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LEITURA CRITICA ARTE E HUMANISMO André Chastel As estruturas humanisticas da historia da arte A histéria dos artistas nasceu madestamente a partir do elogio das cidades. Assim, Filippo Villani combinou, pouco antes de 1400, a evocacao das origens romanas de Florenca e a celebracao dos seus grandes homens. Entre esses “ uomini famosi" figuram os pinto- res Cimabue e Giotto, em meio a mUsicos e retoricos. Essa perspectiva municipal perma- necer por longo tempo a estrutura natural da historia da arte; a doutrina das “escolas" serd formulada no século xvi em fungdo desses aspectos, que comportavam também uma estreita ligacao entre a historia das artes e a das letras. Vé-se claramente em uma carta de Eneas Silvio em meados do Quatrocentos: “Videmus picturas ducentorum annorum nulla prorsus arte politas. Scripta illus aetatis rudia sunt, inepta, incompta. Post Petrarcham emerserunt literae. Post Jotum surrexere pictorum manus” .’ A consciéncia de que existia um paralelismo natural e que se tratava, por assim dizer, de dois aspectos de um mesmo fenémeno de renovatio, constitui a propria mola do Renascimento. Boc- caccio ja 0 punha em evidéncia (Decamerdo, vi, 5) louvando Giotto por ter trazido de volta & luz uma arte sepultada pelo erro daqueles que “pintavam mais para adular os ol- hos do ignorante do que agradar o intelecto do sabio". Essa afirmacao nao deve ser esquecida ao considerarmos os desdobramentos do Quatrocentos. No campo da histo- riogratia como no das humaniores litterae e das artes, as iniciativas principais foram obra dos florentinos. Uma certa importancia deve ser reconhecida ao Proémio de Landino para a Divina comédia, que encadeia uns nos outros os temas principais: elogio da cida- de, glorificacao dos seus homens ilustres, apresentacao dos pintores e dos arquitetos jun- to com 05 filésofos e os poetas, com uma importancia essencial atribuida ao entusiasmo poético, instancia particularmente elevada da vida espiritual. Como Florenga no Qua- trocentos era a unica cidade onde se afirmavam pontos de vista to gerais, difundiu-se facilmente na Toscana a crenca de que nao se deveria falar de renascimento das artes fora de Florenca e da arte florentina, O ambiente lombardo comegou, no fim do Qua- trocentos, a reagir contra essa pretensio, depois, no decorrer do Quinhentos, também os grandes centros rivals, Veneza, Roma, Mildo. Mas, em Gitima anélise, a historia da arte moderna encontrara a sua primeira formulacao no quadro do humanismo, Este ulti- mo dividia a hist6ria humana em grandes periodos histéricos, em ciclos organicos, atri- buindo um ritmo unitério a todas as artes. £ sobre o esquema das idades do homem, ampliado a escala das civilizagdes e combinado com a idéia de nascimentos sucessivos, que sera construida a grande obra de Vasari. Esse ritmo encontra-se ja esbocado nos cronistas florentinos. Funda-se na convicgdo de que a época presente viu as artes atin- girem a perfeicdo e que ela é como a concluséo da evolugao universal. Essa conviccao ja vicejara entre os humanistas de Careggi: mediante as vicissitudes confusas do presen- te, Florenca, a Italia e 0 mundo inteiro caminhavam para um florescimento jamais visto, uma espécie de idade de ouro, da qual um dos sinais mais sintomaticos era 0 esplendor da cultura, Esse sentimento da plenitudo temporum caracterizaré todos os empreendi- mentos do inicio do Quinhentos, sobretudo em Roma. Esse mito da idade de ouro final- mente cristalizar-se-ia em Florenca, na primeira metade do século xvi, em beneficio da época de Lorenzo. © conhecimento das fontes histéricas da Antigilidade, Vitruvio (redescoberto em torno de 1410, publicado em 1514) e Plinio (em circulagao em torno de 1430, publicado 380 HISTORIA DA ARTE ITALIANA ~ DE GIOTTO A LEONARDO. 1, "Vemos as pinturas do Duzentos asolutamente fornadas sem qualquer arte. Os escritos daquela poca sao rudes, inapropriados, egligentes. Apés Petraca ressurgiram as letras. Apos Giotto reergueram- se as mios dos pintores.” 2. “volumes, comen- tarios, tracados e regras” em 1469, traduzido em 1470 por Landino), contribuia para determinar nos modernos essa seguranca. Contudo, a reacdo de Alberti no seu De pictura (1435) é bem diferente da rea- Gao de Ghiberti nos seus Commentari (c. 1450). O humanista, que recusa ocupar-se da “recitagao" dos nomes, compée uma espécie de compendium de formulas tiradas de Plinio e de Vitriivio e um repertério dos exempla correspondentes. Cada ponto da doutri- nna tem o seu herdi: a “circunscrigao” ou 0 desenho, Apeles, as luzes, Zéuxis. Essa moda das analogias teve nos epigramas e nos elogios um sucesso exorbitante; as referéncias aos antigos so empregadas sem discernimento algum. Mas essa confusdo nao revela apenas a ingénua necessidade de elevar Filippo Lippi ou Botticelli, declarando-os iguais a Apeles ‘ou Zéuxis, como faz Verino na sua Ilustragdo de Florenga; tratava-se de criar para os artis- tas uma espécie de identidade no absoluto e de definir um plano do espirito humano que escapasse da histbria. Os modernos beneficiavam-se da heroicizacéo dos artistas antigos. Ghiberti, no primeiro livro dos seus Commentari, tinha elaborado um compéndio de cronica universal da arte; na pratica, limitara-se a justapor uma lista decorativa de nomes, nao apoiados por nenhuma obra, a uma cronica moderna construlda de modo muito fraco, sem outra linha condutora a no ser 0 propésito de afirmar o “progresso" da arte. Piero della Francesca sentiu-se na obrigagao de apresentar, no inicio do terceiro livro do seu tratado perspéctico, uma lista de autoridades: os nomes tirados de Vitrivio \livro 1, prefacio) sao grosseiramente mutilados. © conhecimento dos tratados antigos podia criar a impressao de que, na imensa cultura artistica da Grécia e de Roma, tudo ja tivesse sido encontrado e desenvolvido até as tiltimas conseqliéncias; consideram-se ins- tintivamente as descobertas dos modemos como meras reminiscéncias. Eram de origern culta e devia, portanto, explicar-se com uma boa leitura dos textos. Essa é a interpre- tagdo surpreendente que apresentara o napolitano Fazio (1456), para o qual a perfeico técnica de Van Eyck deve-se ao estudo de Plinio. © mesmo principio de interpretacéo é recorrente em Ghiberti: em sua opinido, os mestres antigos confiaram o seu saber aos “vilumi et commentari et lineamenti et regole” 7 cuja benéfica influéncia aos poucos se perdeu. Trata-se de recuperd-lo. Essa idéia de um tesouro de cultura jé constituido nao era nova; mas original do Quatrocentos era 0 modo de procuré-lo, o repertério de tex- tos ao qual se voltava com a certeza de que eram ligados por uma doutrina comum. Os artistas nao s40 mais “praticos” isolados da cultura. Cada uma de suas iniclativas traz & luz uma grande verdade. Manetti, na sua Vida de Brunelleschi, escreve a propésito da perspectiva: “Alguns afirmam que ele foi o descobridor ou inventor”. Existe um paralelismo bastante notével entre a atitude dos ambientes artisticos e a dos humanistas contemporaneos. Nos seus momentos de exaltagao e de confianga, Fi- ino € os seus amigos chegavam a conceber a idéia de uma exata revivescéncia dos per- sonagens platonicos: 0 que explica o Banquete de Careggi inspirado no Simpdsio de Platao. Sobre essa idéia da imitatio Platonis levada a detalhes surpreendentes, Ficino construird a histéria da Academia no sentido de uma instituicgo ideal sempre pronta a reconstituir-se. A cultura torna-se, para os platénicos conseqientes, uma imensa vayvijors (agdo de relembrar), em que é dificil separar a repetigdo livresca da redesco- berta interior. Essa orientacao contribuird para alimentar a idéia de que a cultura deve se cristalizar nao nas universidades, menos ainda nos conventos, mas em centros livremen- te organizados, dos quais a Academia chareggiana fornece o exemplo. Dai o valor, sugestivo, mas vago, do préprio termo academia, que sera finalmente utilizado para as reunides de artistas desejosos de cultura e de doutrina, fora de suas preocupacées pro- fissionais. A palavra designava indiferentemente toda reuniao de doutos e é sintomético que em torno de 1500 tenha podido ser aplicada ironicamente & oficina de Botticelli, onde se ocupava menos da pratica e mais com interminaveis discuss6es de ociosos: “Na sua oficina havia sempre uma academia de desocupados”. Em 1531, uma gravura de ‘Agostino Veneziano intitula Accademia dello Belvedere a representagao de um grupo de Leitura critica 381 artistas estudando. Enfim, Vasari, harmonizando-se com essa valorizagdo especifica do termo, aplica-o retrospectivamente aquela que ele cré ser "a escola do jardim de Sao Marcos". A transposicao da nogao estava assim perfeitamente realizada. Até que ponto os artistas, conscientes de sua posigao histérica, encontravam nos compéndios de arte antiga uma confirmacio de seus interesses? A historia da pintura grega apresentava uma espécie de desenvolvimento coerente, cujas etapas, uma a uma, Alberti, Landino e outros sublinharam. O nome de Polignoto permaneceu associado & introdugao dos panejamentos transparentes e dos recursos “fisionémicos”. "Plurimumque picturae primus contulit, siquidem instituit os adaperire, dentes ostendere, voltum ab antiquo rigore variare"3 (Plinio, Naturalis Historia, xxv, 58). As etapas seguintes enca- deiam-se logicamente, na medida em que é possivel na realidade referir a Zéuxis o dom da cor, a Parrasio, o triunfo da linha, a Apeles, a sintese de todos os elementos necessa- rios para criar a venustas [beleza]. O pintor de Alexandre podia facilmente ser tomado como simbolo da perfeicao da pintura, ao menos para os humanistas florentinos. Fundamentando-se em uma fonte ainda nao identificada, Ficino indicou precisa- mente o pintor de Alexandre como encamacao exemplar do processo artistico no seu rit- mo alternado de anélise e sintese, percepcao e concep¢ao. Landino conclui 0 seu répido compéndio da arte antiga lembrando apenas 0 nome de “Apeles, considerado como insuperdvel também nos séculos subseqentes”. E ¢ licito perguntar-se, nessas condi- ges, se a figura de Apeles, pintor ideal dos humanistas, nao se teria imposto a um artis- ta como Botticelli a ponto de influenciar a sua carreira e de determinar algumas das suas concepgGes. Na passagem da Carliades, em que descreve as paredes do palacio de Justino No Epiro, atribuindo cada afresco a um grande nome da arte florentina, Ugolino Verino lembra diante da obra de Pullus Tyrrhenus (Pollaiuolo) aquela de “Alexander Choi suc- cessor Apellis”: 0 novo Apeles é Botticelli. Tentou-se atribuir uma certa importncia a essa alcunha, a diferenca de tantos outros casos em que o paralelo era sem conseqiién- cias. Botticelli, de fato, recriou, com base em testemunhos literarios, as duas obras fun- damentais de Apeles: Afrodite anadiomene (Plinio, xxxv, 91) e a Caltinia (Luciano, De calumnia, v). A sua arte corresponde as duas caracteristicas fundamentals do pintor de Cos: Apeles é 0 pintor da elegancia, “praecipua eius in arte venustas fuit"4 (Plinio, xxv, 79); mas ele é também o mestre da linha, do traco fino e preciso, gracas ao qual triun- fou na sua rivalidade com Protégenes, e que o impelia a resumir a arte nesse dito: “nul- lus dies sine linea", Uma espécie de modelo ideal da arte botticelliana é, pois, sugerida pela figura de Apeles. Talvez para os contemporaneos Sandro fosse 0 novo Apeles, no sentido de que Ficino representava a reencarnacao de Platéo. As estruturas humanisticas da teoria da arte No Quatrocentos, a evolugéo da cultura ¢ dominada por dois fatores essenciais: 0 pri- meiro, a importancia preponderante que assumem as disciplinas do trivium (gramatica, retérica, dialética) nas maos de uma camada nova, distinta dos doutores da universi- dade. O seu desenvolvimento, indicado com o nome de studia humanitatis, tende a do- minar toda atividade do espirito. O segundo, a essa revolucao que daré o nome ao hu- manismo corresponde um trabalho analogo, embora mais lento e incerto, no que diz respeito as artes. O vocabulario escoléstico nao oferecia nenhum termo abrangente para definir 0 que ha de comum entre as atividades do arquiteto, do escultor e do pintor: a formula “arti del disegno” est em gestacdo a comecar pelos tratados de Alberti e de Ghiberti, ¢ no se impée a nao ser um século depois, com Vasari. Era necesséria uma doutrina geral, que fosse independente do edificio escoléstico, para que pudesse ser aco- Ihida. Exatamente por isso é interessante definir a situagao de Florenca. 382 HISTORIA DA ARTE ITALIANA — DE GIOTTO A LEONARDO. 3.0 primeiro que muito contribuiu para a pintura, 20 dispor a boca aberta os dentes & mostra nuangar no rosto 0 antigo rigor.” 4, “sua arte primava pela elegancia” 5. “nenhum dia sem uma linha” 5, "enquanto flores- seu a eloguéncia, loresceu a pintura" J4 no seu tratado pratico (c. 1400) Cennini achara oportuno lembrar que a pintura, ‘como a poesia, tinha o privilégio de criar seres imaginarios. Na sua carta a Nicolas de ‘Wyle (c. 1451), Eneas Silvio opunha & aridez dos filésofos escolésticos a verdadeira forca do espirito, por ele chamada eloquentia, e descobria uma linha de desenvolvimento geral comum as artes que, para simplificar, eram por ele compreendidas sob o termo genérico de pictura: “dum viguit eloquentia, viguit pictura” * Esse paralelismo demonstra como se pode atribuir as artes a dignidade ret6rica que elas merecem. Na realidade serdo dois 05 modos para chegar a isso: explorar a analogia com a elogiiéncia até obter uma trans- posigdo integral das nocdes da retorica para a atividade artistica, ou entdo, em um plano mais restrito, insistir sobre a particularidade essencial das artes do desenho, isto é, a sua estrutura matematica. E é isso que se verifica no segundo tergo do século. A partir dessa época ingressa-se, 205 poucos, em uma nova fase da “‘consciéncia artistica”. Uma estét- ca auténoma naturalmente jamais serd formulada, mas os conceitos tradicionais da filoso- fia grega — nogao aristotélica de imitacdo (tikinots) e nocao platénica de inspiragdo (furor animi) ~ 580, 205 poucos, aplicados. Por esse caminho delinearam-se, por etapas sucessi- vvas, os fundamentos da teoria da arte. Era facil, e um pouco ingénuo, exaltar o artista insistindo na universalidade de sua cultura. No inicio do seu terceiro livro, Ghiberti afirma que o artista deve conhecer todas “artes liberais"; relaciona assim um némero impressionante de disciplinas onde se acreditou ver um prentincio das curiosidades universais de Leonardo. Na realidade, trata- va-se de uma formula pré-constituida, uma regra aurea derivada de Vitrivio. No inicio do seu tratado sobre a arquitetura ele afirmara que seu herdi, 0 Arquiteto, devia possuir um saber enciclopédico do mesmo modo que Cicero afirmara para seu her6i, 0 Orador. O ~ Unico mérito de Ghiberti consiste em ter se apossado, mesmo que confusamente, dessa afirmacao em prol do escultor, que se tornou o representante completo da cultura. Na realidade, aqui s4o confundidas duas idéias: 0 conjunto dos conhecimentos iiteis com 0 “priticos” e a superioridade de uma atividade sobre as outras. Afirmando que o orador, © arquiteto e o escultor devem estar em condigées de dominar todas as formas do saber, cré-se demonstrar a sua superioridade. Ele deve nao sé estar a par das outras disciplinas, mas também ser 0 tinico capaz de exploré-las a fundo para o bem do homem; ele repre- senta um maximo de eficécia e de apropriacao. Desse mesmo modo, Leonardo quis, 20 fim, defender a causa do pintor nas famosas disputas do Paragone, em que a pintura aparece como que dotada de uma universalidade de meios sem precedentes. A idéia de justificar 0 artista desse modo, todavia, foi pouco explorada em Florenga no periodo entre Ghiberti e Leonardo, Isso porque Alberti, com a sua habitual penetra- cao critica, insistira, ao contrario, na necessidade da adaptacéio dos conhecimentos ao trabalho especifico: “Agrada-me", escreve no De pictura (livro 1), “que o pintor seja sdbio em tudo quanto possa em todas as artes liberais, mas, em primeiro lugar, eu dese- jo que saiba geometria"; contra as pretensbes enciclopédicas de Vitrivio e de Ghiberti, afirmard mais tarde no De re aedificatoria que 0 arquiteto deve ser, antes de tudo, mes- tre no desenho e na matematica: “Para o resto, pouco me importa que seja doutor em direito e pouco me preocupa que seja bom astrénomo [...]". © que impressiona no tra- tado de Alberti € 0 seu tom positivo, sua adaptacéo a um fim preciso. Mas a sua origi- nalidade reside menos nas préprias nocdes do que na coragem que tem de transferir, pela primeira vez, a pintura os esquemas abstratos e as nocées da retérica. Baseia-se em uma adaptagio coerente dos tratados de poética e de retorica de tipo aristotélico, que os humanistas, sobretudo os paduanos, bem conhecidos de Alberti, comecaram a estu- dar, descuidando das artes dictandi e dos formulatios tradicionais, Aristdteles, estudado diretamente no texto ou pelo menos nas interpretagdes de Cicero (De inventione e De oratore) € de Quintiliano (De compositione), fora comentado por Guarino e pelos hu- manistas da Italia setentrional muito antes da publicagdo, em 1498, da traducao latina Leitura critica 383 de Lorenzo Valla, e € sua Pottica que Alberti utiliza. A distingao fundamental era aque- la entre ars (texvi}) e natura (pbats), isto é, entre studium e ingenium, o primeiro ter- mo subdividindo-se, por sua vez, em inventio e elocutio, e 0 segundo compreendendo nao uma psicologia do criador, mas um quadro das representacdes que Ihe interessavam, E a mesma disposicao do tratado de Alberti: Rudimenta = inventio Pictura = elocutio Pictor = ingenium } studium ‘Apenas a primeira parte representa uma novidade de grande importancia com respeito a0 esquema tradicional. Sob o titulo de Rudimenta, expdem-se al as regras da projecio geo- métrica préprias para definir 0 espaco pictdrico: mas a analogia com as retoricas continua também nas secdes subseqtientes até os menores detalhes. A célebre definigao da pintura em trés termos — circumscriptio, compositio e lumina - é também uma adaptacao do sis- tema ciceroniano, que se articulava em inventio, dispositio, elocutio, isto &, idéia, distribui- ‘ao das partes e revestimento sensivel. Com a natureza (Ingenio) € 0 estudo dos mestres (studio) apresentavam-se os grandes temas que iriam fornecer as formulas candnicas a0 julzo artistico por um século ou dois: ou seja, a imitagao da natureza, em outras palavras, a conformidade a leis gerais, e a nocdo de “hist6ria”, isto é, da acéo dramatica, considerada como a forma mais alta de representacdo. Essa conversdo das formulas da postica e da re- t6rica antigas em teoria da arte vinha criar solidas bases & analogia ut poesis pictura, tor- nando-a o principio geral de toda refiexdo sobre a arte. Essa méxima que voltaré em inu- meraveis epigramas derivava de Plutarco (Da gloria dos atenienses), onde é posta na boca de Siménides. Na metade do século xv reaparece em B. Fazio, em Alberti (De re aedifica- toria, vi, 10) € € citada por Leonardo, por Gaurico e mais tarde por Lomazzo. Refere-se antes de tudo, & composicao: 0 que as duas artes tém em comum é a capacidade de repre~ sentar as “agdes” humanas e, portanto, as “paixdes”, e portanto de agir sobre elas; a des- criggo de um quadro torna-se uma espécie de verificacao literdria da sua boa organizacao © maximo elogio para o artista 6 0 de ter conseguido igualar ou superar a natureza. A formula € tao genérica e vaga que pode valer para os mais diversos estilos. Pode refe- Tir-se ao efeito ilusionista que induz a comparar o quadro a um espelho, a clara defini- . ao de um tipo ou ainda a obediéncia as leis universais da harmonia; nao exclui nem mesmo o recurso as formas imaginarias que podem tornar-se mais significativas que os abjetos da experiéncia, segundo o qual Aristételes havia “concedido a liberdade ao poeta” (Poética, 25). A referéncia & natureza é um modo de sustentar as ambicdes universalistas da arte: dai o valor que certos espiritos, preocupados em evitar um empobrecimento da idéia de arte, atribuiram a sentenca de Filéstrato: "“Sotic mij donaterai tiv Gwypagiav aSvxei tiv GAH Betay "7 Essa maxima é retomada, logo depois, por Leonardo para a pin- tura © por Pompénio Gaurico para a escultura. Lembra que a arte contém em si um “discurso mental” pelo menos equivalente ao das disciplinas liberais e que a “'verdade da natureza" no se manifesta sem a intervencao ativa do espitito e sem os recursos da técnica. A “imitagao da natureza” tende assim a assumir, em torno de 1500, um valor muito forte que até entao nao possulra: nao é possivel entender essa evolugao sem con- siderar as posigées adotadas pelo ambiente de Careggi Alberti, se foi o primeiro a construir uma teoria da pintura com base no modelo das poé- ticas, teve também 0 cuidado de evidenciar 0 principio matematico: esse novo fundamento 7. “Aquele que ~3 da arte bastava para elevar a pintura ao plano das “artes” tradicionais ou pelo menos no se interessa pe'2 permitia mais considerd-la subalterna com respeito a elas. Os defensores das artes do dese- _pintura comet: nho nao deixaram de insistir nesse argumento fundamental este serd, no Quatrocentos, 0 uma injustica com indice mais seguro do gosto “moderno". Ficino desenvolve-0 no plano filoséfico, sobretudo a verdade”. 384 HISTORIA DA ARTE ITALIANA — DE GIOTTO A LEONARDO. no comentario ao Filebo, de Plato (1492), e Leonardo, do ponto de vista do artista, com © vigor e a clareza de pensamento que so bem conhecidos. Mas essas afirmagées so, porém,ligadas a uma dupla revolugao que explica plenamente o seu excepcional valor. Por um lado, a ciéncia matemética destaca-se do complexo das disciplinas liberais; emancipa- see eleva-se acima de todo 0 edificio do saber para constituir uma espécie de novo orga- ‘num universal. Essa concepgao € particularmente desenvolvida por Ficino na teoria da Ra- tio, fungdo superior da alma que se vale essencialmente do instrumento matematico para dominar 0 real. Por outro lado, as oficinas mais progressistas, renunciando as insignifican- tes prescrigGes dos praticos, enfrentam a geometria, subtraem-na de algum modo as esco- las e resumem o seu ideal na idéia da perspectiva dos pintores ou prospettiva pingendi. Em torno de 1470-1475, Piero della Francesca revela sua qualidade de “monarca da pintura” confirma sua autoridade, redigindo seus tratados de matemiatica aplicada. Um trabalho anélogo ¢ cumprido em Florenga no mesmo periodo no circulo de Verrocchio: de acordo com Vasari, Andrea “dedicou-se as ciéncias e particularmente 4 geometria”. Verrocchio ido foi apenas 0 mestre de Leonardo, mas, segundo a formula reveladora de Verino, de “ quase todos aqueles cujo nome hoje corre entre as cidades da Itélia", e ainda est por avaliar 0 seu papel nesse desenvolvimento da cultura das oficinas. A lista dos artistas mate- maticos apresentada por Luca Pacioli no inicio da sua Summa de arithmetica (Veneza, 1494) enumera mestres do norte, da Toscana e da Umbria, que respondem as exigéncias modernas: Bellini, Mantegna, Melozzo, Luca da Cortona, Perugino, Botticelli, Filipino Lippi e Domenico Ghirlandaio, “os quais sempre conduzem suas obras com compasso certificado, proporcionando uma perfeigo admiravel”. Essa lista tem um valor propagan- distico: atribuir as artes do desenho capacidades mateméticas significa intervir em seu fa~ vor, Pacioli volta a esse ponto no seu tratado sobre a Divina proporgéo (1509); mas seu pensamento é mais explicito: recomenda aos praticos “de quaisquer artes, mistérios e cién- cias se queiram” um conhecimento abstrato das relagdes e das medidas, “como no seu Timeu 0 divino filésofo Platéo manifesta” - trata-se aqui de geometria aplicada as técni- cas. A justificativa dessa atividade encontra-se no nivel do platonismo. Estamos diante de uma nova fase da dissolugio das rigidas divisdes da vida intelectual. A primeira geracao florentina fizera com que artes e ciéncias se comunicassem entre si; no dltimo tergo do século entram em jogo as nogdes filos6ficas, derivadas do neoplatonismo. Isso se vé claramente na histéria de um termo entZo em moda, o da symetria. Foi admitido desde o inicio, e repetido por um século, que a palavra nao tinha equivalente lati- no; 0 termo soa grego. Lé-se em Landino (1481): “Foi, portanto, o primeiro Joanni floren- tino de sobrenome Cimabue que encontrou tanto os delineamentos naturais como a ver- dadeira proporgao a qual os gregos chamam de symetria". O termo tem manifestamente um prestigio proprio: resume em si o ideal das proporgées racionals. A férmula reaparece nna Vida de Brunelleschi pata consagrar a superioridade do arquiteto: “Ao olhar para as esculturas, como aquele que tinha bom olho, ainda que mental e prudente em todas as coisas, viu o modo de construir dos antigos e as suas symetrie; e pareceu-lhe conhecer uma certa ordem de membros e de ossos muito evidente, como aquela que Deus, com res- peito a grandes coisas, ilumina”. A symetria ofereceré também a ocasiéo para um longo capitulo, mais aprofundado, de Gaurico (1504), segundo o qual a medida, lei admiravel da natureza, assume todo 0 seu significado nas proporgées internas do corpo humano, “ins- trumento harmonioso, completo em todos os seus elementos”, cujas leis explicam-se par- tindo do Timeu e através da analogia com a musica. A “proporzionalita” € essencial; mas é misteriosa, uma vez que pertence a uma ordem mais vasta, mais oculta na qual cada ar- tista deve penetrar. Passando do estudo das proporgdes a0 estudo da expressio “fisiond- mica”, Gaurico reivindica os direitos do estudo doutrinério, atento as relagGes escondidas entre as formas: "© homem vulgar pode desprezar, o quanto quiser, os arcanos da filoso- fia socratica e pitagérica; mas eles conservaram para nés sua mais santa heranca” Leitura critica 385 Jé na passagem de Manetti (ou do pseudo-Manetti), a descoberta da symetria é associada a uma iluminacao espiritual; a nogao aparece, pols, recoberta pela psicologia da inspiragio. O fato é que 6 impossivel abarcar o jogo das proporgées sem formar uma imagem interior que ilumine a ordem natural: medida e "idéia” correspondem-se. © némero deve, enfim, reportar-se a ordem total do Belo, que transcende toda evi- dencia racional. Essa exigéncia suplementar, entrevista por Alberti, assume para os neopla- ténicos uma importancia ilimitada. Esforcam-se por elaboré-la através de formulas “misti- cas", dos conceitos de “iluminacao" e de “esplendor”, que sublinham o carater Unico e perturbador da beleza, subtraindo-a a toda definigo. Para Ficino, e para todos aqueles que seguiram suas intuigBes, a consciéncia dessa instancia metafisica leva a exacerbar a consciéncia das correspondéncias simbélicas no Universo. Ele esforca-se, no comentario ao Timeu, para torné-las representaveis mediante dados matematicos, no De vita triplici, pelas analogias “magicas” das formas e das qualidades, no De sole et de lJumine, pelas propriedades sublimes da irradiacao luminosa, Nao faltardo tebricos, e até artistas, que considerardo essa complexa doutrina do cosmo como o horizonte normal da atividade ar- tistica. A obra do franciscano Pacioli, discipulo de Piero della Francesca, constitui o exem- plo mais claro desse alargamento em sentido esotérico e “mistico” da matematica artist- ca. O seu De divina proportione desenvolve, para uso dos pintores, dos decoradores e dos arquitetos, os modos especulativos “pitagéricos” sobre os corpos puros e as analogias uni- versais, astrolégicas e teolégicas, das quais séo suscetiveis as formas e os niimeros. Em Florenca, como em Roma ou em Veneza, nao se pode subestimar a importancia dessas preocupagées; elas cercam e estimulam o trabalho artistico, impdem-se nas formas da decoracao € nos esquemas compositivos. Mas a sua obscuridade suscita diividas em torno da mistica “pitagorica”: ela ndo é universalmente aceita. Outras nogées limitam-na. Ele- vando o “dom” acima do conhecimento, a intuiggo acima das formulas, os platOnicos for- neciam, eles mesmos, o antidoto aos excessos especulativos, pelo menos na medida em que as nogées da sua nova “arte poética” eram aplicadas no mundo da arte. Aidéia de que 0 estudo objetivo e “cientifico” da natureza é necessério, mas nao su- ficiente, de que ele nao é a ultima palavra na arte, difunde-se jé a partir do fim do Qua- trocentos. Demonstra-o a anedota do abaco de Donatello que é objeto de um curioso sainete na obra de Gaurico: durante a sua estada paduana, o artista, solicitado por um curioso, leva-o & oficina para desvendar seu instrumento secreto e Ihe revela, ao fim, que © carrega na cabega. As capacidades pessoais ndo se podem comunicar assim t4o facil mente, como cré ingenuamente o vulgo. O artista é definido por uma organizacao intei- ramente particular que os apreciadores conhecem e respeitam. Ele, na sua obra, ndo inclui somente os produtos do seu saber, mas algo mais. A idéia era nova: circulava em alguns ambientes florentinos como o demonstra a voga da férmula: “Cada pintor pinta asi pré- prio” (Ogni dipintore dipinge se). A frase € atribufda a Cosimo de’ Medici em uma cole- tanea de aforismos que foram recolhidos sob 0 nome de Policiano. Cosimo, pelo que reporta Vasati, defendia tenazmente o inconformismo e mesmo as extravagancias de Fi- lipo Lippi, dizendo: “Os talentos raros so formas celestiais endo burros de carroga” Esse respeito pela personalidade do artista era um fato novo; significava reconhecer- Ihe a independéncia diante das normas comuns, aquele género de privilégio dentro do mundo humano que os plat6nicos reivindicavam para o sacerdos musarum. A obra de arte nao é um produto mecénico: ela implica toda uma disposicao do espfrito que se ele- va acima das contingéncias. € certamente a primeira vez que essa idéia revolucionaria apresenta-se na cultura moderna. Sera consolidada, em fungdo das atividades “nobres” da vista e do ouvido, na Teologia platénica (x, 4). A idéia de que o artista se exprime na sua obra é ai desenvolvida por meio da analogia do “espelho que reflete o rosto": "nés podemos”, diz Ficino, “ver af a disposicao e, por assim dizer, a imagem do seu espirito” A obra de arte nao apresenta apenas uma certa ordem de representacdes, ela as reflete 386 HISTORIA DA ARTE ITALIANA ~ DE GIOTTO A LEONARDO através de uma sensibilidade. A afirmacao é, contudo, menos “moderna” do que pare- ce. Para Ficino, que jamais resolveu com preciso o problema da “individualizagao”, a alma do artista age em sincronia com a “alma universal”. Trata-se, portanto, menos da subjetividade pessoal do que de um certo nivel do ser. No contexto da antropologia metafisica do platonismo florentino, sensibilidade e imaginacao ocupam um lugar novo, ‘mas so concebidas de uma forma inteiramente objetiva, A frase tomnara-se absolutamente banal. Reaparece incidentalmente em um singelo soneto de Matteo Franco, o poeta de Lorenzo. € licito supor que devia irritar os adversa- rios de uma arte demasiado emancipada com respeito as normas tradicionais, dado que foi comentado por Savonarola em uma de suas pregacSes sobre Ezequiel, em um sentido puramente moral, para reconduzir os artistas ao sentido da sua responsabilidade crista: 0 quadro revela o nivel moral de sua alma; as suas predilegdes e complacéncias destacam- se de modo perigoso. Devem reformar o seu corago para fazer boa pintura. Leonardo retoma a mesma idéia de uma projecdo inconsciente do pintor na sua obra, mas em um plano psicofisiolégico. Em uma pagina que sera retomada no Tratado, escreve: “Conheci alguns que, em todas as suas figuras, pareciam ter se retratado ao natural e ali se véem os atos e os movimentos de seu autor [...]". Nao se trata aqui da viséo propria da alma, nem da pureza ou impureza do seu cora¢ao, mas da sua forma vi- tal, que 0 pintor traduz nos tipos e nos gestos dos personagens, e isso de tal modo que, se no tomar cuidado, pode resultar em uma espécie de autocaricatura. Deve-se descon- fiar da espontaneidade e contrariar a tendéncia a imitar e repetir as préprias formas por meio de seu estudo objetivo. Cortige-se, assim, a inclinagao inconsciente da alma (no sentido de principio vital) as imagens que se Ihe assemelham. Leonardo esboca, entio, incidentalmente, uma andlise inteiramente nova do processo artistico: a formula “cada pintor pinta a si proprio” é limitada a uma operacao instintiva e considerada como a fonte de uma pintura ma em que nao intervém a autocritica. Em uma pagina dos seus manuscritos propde uma formula célebre que parece sugerir um esforco de imaginagao para identificar-se com os seres a representar: aquele que pinta figura, e se nao pode sé-la, ndo pode propé-la. Mas trata-se de uma outra férmula familiar aos humanistas, A formula remonta a Dante: lé-se no canto i do Convivio, dedicado & verdadeira nobreza que a riqueza nao pode dar, aquela do espirto: pois quem pinta figura Se nao pode sé-la, nao pode propo-la. (© que significa: "nenhum pintor poderia realizar uma figura, se antes nao se identifi- casse intencionalmente com o que ela deve ser”. A nobreza do coracéo depende da gran- deza das suas aspiragées. E Dante acrescenta: “Onde nenhum pintor poderia apresentar figura alguma se intencionalmente nao se fizesse antes tal qual a figura deve ser” Pico, em seu comentario a Canzone d'Amore (1486, publicado depois de 1500), reto- mou a maxima: a forma deve ser concebida pelo espirito antes de ser realizada na matéria, “e isso é aquilo que nosso poeta Dante toca em um de seus cantos onde diz: pois, quem pinta figura, se nao pode sé-la, ndo pode propé-la". Pico sublinhava assim o primado da forma inteligivel, do arquétipo, tanto na atividade intelectual como na operacéo artistica, Certamente nao era nesse sentido metafisico que a entendia Leonardo. Mais de uma vez adaptou as formulas humanisticas & sua conveniéncia. Mas, se ele deve utilizé-las ou corrigi-las, é porque tendiam a constituir, no fim do Quatrocentos, uma “problematica” Leitura critica 387 nova da atividade artistica, Entre o esforgo despendido por Alberti, Brunelleschi ou Ghi- berti, entre 1430 e 1460, para que a teoria e a pratica pudessem valer-se das noces lite- rarias das retoricas e dos principios da ciéncia, e a cristalizagao doutrindria que aconte- cer depois de 1570 sobre um plano académico, delineia-se, entre 1480 e 1500, um enquadramento doutrindrio das manifestacGes artisticas, em fungao do platonismo flo- rentino. O recurso a matematica é mantido como uma operagdo essencial para toda arte elevada: garante a sua organizacdo metédica, clara, racional, mas em uma perspectiva mais complexa. © niimero faz com que o espirito se comunique com os “arcanos" de que trata a “filosofia socratica e pitagérica"; e a ordem elaborada pelo pintor, o escultor © 0 arquiteto deveria estar ligada a uma simbologia universal. Essa exigéncia confusa faz-se sentir cada vez mais viva no fim do século xv e pode modificar sensivelmente as inteng6es do artista. O principio de interrogar diretamente a natureza perdeu sua simpli- cidade. A analogia geral estabelecida entre as artes e as letras permanece o elemento fundamental do novo credo; a idealizacao do poeta no ambiente dos Medici tende a provocar uma promacao analoga do artista. Atriuem-se-lhe agora uma “psicologia” particular e interesses desconhecidos ao comum dos mortais. Na antropologia de Ficino e de Pico, a idéia do artifex universal tinha tanta importan- cia que, se nenhuma outra das especulagdes da Academia houvesse atingido os ambientes attisticos, esta pelo menos teria encontrado ai largo consenso. Manetti tinha-a apresenta- do energicamente. Ficino no a esqueceu na sua Teologia platénica, lembrando que essa atividade (que para ele demonstra a realidade absoluta da alma) estende-se a todos os aspectos do real. Nao se trata mais de um resultado particular, de um esforco técnica iso- lado, mas de uma “atitude” para adentrar e organizar a ordem do mundo mediante instru- mentos apropriados. Dai o habito inteiramente novo de insistir sobre as miltiplas ativida- des concretas, de sintetizar em uma s6 idéia a onipresenca ideal do artista. A soma quase desconcertante de atitudes que se atribuem a Alberti, que sdo reivindicadas por Leonardo, que se atribuem a Verrocchio, assume todo o seu significado apenas se vista contra esse fundo tedrico: é tipica do desenvolvimento das idéias sobre a arte depois de 1475-1480. Estamos préximos da idéia de “genio”: todos os elementos essenciais estao reuni- dos, com a idéia de inspiracao (a forga irracional do "furor”), do conhecimento intuitive do mistério universal, do dificil destino do sacerdos musarum. Mas no seio do humanis- mo platénico havia toda uma série de contradigoes que nao permitiam formular essa idéia. A crise que, em torno de 1490, dilacera o platonismo ~ & espera da reacdo “la- ‘mentosa” ~ afasta Pico e seus amigos, Policiano € o proprio Ficino, das ousadas afirma- ‘GBes que no pasado tinham tido a coragem de proferir: eles se desdobram sobre os pro- blemas da exegese e da filosofia religiosa. As suas tiltimas conclusdes sabre as outras atividades espirituais séo reticentes e intrincadas. No mal-estar do fim do século, a refle- xGo sobre a arte encontra-se em um ponto morto. Mas é entao que se verifica o fato decisive que a evoluco geral da cultura deixava prever: assumindo todas as responsa~ bilidades pela vida intelectual, alguns mestres, que serao as autoridades do Quinhentos, assimilam, revivem e exprimem como préprias as exigéncias espirituais amadurecidas pela reflexao dos platénicos. A sua experiéncia confere as linhas gerais elaboradas pelo humanismo um valor convincente, faz com que se misturem intimamente as realidades da arte e extrai assim a “problematica” do futuro. £ dentro de suas preocupagdes que se condlui a evolugao do século xv e é através do seu exemplo que as idéias do platonismo puderam inserir-se definitivamente na teoria da arte. ANDRE CHASTEL, Arte e Umanesimo a Firenze, Einaudi, Turim, 1964, pp. 98-112. (Art et humanisme 4 Florence, Fur, Paris, 1959.1 388 HISTORIA DA ARTE ITALIANA - DE GIOTTO A LEONARDO

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