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Umbigo de Ebderelis

Jorge Pieiro
EDITORA MULTIFOCO
Simmer & Amorim Edição e Comunicação Ltda.
Av. Mem de Sá, 126, Lapa
Rio de Janeiro - RJ
CEP 20230-152

capa
Guilherme Peres

revisão
Beatriz Bajo

diagramação
Fernanda Hubacher

Umbigo de Ebderelis - 1ª Edição


Junho de 2010
PIEIRO, Jorge
ISBN:

Todos os direitos reservados.


É proibida a reprodução deste livro com fins comerciais sem
prévia autorização do autor e da Editora Multifoco.
Jorge Pieiro

Umbigo de Ebderelis

Editora Multifoco
Rio de Janeiro, 2010
Obra publicada com o apoio do Ministério da Cultura do Brasil - Fundação
Biblioteca Nacional - Coordenadoria Geral do Livro e da Leitura.
Aos poetas
Floriano Martins,
Pedro Henrique Saraiva Leão e
José Alcides Pinto (in memoriam).
sumário

palavra crua 11
capítulos da coisa incorpórea 13
fragmentos do assassino 23
serpente com fendas 49
nunquidão (amor te nego) 57
calada de Antônio 73
meu, uma balada 75
nunca, novamente 76
pedra da canção 77
exílios 78

cinzas do amor adormecido 79

prata no olho do rio que jaguaribo 82


fragma devida 83
de uns 84
a um que amou a pedra mais oca a greta antes do

abismo e calada dos antônimos 85


sacrifício entre os presentes ancestrais 88
nononononono 90
o fantasma dos mortos de propércio 91

pedra vida 93

borboleta 94

pálido 95

átrio 96

olhos 97

fúria cão 98

alice não viu 99

mergulho 100

101
dialógica
102
ainda tenho
105
esboço
106
ruína
11

palavra crua

a qui reúno vísceras. não gozo ânsias. são tantas inserções,


que o deserto é apenas uma matéria para delírios ou a
pele depilada do umbigo do mundo.

se ouso interferir com essas palavras a grande náusea,


a impotência diante do sacrifício, estou servindo apenas
como reprodutor da grande voz do Tempo.

pensei em esconder na gruta do silêncio essas algaravias.


se não o fiz, foi por mais uma desobediência,
tão própria da ancestralidade que carrego.

finjo que maculo o próprio coração com a maldade


da palavra; sei, no entanto, que apenas finjo engolir estrelas
para não salvar a humanidade.

A. de Ebderelis
13

capítulos da coisa incorpórea

Aqui premedito a minha essência tirana.


Jörg Rotberg
15

Jorge Pieiro

princípio

D á-me o amor qualquer lapso de martírio e de esplendor


e com essas palavras a carne líquida te deleita
sobre um corpo em mim de retalhos.

Espero tocar-te lépida ilusão quando és o sacrifício


da planície dentro de nenhum abismo e te adoto
recolha de fantasia

ou o quanto vale de amálgama entre o silêncio íntimo


de vértebras pois seio em mim infeliz nunca te tenho
feito água na garganta.
...
És meu pesadelo fruto de um paraíso desencantado
ou assim seria a morte roubando açúcares
de asas em liberdade.

Para te amar soprei um hálito de pinho e restaurei


o segredo dos dedos ao te tocar a carne
(se o silêncio é
16

uma carne de nada).


A morte me distraiu com palavras de alguma vida
- sílabas ofídicas e cristais do inferno.
17

Jorge Pieiro

primeira confirmação

H á horas de nascer nesse tempo parido de veneno


ensopando novos destinos... Dizes: a vida é sempre terna
e meu deus sem passaporte, o tímido que nunca vês.

E te respondo só vida não é a eternidade e me espancas com


a renúncia do ser descoberto. A hora te traspassa. Piolhos de
máquinas obsoletas. Tu te manifestas...

A cara de soluço de um anjo tingido pelo hábito das


palavras. Ainda não és quem pode morrer.
E resistes na tarde.

Te escondes dentro de teu deus. Uma fúria sagrada arte


em teu ventre. Almas violadas somos o esboço
da mentira divina.
18

Jorge Pieiro

segunda confirmação

E is o exemplo: a escolha dos homens primeiros,


uma leviana tentação. Qual de nós retém a certeza
ao extrair pérolas da impiedosa filosofia? Uma negra virtude
das entranhas...

Existem uns seios à mostra ante o teu deus e ele


não participa da nossa sensação, ou o que venera
é tão sublime que impossível é a carne.

Amar é uma cerimônia parecida com a gula ou a vergonha


de extrair cinzas das labaredas de um amanhecer.
19

Jorge Pieiro

terceira confirmação

D esse, o encanto dos sonhos quadrados,


a diretriz dos volumes e a necessidade de estar prenhe
de luz. Pela magia das cores, pelas orgias
das vítimas os nossos desejos.

Tu, que instigas os arcabouços e a agonia dos homens, serás


a pérola perdida. Se deus desistisse da solidão,
com que encantos romperia o instinto?
De pesadelos e guardiães?

És tamanha sombra quanto a incerteza de toda a existência.


Entre os pergaminhos mais raros te escondes, no segredo da
nossa inviolável paixão. Tu és a sombra maldita
que me repele por nunca te alcançar.
20

Jorge Pieiro

quarta confirmação

N unca! Esta palavra devoradora de infinitos, um soluço


eterno de nenhum acaso, o que resta de uma pálida
linguagem de cera? O último vestígio?
Que não seja um jamais de espera
o alimento da solidão rendido

Ao mais intenso desejo de experimentar a coragem


ou a covardia suprema da morte.
La vida no vale nada
se existo e logo sou contrário
ao que dela resta. Nada.
21

Jorge Pieiro

última confirmação

O ventre resiste ao fruto.


Nunca estivemos tão paridos de vazios!
Remodelo a minha cara com cicatrizes. Gesto por jamais.

– Oh! vocábulo de eterna labareda –


ter conseguido te moldar neste barro sem vida... Agora
reacendo o intestino dos vulcões com a minha ira construída

nos cadafalsos do paraíso.


E, por amar estes diabos invisíveis,
amei apenas o delírio.

Ou a morte.
22

Jorge Pieiro

epílogo

G rávida lógica dos conflitos de deus,


o ardor de tua palavra sagrada de desejos:

te amar semeia de fantasmas o labirinto.


23

fragmentos do assassino

do outro lado o ponto negro da mão


espelha a mancha do crime
Georg Schattenmann
25

Jorge Pieiro

...1

e ntro no labirinto da história rendido em soluço


e nunca mais quero esse vermelho sabor de veneno
acariciado em profana pélvis – momento de agora é
senhora que ora pro nobis
26

Jorge Pieiro

...2

v ermelho respinga pela sala


quarto vadio
espanto é apenas uma toalha pendurada no cabide
esse ritmo primeiro ato da vertigem:
dentro o espantalho da ilusão
resta hoje o que há por hoje
nunca é tarde demais para um mistério
agora é agora:
o sol no rosto
a veste vazia
o silêncio entre lábios e frágil a conclusão de uma
dor perdendo o fôlego.
27

Jorge Pieiro

...3

o adereço da lástima
a implosão do sacrifício
e a dor:

o quarto esmaga a formiga que sacode


a pata que jogo sobre mim
28

Jorge Pieiro

...4

a sorte escolhe envolver-me prenhe de ânsia


suspiro e repouso a língua por baixo da mina vida
agourando o sucesso
enlaço a dobra de um silêncio
respeito:
o salitre da parede
o ocaso dos maribondos
a perplexidade da fantasia diante de um vulcão
dentro de ti escondo meu sangue
pedaço desconstruído de mim
sob a impossibilidade do acaso
29

Jorge Pieiro

...5

e m andrajos a veste vazia da alma


em espasmos o pavor
os olhos:

desisto da sombra do espelho


refeito nesse monstro por tentativa
30

Jorge Pieiro

...6

p or vezes descubro a mentira do mito


outro acaso de esconder o brilhante
entre as pernas
enquanto o vaga-lume vigia a noite
e dentro dela o pecado é
remorso consumado
31

Jorge Pieiro

...7

t e mato criança de nunca


te mato antes de te adorar o sacrifício
te mato para nunca continuar insistindo sempre
te mato prevenindo ausência de uma dor
não consentida
32

Jorge Pieiro

...8

a blusa no armário
um rosto amarrotado
esta hora de epifania
descubram-se olhos por toda a parte
estou vestido para medo
quem deveria afugentou-se por entranhas de martírio
e longe veste-se de punhal antes das costas
e dentro o resguardo e a mágoa
33

Jorge Pieiro

...9

s abes por quanto beijo teu corpo?


sabes em que horas amo tua vida?
sabes quando sonho antes de sofrer?
criança em fuga para desfiladeiro de azuis espanto
de minhas horas
hoje recebo escuros de caverna e morcegos
rendidos de solidão
não quero o teu perdão, criança,
deixa que a estrada acalente seus bichos invisíveis
e comigo a dor seja espanto
deixa-me, criança, sem que fujas para sempre
aonde não exista memória.
pois assim construo o inferno
34

Jorge Pieiro

...10

t enho a cidade dentro das luzes do sol


objeto simples de consolo e a veia inflamada
rei dos martírios sofro a palidez de uma mulher
não te consentes mais o passo ereto
e os olhos de mercúrio
onde deixaste os apetrechos do capricho?
foste cúmplice:
bebeste o veneno
malograste a vida
que mais temes agora senão o olho invicto da luz?
35

Jorge Pieiro

...11

v iajante do esmo na cidade essa prisão a céu aberto


onde o sangue é tão gelado que não alcança a face
por detrás dela ferida
como oferecer o crime à lei
se não repetindo o diabo?
36

Jorge Pieiro

...12

a lfinetes despedaçam o sono


o grilo em algum lugar a noite inteira
ela vive ainda ao lado do diabo
uma palavra para fruto de carne indesejada
a pele deserta, o macio, e contrai desejos
a vez é de morrer também
37

Jorge Pieiro

...13

a legoria
e o homem desprega a lei do rosto
a face desfigurada, alma dela aflita por detrás
o copo de chá vazio sobre a escrivaninha evola
o silêncio e um incenso se esvai prestes ao pó
vê-se, ele, ao chão estendido e molusco
e a luz desalinha os cabelos dela maria
plena de seios, escurecendo
ela estende a mão a ninguém no avesso
sobressalto da vida interrompida:
que a rua devolva o céu da catástrofe!
por que não mais é pálido o olhar de mateus?
deus esconde-se antes de voltar
quem o reconhecerá?
mateus não mais responde.
é a lei
maria, arrependida, detém-se sobre o corpo
e cavalga-o sem ansiedade.
ali será para sempre
38

Jorge Pieiro

...14

b oustrophedon
e este é o boi que serpenteia arando a terra
o homem que por uma prenda a glória expele
que sabem desta vida tais seres de deus ditos por mal
e bem a espalhar por primeiro ao silêncio
o seu pânico? que sabem eles quando mugem
ao mundo o desespero co’a trêmula lida
enfraquecida? um boi volteia arando a terra sem fim
e descomeço ao homem
resta aniquilá-lo como sempre
reprimido quis-se
39

Jorge Pieiro

...15

d as palavras que antecipam a morte escuto


a sátira do homem solitário
está perdido entre as curvas da letra
obcecado pelo estrídulo do vazio preciso
que fazer? ouvir da própria voz a agonia
ou a exaltação de schiller?
arejar o coração com a nulidade do pensamento
ou mergulhar na impossibilidade desse nada pensar?
encontro o homem aborrecido, engolindo o vento
o bobo, sem vida, quer saber mais
que seu próprio poder impossível
que sustenta essa ausência prolongada
40

Jorge Pieiro

...16

f osse minúsculo, ali seria a caverna e outros bichos


os que habitariam esse lugar
se a traça existisse seria eterno entre vida e morte,
cajado e abismo. homem, porém, são muitos
esses abismos, e não mais que furos e provações
de um acaso em destruição
e tão próxima é a semelhança entre nós:
o gigante e a distante
que em nada a outros seremos homúnculos
de cavernas ou apenas bichos delirantes
que a ela retornam.
41

Jorge Pieiro

...17

m
espelho
ancha inválida

derivada de mim a sombra


desde o coito dos relâmpagos apascento a febre
com a agulha na pústula entre o rosário e a agonia
válida é a cruz de porcelana no umbigo
marcando na pele sob o sol
apenas o desejo de matar a morte que se sacia
no fogo da sombra ausente
42

Jorge Pieiro

...18

i nteiro assassino
vejo em mim o corpo soterrado do milagre
desterro o pecado obra limite da absolvição
e sem meu deus resisto morrendo em mim
apascento o crime do mundo inteiro
assassino
em que corpo meu rosto detona a fantasia?
em que corpo estou usando a morte?
tomei nas mãos o seio efervescente
a glória de deus tomou-o de capricho sem sacrifício
em teimoso celeiro vivo morrendo
o coração na vagina, denso em brasa dos delitos.
pouco é o segredo, o que falta, o laço da alegoria
a mordaça e o gemido desabrochado nas entranhas
43

Jorge Pieiro

...19

s alva a palavra, amara:


no mais que passado da memória
a fala
e, se atara à marca dessa
a última letra, a ignara
porque jamais era o que havia
e não ousara, às claras
a felicidade era uma hera
e nessa cara a minha tara
que nunca, por mais que tentara
na hora se abafara
44

Jorge Pieiro

...20

h á o grito:
garanto o sonho dentro de cada nó
há a morte:
deslustro a vida de quem a vive
há o desejo:
sucumbo com a morte da sorte.
há a última palavra:
desisto de existir sem silêncio
45

Jorge Pieiro

...21

é enquanto ferra o ferro na mancha da pele


o obscuro de dor e interfere o som de vazios
havido na palavra não dita
enquanto a estrada é entranha
e o som não mais que um
nunca
46

Jorge Pieiro

...22

c riança sem vida para sempre:


guardo-te comigo perdida onde não pude viver-te.
guardo-te para desmorrer em mim segredo
que te perpetua
guardo-te com zelo fendida no risco da porcelana.
guardo-te para a morte por dentro atada e frágil
47

Jorge Pieiro

23...

n
osso fim
49

serpente com fendas

quantas vezes amar é solidão...


Jeronymo Ávila
51

Jorge Pieiro

n ess-
a’lva a hora mito do meu tempo de serpente

canto e o motor resvala o seu gás nocivo


e o osso do avatar se poreja
e enquanto postas as mãos sobre o peito
o valente poeta educa sua dor – lago
e logo o monstro caduca a sua infância enternecida

canto este silêncio de tua ira por nenhum deus


e esta chave da entranha vaginal
auxílio viscoso de sangue a tempos

tenho horas em que canto a fruta das brechas nos monturos e


a proibida saliência de um púbis
enquanto sorrio perverso de desejos
(e a sós mergulho no âmbito e anônimo)

estás escondida na saliva úmida no entanto e por isso


52

canto
quero o manto, cobrir-te em mim essa fogueira
país das gralhas, onde ruído e o medonho
e o que exponho canto
quero abafar-te embora ao nervo exposto à dor
ninguém te é sombra maior que o medo
quero o rouxinol, a mancha de uma sonoridade viva
eterna e gázea, entre as mãos a fronte grávida
mas só por não podê-la
querer-te é assim, um canto de memória
presentemente eterno estás aqui
o corpo te participo (embora dele um jamais fui tido)
o teu seio a tua flor a tua anjura diabólica

oh querida minha sobre todos os agravos e pelejas


e sacrifícios carne que te expõe virgem nunca
mais de meus dias onde morrer o coração de morte
e pulsante vai ouvindo teu passado
e silêncio do pântano atos no que nele
és escombros de passado e vertigem
53

estás aqui em todos os ecos


alvura de gemidos
braços
genitais
centúrias de agravo

oh infantil desafiante entre as prendas da volúpia


e palavra de nenhum sobejo entre as pernas tuas
o mar mais negro e o abismo de um monstro
o maior do maior perigo de amor que alço
e amargo como fel do que já não ouso por deixar-te à nua
roubas-me de mim escravo o mudo ao derredor

beijo o visgo do medo


minhas mãos de roubar roubam poros túrgidos
a face – felina a ofegante – a rija pena mais invisível
pelugem o lábiolábil pedinte uma ressequidura túmida
a cova do arrepio o medo beijei

(andamos por essas paredes maciças, o corpo horizontal, um sobre o


dorso ou dois bichos que pensando somos luas grávidas entre um assobio e a
serenata uivosa de um lobo e percorremos nos espantos um dois gemidos e su-
amos e folheamos todas as palavras ígneas com o sangue em borbulhas e o co-
ração latejando de amplidão um ferro um fogo uma vertigem e um suspiro)
54

língua é o canhão bombardeante em tua palavra de silêncio


contra a correnteza singular de ouro em penugem
contra o rocio dela selva e abismo
contra o âmbar da metáfora mais voluptuosa das fendas
oh o silvo no que te transformaste
serpente a me devolver o néctar de uma sagrada peçonha
enrodilhada a escrava da contorção num grito de münch
para dentro daquele mais dentro cósmico e umbilical desespero
a teta loba me é avara
quando a distância é silêncio
quando o milagre é proibido
a teta loba me é avara

destevejo dentro de nós desmevejo

(fortaleza conduzida em procissão pelo traçado de tuas esquinas um


braço aqui outro ali essa distância de um mar pelo olho direito um comprido
pela galáxia daqui àquela aldebarã estás diante da ponta desse compasso
pelo estreito pelo triângulo pela saliência os edifícios engolem os sons de meus-
teus gemidos e soluços)
55

mulher cavalgada no mar com feitiço


cavala-marinha serei a tua pele por aí
pelas pedras, por onde andaste, por aí?
no fim de onde se finca o lago
a fonte
a nervura do cordão
o umbigo dessa teia dorso ar?

destevejo dentro de nós desmevejo

pelo sinal da cruz em teu peito


os sinais milhares que eu beijo sob a tua febre
pelo caminho obscuro dos labirintos de schoonemborch
ou rente aos martírios das almas aprisionadas
nas catacumbas salitradas do quadrilátero final
no chão de porangaba

louvai pelo nosso pecado!

pela corrida
pelos céus de um abril de mil águas na vida ensopada
e o rijo do cérebro confuso no alfinetar de teus mamilos
nas costas de adão dentro das curvas e perigos
de um rio que chora a ingratidão como o gozo
por último no fim da rua nunca mais
louvai pelo nosso pecado!
56

pelo dente adormecido sobre a tua vulva


e o sabor de mel no alvoroço dos cabelos
de terror entre as paredes de sangue e esperma
correndo pelos altares do alto de santa terezinha
ao fim do novo mundo
ao largo passo de uma avenida do inferno

louvai pelo nosso pecado! oro e choro osso e gozo


o alçapão no ângulo do teu infinito
pouso morrer a glória

amai o vosso pecado!


57

nunquidão
(amor te nego)

com quantos medos se dá uma coragem?


Sandro Dalpino
59

A ntes do seu amor era o princípio um verbo sem nexo.


Cordilheira devassada pelos faquires de botinas.
Antes do seu amor o diabo cozia sal sem nabos.

Vez única não te possuí, mulher encantada de suores,


entre os garranchos da indiscutível memória dos anões.
E engoli a garganta de deus entre um sobressalto congelado.

Eras a negra. A pasta da melhor carne dos delírios.


Ou se te pudesses reconhecer, a hemorragia dos instintos.
Ruidosa febre entre lençóis de estrelas e asas de um destino.
60

Jorge Pieiro

A carta Uma denúncia dos ventos foi a possibilidade do


vício O desejo de sobrevir Ser traído Por ti um amor – ar /
prazeres – o ter poder

A letra Purpurina das algas Reconheci as entranhas dos


pelos Alvo portal do penúltimo sonho A catedral Catarina
Rima dorsal

A sorte Contração de absurdos destruiu a fome Hansum


Nocaute Nunca o quanto que se esvai e finca Passiva ao
espadachim se arrebata
61

Jorge Pieiro

II

V ida em uma cor sem espectro. O amoroso tem a gula das águias.
Em tua pele a noite varre os espelhos do meu rosto sem cicatrizes risí-
veis. Sob as tuas penas o espanto de gauleses ante a terra fogo e luxuriosa
panaplo ancestral. Tenho esses relatos em voz de silêncio. Precipício de
nenhum lugar no quarto escuro de tua janela fecunda a cor no espírito
dos anjos. Agora que as roupas se desvanecem neste hálito de aço e mo-
rango o hábil dessa sorte entrecruza os solares dos meus desencantos...
62

Jorge Pieiro

III

A ndei já por luas. Dunas e futuras combinações. Queria fugir da


sempreviva desluz que te acompanha. Maleito-me. O frio mais profun-
do nas rugas da mão. O lábio ávido dos grilos tiritando no gelo grávido
dentro do mais dentro dos abismos. Em mente e meia a minha confusa.
E por estar-se a se desfazer o senso, negra é a cor me aprisionando. Até
não mais a fuga se eternar.
63

Jorge Pieiro

IV

E stou pálido de horas. Amo-te esgrima de uma farsa touché A


que me comprimes entre as transfusões sonoras Quarto assoalho com
passos de elefantes e trêmulos de trem Embora despida estejas perante
o altar reverso da luxúria Um trago em mim

que

Em mim trago da luxúria Estou hábito de horas Armo-te com o


retoque de oferendas No quarto despido roubas a sombra trêmula se te
me oferto O que passa por mim tem a memória ferina do pavor Isso me
comprime e ao sangue o tremor do gelo com paixão
64

Jorge Pieiro

C landestino. A força dos espasmos entoando salmos. A negra


fortaleza desacorrenta o diabólico portal. A passagem entre as tuas per-
nas só brio de prazer se jamais fora verdadeira a vida. Impune é o silêncio.
Tato faz o grito na ordem das menarcas. O sol da tragédia – Ícaro de cera
– pigmenta o pesadelo. Clandestino. Nua sultana agourando meu sexo.
65

Jorge Pieiro

VI

O s olhos atingem o calidoscópio Os fantasmas desabitam a luz


Nenhum milagre irá rondar peixes Iscariotes amanhece sobrado de vinha

Tumulto

Mascarado destino o alçam voláteis sonhos A minha cara nesgar


de outra fantasia O me resta se nega de súbita flor brochada Negra a
megera laça Se doma ao ser

Amor teço
66

Jorge Pieiro

VII

A s pálpebras da divina melodia no desvão da lama interrompe


a alma de sua oração. O pássaro incolor rouxinopia. Ele desexiste. É a
lâmina do assobio. O último que anuncia. Quando serei a coragem da
ausência dentro de ti. Me em mim. O assalto do escombro na tua sombra
infalível. Eu que te alvoroço e tu não te resistes. Ameaça-me enquanto te
espreito e atropelo. Nunca. A nunquidão da tua suprema presença ao me
embalsamar de ininterrupto coito. O que me aproximo de ti será espe-
rança? A fuligem dos caídos? Ainda a fresta de uma colheita? Tu, mulher,
pássara, passará, lúcida e corvo, corvalho, abro-te sésama e vou?
67

Jorge Pieiro

VIII

J á mirei
a ousadia de um salto A vertigem O vagalhão de nada Cachoeira
de vazios A vaca perplexa na silhueta do sol O cerebelo engravidado
pelo êxtase infame

Já mirei

Calígula no vácuo de um dromedário


68

Jorge Pieiro

IX

A rmou-se de amor a princesa de água. Abriu-me os braços.


Molhou-me de seios. Acariciei aquela farta abundância de abissal estu-
por. Bebi-a. O amor se umedece à secura dos infames. Amei. Pertenci a
qualquer reino. Namor doce. Um turbilhão. Garranchos de mim fendi
fendas. A dor na mente. Deste-me o vazio do fôlego em teu galope. Gol-
pe. Mas só te amei, princesa, por não saber te amar. E deslizei os olhos de
peixe denso sem saber por quem o anzol a traía.
69

Jorge Pieiro

D e Vênus o delta Retalho de Dioniso Ágora de corpos


inconclusos Saudade é quase morrer pensando

Coxas de macias tuas Fronde do espasmo A pálida


linguagem dos médios Medo que suporta um grilhão

Longe de tão infinito O amor pela lâmina Espinhos de aço


pelos prantos Pensar é quase morrer voando
70

Jorge Pieiro

XI

F oi o último dele o meu pesadelo da mancha forçando a saída.


Não era ela a negra, a nigramante. Era dela o amante? O invólucro de
sucumbir os sãos? Quantos se amaram entre as pálpebras! Dentro deles
o espesso volume dos plexos. Eu vi! Eu senti! Não era ela a da minha
ilusão a paixão maior parte dos infinitos. Ele, ele, o ente amante, cruel
vingador, vilão imigo. Eu vi! Foi o último dele o meu pesadelo. Eu senti!
Ele chamando. Estava ali indefeso o rival. Eu também era o que se ia rival
da nigramante...
71

Jorge Pieiro

XII

E ntre meus mortos os cabelos da sinistra amante Mulher de


um panapleu

Estou na cama cova deles alcova Um serei tal qual o dia

Dentro em ti nas trevas


72

Jorge Pieiro

XIII

A morte distraí com fantasia. Entremeios de duas palavras. Tu, a


negra, concepção de todas as dores e a fúria. A letal. Te concebi e te amei.
Minha Morte minha. Agora a febre tem medo de mirar teu rosto. Nunca
viver será tarde. Pois enquanto arregaço as penas dos desejos, não ouso
deflorar-te, por fim. Amor te nego. Pois sei dos meus limites. Serás agora
a sempre. A flor de luto. Nunquidão.
73

calada de Antônio

a minha liberdade
não me deixa ver o voo
em que me aprisiono
em fuga...
J. Landwirt
75

Jorge Pieiro

meu, uma balada

e nquanto a erva ferra de abstração o quadril desse fecundo


coração, o meu deus panapleu uiva lobos a um são dragão
na lua órfica e a pele dos espelhos se encontra com os teus
olhos de dentro em si de uma canção pequenina:
miro em ti me amar e o sei, sei-o, menor a vida, isto é
nascer!

enquanto pálida a hora, derroto o viço por debaixo dos


escombros e alimento a dor; um tecido de aranhas na pele
do sonho a hegemonia do fio e o caminho subterrâneo sobre
a febre dos insetos por debaixo de uma canção pequenina:
miro em ti me amar e ao seio igual à vida, isto é
viver!

enquanto sonho com a última paz a temer o que recolho


entrecortado de vazios pela gula de abraçar, tecendo o mal
no corpo e coração de meu deus, teus olhos de dentro
desafiam o caminho de uma canção pequenina:
miro em ti me amar e o sei, seio! maior que a vida, isto é
morrer!
76

Jorge Pieiro

nunca, novamente

e sta palavra devoradora de instintos, um soluço terno


sem algum acaso. acaso,
o que resta da pálida linguagem de cera? o vestígio?

que não seja um mais de espera o alimento da solidão


perdida ao mais intenso desejo de representar a coragem
ou a covardia suprema da morte. la vida no vale nada se
desisto e logo sou contrário ao que dela resto.

nada
77

Jorge Pieiro

pedra da canção

t e revestes em pálpebra ao espelho – sereia muda – e cabes


na alma dessa ágil visão em voo por seres extrema em mim
sem ti no seio me sou: aflito
rósea dormes na flor minha do umbigo: neste exílio lavrado
de pergaminhos
e serva a voz do desejo se vai

– sol
em mim, o pranto na palavra pedra para sempre alívio
nesta canção
78

Jorge Pieiro

exílios

e ste é pedra de ângulos postados na algibeira de menino


este é pedra perdida no relógio dessa vida se esvaindo
este é pedra esculpindo o vento no ventre desse sono
este é pedra de Davi no chão abandonada antes da têmpora
este é pedra soluçando nos pés do caminho indefeso
este é pedra contando segredos em seu dialeto de silêncio
este é pedra calculada para a dor animal nas entranhas
este é pedra que falseia Aquiles sobre seu fracasso
este é pedra do frade e orações e templos com paciência
este é pedra que ao pó será com meu corpo
este outro que é
pedra
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Jorge Pieiro

cinzas de amor adormecido

c orpo de água e desespero, o amor


sobre os olhos em bicos de águia
existes por ontens
repleta de feitiço e pele extintos dentro de mim
no arco de volts lírico em torno de um coração

no dilúvio este perfil de relâmpago


em disformes miragens vez de quando te amei
com poções de extermínio e doçura
leite morno em teu seio de punhais sem mordaça
sonho este limite é o teu compasso de raio infinito

proibido para a língua doce de beija-flores


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restará o cabelo a fio no sino dessa estranha catedral


a fórceps da magia pela imaginação de um sono
como bela inesquecida entre todos os dedos do grito?
onde estás, poeira dos suspiros
em qual ave ou feitiço
em qual nave de arlequim o perfume da vertigem
solitária cor de um mar afogado de avestruzes?

moves-te dentro de mim como uma acrobata antes de cair

eu te espero todos os dias o corpo


sabes que a existência é uma fatia de impossibilidades
a poeira é um lago acomodado no cume do abismo
estimo a vida que já deixou de esperar o enigma
escreves nesse caderno sei
a última estrada foi para além dos poucos passos
dentro dessa cabana roubo-te a paz.

feiticeira de tantas verdades, acrescento a luz dos


escombros.
dentro de mim reparaste o delírio.
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lembras o tapete e a varanda e o parque infantil


por detrás de todos os muros e da flor que brotava
do coração nos monturos? ali ensaiei
te amar e abrir os oceanos e sorver a língua do pássaro
mas o pássaro noturno beijou o aviso e foi para sempre
o súbito.

mesmo assim, ontem te amo, nesse amanhã.

prata no olho do rio que jaguaribo


(sem homenagem)

no olho do rio tem o rio. importa saber da água cadela enraiveci-


da com espumas. escorre e chora a mordida no afogado. deste lado da
margem meu corpo é o soluço daquele que acena por borbulhas. nosso
corpo tem argila e ferida por dentro. nele vai pelos meus olhos de rio
dupla enchente se anunciando. não é aquele o que abocanha meu so-
nho. tivesse medo mergulharia fantasiado de Netuno. mas uma rosa no
coração diz – não vá! não vá! – fico no seio da minha senhora Incerteza.
pleno de agulhas. rochedo picado por fagulhas de vagalumes. nulo. um
que daria pelo corpo um abraço. na prata de todas as rebeldias causo a
dor. e cão sem ossos multiplico um arremesso de Narciso contra a rosa e
a Incerteza mito de um rito
82

Jorge Pieiro

prata no olho do rio


que jaguaribo
(sem homenagem)

n o olho do rio tem o rio. importa saber da água cadela enraive-


cida com espumas. escorre e chora a mordida no afogado. deste lado da
margem meu corpo é o soluço daquele que acena por borbulhas. nosso
corpo tem argila e ferida por dentro. nele vai pelos meus olhos de rio
dupla enchente se anunciando. não é aquele o que abocanha meu so-
nho. tivesse medo mergulharia fantasiado de Netuno. mas uma rosa no
coração diz – não vá! não vá! – fico no seio da minha senhora Incerteza.
pleno de agulhas. rochedo picado por fagulhas de vagalumes. nulo. um
que daria pelo corpo um abraço. na prata de todas as rebeldias causo a
dor. e cão sem ossos multiplico um arremesso de Narciso contra a rosa e
a Incerteza mito de um rito
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Jorge Pieiro

fragma devida

e xperimenta o dente: estampido


na espoleta. intragável, desdenha-se de rabiscos, só.

colhe o punhal com a raiz dos seios. jorra o leite


apenas, e o rio cicatriza montanhas.

descerra os últimos lábios no ácido. o ventre


engole-se de lagartas tocadas.

a bela desfigura – monstra-se! – e dos seus sussurros


a ira grotesca-se de víbora.

abre a janela. o sol indo-se. soluça.


aonde aquele sangue desvia.

pensa pelos telhados. flores de nabucodonosor


nas derradeiras páginas do livro.

desde anseia voar-se. experimentar sem chuva


luas inteiras suas. escolhe ao êxtase colher-se.
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Jorge Pieiro

de uns

a

inda – como quis – não beijei o corpo do fantasma
não recebi a benção do Tao
surgida à margem do silêncio
no ato enquanto plantava o deserto

ainda – como quis – não tombei do corpo o espasmo


com a negra, esse amor que levaste ao cúmulo feito
um acaso de sons calados e desfeitos

ainda – como quis – não tenho mais nada revogado


com a morta! e o que me valida:

ainda – essa tristeza de arame vincando a pele, por ela


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Jorge Pieiro

a um que amou a pedra mais


oca a greta antes do abismo a
calada dos antônimos
a um outro deus
dedico

1m
Escutai agora a canção dos besouros: zilidos siluosos, uns
truídos, as sussúrias. Entre, era uma delas a palavra fluida da
fêmea primeva. Os devaneios de um trem rachando
as paredes do mal construído.
Todos os flocos se larvaram de gosmas, um espetáculo
de reversas repugnâncias. Estava ali um de besouro,
gratulíssimo pela honra da criação. Deus, mais de um
em mim era eus.

2ois
Existi em um, primeiro. Quase descri que seria mil,
trezentos mil repetido. Desde o quanto é medo o que abisma
o simples do inorgânico sentimento! Tivera eu que cobrir de
máscaras o rosto bisonho. Pois só com um assim, rompi
aldravas e amei.
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3rês
Tratei de fúrias. Me embalei e sangrei pela primeira vez
como uma virgem, outra maria. Terror de nunca mais. Seria
ela uma assassina da natureza com os seus machos, fim seria
esse o meu, apenas o objeto fértil para mil eus repetidos
e nada mais?

4uatro
Outras e tantoutras, que amar é mesmo que se almar,
nunca desisti. Morrer é um abismo para asas.

5inco
Dissestes que o silêncio era trágico, a honra a deserção
do labirinto, a glória o modelo. Mal previsto. Diante dela,
o amor se transtorna. Os passos dos homens são esteiras
fabris, os pássaros átomos livres das órbitas, os camaleões
o arco-íris ou o caos multifacetado. Me enganastes.
Mas não vos preocupeis. Os trezentos e mais que tantos mil
agora sendo não vos atormentarei.
87

6eis
Escutai... Ícones sonoros de uma antiga solidão, o que ouvis.

Estamos diante de um palco. O que vedes? O insólito


espelho da memória, a regra imprópria dos neurônios,
o fervor de partículas prestes a explodir em besouríons?

7ete
Derrotai vossas recusas mais íntimas! Arrebatai os laços
desses tremores de desejos! Revirai os escombros à cata
dos antepassados!
A hora da morte é que nos torna completos...

8ito
Anjos na planície dos sonhos. Amo meus tremores de fugas. Ainda
amarei um dilúvio sobre a pele da catástrofe.

9ove
Entre o bálsamo e a ferida, a dor. Vós sabeis. Escolhei o
mistério e a fresta e sereis o besouro mais puro das trevas!

(...)
Adorai agora o meu silêncio de
Deus...
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Jorge Pieiro

Sacrifício entre os presentes


ancestrais

m astigou pedras para tentar o açúcar dos grãos. deitou-se


de rato para a lua – era dia! – e invalidou-se de olhos no
cego do sol. pinçou cada pelo da barba no mês de abril e
enfeitou as microvilosidades das vísceras.

tinha um instinto de poeta ou dinossauro!

perdeu o destino e as linhas de Maria na máquina de cortar


mãos. avolumou-se de ferrugem entre os automóveis.
ferrou-se na testa com a marca de Salomão.

tinha um cenário despótico para um louco motivo!

esmagou os dias e as noite com um crucifixo. insistiu


em mastigar todas as pedras do deserto. mas já não havia
açúcar naqueles corpos queridos. pedras sem motivos...
pois a cidade virou cinza com o seu gosto de cinzento.
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findou por jejuar feito um fracassado poeta sem algibeiras


e guardanapos! e as salmonelas com suas urdiduras roeram
nele os últimos registros de ternura.
palavra que se diz é absurdo dentro do poeta!
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Jorge Pieiro

nonononono

n a frente daqueles pássaros o destino da espécie. Vogel,


o alemão, ciciava enquanto pendia de suas agarradas unhas
um lagarto esverdeado. ele não devia pensar. só existir
é que é existir.
o segundo líder, o que atendia por Bacon, aproximou-se
de Vogel e pensou mais forte que todos. tarde, porém.
ele tornou-se a máquina de destruir sonhos. o que o tornava
inanimado, pássaro sem alma, seguidor daquele bando em
V.
enroscou-se Bacon na direção de Vogel, oh que algo
se desprendeu!, e Vogel perdeu o rumo, o sentimento
das unhas. e bicaram-se ante o bando desgovernado.
Pandora, então, deixou que Vogel e Bacon repetissem
suas façanhas desgraçadamente e reuniu o bando, levando
a outros rumos os pássaros desesperados desesperados...
91

Jorge Pieiro

o fantasma dos mortos


de propércio

h á séculos recolho ossos e mulheres. este fêmur pertenceu à


rainha de Sardanápalo, este a Nefertiti, este perônio à
concubina de Josuel, vassalo de certo rei Licurgo e estes
fragmentos de maxilar a Calíope. sou O-Sem-Nome e tenho
medo da única certeza do meu coração: sobrevivi a tudo e a
todos, fizeram-se três séculos. e ainda escuto as vozes
dessas preciosas damas
– O-Sem-Nome! trance meus cabelos! O-Sem-Nome! beija-me
com ardor! O-Sem-Nome! lava-me os pés com tuas
lágrimas!
temo, pois, acender (e seja!) a vaga lembrança de como
foram as mulheres que revestiram esses ossos. lembrar é
corroer a memória, pousar os olhos na grande sombra.
amanhã, porém, será um grande dia. fogueira imensa. já não
consigo escalar essa montanha de ossos. amanhã tocarei
fogo nessas mulheres. pois sei que ali amontoam-se as que
me amaram e as que odiei por amá-las demasiadamente.
92

amanhã direi: vês este fogo? a crosta amarela do ar, as


fagulhas riscando aleatoriamente os estalidos dos seus
orbitais? vês a pureza do elemento secreto arder?amanhã, as
mulheres serão esta chama. depois, verás cinzas. e eu,
O-Sem-Nome, ingresso na fogueira, inferno meu, faço arder
esta solidão em últimos instantes de pó.
mecum eris et mixtis ossibus ossa teram!
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Jorge Pieiro

pedra vida

h averia em panaplo uma grande empresa. dela,


participariam todos os homens aptos à leitura. uns, dados
aos milagres da escritura, recarregariam o silêncio de outros.
saberiam todos das exigências que permeariam aquele jogo
de troca de influências. durante muito tempo, a empresa
acompanharia
a vida com a sua visão imparcial, porém, atada aos
princípios de seus realizadores. certo dia, um dos principais
homens
da empresa, imbuído da missão de revelar-se perante todos
os outros, resolveria instituir um cargo de sacrifício,
o do sacrifício da verdade escolhida. e convidaria aqueles
meticulosos guardiães da sensatez para cumprir o ritual,
um de cada vez. e, assim, a ação apontaria o escolhido
a destinar-se ao mito. Sísifo condenado a carregar a pedra
ao alto da montanha, vê-la despencar e torná-la ao cume
de todas as atenções, indefinidamente...
94

Jorge Pieiro

borboleta

m artírio: sofrer sem asas, desnuda de voar


deixar de resumir salto em abismo –
completo circuito de vento
assim Gabriela sorri sofrimento
escolhe dor por aliada
ante holofote, rasga tecido enfeite de amarelo
e brilho
arma-se de foice arranjada por delírio
decepa-se.

nenhum sangue em suas primeiras asas


já nenhum mistério a jorrar
corta asas, desistência de voo
verdadeiro para tentar salto vazio
borboleta perplexa, Gabriela salta e vai
arrastada por olhos de amante, tento acompanhá-la.
frágil demais, difícil de desistir
espeto-me de condenação, segundo
e segundo, por saber:
voar nunca é costume do meu povo.
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Jorge Pieiro

pálido

d or de letra é mais mistério: selo de bruxa em pacote

tenta dilacerar
vagalhões moribundos
corpos trêmulos
escrúpulos
senóides
salmonelas
volumes
pústulas
delírios
este poeta

como sói acontecer só se identifica com aquele


morto de futuro
96

Jorge Pieiro

átrio

d entro a bolha por dentro a outra


ninguém nunca viu o olho do olho

corpo de ouro soluço no meio da escolha

dentro o sangue por dentro o outro


ninguém nunca viu a manha da sanha

musa de nada pressinto e a fúria se encanta


97

Jorge Pieiro

olhos

q uantas vezes
e ainda eras
quantas:
vi por dentro
a ilha

tu
98

Jorge Pieiro

fúria cão

d esde quando percebi a morte engolindo meus olhos


desde quando sonhei amar uma gleba de desejos
desde quando me espedacei no marfim do silêncio
desde quando mergulhei no vácuo e flutuei invisível
desde quando senti a dor de uma alma impassível
desde quando lamentei o tédio das esquinas
desde quando esperei o templo ruir antes da noite
desde quando sofri por não esperar o próprio fim

desde então
conservo essa fúria de deus
entre meus sonhos
desde então

e sei que morrer é apenas


Borges um costume que sabe ter toda a gente
para sempre e eternamente
desde quando
99

Jorge Pieiro

alice não viu

c ego
nesse tem-
pó de chorar
a dor
é ingratidão
e teu
castigo
100

Jorge Pieiro

mergulho

§ entre dedos impúbere a alma me anuncia


§ plantas me insetam de erva curtidas
§ palavras em ti pecar-te ciciam
§ espaço em flor de ira de lótus uiva
§ entre sóis pisco lágrimas em busca
§ no escuro hálito o retrato em que táctil
§ me escuso de mergulho no abecedário
§ estás em mim como a pílula afogada no seio
§ tão instante porém daquele que se faz distante
§ entre as fúrias o rebanho de tantos dias
§ entre dedos a alma em lótus me anuncia
§ plantas me insetam em ti pecar-te ciciam
§ palavras de ervas curtidas anseio
§ espaço em flor delírio que me acaricia
101

Jorge Pieiro

dialógica

p orque o louco afirma ser jesus o louco pode – riem dele –


ser jesus e ele é louco por jesus e quem sabe? – se a culpa
não é de jesus?

porque o louco tudo – ou quase – pode ser tão diferente


como jesus e ele sabe – ou não insiste em – que tudo pode
fazer – até milagre

por que se não fosse louco seria o tal um outro


átrio de soluços querendo explicar dos céus o símbolo?

por que se não fosse por ser jesus seria o mesmo crucificar-se
no medo de nada mais poder ser – nem poeta?
102

Jorge Pieiro

ainda tenho

a s mãos os pés o intestino a bílis a enxaqueca e a farta lição


de casa os artefatos as cinzas da inquisição as aleivosias o
ciúme a crise o torso do acrobata de um livro antigo a pedir
desculpas e a continuar caindo no céu da pátria que a chão
se abriu o latifúndio do joão medido a palmos a bananeira os
abutres e a colina a amargura o gim e a conquista o pus e a
cisão mas também a alegoria a fantasia e o carnaval
infestado de selenitas a coorte dos antigos e dos amigos o
lapso e a mácula a pereba o estrume da raça e o anseio
nefelibata cage a fé o demônio e a imensa satisfação de
sobreviver digamos aprisionado nos espelhos a cura e a fúria
mas enfim tenho ainda o fim em minhas mãos a arma

ainda tenho
103

o grilo no automóvel passou por mim passageiro feito a


infância e eu não vi a rua molhada de passos tristes passos
da gente sem face pois não vi o sol crestando a face dessa
gente a quarenta graus à sombra ou ao gelo de trinta
negativos no breu branco do silêncio isso eu não vi por isso
não tenho mas

ainda tenho

no entanto desses como a que perdi só não vejo a cabeça que


encorpa incorpora e poreja mas seja assim assimilar com a
verdade a verossimilhança a imensa pureza de ainda ter o
cravo na pele incrustado do que dói como a ausência por fim
no que

ainda tenho
104

as mãos com essa arma que retribuirá o fel por nada mesmo
que essas cabeças insistam de avestruz esconder a febre o
olho o bafo das narinas a cicatriz o espelho e a alma a ruga o
sestro a dor a careta e o riso o privilégio do esgar a varíola a
pele ressequida a madeira da cara o óleo a penumbra a
sombra e a silhueta o cocar das alucinações ou o que se
perpetua na longevidade das tartarugas dos ratos de gaveta
dos axiomas falsos nas mentiras nas vestes seculares por fim
nas falsas visões e insensatez por mais que risível e veloz
costumo apontar com as minhas mãos que

ainda tenho
105

Jorge Pieiro

esboço

d esejo
esta parede blindada:
sem violência
teu corpo parede dobrada
silenciosa
o maior vazio escorrendo
filigranas
dentro ela
muro alto adiante em mim.

teu corpo acoita


a cara da noite contrai
mistérios de penitenciária ou catedral.

a mesma noite
o mesmo desejo
toda noite
106

Jorge Pieiro

ruína

o u vi frutas secando ao sol


e a tarde engolindo criancinhas
ou talvez peixes bebendo luz?
quem sabe o anseio das bombas
entregues ao som de fogueiras invisíveis?

– desde que o amor é o paradoxo do sono


sinal da cruz descrito em silêncio
na garganta repre)z(ando o fogo efêmero –

à tarde:
ou vi frutas revelando a frescura de sabores
ou talvez o corte no lábio intumescido
o sal, quem sabe, do ocaso ardendo
sobre os açúcares da pele
nesse esboço de cachalote no corpo
do que era

(feminino)
108

Sobre o Autor

Jorge Pieiro (Limoeiro do Norte, 1961)

Graduado em Letras, pela Universidade Estadual do Ceará, e mes-


tre em Literatura Brasileira, pela Universidade Federal do Ceará. É pro-
fessor de Literatura. Atua também na área de produção musical e na li-
nha editorial, como revisor, editor e consultor. Faz parte do Movimento
Caixeiro-Viajante de Leitura.

Publicou Ofícios de desdita (Fortaleza: Ed. do autor, 1987 – novela);


Fragmentos de Panaplo (Fortaleza: Ed. do autor, 1989 – contos breves);
O tange/dor (Fortaleza: Ed. do autor, 1991 - poemas); Galeria de mur-
múrios (Fortaleza: Cadernos de Panaplo, 1995 - ensaio); Neverness (For-
taleza: Letra & Música, 1996 - poemas); Caos portátil (Fortaleza: Letra
& Música, 1999 - contos); Os sonhos de Josafá (Fortaleza: Seduc, 2006;
2ª. Ed. Fortaleza: IMEPH, 2007 – infantil); Bolha de Osso (Fortaleza:
Letra&Música/IMPRECE, 2007 – contos breves) e A grande casca do S
(Fortaleza: Letra&Música/IMPRECE, 2008 - contos).

Participou de várias coletâneas, dentre as quais se destacam Gera-


ção 90 – Manuscritos de computador (São Paulo: Boitempo, 2001; 2ª. ed.
109

2007) e Geração 90 – Os transgressores (São Paulo: Boitempo, 2003),


Antologia do conto cearense (Fortaleza: FUNCET/FCPC, 2004), Os cem
menores contos brasileiros do século (São Paulo: Ateliê Editorial, 2005), 35
segredos maneiras para chegar a lugar nenhum: literatura de baixo-ajuda
(São Paulo: Bertrand Brasil, 2007), Máscaras de Orfeo (Santo Domingo:
Secretaria de Estado de Cultura de Santo Domingo, 2009).

Como crítico e ensaísta, tem trabalhos editados em várias revistas e


jornais do Brasil e exterior. Como pesquisador, ministra vários cursos na
área da literatura brasileira e, como palestrante, participa de vários even-
tos culturais em todo o Brasil. Cronista no sítio www.germinaliteratura.
com.br, assina a coluna “no rasto de panaplo”.

Detém vários prêmios literários, dentre os quais se destacam o Pro-


grama de Bolsa para Autor com Obra em Fase de Conclusão (Fundação
Biblioteca Nacional, 2009), IV Edital de Incentivo às Artes (SECULT,
2007) e III Edital das Artes (FUNCET, 2006). Foi também finalista do
Concurso Literatura para Todos, do MEC, em 2009.

Coeditor da revista Caos Portátil – Um almanaque de contos, da qual


se formou o selo “Edição do Caos”.

Foi coordenador de Políticas do Livro e de Acervos da Secretaria


da Cultura do Estado do Ceará e Curador da 8ª. Bienal Internacional do
Livro do Ceará, em 2008.
Este livro foi composto em Arno Pro
e Cronos Pro pela Editora Multifoco e
impresso em papel pólen 80 g/m²

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