados
alguns membros da comunidade, cuja tarefa teria sido encaminhar a comunidade para
a salvação” (DICIONÁRIO DE FILOSOFIA, 2007:1013).

a)O Pai revelado pelo Filho

Em seu número 240s, o Catecismo da Igreja Católica afirma que Jesus revelou que
Deus é Pai num sentido inédito: não é apenas enquanto criador, mas é Pai
eternamente em relação ao seu Filho único, o qual, reciprocamente, só é Filho em
relação ao Pai: «Ninguém conhece o Filho senão o Pai, nem ninguém conhece o Pai
senão o Filho, e aquele a quem o Filho o queira revelar» (Mt 11,27).

b)O Pai e o Filho revelados pelo Espírito Santo

O Catecismo, ainda em citação, diz que antes da sua Páscoa, Jesus anuncia o envio de
um «outro Paráclito» «Defensor», o Espírito Santo. Agindo desde a criação (Gn 1,2),
mais tarde tendo falado pelos profetas (Is 11,2), o Espírito Santo estará junto dos
discípulos e neles (Jo 14,17), a fim de os ensinar e os guiar para a verdade total (Jo 16,
13). Sustenta ainda o mesmo Catecismo que a origem eterna do Espírito revela-se na
sua missão temporal, pois Ele (Espírito Santo) é enviado aos Apóstolos e à Igreja, tanto
pelo Pai, em nome do Filho, como pelo Filho em nome próprio, após seu regresso ao
Pai (Jo, 14, 26; 15,26, 16,14).

Em conclusão, podemos dizer com o mesmo Catecismo que a verdade revelada da


Santíssima Trindade esteve, desde a origem, na raiz da fé viva da Igreja, sobretudo
mediante o Baptismo, isto é, a sua expressão está presente na regra da fé baptismal,
na catequese, na oração da Igreja e na saudação, presente na Bíblia Sagrada: “A graça
do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo estejam com
todos vós “ (2Cor 13,13; 1Cor 12, 4-6; Ef 4, 4-6).

Acabamos de falar do ser humano, do mundo e de Deus, segundo as quatro


perspectivas. Mas como surgiram o ser humano e o mundo? Criados ou evoluídos? O
capítulo da Cosmologia vai tentar dar respostas a estas questões.

CAPÍTULO II-CONCEPÇÕES COSMOGÓNICAS (COSMOLOGIA): CRIAÇÃO OU


EVOLUÇÃO?

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É bom esclarecer, desde já, que existem varias concepções cosmogónicas
(cosmologias), como há vários povos no mundo. Quer isto dizer que cada povo possui
sua visão relativa a origem do mundo e suas respectivas leis. Uns povos, como os
ocidentais, dizem ter ideias sobre a origem do mundo bem elaboradas, porque
fundadas na ciência, cujas leis dependem de prova e de racionalidade. Enquanto
outros povos, considerados primitivos, tem suas cosmologias ancoradas na magia, no
misticismo, com sua interpretação baseada somente na visão religiosa do mundo.
Apesar de os dois grupos – os cientistas e os considerados primitivos – usarem
métodos diferentes, alguns estudiosos admitem que ambos buscam o controlo do
mundo natural. Mas o que há-de ser Cosmologia?

1.Conceito

Há vários conceitos relativos a Cosmologia, mas neste nosso trabalho vamos nos
concentrar somente em dois deles, tomados como exemplo.

Primeiro: Wolff e a filosofia alemã do século XVIII entendiam a Cosmologia como


sendo a ˝ ciência do mundo e do universo em geral, que é um ente composto e
modificável ˝ (ABBAGNANO, Nicola, Dicionário de Filosofia:2007:251).

Segundo: Emanuel Kant, conforme o autor em citação, a Cosmologia seria definida


como ˝ só a parte da filosofia ou da ciência da natureza que tem por objecto a ideia do
mundo e que procura determinar as características gerais do universo na sua
totalidade ˝ (Opus cit, 2007:251).

Como se sabe, qualquer ciência deve necessariamente ter a fase inicial, a partir da qual
começa a se desenvolver. Do mesmo modo, a Cosmologia também teve fases,
conforme abaixo esboçamos.

2.Fases da Cosmologia

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Primeira: Esta se chama fase de transição do mito à especulação. É caracterizada pelo
abandono do mito e pela tentativa de encontrar uma explicação racional ou natural do
mundo. Esta fase é representada pela filosofia pré–socrática, tendo sido a primeira
corrente filosófica a rejeitar a concepção geocêntrica, acreditando que a Terra e todos
os outros corpos celestes se movem em torno de um fogo central chamado Hestia. Era
o aparecimento da primeira doutrina heliocêntrica, defendida mais tarde por Aristarco
de Samos (século III a.C.).

Segunda: Fase da astronomia clássica e da filosofia da natureza de Platão e Aristóteles.


Tem três características: a consolidação dos pensamentos geocêntrico do mundo;
finitista e qualitativa da natureza. Aristóteles pensava que o mundo era
necessariamente finito porque perfeito. Esta concepção se manteve na Idade Media. E
todo o pensamento contrário a esta prevalecente era susceptível a condenação por
alguns membros da Igreja Católica. Por isso, Galileu Galilei ao afirmar que a Terra
girava em torno do Sol, suas ideias foram declaradas mais perigosas à fé cristã.

Terceira: Esta começa no fim da Idade Media, como fruto de questionamento de


Guilherme de Ockam à concepção clássica, que acreditava existirem uma infinidade do
mundo e da existência de mais mundos. Esta fase termina com a vitória da explicação
mecanicista. E, por explicação mecanicista se entende, aqui, aquela que utiliza
exclusivamente o movimento dos corpos, percebida no sentido restrito do movimento
espacial.

Quarta: Por fim, esta é a fase de grandes mudanças, que começou na segunda década
do século XX. Estas mudanças resultam de dois factores de transformação:

 O uso dos novos instrumentos ópticos, como o uso de grandes telescópios;


 O uso de conceituais, como a teoria da relatividade de Einstein de que se inicia
a dispor nessa época. Até metade dos anos 1960, o modelo de universo
estacionário é quase totalmente abandonado depois da descoberta de radiação
de fundo, que fora prevista pelo modelo do BIG BANG.

3.O modelo do BIG BANG


36
Conforme Nicola Abbagnano, Alpher, Gamow e Herman tinham, em 1940, defendiam a
existência de uma radiação, resíduo da primeira explosão, correspondente a uma
temperatura de alguns graus absolutos (DICIONARIO DE FILOSOFIA, 2007:253).
Abbagnano apresenta, com base no modelo do Big Bang, vantagens em relação ao
estudo:

 Possibilita avaliar o momento em que ocorreu a primeira explosão (Big Bang) e


a idade do universo.
 Sustenta este autor que a maior parte dos cosmologistas concorda em estimar
ao redor de 15 bilhões de anos. Essa estimativa é, sustenta o autor em citação,
peculiar para a existência da vida, uma vez se calcula que o processo evolutivo
que deu origem à vida consciente não pode durar menos de 10 bilhões de anos.
 Esta primeira explosão, conforme ainda este autor, permite observar, mediante
laboratórios especializados, os chamados ̋ buracos negros”, que não emitem
nem reflecte luz de forma detectável em nenhuma região espectral.
 Permite ainda observar, mas de forma duvidosa, a presença da chamada massa
ausente, cuja constituição e desconhecida. A terminar sua exposição,
Abbagnano diz que nestes últimos tempos, os cosmologistas e astrofísicos
estão empenhados na identificação da sua natureza e localização.

Na exposição acima, falamos do processo evolutivo. Mas é preciso explicar que se


supõe que existe evolução, quando existe algo, que deve ser anterior à evolução.
Quando inicia a evolução, dentro deste processo criativo? E o que se entende por
criação?

II. Criação ou Evolução?

Entre estas duas realidades, há uma relação, razão pela qual no passado, os cientistas
e teólogos se guerrearam bastante, devido aos termos, criação e evolução. Por que
houve esta situação? Será que há uma incompatibilidade entre os dados da ciência e
os da Sagrada Escritura. Na verdade, uns eram pela criação, outros pela evolução.
Eram posições inconciliáveis. Mas quem tinha razão, neste aceso debate?

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Na tentativa de responder a estas questões, podemos recorrer a Urbano Zilles, (PIERRE
TEILHARD DE CHARDIN: Ciência e Fé, 2001:201-221), segundo o qual, Criação e
evolução se referem ao cosmo, que é uma realidade perceptível. Os dois conceitos
respondem a duas perguntas diferentes: a) O que é criação? b) E o que se entende por
evolução? Mas, tentando dar respostas às questões atrás colocadas, o mesmo Zilles
sublinha o seguinte:

 A criação nos fala da origem absoluta das coisas e dos viventes, relacionada
com seu destino último. A criação é um conceito mais vasto. A criação do
nada, EX NIHILO, sem matéria preexistente, é um conceito bíblico, de
natureza metafísica e religiosa. Portanto, não é matéria científica.
 A evolução evoca o período entre esses dois termos. Ela é, antes de tudo,
uma categoria científica e de natureza ontológico – cientifica (Opus cit.
p.202).

1.Criação.
Na visão de Abbagnano, ˝em todas as línguas, essa palavra tem sentido muito
genérico, indicando qualquer forma de causalidade produtiva do artífice, do artista ou
de Deus˝ (DICIONARIO DE FILOSOFIA, 2007:256). É justamente este ultimo sentido,
Deus como causa de tudo quanto existe, a que vamos discutir, mas tendo como base a
Bíblia.

1.1.Antigo Testamento
Para Calmeiro Matias a fé na criação é uma aquisição teológica tardia na história
bíblica. Os hebreus começaram por falar do Deus da Aliança, segundo o seu credo (Cf.
Dt.26, 5–9). A noção da Criação entra no pensamento bíblico, só depois do exílio. Ela
surge como oposição ao duplo princípio (oposição do bem ao mal, da luz às trevas) dos
persas. A Palavra e a Ruah de Yahwé constituem as duas forças que dão origem a tudo.
Não existe outro Deus senão Yahwé. Tudo o que existe é obra de suas mãos (Cf. Is. 40,
26; 44, 24–28; 48, 13–16). Mas o ser humano está no centro, é o ápice desta criação.
Tudo está orientado para o ser humano, com o qual Deus fez aliança. O ser humano é
o único interlocutor de Deus.

38
1.2.Novo Testamento
Para o Novo Testamento, Cristo Ressuscitado é o centro de toda a criação (Cf. Act.
4,24–30; 1Ped 4,19). Cristo é o princípio da nova Criação (2C0r. 5, 17). Como o ser
humano foi constituído cabaça da Criação, assim também Cristo foi constituído cabeça
da humanidade. Por esta razão, em Cristo a criação atinge o seu ponto mais alto (Cf.
2Cor. 5,17). Em Cristo Deus renovou todas as coisas: «O que estava sentado no trono
disse: Eu renovo todas as coisas» (Cf. Apoc. 21, 5a).

1.3. Finalidade da Criação

Calmeiro Matias, seguindo a perspectiva bíblica, apresenta duas finalidades da criação:


exprimir a glória de Deus e seu amor. Quer dizer, Deus cria por amor e não por
necessidade. Por isso todo o Cosmo está vocacionado para a relação amorosa (O
HOMEM NOS PLANOS DE DEUS: Antropologia Teológica, 1987:101–104).

Foi explicado acima de que o ser humano é o ápice da criação e é o único interlocutor
de Deus. Mas onde reside todo este privilégio, que coloca o ser humano acima de toda
a criação? Será que há nele algo de original, de específico em relação aos outros seres
vivos? O passo a seguir vai nos ajudar a responder a estas questões.

1.4. A originalidade do ser humano

O autor acima diz que o processo bio–evolutivo graças a vertente socio–cultural


possibilitou a concretização da humanidade. Esta situação nos mostra que ser pessoa
não é apenas ter um esqueleto revestido de músculos. Este revestimento não basta
para o efeito, porque o cão, elefante, hipopótamo, rato e o gato também o possuem,
mas não são pessoas. Portanto o ser humano é pessoa porque tem uma interioridade
com qualidade de reciprocidade relacional amorosa.

Ilustrando a verdade acima, Calmeiro Matias sublinha:

˝O modelo da informática serve de facto para entender de algum modo a


intercomunicação cerebral, mas não serve para explicar a complexidade dos

39
sentimentos arquivados e estruturados pelo sistema psíquico. O cérebro criado pela
informática não tem capacidade de contemplar, acolher, perdoar, comungar com os
demais e desabrochar em poesia… ( O HOMEM NOS PLANOS DE DEUS:

Antropologia Teológica, 1987:150–151).

Posto o problema - criação ou evolução? - desta forma, podemos dizer que já não há
razão para continuar a existir tal dilema. Contudo, persiste a pergunta ligada à relação
entre estes dois termos, a criação e evolução. E a pergunta pode ser esta: O que veio
depois de quê? Para responder a esta questão, é importante lembrarmos que, para
haver evolução, é necessário que exista algo já criado. O vazio, o nada, não pode
evoluir. Mas também é importante lembrarmos que, a necessidade da evolução é
inerente à própria criação, toda a criação deve necessariamente evoluir pois, segundo
Urbano Zilles, “na realidade nada prova que o ser humano tenha chegado ao termo da
evolução de si mesmo” (PIERRE TEILHARD DE CHARDIN: Ciência e Fé, 2001:203).

O fundo da mente humana nos diz que Deus introduziu, na criação, o processo
evolutivo, pois aquela e evolução parecem dois conceitos complementares. A evolução
dinamiza a criação. Elas resultam da vontade criadora de Deus. O Criador quis que
todos os seres por Ele criados evoluíssem, mas cada um à sua medida.

Se ao longo da história da humanidade, houve muita discussão sobre a criação e


evolução, tal discussão foi extensiva à relação entre a razão e a fé, entre a ciência e a
fé, filosofia e religião, política e religião. Mas neste nosso estudo, vamos nos ocupar da
relação entre a razão e a fé.

40
CAPÍTULO III: RELAÇÃO ENTRE FÉ E RAZÃO

Na actualidade, está crescendo cada vez mais o número de pessoas descrentes. Esta
incredulidade é um fenómeno de ordem geral, que está se agravando sempre mais,
nos nossos tempos, por causa de várias causas, cuja deficiente formação religiosa
desempenha um papel muito grande.

Por isso, essas pessoas descrentes podem, conscientemente, pensar que a razão, a
ciência, não tem nada a ver com a fé. Também se encontram, na mesma barca,
aquelas pessoas que dizem que a Igreja não deve falar das ciências empíricas nem da
política. Pelo contrário, essas pessoas não dizem que os cientistas e políticos não
devem igualmente falar nem usar aquilo que é da pertença da Igreja. Mas, a Igreja é
pela paz, reconciliação, harmonia, porque ela é Mãe, razão pela qual acolhe e conserva
todas as pessoas de boa vontade.

Partindo do que acima colocamos, o titulo relação entre a fé e a razão nos levar à
pergunta: «a Ciência se opõe ao sentimento religioso, ou seja a razão é contrária à fé?»
Ou ainda, o quê a fé tem a ver com a razão? As respostas à estas questões, vamos
tentando dar ao longo do debate desta questão – fé e razão – cuja origem é Deus.

Para uma compreensão exaustiva e aprofundada desta matéria, aconselhamos a


leitura da carta encíclica A fé e razão (fides et ratio), de João Paulo II.

1.Conceito

A fé é:

 Uma dimensão humana, que possibilita ao próprio ser humano chegar mais
longe que a razão no conhecimento da realidade.

41
 Esta dimensão que leva o ser humano ao conhecimento de realidades que a
razão, por si só, não podia descobrir.
 Uma atitude interior da pessoa que acredita.

Ligado ao que acima dissemos, o Catecismo da Igreja Católica (nº 153s) diz que a fé é:

 Um dom de Deus; uma virtude sobrenatural infundida por Ele. Entenda se,
aqui, por virtude a disposição de praticar o bem e evitar o mal.
 Um acto humano, que não é contrária à liberdade nem a inteligência humana.
Não é contrária à dignidade humana acreditar no que outras pessoas nos dizem
sobre si, mesmas, e de suas intenções e confiar nas suas promessas, como, por
exemplo, quando um homem e uma mulher se casam, para assim constituírem
uma comunhão de família (LACOSTE, Jean–Yves, Dicionário Critico de Teologia,
2004:718).

1.1.Conteúdo da fé

A fé é uma dimensão humana, porque o ser humano não pode relacionar – se com
seus semelhantes sem esta dimensão da fé. Sem a fé a vida de relações tornava – se
impossível. O conteúdo da fé é aquilo que nos é revelado e nos faz entrar na posse de
dados que não podíamos possuir pela razão, que tem todo o direito de interrogar o
conteúdo comunicado e aceite. A este respeito Calmeiro Matias diz: «O conteúdo da
fé, no que diz respeito ao diálogo com as Ciências, assenta sobretudo no que concerne
ao plano criador de Deus: a origem da vida, do mundo, do ser humano, e o sentido da
existência humana» (O HOMEM NOS PLANOS DE DEUS, 1987:110).

1.2.Função da fé

Afirmamos acima que a fé é a dimensão que dá possibilidade ao ser humano chegar


mais longe que a razão no campo do conhecimento da realidade. Partindo disto,
podemos dizer que a fé tem a função de escutar a razão e responder com novos
sentidos às suas conquistas. Neste sentido, a revelação de Deus serve para iluminar a
razão humana. Por consequência e conforme Calmeiro Matias ˝ os cristãos estão no
mundo com a missão de realizar um serviço fundamental: conferir um sentido de

42
plenitude aos acontecimentos e descobertas que o homem vai realizando” (O
HOMEM NOS PLANOS DE DEUS, 1987:112). Acrescido isto, os crentes têm a missão de
prestar atenção aos acontecimentos da história, confrontá–los com a revelação de
Deus e reformular constantemente esta fé, a fim de que o Evangelho seja sempre
actual e actuante.

1.3. Diálogo entre Fé e Ciência

A fé e a Ciência caminham em níveis distintos no seu relacionamento com o real. Mas


esta distinção não significa oposição.

 A fé move-se ao nível do sentido do real observado pelas ciências


 A fé sistematiza o seu discurso a partir da revelação
 O objectivo da fé é descrever o seu sentido e plenitude do real.

Enquanto as ciências:
 Analisam os fenómenos naturais e a interacção existente entre eles.
 Analisam e relacionam os fenómenos observados e procuram inseri–los num
sistema coerente.
 Procuram a realidade mediante a observação directa, da criação de hipóteses
e da experimentação que as confirma ou nega.

Embora a fé e as ciências caminhem em níveis diferentes, segundo dissemos acima, o


seu diálogo trouxe bons frutos, tanto à fé como as Ciências, conforme segue:

Ajuda das Ciências (razão) à fé/teologia:

 A Teologia conseguiu um novo discurso e dinâmica referente à acção criadora


de Deus. A título de exemplo podemos citar São Tomás de Aquino (1225-1274),
que usando a razão, criou as famosas cinco vias para demonstração da
existência de Deus, conforme vimos anteriormente. (Para aprofundar mais

43
estas vinco vias, aconselhamos a leitura de Julian Marías, HISTÓRIA DE
FILOSOFIA, São Paulo, 2004).
 As Ciências ajudam à fé a se reformular em linguagem nova, ultrapassando o
tecido cultural e linguística, com que se revestiu desde o passado.
 As conquistas cientificas proporcionaram a fé uma transformação profunda na
área da criação. É preciso entender bem isto. Não se trata de modificar o
conteúdo da fé na criação, mas de proceder uma correcção na linguagem e
nos conceitos tradicionais em que estes eram formulados. E reformular a fé
significa, na linha de Calmeiro Matias (O HOMEM NOS PLANOS DE DEUS:
Antropologia Teológica, 1987:112), anunciar com uma nova linguagem o
património permanente e dinâmico da revelação. Para isto, se deve caminhar
na fidelidade à fé. E a fidelidade à fé exige um esforço permanente de
reformulação, para que a Palavra de Deus continue oferecendo aos seres
humanos, um sentido que eles possam entender.

2.Razão

É frequente ouvirmos que esta pessoa tem razão. Também se costuma falar de que
esta pessoa usa a razão. Estas afirmações mostram que há diferentes formas de razão.
Mas, o que entendemos por razão?

Conforme Nicola Abbagnano (DICIONÁRIO DE FILOSOFIA 2007:969-970), há quatro


significados fundamentais da razão, segundo segue:

 Razão enquanto referencial de orientação do ser humano em todos os campos


em que seja possível.
 Razão de ser de uma coisa, que é sua essência necessária ou substancia, aquilo
que faz que a coisa seja ela mesma.
 Razão como argumento ou prova, significando que alguém expôs suas razões,
apresentou/tem argumentos ou provas suficientes, portanto, está com a
verdade.
 Por fim, razão como relação, no sentido matemático. Neste sentido, temos
razão directa ou razão inversa.

44
2.1.Conceito de razão

Não é fácil conceituar a razão, pois ela possui vários significados, conforme colocámos
acima. Mas, podemos tentar dar resposta à questão, o que é razão? recorrendo o
autor em referência, segundo o qual, a razão é:

 A força que liberta dos preconceitos, do mito, das opiniões enraizadas mas
falsas e das aparências, permitindo estabelecer um critério comum para
conduta do ser do humano em todos os campos.
 É a força que possibilita a libertação dos apetites que o ser humano tem
em comum com os animais, submetendo-se a controle e mantendo-os na
justa medida.

Está aqui, na visão de Cícero citado por Nicola Abbagnano (2007:970) a “única
diferença que nos distingue do bruto, por meio do qual podemos conjecturar,
argumentar, rebater, discutir, levar a termo e concluir, comum a todos”. Na mesma
linha vai Leibniz, citado por Nicola Abbagnano (2007:971), que diz que a “razão
pertence ao ser humano e somente ao ser humano”.

Na história da filosofia, a razão, no sentido filosófico, foi bastante discutida para ajudar
as pessoas a fazerem leitura das coisas e dos acontecimentos, de forma racional. Se
não vejamos:

Heraclito e Parménides criticaram opiniões ou crenças desordenadas e falazes,


certamente em nome da razão, conforme o que se segue:

 Heraclito: “É preciso seguir o que é universal; e só a razão é universal. No


entanto, a maioria vive como se cada um tivesse uma mente particular”.
 Parménides: “Afasta o pensamento dessa via de investigação e não permitas
que te levem para ela o costume de guiar-se por um olho que não vê, por um
ouvido que ressoa, e pela palavra: em vez disso, julga com razão”.

Aristóteles e Platão: Estes opõem a razão à sensibilidade, que é fonte das crenças
comuns e aos apetites que o ser humano tem em comum com os animais”.

45
Séneca: A razão é imutável e firme no seu juízo porque não é escrava, mas senhora,
dos sentidos. A razão é igual à razão, assim como o justo ao justo, portanto também a
virtude é igual à virtude porque a virtude outra coisa não é senão a recta razão”.

Santo Agostinho: “A razão é o movimento da mente que pode distinguir e


correlacionar tudo o que se pode aprender”. É a força criadora do mundo humano:
inventou a linguagem, a escrita, o cálculo, as artes, as ciências; é o que de imortal
existe no ser humano”.

René Descartes: “A capacidade de bem julgar e de distinguir o verdadeiro do falso


recebe o nome de bom senso. E disse mais: Razão é por igual em todos os seres
humanos; portanto, a disparidade de nossas opiniões não provêm do facto de que uns
são mais racionais que outras, mas apenas de conduzirmos nossos pensamentos por
caminhos diferentes, sem levar as mesmas coisas em consideração”. E sentenciou:
“Não basta ter o espírito são, o principal é aplicá-lo bem”.

A exposição acima procurou explicar o que cada conceito, fé e razão, é, na sua


particularidade. Agora vamos ver o debate relativo a esta relação entre a fé e a razão.

2.A relação entre a fé e a razão.

A relação entre a fé e a razão é muito antiga. Encontramo-la na Bíblia, na Patrística e


na Idade Média.

2.1. Relação fé e razão na Bíblia

São Pedro, na sua primeira epístola, chama a atenção os cristãos para “saberem dar as
razões da sua fé” (1Pd 3,15). Em jeito de explicar esta relação entre a fé e a razão, João
Paulo II recorre às funções da teologia fundamental e a fé:

 Compete à teologia fundamental, pelo seu próprio carácter de disciplina, dar


razão da fé.
 A teologia fundamental deverá procurar justificar e explicitar a relação entre a
fé e a reflexão filosófica” (FR, 67 ).
 Teologia fundamental deverá manifestar a compatibilidade intrínseca entre a fé
e a sua exigência essencial de se explicitar através de uma razão capaz de dar
com plena liberdade o seu consentimento.

46
 A fé saberá mostrar plenamente o caminho a uma razão em busca sincera da
verdade. Deste modo a fé, dom de Deus, apesar de não se basear na razão,
decerto não pode existir sem ela; ao mesmo tempo, surge a necessidade de
que a razão se fortifique na fé, para descobrir os horizontes aos quais, sozinha,
não poderia chegar.

Para fundamentar seu posicionamento, João Paulo II recorre ao Concílio Vaticano I,


que, para ele, reafirmou o ensinamento paulino (cf. Rom 1, 19-20), e chamou a
atenção devido à existência de verdades, que mediante a pessoa humana podem ser
conhecer de modo natural e, consequentemente, filosófico (Opus cit).

2.2. Relação Fé e razão na Patrística

Para Urbano Zilles, em seu livro FÉ E RAZÃO NA DOUTRINA SOCIAL CATÓLICA, Santo
Irineu de Lião (120-200) encontrou uma linha de pensamento que, sem identificar fé e
razão e sem ainda subordinar uma à outra, busca uma plausibilidade racional para a fé.

2.3. Idade Média

A relação entre a fé e a razão encontrou uma formulação clássica, em São Tomás de


Aquino, na Idade Média. Este santo, primeiro distinguiu as duas realidades e depois as
reconciliou. Para isso, ele recorreu aquilo que ele chama de ordem natural e
sobrenatural. Para ele, a ordem natural e a sobrenatural se complementam, se
harmonizam, porque a graça não destrói a natureza, mas a aperfeiçoa. Foi a partir
desta visão que Urbano Zilles sustenta que as duas realidades são distintas, mas não
opostas, nem contraditórias, porque o Deus da Criação é o mesmo da Revelação.

a)Ordem natural é produto da razão humana e tem suas leis e métodos próprios.

b)Ordem sobrenatural origina somente da revelação de Deus. E por revelação,


entenda-se, aqui, o acto pelo qual Deus apresenta seus desígnios de salvação, dá-se a
conhecer por eles.

Em suma, para São Tomás, há uma colaboração mútua, entre a fé e razão, pois a
revelação pode orientar a razão, e esta pode trazer benefícios à fé, colocando-se a seu
serviço para esclarecer, explicar, e defender os mistérios da revelação. Desta mútua
colaboração nasce uma ciência tipicamente cristã, a teologia.

47
2.4.Algumas formas de relação fé e razão

a) Neutralidade ou hostilidade, quando a razão procede com método puramente


racional, dispensando a fé, como é o método próprio das ciências.

b) Harmonia: Em sua Carta encíclica, Fides et Ratio, João Paulo II disse: “a fé requer
que o seu objecto seja compreendido com a ajuda da razão, por sua vez, a razão no
apogeu da sua indagação, admite como necessário aquilo a fé apresenta” (FR, 42).
Portanto, este autor sublinha a inexistência de qualquer causa para conflito fé e razão,
desde que estas duas dimensões do ser humano sejam seguidas, entendidas e usadas
com humildade e sabedoria.

2.4.1. Momentos da relação fé e razão

1º) Subordinação da razão à fé: De Santo Agostinho a Guilherme de Ockham


(1280/1290-1350) a história da filosofia cristã é a história de relações entre as duas
razões, o logos humano e o logos divino. A razão se subordina totalmente à fé, porque
o critério supremo da verdade é o dogma, a revelação divina. A razão, nesta relação, é
somente instrumento da afirmação da fé.

2º) Tentativa de acordo entre a fé e razão: Na história de relacionamento entre a fé e


a razão, houve tentativa de acordo entre as exigências da razão e as imposições do
dogma. A tentativa de conhecer Deus racionalmente resulta desse
acordo/compromisso. Neste contexto, a razão é somente utilizada como auxiliar da fé.
Servindo-se da razão, a teologia tenta demonstrar a existência e a natureza de Deus, a
criação do mundo a partir do nada, ex nihilo. Quer isto dizer, que Deus cria tudo sem
matéria pré-existente para o efeito.

3º) Ruptura entre a fé e razão: Trata-se de um momento dramático da história de


relação entre a fé e a razão.

A respeito desta ruptura, João Paulo II indicou os primeiros autores cristãos que, para
ele, destacaram a autonomia à razão: “Santo Alberto Magno e S. Tomás, embora
admitindo uma ligação orgânica entre a filosofia e a teologia, foram os primeiros a
reconhecer à filosofia e às ciências a autonomia de que precisavam para se debruçar

48
eficazmente sobre os respectivos campos de investigação”. Infelizmente, diz ainda o
autor em citação, “a partir da baixa Idade Média, essa distinção legítima entre os dois
conhecimentos transformou-se progressivamente em nefasta separação (…)
chegando-se, de facto, a uma filosofia separada e absolutamente autónoma dos
conteúdos da fé (FR, 45).

Continuando sua dissertação, João Paulo II ilustra esta situação, apontando o


Idealismo, no século passado, cujos representantes procuraram, de diversos modos,
transformar a fé e os seus conteúdos, inclusive o mistério da morte e ressurreição de
Jesus Cristo, em estruturas dialécticas racionalmente compreensíveis. Ele aponta ainda
as diversas formas de humanismo ateu, elaboradas filosoficamente, que indicavam a fé
como prejudicial e alienante para o desenvolvimento pleno do uso da razão. Desta
situação resultaram, diz ele ainda, sistemas que se apresentaram, num passado
recente, como novas religiões, dando base a projectos que desembocaram, no plano
político e social, em sistemas totalitários traumáticos para a humanidade (FR, 46). É o
caso do Marxismo-Leninismo, do Comunismo ateu.

Em sua primeira Carta encíclica Redemptor hominis (4 de Março de 1979), 15; 286, o
autor acima indicara algumas consequências desta separação entre a fé e a razão, ao
dizer:

“O homem de hoje parece estar sempre ameaçado por aquilo mesmo que produz, ou seja,
pelo resultado do trabalho das suas mãos e, ainda mais, pelo resultado do trabalho da
sua inteligência e das tendências da sua vontade. Os frutos desta multiforme actividade
do homem, com grande rapidez e de modo muitas vezes imprevisível, passam a ser não
tanto objecto de "alienação", no sentido de que são simplesmente tirados àqueles que
os produzem, como sobretudo, pelo menos parcialmente, num círculo consequente e
indirecto dos seus efeitos, tais frutos voltam-se contra o próprio homem. Eles são de
facto dirigidos, ou podem sê-lo, contra o homem. Nisto parece consistir o acto
principal do drama da existência humana contemporânea, na sua dimensão mais
ampla e universal. Assim, o homem vive mergulhado cada vez mais no medo. Teme
que os seus produtos, naturalmente não todos nem a maior parte, mas alguns e
precisamente aqueles que encerram uma especial porção da sua genialidade e da sua
iniciativa, possam ser voltados de maneira radical contra si mesmo”.

49
Contudo, e como que a concordarmos com aqueles dois autores, Santo Alberto Magno
e S. Tomás, esta separação proporcionou, por um lado, à razão humana a afirmação da
sua independência, diante do dogma e, por outro, mostrou a impossibilidade de
demonstrar racionalmente o conteúdo da revelação.

João Paulo II, diante desta ruptura entre a fé e a razão, lembra, apela e adverte as
pessoas nestes termos:

“A razão, privada do contributo da Revelação, percorreu sendas marginais com o


risco de perder de vista a sua meta final. A fé, privada da razão, pôs em maior
evidência o sentimento e a experiência, correndo o risco de deixar de ser uma
proposta universal. É ilusório pensar que, tendo pela frente uma razão débil, a fé
goze de maior incidência; pelo contrário, cai no grave perigo de ser reduzida a um
mito ou superstição. Da mesma maneira, uma razão que não tenha pela frente uma
fé adulta não é estimulada a fixar o olhar sobre a novidade e radicalidade do ser”
(FR, 48).

Podemos concluir com João Paulo II, segundo o qual não há motivo para concorrência
entre a fé e a razão, pois:

“…uma implica a outra, e cada qual tem o seu espaço próprio de realização. Aponta
nesta direcção o livro dos Provérbios, quando exclama: «A glória de Deus é encobrir as
coisas, e a glória dos reis é investigá-las» (25, 2). Deus e o homem estão colocados, em
seu respectivo mundo, numa relação única. Em Deus reside a origem de tudo, n'Ele se
encerra a plenitude do mistério, e isto constitui a sua glória; ao homem, pelo
contrário, compete o dever de investigar a verdade com a razão, e nisto está a sua
nobreza (FR, 17).

Além disso:

“…a razão e a fé constituem como que as duas asas pelas quais o espírito humano se
eleva para a contemplação da verdade. Foi Deus quem colocou no coração do Homem
o desejo de conhecer a verdade e, em última análise, de O conhecer a Ele, para que,
conhecendo-O e amando-O, possa chegar também à verdade plena sobre si próprio”
(cf. Ex 33, 18; Sal 2726, 8-9; 6362, 2-3; Jo 14, 8; 1 Jo 3, 2).

50
Acabámos de discutir o capítulo da relação entre a fé e a razão. Mas é importante
reconhecer que esta situação aconteceu dentro do uso da liberdade, razão pela qual
os seres humanos, autores deste comportamento, não podem estar isentos de
responsabilidade, pelo sucedido. O capítulo que se segue vai tratar destas questões:
Liberdade e Responsabilidade do ser humano.

CAPÍTULO-IV: LIBERDADE E RESPONSABILIDADE DO SER HUMANO

Há uma certa ligação entre a liberdade e a responsabilidade, pois se uma pessoa


pratica uma acção com liberdade, ela, em geral, deve necessariamente responder por
seus actos. Mas para isso existem certas condições, conforme veremos mais adiante.
Por isso, pensamos dispor, desta maneira, os termos que compõem este capítulo e
reflectirmos sobre eles, primeiro, em separado, e depois em conjunto. Porém, é
importante sublinhar que, para facilitar a sua maior compreensão, iremos primeiro
reflectir sobre a liberdade a partir de seu conceito, conforme a visão de alguns autores
e perspectivas. Estamos da liberdade, na Sagrada Escritura, na Igreja Antiga, a sua

51
dimensão política e os seus limites. Em segundo lugar, faremos a discussão relativa à
responsabilidade, a começar pelo seu conceito para terminar nos tipos de
responsabilidade. E, por fim, tentaremos mostrar a ligação existente entre a liberdade
e responsabilidade.

I. Liberdade Humana

Falar da liberdade humana é difícil, porque este conceito abarca várias dimensões da
vida humana. A título de exemplo, podemos mencionar a liberdade moral, política,
económica, religiosa. Também podemos falar da liberdade como a autodeterminação,
entendida como ausência de condições e limites; liberdade como necessidade,
também ligada a autodeterminação. E, por fim, a liberdade como possibilidade ou
escolha conforme a qual a liberdade é limitada e condicionada. Por essa razão, vamos
conceituar este termo, liberdade, à luz das ciências humanas.

1.Conceito de liberdade

G.Durozoi e A. Roussel definem a liberdade como “estado do ser que apenas obedece
à sua vontade, independentemente de qualquer constrangimento exterior” (o ser
humano livre é o contrário de um escravo) (DICIONÁRIO DE FILOSOFIA: dicionários
temáticos, 2000:236). Por seu turno, João A. Konzen, à luz das ciências humanas, diz
ser “liberdade a possibilidade de realizar aquilo que se decide, sem constrangimento
por circunstâncias exteriores” (ÉTICA TEOLÓGICA FUNDAMENTAL, 2001:111). Esta
definição se expressão com o termo ter liberdade ou ser livre: Eu sou livre, se posso ou
não fazer o que eu quiser, isto é, se nada me impede de fazer o que decidi.

2. Liberdade na Bíblia
O tema liberdade foi também reflectido por autores sagrados da Bíblia, tanto no
Antigo Testamento como no Novo.

2.1. Liberdade no Antigo Testamento


A liberdade aparece dependente da acção libertadora de Deus, entendida como
libertação. É neste contexto que a saída do Egipto é um acto de nascimento simbólico
do povo de Israel. Falando disto, Thonissen Walfgang diz que o Êxodo o fornece a
52
referência central à ideia bíblia da liberdade: “Eu sou o Senhor, teu Deus, que te fez
sair da terra do Egipto, da casa da escravidão”(Ex 20, 2).

2.2. Novo Testamento


Também neste a liberdade aparece como acção libertadora de Deus. Compreendida
como bem salvífico universal, a liberdade paulina é baseada na gratuidade da salvação
de Deus (cf. Rm 8,2).

2.3.Liberdade na Igreja Antiga

Entre os pensadores da Igreja Antiga, que reflectiram sobre a liberdade, podemos citar
Irineu e Agostinho.

Santo Irineu: Para este, só Deus é absolutamente livre. Ele, por si mesmo, e livremente
e por sua própria iniciativa, fez e ordenou todas as coisas.

Santo Agostinho: Só é livre quem está no poder da graça de Deus.

3.Dimensão política da liberdade

Para a realidade social, económica e política de África, em geral, e a de Moçambique,


em particular, pode ser insignificante tratar da liberdade humana, somente na
dimensão teórica. Tratada apenas neste âmbito, a liberdade pode estar vazia de
conteúdo real, e sem significado. Por isso, James H. Cone defende que a libertação não
seja separada da luta histórica pela liberdade neste mundo. A libertação é uma
realidade histórica, nascida na luta pela liberdade. Este autor diz ainda que, embora o
significado da libertação inclua a determinação histórica da liberdade neste mundo, ela
não está limitada àquilo que é possível na história. Portanto, está incluso na libertação
o ainda não (O DEUS DOS OPRIMIDOS, 1985:168-173).

A dimensão política da liberdade refere-se à liberdade exterior, ligada à liberdade


individual e colectiva, em ligação à autoridade política e em relação às estruturas da

53
sociedade: a legislação, o sistema económico, o regime político, a estratificação social,
o sistema de comunicação.

4.Limites da liberdade

Falar de limites da liberdade humana, significa trazer à luz as suas fronteiras e seus
condicionalismos. Quer dizer, a liberdade não é ilimitada nem incondicional, porque as
liberdades de cada pessoa humana situam-se no universo de liberdades de outras
pessoas humanas, com as quais convive no contexto social. Neste sentido, onde
terminam as liberdades de uma pessoa humana, começam as de outra.

Neste sentido, ser livre ou ter respeitadas as liberdades é um direito fundamental da


pessoa, porque corresponde à natureza do ser humano. Mas, a liberdade individual
termina onde começa o direito dos outros. Por esta razão, a liberdade deve situar-se
na convivência humana, em todos os níveis de relações interpessoais. E essa liberdade
é protegida por leis positivas e normas morais de consciência, que é a lei natural
inscrita no coração do ser humano, pela qual será julgado (cf. GS 16).

II.RESPONSABILIDADE HUMANA

Na visão de Ciriaco I. Moreno, “a palavra responsabilidade deriva do latim responsum,


que por sua vez origina de respondere, que significa responder, corresponder, com a
própria actuação ao que foi dito” (EDUCAR EM VALORES, 2002:244). Estamos perante
a apresentação da raiz da palavra responsabilidade, sem nenhuma aplicação a um
campo específico.

Por sua vez, Nicola Abbagnano, interessado na sua aplicação, no campo político, diz
que o termo responsabilidade surgiu, pela primeira vez, no século XVIII, concretamente
em 1787, em inglês e em francês, com significado político, em expressões como
“governo responsável” ou “responsabilidade do governo” indicativas do carácter do
governo constitucional que age sob o controle dos cidadãos e em função desse
controle (DICIONÁRIO DE FILOSOFIA, 2007:1009). O mesmo autor diz ainda que, “em

54
Filosofia, o termo foi usado nas controvérsias sobre a liberdade, e na visão deste autor
ora em citação, a noção de responsabilidade baseia-se na escolha e a noção da escolha
é essencial ao conceito de liberdade limitada” (idem). Este é sinal de que há uma certa
ligação entre a liberdade e responsabilidade, como tentaremos mostrar mais adiante,
mas a partir do seu conceito.

1.Conceito de responsabilidade

Para uma boa compreensão da temática responsabilidade, é necessário que apelemos,


primeiro, à distinção clássica de actos do ser humano e actos humanos como abaixo
apresentamos.

a)Actos do ser humano não são responsáveis, porque são inconscientes, espontâneos,
da natureza ou actos praticados sob coação, portanto, sem liberdade pessoal. A título
de exemplo, podemos citar o acto de coçar-se, de bocejar, dormir, etc.

b)Actos humanos ou morais ou ainda responsáveis são os que são praticados com
vontade decidida. Quer dizer, estes actos são praticados com consciência e liberdade.
Daqui resulta de que os actos humanos ou morais/responsáveis são aqueles praticados
com consciência ou consentimento/advertência e decisão livre. A consciência,
consentimento ou advertência e decisão livre são dois elementos constitutivos da
responsabilidade. João A. Konzen ilustra esta definição, com um exemplo prático,
dizendo:

“Suponhamos que ocorreu um assalto a um banco, e um inquérito investiga


responsabilidade. O guarda do banco, ao ser inquerido, responde por que deixou os
assaltantes entrarem: “Eu não sabia que eram assaltantes” e assim se exime da
responsabilidade. O caixa, por sua vez, ao lhe perguntarem por que abriu os cofres aos
assaltantes, responde: “Eles me obrigaram” e também fica isento de responsabilidade,
embora consciente do que estava fazendo. A um faltou o conhecimento e ao outro,
liberdade (ÉTICA TEOLÓGICA FUNDAMENTAL, 2001:107-108).

Posto isto, e conforme o Dicionário Universal de Língua Portuguesa, a


“responsabilidade é uma obrigação de responder por certos actos próprios ou alheios

55
ou por alguma coisa que lhe foi confiada” (1995:1240). Pode-se tratar de actos
praticados ou negligenciados, omissos. Neste sentido e segundo João A. Konzen “acto
ou comportamento responsável é aquele que pode ser imputado (atribuído) a uma
pessoa, e esta responde por ele e tem o dever de assumi-lo” (ÉTICA TEOLÓGICA
FUNDAMENTAL, 2001:107-108).

Como o ser humano não só possui a dimensão física, mas também é caracterizado pela
dimensão moral, a prática desses actos mostram-nos que existem dois tipos de
responsabilidade.

2.Tipos de Responsabilidade

Responsabilidade ética ou moral é a que caracteriza o uso da liberdade diante das


normas éticas discernidas pela consciência. Neste contexto, estamos diante da
responsabilidade pessoal e uma pessoa é responsável, na visão de Ciriaco Izquierdo
Moreno, quando responde com actos a certas obrigações assumidos (EDUCAR EM
VALORES, 2002:244). O mesmo autor sublinha algo muito importante, quando cita
Platão, segundo o qual “cada pessoa é a causa da sua própria escolha”. Indo mais
além, ainda o mesmo autor, cita Cervantes, que “pela boca de dom Quixote, afirma
que cada pessoa é filha de suas obras”.

Responsabilidade jurídica ou legal: Para Ciriaco Izquierdo Moreno, as leis positivas não
representam para a consciência, um dever moral, por serem prescritas pela autoridade
legislativa de uma sociedade. Mas, por quê assim acontece?

Segundo este mesmo autor, as autoridades legislativas humanas, embora


institucionalmente legítimas, nem sempre representam adequadamente todos os
segmentos da sociedade, pois elas estão sujeitas a formular leis para interesses
particulares de grupos limitados da sociedade.

Esta realidade resulta do facto de que os órgãos legislativos da sociedade humana,


geralmente, não fazem o discernimento objectivo e imparcial, que é aspecto
necessário para formular leis mais sábias e adequadas ao bem comum. Contudo, essas
leis positivas, baseadas na autoridade legislativa, implicam que o cidadão da respectiva

56
sociedade, responda diante de seus órgãos governamentais pela forma como cumpre
ou não livremente as leis, assumindo as consequências do seu comportamento.

III. Liberdade e Responsabilidade.

Para Ciriaco I. Moreno, “a noção - entendida como ideia que temos de uma coisa – da
responsabilidade está ligada à escolha e à liberdade. Liberdade e responsabilidade
formam um binómio inseparável. Responder aos próprios actos: aí enlaçam vontade e
liberdade” (EDUCAR EM VALORES, 2002:244). Liberdade e responsabilidade são um
binómio inseparável, porque uma implica a outra.

Estas duas dimensões, liberdade e responsabilidade, são da pertença do ser humano e


são, por ele e nele, manifestadas. Todavia, mesmo morto, se existirem motivos para se
falar dele como um ser livre e responsável, os outros que, por enquanto, ficarem neste
mundo, não hesitarão em atribui-lhe tais qualidades. É justamente este ser humano
livre e responsável, que deve, se necessário, consultar, citar e fundamentar suas
reflexões em alguns documentos. Na verdade, como qualquer Cadeira, a cadeira de
Mundividência Cristã tem muitas fontes. Umas são principais e outras secundárias. O
capítulo a seguir vai tratar fundamentalmente da forma como se deve proceder a
citação dessas fontes principais.

57
CAPÍTULO V: CONSULTA E CITAÇÃO DAS FONTES PRINCIPAIS DE MUNDIVIDÊNCIA
CRISTÃ

Neste momento, propomos como fontes principais desta Cadeira a Bíblia,


Documentos conciliares do Vaticano II (Dei Verbum, Lumen Gentium, Gaudium et
Spes), Catecismo da Igreja Católica de 1992, e o Corão. Muitos documentos da Igreja
estão, em geral, denominados em latim. Por isso, são também citados em latim. Assim,
Dei Verbum significa Revelação Divina; Lumen Gentium, a santa Igreja, e Gaudium et
Spes, Igreja no mundo actual, respectivamente.

1.Consulta e citação

Bíblia: Este livro sagrado dos cristãos tem dois Testamentos, Antigo e Novo. Para
efeitos de consulta, procura-se primeiro o nome do livro, depois, o capítulo e, por fim,
o versículo. A sua citação é feita assim: Ex.: Gn 2, 3 ou Lc 7,7. Quer dizer, primeiro, é
escrito o nome do livro, abreviado, de forma convencional, depois, vem o número do
capítulo e, por fim, o versículo ou versículos.

Concílio Vaticano II: Para consultar este documento conciliar, procura-se, em primeiro
lugar, o nome do documento, que em geral, vem em latim. Depois, vai-se ao número.
A sua citação é feita assim: Ex.: LG, 8; ou DV. Ou Concílio Vaticano II, Constituição
Dogmática Gaudium et Spes, 16, São Paulo, 2000.

Catecismo da Igreja Católica: Para efeitos de consulta, vai-se, primeiro, ao índice


analítico. Este contém temas e estes estão enumerados. Esta enumeração indica
lugares, em diferentes páginas, onde se encontra o mesmo tema. Um tema pode ser
encontrado em vários números. EX.: Catecismo da Igreja Católica, 123 ou (nr 345).
Corão: Para efeitos de consulta, deve-se procurar, primeiro, surat (capítulo) e, depois,
vai-se ao encontro do versículo. Quanto à citação do Corão, esta é feita desta forma:
primeiro escreve-se a palavra surat, em português, capítulo, este é separado do
versículo, por dois pontos. EX.: Surat 20:30.

58
Talvez seja fundamental lembrar aos interessados que este ser humano, que consulta
e cita alguns documentos, para fundamentar suas reflexões, é mortal. Por isso, no
capítulo seguinte, trataremos do ser humano e a morte.

59
CAPÍTULO VI: O SER HUMANO E A MORTE

A morte é uma experiencia humana inevitável e universal. Por esta razão, em todas as
culturas há um conjunto de cerimónias e actos que acompanham a morte e o morto e
que os vivos procurar seguir.

Talvez dentro deste tema, as perguntas pertinentes sejam estas: Por quê a vida nasce
com a morte? Como nos posicionar diante da morte? E como a morte é concebida em
África?

1.Conceito de Morte

O conceito da morte apela para várias ciências, como é o caso da Biologia e da


Antropologia Sócio- Cultural. Na linha desta ciência e conforme a Enciclopédia Mirador
(vol 14, 1983: 786-7888), podemos dizer que a morte é o desaparecimento físico e
social de uma pessoa humana, real e concreta.

2. A morte no pensamento africano

Citando V.Thomas e R.lineau, Amaral Bernardo define a morte como ruptura e


separação dos elementos constitutivos, seguida de uma destruição imediata ou
progressiva, total ou parcial, de certos elementos, enquanto os outros são promovidos
a um destino (In Centro de Formação de Nazaré, A Morte: Aspectos Pastorais:
2003:36). A morte é também concebida como mutação ou transformação radical do
modo de ser e de estar presente da pessoa.

O autor em citação sustenta ainda que a morte não se limita ao momento em que
param os sinais e funções biológicas, como a respiração e a circulação. Quer isto dizer
que a morte, para a pessoa humana, é um processo longo, que inicia antes da paragem
biológica e se prolonga após o enterro e do desaparecimento de sinais sensíveis. Neste
contexto, depois da morte física, vêm o desaparecimento do corpo engolido pela terra,
a cessação do relacionamento e comunicação directa, a nível dos sentidos, que
marcam o distanciamento irreversível entre o morto e os vivos. Todavia, a população
africana sabe que a morte não aparece ao acaso. Ela tem causas.

60
2.1. As causas da morte

A preocupação que rodeia ou move as pessoas, durante a doença e depois da morte,


consultando-se a “pessoa de olhar penetrante” (adivinho) revela quão é importante
conhecer-se as causas da morte. Para isso, Amaral Bernardo propõe duas causas:

a) Feiticeiro: Para este autor, esta personagem, considerada personificação do


mal, actuando na calada da noite, das trevas, fulminando a vítima e
permanecendo oculto, é capaz de manipular mortiferamente a interação vital e
perturbar o equilíbrio e a harmonia universal.
b) Ofensas, maldades pessoais, dívidas, violação das tradições etc. Trata-se de
actos praticados pela pessoa falecida. Ela torna-se, neste contexto, vítima de
suas práticas.

2.2. Classificação da morte

Para a população bantu, a morte pode ser classificada como boa e infeliz.

a) Morte boa e feliz: atribuem-se à morte estes adjectivos, boa e feliz,


quando ela se dá serenamente junto à família, na própria aldeia, rodeada de filhos,
filhas, familiares e amigos. Será honrada com ritos e cerimónias fúnebres, realizadas
fielmente conforme as tradições de seus antepassados.
b) Morte infeliz: considera-se também morte infeliz e desgraçada quando
alguém morre sem deixar descendência, porque ninguém ficará a lembrá-lo. Por
consequência a pessoa falecida será privada da imortalidade pessoal. Ligado a isto, C.
Boucher (in OS ANTEPASSADOS E SUA VENERAÇÃO: Actas da segunda semana
Teológica da Beira, 1997:82) diz que “os mortos que não tiveram descendência sejam
eles velhos, jovens ou crianças, geralmente não se tornam antepassados. São
considerados como espíritos impuros esquecidos e não têm quem os venere e,
frequentemente, suspeita-se que seja espíritos malignos que trazem desgraça”. Estão,
inclusas nesta lista, os que morrem fora da terra e da própria família, os que morrem
por enforcamento, suicídio, devorados por animais, fulminados por raios ou por
doenças consideradas especiais, como lepra. Neste tipo de morte, a morte entra em
estado de impureza sagrada.
61
3. A morte: experiência humana universal

Partindo da experiencia humana, notamos que a morte é condição de todos os seres


humanos. Constatamos que em todas as culturas, há todo um conjunto de cerimónias
e actos que acompanham a pessoa falecida e as pessoas vivas devem procurar seguir.
Quanto às cerimónias, Jesus Zubiria propôs os seguintes passos:

a) Lavagem ou embalsamento do corpo.


b) O cortejo fúnebre a caminho do cemitério.
c) Paralisação de quase todas as actividades importantes do lugar onde a morte
ocorreu.
d) Participação da maioria
e) Sepultura conforme a vontade manifestada pela pessoa falecida,
anteriormente.
f) O encontro entre parentes, para partilhar e revelar o testamento da pessoa
falecida, se houver.

4. A Relação morte-vida

Na nossa experiência, constatamos que existe a convicção da continuidade da vida,


depois da morte e da comunhão entre vivos e mortes, entendendo-se a morte como
uma etapa integrada no processo dinâmico da vida.

A morte é relacionada à vida: a vida neste lado, aquela que o falecido gerou e que
agora deixa atrás de si; e a vida na outra vertente para onde ele vai. Mas, apesar da
morte, a vida continua de geração após geração.

Em poucas palavras, tentamos colocar o pensamento e a experiencia africana sobre a


morte. E o que a Bíblia diz a respeito do mesmo problema ou da realidade, que se
chama morte? O número seguinte vai tentar dar resposta à esta questão.

62
5.A morte na visão bíblica

A Sagrada Escritura não este alheia à realidade da morte. Muitos autores e de várias
formas se debruçaram sobre ela. Tanto o Antigo como o Novo Testamento trataram
deste tema de morte, mas mostraram de forma visível que ela não tem a última
palavra na nossa vida. Portanto, de uma ou de outra maneira disseram existir a vida
além da morte.

5.1.A morte no Antigo Testamento

Os dados bíblicos sobre a morte podem ser considerados ambíguos, porque por um
lado, a morte é como término natural da vida. Por outro, a morte é sentida como uma
prova, um enigma, uma não-salvação.

a) A morte como término natural da morte

Para o israelita, a vida terrestre é um dom de Deus por excelência e viver idoso e
cumulado de dias (Gn 35,29) é o sinal da bênção de Deus. Abraão expirou: morreu
numa velhice, idoso e cumulado de dias (Gn 25, 8). Mas a morte atinge o corpo e a
alma. Assim, o ser humano tirado do pó retorna ao pó (Gn 2,7; 3,19; Sl 90,3; Jó 34,15).
Viver muitos anos é sinal da bênção especial de Deus.

b) A morte como prova e maldição

A morte subida é, no Antigo Testamento, um escândalo; é escândalo a “morte no meio


dos dias”. Os salmos testemunham essa ameaça da morte má, da qual a doença, a
miséria, a solidão, o desemprego já são as primícias. Neste sentido, o único recurso
que permite ao justo escapar da “morte má” é voltar-se para Deus, fonte da vida: “pois
não me abandonas ao Sheol, não deixas o teu fiel ver o fosso (Sl 16, 10).

5.2.A morte no Novo Testamento

Para Claude Geffré, a morte é o poder de pecado que faz, desse término, uma uma
interrupção absurda. O Novo Testamento vê em Cristo o vencedor definitivo da morte
e dos poderes que a provocaram.

63
Não há ressurreição sem a morte. O ser humano exterior e velho (Rm 6,6) tem de
morrer paulatinamente às forças de corrupção e pecado. Isto é condição para o ser
humano ir ressuscitando constantemente. É fundamental ao ser humano, diz São João,
renascer como ser humano novo, único que partilha da ressurreição de Cristo (cf. Jo 3,
3-8). Como fenómeno natural, a morte atinge somente o ser humano exterior, o
natural. O ser humano interior é assumido, plenificado em Deus.

6.A morte na Visão da Igreja

Orígenes e Cirilo de Alexandria: A morte foi também um tema, que mereceu uma
reflexão, na Igreja, desde os primórdios da sua existência. Nesta reflexão sobressaem
duas figuras: Orígenes (185-2509 e Cirilo de Alexandria (380-444). Para estes, a morte
é uma consequência de pecado.

Concílio de Trento (1562-1563): Esta reunião posicionou-se na mesma linha de


Orígenes e Cirilo de Alexandria.

Concílio Vaticano II: Para a Gaudium et Spes a fé cristã ensina que a morte corporal, à
qual o ser humano teria sido subtraído se não tivesse pecado, será um dia vencida.
Trata-se, aqui, da morte física.

Catecismo da Igreja Católica de 1992: Para este catecismo, embora o ser humano
possuísse uma natureza mortal, Deus o tinha destinado à imortalidade.

7.A morte na filosofia existencialista

A questão da morte mereceu igualmente um debate, por parte de alguns filósofos


existencialistas.

Sartre: Para este filósofo, o ser humano está na vida como um condenado á morte,
pois deseja sempre e de forma ardente, a vida.

Alberto Camus: Este afirma que na morte, todos os sonhos são destruídos. Apesar
desta destruição, o ser humano deve evitar o desespero que conduz ao suicídio,
porque esta é uma fuga à realidade. Todavia, A. Camus reconhece que, embora a

64
morte, a solidariedade com os pobres, os que sofrem e os oprimidos tem sentido por
si. É fundamental uma frente comum contra a miséria e a morte violenta.

Pensamos que o nosso debate sobre o ser humano e a morte seria incompleto, se não
nos tivéssemos debruçássemos sobre os espíritos e os antepassados porque, para a
população negro-africana e conforme Odilo Cougil, “…sabemos que nas nossas famílias
os Antepassados e as relações entre os vivos e eles ocupam um lugar de preeminência.
Não há família sem Antepassados, não há acontecimentos importantes ou menos sem
invocação dos Antepassados” (in OS ANTEPASSADOS E SUA VENERAÇÃO: Actas da
Segunda Semana Teológica da Beira, 1997:6). Todavia, venerar os antepassados,
significando elogiá-los, não é nenhum mal, pois a própria Bíblia apresenta o
reconhecimento pelos bons feitos, quando diz: “Elogiemos os homens ilustres, nossos
antepassados, em sua ordem de sucessão” (Eclo 44, 1). Mas quem são os
Antepassados? E o que são os espíritos? Como distinguir os espíritos dos
Antepassados? E, por fim, como diferenciar o espírito bom do mau?

8. Os Antepassados e os Espíritos

Por antepassado se entende, aqui, segundo Ezequiel Gwembe, “alguém que durante a
sua existência entre vivos favoreceu a vida. Não só alguém que conservou bem a vida
que recebeu, mas também a transmitiu de modo abundante” (in OS ANTEPASSADOS E
SUA VENERAÇÃO: Actas da Segunda Semana Teológica da Beira, 1997:140).

1. Condições para se ser antepassado


 Conservar a vida recebida.
 Transmitir a vida em abundância.
 Ter sido fermento de união e comunhão.
 Ter morrido bem. Trata-se de morrer de morte natural, carregado de anos e
tendo deixado, atrás de si, uma descendência para o chorar.
 Ter transmitido, aos que ficam, o seu testamento, por exemplo, as dívidas
contraídas, os litígios ainda por resolver. Porque é preciso morrer bem, morrer
em paz.

65
Mas, é importante sublinhar que os antepassados são apenas venerados. Portanto,
esta prática de forma nenhuma implica que os antepassados são adorados. Só Deus é
adorado e apenas a Ele. E venerar significa manter um grande respeito, enquanto
adorar significa também prestar culto a Deus, amá-lO ao extremo.

2.Bons e maus espíritos

Os espíritos são entidades sobrenaturais. Estes dividem-se em bons espíritos e maus


espíritos.

Espíritos bons: Na visão de Ezequiel Gwembe, a “ fé africana diz que há bons espíritos,
que trazem boa sorte, na vida.

Espíritos maus: Diz ainda o autor em citação que os maus espíritos causam somente
desgraça.

Em conclusão, podemos dizer que os antepassados e os espíritos são duas entidades


espirituais que, sempre, interagem na vida do ser humano. Embora estas entidades
espirituais interajam na vida do ser humano, eles não têm a última palavra na sua vida,
porque foi criado à imagem de Deus. E foi criado para dominar a terra. E dominar a
terra (Gn 1,28) significa aperfeiçoar, humanizar a terra, mediante a materialização da
sua inteligência. E materialização da inteligência manifesta-se pelo trabalho físico ou
intelectual, pelo uso da tecnociência ou seja da tecnologia, que será o tema da
discussão do capítulo seguinte.

66
CAPÍTULO VII: TECNOLOGIA

No livro de Génesis o autor sagrado afirma que, após criar o ser humano, Deus
descansou (2, 1-2). Este descanso de Deus pode simbolizar sua confiança no ser
humano. Neste contexto, pensamos que agora é a vez deste para trabalhar,
administrar a terra. Agora Deus age, neste sentido, mediante sua obra, sobretudo, o
ser humano. Por essa razão, Deus dotou-o de uma inteligência superior aos demais
seres do nosso planeta. Nesta perspectiva, entre as realidades terrestres, adquire
importância sempre a tecnociência ou seja a tecnologia, que é o objecto deste estudo.
Mas o que se entende por tecnologia? Será que a Igreja tem palavra a dizer sobre esta
matéria?

As respostas a estas questões serão dadas ao longo de debate deste nosso tema. E
estes termos, tecnociência e tecnologia, serão usados neste estudo como sinónimos.

1.Conceito

Pode definir-se a tecnologia ou tecnociência como estudos especializados sobre os


procedimentos, instrumentos e objectos de qualquer técnica, arte ou ofício, técnica
moderna. É também tecnologia o conjunto de conhecimentos, processos de métodos
empregados nos diversos ramos de indústrias.

Partindo deste conceito denota-se que a tecnologia traz benefícios ou vantagens ao


ser humano, que são reconhecidas pela Igreja, conforme o Compendio da Doutrina
Social da Igreja, que diz: “A Igreja aprecia tais vantagens que advêm e que podem advir
ainda do estudo e das aplicações da biologia molecular, completada por outras
disciplinas como a genética e a sua aplicação tecnológica na agricultura e na indústria”
(número 458).

2.Vantagens da Tecnologia ao ser humano

Falar das vantagens da tecnologia, significa entrar no plano de Deus, que manifestou
sua vontade no começo dos tempos, de que o ser humano devia dominar a terra e
completar a obra da criação. Fazendo isto, ele irá, ao mesmo tempo, se aperfeiçoando

67
a si mesmo e, cumprindo igualmente a ordem de Cristo, de se consagrar ao serviço de
suas irmãs e seus irmãos.

A Gaudium et Spes, em seu número 35, apresenta algumas vantagens da tecnologia,


enquanto fruto da actividade humana.

a)Transformação da natureza: trata-se da transformação das coisas, da sociedade e


realização do próprio ser humano, de forma responsável e bem.

b) Desenvolvimento das faculdades humanas: Com a tecnologia, o ser humano


aprende muitas coisas, desenvolve as próprias faculdades; sai de si e eleva-se sobre si
mesmo. Ligado a isto, diz ainda a mesma Constituição Pastoral, Gaudium et Spes, que
este desenvolvimento, bem compreendido, vale mais do que os bens externos, que se
possam conseguir. O ser humano vale mais por aquilo que é e não por aquilo que tem.

Essa verdade é captada por pessoas sábias e humildes, porque notam que tudo o que
o ser humano faz para conseguir mais justiça, mais fraternidade, uma organização mais
humana das relações sociais, vale mais do que os progressos técnicos. E por quê
assim? Porque tais progressos podem proporcionar a base material para a promoção
humana, mas por si sós são incapazes de realizá-lo.

c) Intercomunicabilidade: A tecnologia permite que o ser humano, de um


determinado lugar, país ou continente, possam estar ao par dos acontecimentos de
outros lugares. A título de exemplo, podemos citar o caso dos satélites, que captam
imagens de vária ordem e natureza e as enviam para computadores, televisores e
celulares, que mediante esses instrumentos, as pessoas, com acesso a estas
tecnologias, passam a saber o que está sucedendo em outros lugares, mesmo muito
distantes.
A tecnologia não tem somente vantagens, mas ela pode constituir um desafio ao ser
humano, quando sua aplicação não segue critérios éticos, humanizantes, como
veremos a seguir.

68
3. Desafios da Tecnologia ao ser humano
Por desafio entenda-se, aqui, aqueles problemas surgidos da má utilização da
tecnologia, como a própria história nos tem proporcionado.

a. Exploração intensa de recursos naturais, acima dos limites de seu


restabelecimento natural. Esta actuação do ser humano provoca o empobrecimento
rápido e progressivo desses recursos. É preciso estarmos cientes, mas bem cientes que
a exploração de recursos naturais envolve questões relacionadas com o clima. Os
recursos energéticos nem todos são renováveis. Portanto, esta exploração levanta
problemas que ultrapassam as fronteiras de países e continentes, exigindo a atenção
internacional.
b. Poluição da água e do ar, por resíduos industriais, com a multiplicação dos
meios mecânicos de transporte e com a maior densidade demográfica. A título de
exemplo, podemos falar da MOZAL.
c. Destruição da paisagem natural e dos monumentos históricos e artísticos,
devido ao aumento das indústrias e da expansão indiscriminada dos centros urbanos.
Exemplificando, podemos mencionar a destruição de alguns cemitérios, para a
construção da fábrica das areias pesadas de Moma.
d. Sujeição do trabalho humano às exigências da automação, a qual tende a
transformar o ser humano em acessório da máquina. Basta lembrar quantas pessoas
está ficando sem emprego, porque o que antes era feito por alguns trabalhadores,
hoje é feito por computadores, robots. Por automação se entende, aqui, todo um
conjunto dos conhecimentos e técnicas de produção e aplicação dos sistemas de
produção automática.
e. Isolamento e incomunicabilidade: Incapacidade da tecnologia de atender às
necessidades estéticas, afectivas e morais do ser humano. Portanto, há uma
tendência de a tecnologia favorecer ou determinar o isolamento e incomunicabilidade
das pessoas. Por exemplo, em muitas famílias, quando chega alguém, visita, a
tendência é, depois de uma pequena conversa, ser ligado televisor ou DVD. Quase não
há conversa. Esta situação é triste, não é verdade?

69
f. Alimentos transgénicos: O uso de novas biotecnologias para fins concernentes
à agricultura, como é o caso dos transgénicos ou seja alimentos geneticamente
alterados, despertam por um lado, entusiasmo/esperança e, por outro, hostilidade.
g. Perigo de terrorismo: Estas tecnologias aplicadas ao campo militar, por
pessoas e governos sem espírito humanístico, podem provocar catástrofe
humanitária. Basta nos lembrarmos das bombas atómicas lançadas, em 1945, por
norte americanos, sobre as cidades de Hiroxima e Nagasaki, as quais dizimaram
milhares e milhares de pessoas e destruíram cidades inteiras, que à memória nunca
vistas.
h. Possível ilusão: O triunfo da técnica tornou o ser humano, o soberano da
natureza, capaz de dominá-la. Quer dizer, a habilidade e a facilidade com que este ser
humano cria técnicas sempre novas e mais perfeitas provocou, nas actuais gerações,
uma confiança sem limites, no processo da caminhada humana, mais possibilidades de
levá-lo a frente até a realização do paraíso terrestre, a ponto de algumas pessoas
pensarem na feliz solução de todos os problemas e mistérios do ser humano. Esta
ilusão levanta uma pertinente questão: Será verdade que as ciências e a técnica
podem resolver todos os problemas e enigmas do ser humano? Como pode, por
exemplo, a tecnologia resolver o problema de uma pessoa ofendida, para que ela
esqueça aquela ofensa?
i. O perigo de idolatria: Há um risco de a tecnologia ser considerada como um
deus. Esta situação resulta do facto de que a única preocupação é o bem-estar, o
divertimento, o prazer e não os valores autênticos do espírito. Por isso, a ciência e a
técnica são, muitas vezes, acusadas severamente de terem causado a perda de muitos
valores fundamentais do espírito humano. São ainda acusadas de terem desumanizado
o ser humano, privando-o de sua liberdade, sociabilidade, relações interpessoais e da
privacidade.

Estas situações suscitam, na mente humana, algumas reflexões, as quais aconselham


que o uso da tecnologia deve seguir uns critérios, como abaixo sugerimos.

70
4. Critérios no uso da tecnologia

Por critério se entende, aqui, e conforme Nicola Abbagnano, “uma regra para decidir o
que é verdadeiro ou falso, o que se deve fazer ou não” (DICIONÁRIO DE FILOSOFIA,
2007:259). É justamente esta regra a que os seres humanos, em geral, e o
tecnocientista, em particular, devem guiar-se na utilização de recursos naturais. Para
esta utilização, propomos os seguintes critérios.

a) Respeito pela dignidade humana: Este respeito inclui uma indispensável


atitude de respeito para com as demais criaturas viventes. É necessário ponderar
muito bem as alterações que se produzem no conjunto do sistema, através de
manipulações genéticas, em vista das futuras gerações.
b) Não ao uso arbitrário da terra: A pesquisa científica e sua aplicação não devem
usar a terra de forma arbitrária. O cientista não cria do nada o que usa em suas
experiências, pesquisas. Ele usa material já existente, que é dom de Deus através da
natureza. Por esta razão, o ser humano deve ser colaborador de Deus, na conservação
da obra da criação e seu destruidor. A missão do ser humano não tiranizar a natureza,
mas administrá-la responsavelmente perante Deus, os semelhantes, o mundo e si
mesmo, com todas as forças de sua inteligência. Por isso, recorre a tecnologia ou seja a
tecnociência e a desenvolve.

5.Tecnologia e a Transcendência

Por transcendência se entende, aqui, a qualidade de superar ou de ir além da


experiencia humana normal. E, na Teologia, a transcendência ensina que Deus não
está contido na criação, nem é idêntico a ela, mas que a ultrapassa num sentido
absoluto.

Neste contexto, a tecnologia não prova nem nega a transcendência do ser humano
nem a existência de Deus. Das tecnologias não devemos esperar soluções globais,
como a questão de sentido para a vida ou sentido da História. Portanto, é preciso não
exagerar a força do conhecimento tecnológico para a transformação do mundo. O
mundo da tecnologia abre pequenas clareiras no mundo da vida. Portanto, o mundo

71
da vida humana é irredutível ao mundo da ciência. Neste sentido, este deve ser
integrado no mundo da vida humana.

O conhecimento científico não é absoluto, apenas ela é uma actividade das mais
importantes do ser humano, que partilha seus limites. O conhecimento humano,
incluindo o tecnocientífico é limitado, porque quem faz a ciência e desenvolve técnicas
é o ser humano. Nele há dinamismos que impulsionam para além de si mesmo. Por
isso, ele procura amigos, insere-se numa comunidade para realizar-se.

O ser humano luta contra tudo o que o limita: a fome, ignorância, a doença, o
sofrimento e contra a morte. Quer viver e viver bem. Para isso, tende apropriar-se de
bens materiais e do saber. Protesta quase tudo em nome do que ainda não é, isto é,
utopia. De certo modo, o ser humano é um eterno protestante, porque até o que já é
bom, ele quer melhorar. Nesta perspectiva, Santo Agostinho tinha razão ao dizer:
“Meu coração está inquieto, até repousar em Deus”. O dinamismo impulsionador da
transcendência, à luz da fé, chama-se Deus.

A tecnologia resolve alguns problemas, mas o ser humano é, ainda hoje como ontem,
um mistério. O mistério envolve todo o nosso ser. O mistério só se aceita ou se rejeita.
Quando excluímos a dimensão transcendente da vida humana, mutilamos a pessoa
humana. Por isso, os regimes políticos ou sistemas filosóficos, que pretenderam
eliminar esta dimensão, viram gorados seus intentos. A tecnologia e a ciência são
importantes e dignificam o ser humano. Mas não são tudo. Elas são muito importantes
que sem elas, hoje até a caridade, muitas vezes, se tornam ineficientes. Se, por
exemplo, um hospital não tiver recursos humanos qualificados e equipamentos
adequados, até o exercício da medicina sofre.

Para terminar, é fundamental sublinhar que Deus é sentido da nossa vida. Em vão
sonhamos um mundo mais fraterno, se não admitimos um Pai comum, um Deus para
todos. E atenção, quando os seres humanos negam a Deus como seu Criador, irão
querer usurpar seu espaço, para explorarem seus semelhantes, dando lugar para todo
o tipo de totalitarismos e manipulações. E as conquistas da tecnologia serão colocadas
ao serviço da violência, do terrorismo, da injustiça e de todo o tipo de maldade. Onde

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os homens e mulheres aceitam a Deus, como sentido de sua vida, é possível viver-se
em fraternidade, em irmãos e irmãs. E é vivendo como irmãos e irmãs que se constrói
a paz e, por consequência, a felicidade. Mas viver feliz, não significa necessariamente
estar isento de sofrimento. Por isso, o capítulo que se segue vai tentar debater a
questão do sofrimento e da felicidade.

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CAPÍTULO VIII. O SOFRIMENTO E A FELICIDADE

O título, acima, nos leva às estas perguntas: O que o sofrimento tem a ver com a
felicidade, de tal modo, os dois conceitos sejam relacionados desta forma? Será que a
pessoa humana pode estar sofrendo e dizer que está feliz? Quer dizer, a pessoa pode
sofrer e sentir-se feliz, ao mesmo tempo? E o que é o sofrimento? Por fim, o que é a
felicidade e qual o caminho certo e verdadeiro para que uma pessoa possa adquirir
verdadeira felicidade? Por outras palavras, como conseguir a felicidade? O prazer, a
posse de bens materiais, podem ou não trazer a felicidade, à pessoa humana?

As respostas a estas questões hão-de ser dadas, na medida em que iremos debatendo
este tema: sofrimento e a felicidade.

1. Sofrimento

Desde Zaratustra, que acredita em dois princípios eternamente opostos, o bem e o


mal, passando por Mani que, também, defendia a existência de dois mundos, o
material e mau e o espiritual, e bom, até aos nossos dias, o sofrimento tem levantado
muitas questões, sobretudo por parte de quem está sofrendo, seja directa ou
indirectamente. Existem perguntas, como estas: Por quê estou sofrendo? Qual é a
causa do meu sofrimento? Se Deus é Omnipotente, como permite que o ser humano,
sua imagem e semelhança esteja a sofrer? Qual o sentido do sofrimento? E, por fim, o
que se entende por sofrimento?

Na tentativa de dar resposta a estas questões, procuraremos usar o livro de Calmeiro


Matias (O HOMEM NOS PLANOS DE DEUS: Antropologia Teológica, 1987).

1. O sofrimento no Antigo Testamento

Em geral, o Antigo Testamento associa o sofrimento ao pecado. Quer dizer, o pecado é


a causa do sofrimento. Por isso, o justo não sofre, tem uma vida longa, muitos filhos,
rebanho e terra. É este o prémio do justo. Portanto, o pecado leva consigo castigo e
sofrimento (Ez 18, 30; 44,12; Is 30,13; Os 5,5; Job 31, 11;44,28).

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Mas esta maneira de pensar, foi paulatinamente sendo ultrapassada, razão pela qual
Ezequiel diz que no futuro cada qual sofrerá pelos seus próprios pecados (Ez 18, 19-
20).

2.O sofrimento no Novo Testamento

É pertinente sublinhar que, para o Novo Testamento, Deus não é o autor do


sofrimento. Por isso, o cego de nascença não nasceu assim por ter pecado. Nem foi por
causa do pecado de seus pais (Jo 9,2). Pelo contrário é, nestas situações, que Deus
revela sua glória. Quanto a este cego de nascença, a glória de Deus reside na sua cura.
Portanto, o Novo Testamento vê o sofrimento como algo que pertence à fase da
gestação histórica do ser humano. Na eternidade, não há sofrimento, porque o Espírito
Santo vai-nos transformando de glória em glória, numa plenitude progressiva.

3.O sofrimento e sentido da vida

Há exigência tremenda, segundo a qual deve-se distinguir entre dor e sofrimento. Para
se evitar confusão.

3.1.Dor

A dor, geralmente, é um factor fisiológico. Ela é sinal de alarme. Alerta para o facto de
algo não estar funcionando bem. E a possibilidade de dor representa uma perfeição
extraordinária do organismo. Outra coisa são as causas que provocam a dor. Contra
estas deve-se necessariamente lutar. É impossível partilhar-se a dor, mesmo que duas
pessoas sejam amicíssimas, o sofrimento, sim, pode ser partilhado. A dor pode ser
atenuada com medicação apropriada. É uma tarefa dos enfermeiros, serventes e
médicos e todos os funcionários da saúde.

3.2. O sofrimento

O sofrimento é um estado de ordem psíquica. Atinge o ser humano de forma mais


profunda que a dor. Por essa razão, viver as situações de sofrimento com sentido é
uma expressão enorme de amadurecimento humano, de humanização. O sofrimento
não pode ser vencido através de medicação, mas ele pode ser atenuado mediante o

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“calor”, o amor verdadeiro, o carinho, o amparo, das outras pessoas amigas. Quando
faltam estas dimensões, a pessoa que está sofrendo pode cair no desespero. É devido
a esta falta que muitas pessoas infectadas e afectadas, pelo HIV e SIDA, sofrem. Elas
sofrem, não tanto porque estão com aquela doença, mas porque se sentem
abandonadas, marginalizadas, estigmatizadas. Muitas pessoas quando as vêm
meneiam a cabeça. Não são capazes de lhes dizer, se é possível, esta palavra: CONTE
COMIGO, MEU IRMÃO, MINHA IRMÃ. E este, conte comigo, deve ser realístico,
sincero, concreto, manifestado com gestos, palavras, actos reais e concretos.

E por quê desta necessidade de CONTE COMIGO? Primeiro, a pessoa que sofre
interroga-se sempre sobre o porquê do seu sofrimento. Segundo, e por consequência,
esta mesma pessoa que sofre e procura razões do seu sofrimento, só encontra
resposta para sua pergunta, em relações, com uma companhia amiga. Infelizmente,
ignoramos esta dimensão humana, seja com ou sem culpa.

Em conclusão, podemos dizer com Calmeiro Matias, que o sofrimento das outras
pessoas reside, na sua maioria, na nossa indiferença, desinteresse, esquecimento, e no
egoísmo. Apesar do sofrimento, o ser humano foi criado para a felicidade.

4. A felicidade

Para Calmeiro Matias, a felicidade não é uma coisa que se acha ou se perde. Não existe
felicidade como coisa feita. Ela deve ser necessariamente construída. Mas todo o ser
humano tem fome de felicidade.

Caminho da felicidade: A humanização é o caminho da felicidade. Essa humanização


acontece como nascimento pessoal em convergência comunitária. Portanto, só pode
atingir a felicidade quem gasta a vida na tarefa de humanização.

Algumas pessoas confundem a fome de ser com o desejo de ter. Essa confusão é uma
perversão. Quer dizer, a felicidade não deve ser condicionada. Pode-se ter bens
materiais e não se ser feliz, e no contrário surgir uma pessoa feliz

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qualNão difícil assistir a confusões entre amar e trocar prendas. Esta realidade não é
mais que dar coisas. A pessoa para ser humanizada, realizada, necessita de ser ela
mesma. E para isso, a pessoa precisa de ser aceite, apreciada e compreendida para se
aceitar e sentir gosto pela sua realização. É a aceitação, a compreensão e a valorização
de suas possibilidades e condicionamentos que possibilitam o ser humano para ser
mais. Se nó dizemos amar uma pessoa, então aceitemo–la como ela é, sem
procurarmos modificá–la nem instrumentá–la, para atendermos nossos interesses e
gostos. Esta atitude vai nos possibilitar a evitar o jogo de interesses individuais ou de
um grupo que domina as sociedades, nas quais o mais forte tenta esmagar o mais
fraco. E este tenta esmagar o mais forte para escapar à opressão. Esta situação coloca
muitas vezes algumas pessoas, numa posição de sofrimento.

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