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PROBLEMATICAS I A ANGUSTIA J. Laplanche Tradugto Auvano Casta, Martins Fontes S60 Paulo 1998 “ds orignal PROMLENATIQUES 1 ANCOISE apg Pres Unsorted Proce 180 ‘Coin ivr ni oss "Ss Pa 0p cn oi. ass adi Revi dato “Wen Se Prati ies “crs Aer Co Darter Cd Psa CP) ‘Gann Baca LS Br) Tope bles: mii) Lae tas Aas Co-ed Sa0 Pa: Mani Proc 86 (Bi | Angin 3 Pci Tl HS Taz pr nt a |e Tenn Pola DISS Teo its pana gprs eserves 3 "rr Mone Portes tor Le Fa Coeli Ramall, 03) 107325000 San Pano SP Bra i 01) 239-5677 Ba (11) 308-8857 ‘nal infmartbomessom nino nartngoiescom q Indice ‘A “Angst” na_neurose — 18 de novembro de 1970 A objecio de principio a um ensino da psicandlise . . A psicanélise como saber constituido © recurso a Freud ......, 5 Historicidade especifica da descoberta © retorno sobre Freud Por um ensino psicanalitico da psicandlise Fungo essencial dos afetos negativos — 2 de dezembro de 1970 Primeira teoria da angistia: a propésito: das neuroses atuais 2... : a Da neurastenia. a neurose de angistia . ceeeeeeees A angistia futuante © sua fixagio 2... Origem sexual da angistia .... : ‘A angiistia: psicolégica ou fisiolégica? Insuficiéncia da teotia de W. Reich Aparecimento da “libido psiquica’” — 16 de dezembro de 1970 A nogio de elaboragio psfguica .. Diferentes niveis da “Tigacto” Neuroses atuais e psiconeuroses: uma classificago no- soldgica ..... Neuroses atuais © psiconeuroses: dade estrutural A somatizagao psicossomética uma complementari- 6 de janeiro de 1971 De uma teoria da angtstia @ outra Conferéncias Introdutdrias sobre Psicandlise . A Realangst ou “‘angistia-real” A angistia-real... nfo é realista . ‘A “Angst”: entre medo e angiistia © par angtstie-susto © susto, inibidor da elaboracéo psiquica ........... susto ¢ 0 transbordamento do ego susto da neurose traumética 20 de janeiro de 1971 par angistia-temor S . ‘A “Angst”: ao mesmo tempo medo e angistia . ‘A angiistia infantil: uma anélise freudiana essencial SituagGes fobogénicas : © protétipo do nascimento . A angistia-teal inexiste na crianga 17 de fevereiro de 1971 © mado std impregnado de angistas« angtstia Kase a0 medo 5 ‘A fobia desintegra 0 par afeto © representagéo O recalque € 0 afeto inconsciente A angéstia, “unidade de conta” A propésito do “pequeno Hans” Origem e destino da representagio Uma terapia muito centrada no sintoma Estabelecimento das vias associativas A visita a0 “professor” Freud, Hans ¢ “a estrutura” 34. 37 39 42 43 44 45 47 48 49 51 34 56 58 59 60 61 63 64 65 66 67 69 na n B 16 1 — 3 de margo de 1971 Medo do pai e? ou? medo pelo pai? Novas vias associativas Se 0 pai ndo é temfvel, faz8-lo parecer como tal . Pegar um sintoma, pegar uma crianca Wegen-Waigen, simples ponte verbal? Sobredeterminagéo e ambivaléncia implantadas na lin- guagem Origem e destino do afeto 17 de margo de 1971 Por que procurar além das representagées? A associacio sustentada pelo afeto .. © sintoma é 0 desfecho de uma circulacio orientada A angistia como destino da libido A angistia antes da fobia ce Sonho de angistia ¢ realizacdo de desejo sonho “minha mie querida” © sonho “o homem com o machado” 31 de margo de 1971 A angiistia “‘soldada”” Deslocamento ¢ transformagao do afeio .... Diferenga essencial entre sonho e sintoma . © ego na periferia do sonho © périplo histérico © nosogréfico das fobias Da obsessio. “psiquica’ pasando pela angtistia “neurética”. até a de angGstia, que nao substitui um medo por outro 21 de abril de 1971 1915: metapsicologia da histeria de angistia Uina primeira teoria do “sinal” Tentativa de aplicaglo ao caso “Hans” Dificuldades Nem pura angistia econémica, nem medo substituida Pressentimento do ataque interno . 80 80 86 88 89 ot 92 93 94 96 97 99 101 103 - 105 106 107 +. 109 . 110 - 110 m1 114 7 120 121 123, 125 . 127 — 5 de maio de 1971 Introdugo & leitura de Inibicdes, Sintomas e Ansie- dade Byebaous0 . 129 — 19 de maio de 1971 Genealogia das situagdes de angiistia ...........4.. 131 Motivos para uma revisio 2.0... eccccecseeeee 133 Recentralizagio na_castragéo. weve 135 «mas redugdes ameacadores cece 158 A angistia nfo € um meio de adestramento . 141 ‘mas 0 restante inconeilidvel do desejo .. 142 2. A angiistia na t6pica ..... 5 cece 143 — 14 de dezembro de 1971 Falar de andlise a “nfio-analistas” ..... 143 Estamos todos “em anélise” Babee . 144 Levar em conta a anélise. .. ot “contabilizé-la”? .... 145 Pulsdo, angistia, sociedade: onde situé-las? ....... 147 — 11 de janeiro de 1972 Primeiras transformacies da t6pica freudiana ...... 149 Modelo t6pico de A Interpretacio de Sonhos 154 156 ‘Uma construglo progressiva ... fob “Lugares”” heterogéneos cece - 158 ‘Um percurso em ziguezague 9900005 — 18 de janeiro de 1972 © que implica uma t6pica : 162 Niveis de realidade . 5 164 Tépicas reais do neurdtico ......66.-++ 165 Que corpo na t6pica? .. . 166 enrolamento do “‘tangue” : 2 168 169 Tangéncia de dois circuitos Além do Principio de Prazer. e seu modelo t6pico . — 8 de fevereiro de 1972 Significagéo econémica do limite: a consténcia 177 A dor, que néo desprazer 179 ‘A dor na t6pica . 180 . 171 172 A dor, pseudopulsio ‘Treumatismo © neurose traumética 22 de fevereiro de 1972 Susto, angistia e medo © traumatismo na t6pica © transbordamento A angéstia: mobilizasicimobilizagao. Comparagio dos dois modelos t6picos Niveis do modelo de Além do Principio de Prazer Complexidades de uma “‘derivagio” 14 de margo de 1972 Derivagéo metéforo-metonimica: movimento do ser Nem empitismo do significado, nem formalismo do significante Uma signifieago aquém da linguagem Situagio do traumatismo em relagdo a uma periferia Nociio do ego, a propésito das neuroses trauméticas 11 de abril de 1972 Duas t6picas e sua charneira: a vesicula ... ‘Tangéncia © encaixe .... Dor e traumatismo: efracio, mas de que invélucro? Concentracio do ego . Dilatacdo do ego Arteulagho do ego © do corpo no ponte de impacto la pulsio ; 25 de abril de 1972 A angistia na t6pica Desconhecimento por Freud, historiador, de su pri- meira teoria da angistis A angiistia; 0 menos 9 de maio de 1972 iquico” dos afetos Dois cixos da “primeira teoria” No caso de Hans: angtstia mantém-se irredutivel a qualquer medo, ainda que seja o da castragio 182 184 187 188 189 191 192 195 196 198 200 203 204 205 207 208 210 212 213 213 215 217 218 219 220 + 222 — 30 de maio de 1972 Toda tépica € do ego ........ 228 O ego, lugar da angistia » 224 Situagéo, em relac&o & barreira do secalque,, da angts- tia, da castraglio e do Edipo . . ween 226 oO toma, substituto do reealeante? » 228 Redistribuigéo das cartas na “nova teoria” . 229 A castragao: realidade ou estrutura a posteriori? 231 Edipo e castracfio nfio poderiam estar separados 233 Fobia de castraco e agorafobia: expor o ego & puni- sao ou & sexualidade? anes 234 As duas teorias: alternativa ou dialética?™ wee 235 3. A angistia moral . 237 — 14 de novembro de 1972 A metapsicologia: quem a reporé “em pé’ . 238 Banalidade da autopercepgao da t6pica . 239 A tépica, lugar do conflito e da angiistia 241 — 28 de novembro de 1972 Natureza ¢ cultura: uma reparticfo t6pica que pare- ce evidente : ee Id = naturezs, ego = cultura, ..: equagbes @ ques- tionar : : 246 Duas manciras de a natureza se fazer “representar” . 248, A anélise 86 se ocupa da sexualidede coos 250 — 12 de dezembro de 1972 © impacto t6pico das normas coves 252, superego: uma evidéncia... ¢ uma facilidade .... 254 Clinica da neurose obsessiva: as autocensuras 256 A evolucdo da sintomatologia ...... , 257 © Homem dos Ratos - 259 © crime do pensamento ceeeeeeee 259 Isolamento do contetido representative 260 © que esté em jogo numa discussio: 0 desejo incons- ciente : ceeeese es 262 © desejo: vniea “modalidade” do pensamento incons- ciente : 264 — 9 de janeiro de 1973 © testemunho da Tinguagem Nio ha inocéncia no inconsciente Surgimento do sadomasoguismo A divida: seu circuito no sintoma circuito do tratamento suito dos ratos Circuito familiar da divida A divida nfo se transmite diretamente. mas por sua desqualifieagdo em circuito dos ratos ° ° ° — 25 de janeiro de 1973 ‘A nogio de sadomasoquismo: para os sexélogos. € para Freud: da perversio, a0 destino pulsional Instauragdo da cena interior sadomasoquista D. Lagache ¢ 0 “‘conflito de demanda” G, Deleuze ataca os pontos fracos. .. ‘mas no quer ouvir falar de método analitico Verdade do sadomasoquismo: © neurético, maquinista e supliciado © homem dos ratos como rato Palavras © pensamentos: ratos excrementicios A “ei”: altemente simbélica e eltamente séptica — 15 de fevereiro de 1975 ‘A melancolia: introdugdo as instdncias ideais © que é 0 narcisismo originério? Nercisismo ¢ ideal : © superego: olho & voz Melancolia e campo de depressoes © luto no € um afeto simples © trabalho do luto A melancotia: no sentido préprio ‘Trabalho ligado a uma perda © vineulo nareisico Uma identificegao acusadore Debate com o objeto, debate com 0 ego Identificagdo e identificacao priméria . 265 . 267 - 267 268 270 . 270 an 213 273 274 276 277 278 279 280 281 282 ~ 283 286 287 288 - 289 290 291 293 294 - 295 297 298 299 300 301 302 icacdo narcisica ........... 304 narcisismo é a identi A escolha narcisica: totalitéria © frégil o 305 Ambivaléncia e desuniGo. pulsional weceees 307 Luto, luto patoldgico, melancolia: trés constelacies .. 308 ‘A sombra do objeto perdido: o mau introjetado .... 309 13 de margo de 1973 Quem persegue quem, na tépica depressiva? 312 O “self” correlative e alibi do “‘ego auténomo” .... 313 superego, herdeiro do Edipo: O Ego ¢ 0 Id 314 As identificacSes estruturantes do ego . 316 Ideal do ego e “‘identificagio priméria com o pai” .. 317 O Eedipo . co 320 8 de maio de 1973 10 do Edipo: rentincia © identificagdo . 322 Paradoxo fundamental da identificaco: nfo hé iden- tificago com o rival . 323 © Edipo bissexual . 325 © Edipo néo ¢ um condicionamento nem uma homo- tetia : . 327 Situagio ‘pica da assungio do sexo + 328 Ego ideal e ideal do ego feeeeee 329 22 de maio de 1973 sistema das instancias ideais: D. Lagache - 332 © superego, instincia contraditéria ........ - 335 Origens do superego: 0 problema t6pico 336 Melanie Klein questiona a concepeao freudiana exces- sivamente simples ....... 337 E a pulsto que alimenta a severidade do superego... 339 Cestrago e perda de amor : : + 40 Superego e “‘pulsio de morte” - 342 (© superego arcaico e feroz: um rato 344 Adverténcia Desde 1962 na Ecole Normale ¢ desde 1969 na UER* des Sciences Humaines Cliniques na Sorbonne (Université Paris VII), venho buscando ¢ expondo, num curso pilblico, um método inter pretativo e de levantamento de problemas, ao longo de cerios eixos principais da teoria psicanalitica. Sob o titulo geral de Probléma tiques (Probleméticas), 0s cursos a partir dos anos 70-71! estio aqui reunidos. O texto oral sojreu apenas as modificagées neces- sdrias & sua publicagiio em tivro, Os temas dos anos sucessivos encadeiam-se segundo uma I6- ica que nada tem de deliberada: 0 percurso rege-se ao mesmo tempo pelo contetido e por minha evolugéo pessoal. Sé depois descortinei a possibilidade de, sem excessivos artificios, reagrupar esses temas num certo niimero de volumes. © ciclo de um curso anual & iniciado, na maioria das vezes, por uma introducao metodoldgica mais ou menos extensa. Impres. sas em itdlico, essas introducées dispensam-me de retomar aqui suas idéias, Sao o relato de uma reflexio posterior sobre as moda- lidades de minha abordagem ¢ sobre a legitimidade de desenvol- véla “na universidade’ E evidente que 0 leitor, segundo suas disposicées e sua dis- ponibilidade, poderd reagir a esta publicagao de duas maneiras. © classicismo das wogdes upresentadas, o fregilente recurso ao comentario critico. os retornos ¢ as repeticées (exigidos pelo Unité d'Enseigment et Rech IN. do 7 1. Foram inicialmente publicados no Bulletin de psychologie, depois, « partir de 1974-1975, na revista Psvchanalyse & Universi Unidade de Ensino © Pesquisa jaro de me dirigir, a cada ano, a um auditério em grande parte novo) poderdo fazer com que estes textos sejam considerados ‘um exemplo da muito desacreditada “exegese freudiana’’. Ou entdio, creditando-me uma certa paciéncia e benevoléncia para acertar 0 asso comigo, talvez o leitor seja receptivo a certos aprofunda- ‘mentos ou a certas sondagens, na tentativa de abordar a propria teoria levando em conta o método analitico, de modo a fazer ranger determinadas articulagées e a derivar certos conceitos. Através deste modo de tornar problemética a doutrina, mas também a his- t6ria e a clinica, esboga-se a configuragdo de uma outra temitica. A “Angst” na neurose — 18 de novembro de 1970 Este curso toma seu lugar dentro da UER A OBIECAO des Sciences Humaines Clinigues, 0 que DE PRINCIPIO nao deixa de suscitar algumas questées, ‘A UM ENSINO até mesmo paradoxos, que eu gostaria de DA PSICANALISE examinar em primeiro lugar. AUER des SHC esié orientada para uma determinada meta de formacio. Procura tornar mais flexivel as Jronteiras entre ensino e formacdo ou ainda entre ensino, prética € pesyuisa, Disso é testemunho, por exemplo, a sua politica de estigios ¢ 0 Jato de que a quase tolalidade dos docentes so pessoas que exercem a clinica ou a pesquisa; ¢, no corrente ano, a fun- dagao de um “Instituio de Formagao” apés a maitrise. Em oposigao aparente a esse objetivo, sao propostos “grupos” de psicandlise, que sio seminérios tedricos (nao se fard neles and- lise “de grupo") e até mesmo um curso denominado “magistral” que é este. Aparentemente, estamos, pois, em psicandlise, na retaguarda em relacao a concepeao geral dessa UER ¢ as aspiragdes de muitos de vocés. Vocés nao ignoram a existéncia, fora do ambito université- rio, de uma formagio psicanalitica que, sejam quais forem as dife- rencas entre as escolas que a Jornecem, tem por pedra angular a 2 AANGUSTIA andlise individual e como método complementar os tratamentos controlados. Isso no se constituiv de um dia para o outro, mas, tateando, no decorrer da jd longa hisiéria da psicandlise, desde os anos 1900. Nao recapitularei essa histéria nem me estenderei sobre as diferentes interpretagbes dadas & chamada psicandlise “de forma- ¢io”. £ certo, em todo caso, que a andlise pessoal é 0 caminho real para se ter acesso a alguma parte da verdade psicanalitica, Freud retoma com fregiiéncia esta formula de Goethe: “Aquilo que her- daste, adquire-o para que 0 possuas.” Isso nao € uma {6rmula empirista, néo é a aquisicao de um savoir-faire. “A psicandlise nio se ensina, transmite-se”, diz-se com fregiiéncia. E mumerosos psica- nalistas insistem: “Mas ndo se transmite como uma receita.” Jd estd tudo af, cumpre apenas adquiri-lo, apropriar-se dese conhe- cimento. Jd estd tudo no préprio inconsciente de vocés, como jd estava no inconsciente de Freud. Mas esse inconsciente, intemporal, deve ser readquirido, reassumido no tempo. Visto do angulo da experiéncia do iratamento pessoal, o ensi- no tem mé reputagdo entre os psicanalistas. O ensino, diz-se com freqiténcia, s6 serve para aumentar a confuséo do chamado saber constituido. E essa critica entra no quadro daquela oposicio que valtou & moda, mas cujos termos conviria ponderar cuidadosamen- te quando seu uso for além do polémico: a oposigdo entre o scber € a verdade. O saber seria 0 que é depositado, constituldo, sistema tizado; precisamente aguilo que 0 individuo deve superar, por exemplo, em sua anélise, rumo a sua prépria verdade, para além desse pretenso saber sobre si mesmo. Tal como o individuo em sua andlise, também a propria psicandlise, em seu movimento, deveria poder ultrapassar sua doutrina constituida, Mas em que diregtio? Outra eritica: os psicanalistas pensam que, afinal, tecria e ensino da teoria psicanalitica apenas aumentam a confusio jé con: siderdvel das linguas, essa espécie de malabarismo de conceites que pode existir atualmente na literatura psicanalttica, e reforgam a defesa dos psicanalistas — ¢, simplesmente, dos homens contem- portneos — em relacao a seu préprio inconsciente. Essa fungao defensiva do saber e da teoria foi sempre assina- lada (desde o nascimento da psicandlise), principalmente peles ter- mos, bem conhecidos, intelectualizago e racionalizarao — intelec- tualizagao e racionalizagio sendo modos de recusa do afeto ow, A“ANGST" NA NEUROSE A ‘numa linguagem mais recente, do desefo. Contudo, Freud nto se absteve de ensinar, Foi professor em Viena durante longos anos e, embora tenhamos muito poucos relatos de seus cursos, conhecemos 40 menos um que é central: Conferéncias Introdutérias sobre Psi canélise, que constitui o relato de suas aulas de 1916-1917 ¢ é apenas um curso entre outros, visto que de 1900 a 1917 Freud ensinow psicandlise. Além disso, recorreu freqiientemente & forma didética para redigir alguns de seus artigos, como se, na verdade, @ forma de ensino como didlogo the parecesse especialmente inte- ressante. Um fato, talvez ainda mais caractertstico, € que nesse ano de 1917 ocorre em Budapeste a revoluedo bolchevique. Bela Kun toma o poder e, com ele, 0 principal discfpulo de Freud, Sandor Ferenczi, é imediatamente nomeado para o cargo de pro- fessor de psicandlise na Universidade de Budapeste, f nessas cir- cunsténcias que uma espécie de questiondrio serd enviado a um certo mimero de médicos e personalidades, a fim de indagar como concebem um ensino renovado de suas respectivas disciplinas, no seio dessa universidade “‘revoluciondria”. Freud responde, mum artigo intitulado “Devese ensinar psicandlise na Universidade?”, € sua resposta 6, no todo, extremamente positiva, Mas, objetar-sed, tudo isso era muito bonito num periodo em que o ensino da psica- ndlise ainda tinha um impacto de subversto; hoje, porém, ele esta- ria mais vinculado ao establishment. Nessa época, a psicandlise descobria ensinando-se 0 seu préprio caminho rumo & verdade, rumo i sua verdade, a qual, aliés, coincidia simplesmente com a verdade de Freud. Com efeito, a verdade do inconsciente € uma 86, e ela ali estava, descoberta na prdpria exploragto que Freud Jazia do sew inconsciente. Mas repetir a verdade de Freud serd ainda repetir a verdade? Assim, 0 préprio Freud passaria para 0 lado da defesa ou daquilo que se chama de “repressio”. A “repress”, como sabemos, pode adotar diferentes aspec- tos, sendo um dos mais evidentes nos nossos dias aquele a que se dé0 nome de difusto, vulgarizacéo, “‘recuperaciio”. Por esse lado, no que se refere & psicandlise, estamos — se me permitem dizer — muito bem servidos: neste século, a psicandlise esté por toda a parte, banhamo-nos nela. Ela ai esti, no piiblico, do qual ela molda amplamente certas reagdes, como um fendmeno de psicolo- gia social, Um livro, jd wm pouco antigo, La psychanalyse, son 4 AANGUSTIA image et son public, de Serge Moscovici, fez, num determinado momento, 0 balango dessa influéncia. Essa “imagem” implicita, vulgarizada, serd tao errénea quanto se poderia esperar? Néo estou certo disso. Mas a psicandlise também estd presente para o “leitor de cultura média”, vocés e eu, aquele que, por exemplo, iré “fazer uma demanda de andlise”. Escrevem-se ‘A PSICANALISE tratados de psicandlise; a psicardlise 6 COMO SABER até mesmo apresentada como ciéncia CONsTITUIDO constituida. Tratar-sed de uma ciéncia constituida no mesmo sentido en que esse termo & empregado com respeito as ciéncias “exatas”? Para demonstré-lo, seria necessério que ela jose cumulativa, ou seja, que os conhecimentos que proporciona se somassem a um certo fesouro acumulado e que, por outro lado, ela ultrapassasse suas hipoteses precedentes, incluindo-as. Pensemos no que aconteceu com a passagem da fisica newtoniana para a fisica einsteiniana: os\ fatos jd descobertos nao foram anulados, mas reiomades num sistema explicativo mais amplo. Enfim, seria necessdrio mdstrar que ela pode esquecerse de sua prépria histéria. Creio estar af 0 ponto mais importante: em que medida uma ciéncia esquece sua historia? Até que ponto ela pode se apresentar de imediato como tum sistema? O préprio Freud, afinal, escrevew tratados de psica- ndlise, “resumos”, em que tenta, precisamente, esquecer a hist6ria de sua propria descoberta. Que situagdo encontra nosso “leitor de cultura média” no campo do saber psicanalitico? — Em primeiro lugar, @ avalanche de publicagées, de que um compéndio conto The Index of Psychoanalytic Writings (O Indice de Escritos Psicanaliticos) nos dé uma idéia ainda incompleta. Nenhum tema de trabalho, proposto por um pesquisador, pode ter @ pretensio de avangar num terreno relativamente virgem. — Em seguida, 0 particularismo da linguagem, através das diferentes escolas, ou mesmo diferentes seitas, podendo chegar, em certos casos, ao esoterismo. 4, Paris, PUF, 1961, © 2 ed. intelraments refundide, 1976, [Edigfo brasileira: A Representactio Social da Psicandlite, Zahar Editores, 1978.) A “ANGST” NA NEUROSE 5 — Como conseqiiéncia dos dois pontos precedentes, a difi- culdade, para cada leitor, em ligar, em concatenar as coisas, em formular ele proprio a sua perspectiva. Aquele que entra na lite- ratura psicanalitica, no importa por que entrada desse imenso edificio, é levado, quase necessariamente, a jormar para si uma espécie de sistema de pontos de vista pessoal, jorcosamente fal- seado, onde esti lado a lado nocdes pertencentes a diversas esco- las e a diferentes épocas. Verd misturarem-se nogdes como, por exemplo, a de “ego autdnomo”, que veio da psicandlise americana; ade “traumatismo”, que, pelo contrdrio, esté ligada aos primérdios da psicanélise; ou ainda a de “objeto bom”, que foi proposta por uma escola muito particular: a escola inglesa de Melanie Klein — Outra caracteristica ainda é que 0 nosso “‘leitor de cultura média” perceberd imediatamente (e talvez se escandalize com isso) @ onipresenca de um personagem central. Quero dizer que, em psicandlise, incessantemente recorremos a © RECURSO Freud, aos textos freudianos, que se apre- ‘A FREUD sentam como uma sacrossanta biblia, Afinal, essa referéncia a um texto nao constitu algo original. Na Idade Média houve a referéncia a Aris- t6teles; em toda uma corrente do pensamento sécio-econémico con- temporineo hd a referéncia a Marx. Alids, seria interessante realizar um estudo comparado sobre as diversas maneiras de jazer referén- cia a um texto bésico, considerado o corpus que se cita e se discute. Talvez pudéssemos perceber, apesar dessa aparente semelhanca, que a escoldstica é muito diferente conforme os trés personagens em questao: Aristéieles, Marx e Freud. Em todo caso, em psicandlise, ainda que se faca referéncia a Freud, € certamente de um modo muito cauteloso. Nao se chega, no entanto, a invocar Freud como argumento de autoridade; 0 que ‘nos importa é, talvez, menos 0 recurso a Freud do que o retorno a Freud, Freud como iniciador da psicandlise, por si s6, jd constitui um problema, A necessidade de retornar as origens é suficiente para suscitar um problema epistemoldgico quanto ao estatuto dessa ciéncia, desse modo de conhecimento que a psicandlise pretende, ser. Para dar 0 exemplo da fisica, retorna-se a Galileu? Retorna-se a Newton? Retcrna-se até mesmo a Einstein? Certamente nao, salvo no caso do historiador da jisica, 0 que é uma especialidade muito | particular. O fisico utiliza as descobertas de um ou outro de seus 6 AANGUSTIA grandes precursores, mas sem retornar explicitamente a eles; dio hd uma volta constante a uma reflexto sobre 0 modo de surgi- mento da descoberta. Entdo, dirdo vocés, isso acontece porque a psicanélise ndo € uma ciéncia, e porque ela é apenas o tliimo avatar da filosofie. E vocés sabem que a filosofia tornou-se cada ver mais a histéria da filosofia. A filosofia é verdadeiramente inse- ardvel de uma reflexiio e de um retorno incessantes sobre si mes- ma e sobre os sistemas que descobriu, sobretudo depois de Hegel € ainda mais no momento atual. A histéria da filosofia é (disse Marx), ao mesmo tempo, a morte da filosofia. Mas a filosojia con- tinua muito saudével, fazendo sua prépria hist6ria. .. A psicandlise nao 6, porém, a historia da psicandlise; é uma ciéncia na acepeao ‘mais ampla ou, pelo menos, visa constantemente ser uma ciéncia; isso, precisamente, na medida em que visa formular verdades acerca de um objeto, que é 0 inconsciente, Mas a particularidade dessa ciéneia é, em sew préprio surgimento, estar vinculada & hist ria de seu proprio objeto. Quero dizer que a descoberta freudiana estd necessariamente ligada a descoberta, por Freud, do seu préprio inconsciente e de certas dimensées que se encontram 0 incons- ciente de todos e de cada um. A psicandlise tampouco & historia, pelo menos no sentido mais banal do termo, ou seja, ela ndo apresenta um desenvolvimento cronoldgico com um antes e um depois, de modo que se possa dizer simplesmente ¢ sem outra ressalva: antes de Freud, em Freud @ depois de Freud. Quero dizer que a cronologia, dimensio impor. tante na historia das idéias, talvez ndo HISTORICIDADE tenka na psicandlise exatamente 0 mesmo ESPECIFICA lugar que tem em outras partes. Mas DA DESCOBERTA neste ponto, entretanio, quero caminhar or alguns instantes no sentido ‘nverso do que estou afirmando. E certo que, para aguele que estava na hhistéria da descoberta analttica, quero dizer, para Freud, havia um problema de cronologia; cada uma de suas descobertas, pe- guenas ou grandes, ou até pseudodescobertas, eva assinalada, em seu inicio, por uma espécie de exclamacéio, por um “eureka!” “Descobri, e isso merece ser datado.” Para que voces percebam essa dimensio ¢ também essa iluséo cronoldgica de Freud, reme- to-0s & correspondéncia com Fliess. Nela, Freud escreve, tomado de entusiasmo (por vezes também de depressio): “Jd te revelei um A ANGST" NA NEUROSE 7 grande segredo como: a histeria é isto, a neurose obsessiva é aquilo...?” ou ainda esia passagem famosa: ‘‘Crés verdadeira- mente que um dia haverd sobre a porta de casa uma placa de mdrmore onde se poderd ler: Foi nesta casa que a 24 de julho de 1895 0 mistério do sonko foi revelado ao Dr. Sigmund Freud?” Em reveréncia a essa iluséio cronolégica, a placa foi efetivamente colocada mais tarde por seus discipulos. Mas 0 monumento escrito é mais complexo: permite pressentir 0 que é a “histéria” da psica- nilise, como se avanga, por certo, de descoberta em descoberta, mas, sobretudo, como as descobertas jamais so tao descobertas quanto se acredita, quanto o préprio Freud acreditava que fossem. As descobertas senipre sao identificadas posteriormente. No entanto, para Freud, "nessa espécie de movimento em espiral que the fez descobrir coisas que, no fundo, ele id tinka pensado, impoese a necessidade de, a cada espira, “marcar a data”, na acepetio mais Jorte que essa expressdo possa ter. Eis uma outra passagem onde © humor da apresentagao apenas acentua a violéncia da exigéncia: “Carissimo Wilhelm, isso aconteceu a 12 de novembro de 1897; © Sol encontravase no dngulo oriental, Merctirio e Venus estavam em conjungao. Nao, as participacoes de nascimento nfo so mais redigidas desse modo. Isso passow-se a 12 de novembro, um dia dominado por uma enxaqueca unilateral esquerda; depois do almo- 0, Martin instalowse para escrever um novo poema; a tardinha, Oli perdew seu segundo dente e, apds os terriveis tormentos destas tiltimas semanas, eu trouxe a luz mais algumas nodes. Na verdade, elas ndo sdo inteiramente novas, tendo jd aparecido e desaparecido sucessivas vezes, mas agora estabilizaram-se e viram a luz do dia.”® Ao mesmo tempo que “marca data”, Freud é obrigado a reco: nhecer 0 aspecto de retorno ciclico, ¢ a comparagio com 0 movi: ‘mento astral fem suas razdes profundas. A descoberta da psicandlise, e esta afirmacdo nada tem de ori ginal, é, nessas cartas a Fliess, a auto-andlise de Freud. O movimen- to da descoberta, em psicandlise, nao é cronoldgico; tudo pode ser questionado de novo e, inversamente, o assim chamado “ignorado” 0 que é “o sempre sabido”. Para situar as caracteristicas da 2. Em La naissance de la psychanalyse, Paris, PUR, 1973, p. 286. [ESB — em Bxiratos dos Docurtentos Dirigidos a Fliess; vol. 1.1 3. Ibid, pp. 205-204 8 AANGUSTIA hist6ria psicanalitica em relagio a outras concepedes da historia, talvez fosse interessante uma referéncia ao que Althusser chamou de “corte epistemolégico”. Estudando a obra de Marx, pensou ter descoberto nela, precisamente, um momento em que, apesar de todas as aparéncias ¢ de todos os retornos ulteriores as antigas terminologias, 08 conceitos subitamente “dao uma virada’” ¢ assu- mem um valor cientifico que nao possuiam antes. Qualquer que seja o valor desse conceito para a historia do marxismo — ¢ con- 4ess0 minha total incompeténcia no assunto — eu oporia de bom gradé a essa nogo de “corte epistemoldgico”, que considera a hhistOria das ciéncias como progresso (descontinuo, mas progresso), um conceito que é central na historicidade freudiana: 0 ccnceito de posterioridade. O que significa posterioridade? Significa que, tanto no desen- volvimento do individuo como na sua andlise, nio se pode, na verdade, utilizar 0 conceito de causalidade puramente lineur, ou seja, que 0 antes nunca determina o depois de maneira puramente mecdnica, nem, inversamente, de um modo simétrico, um conceito que seria pura ¢ simplesmente o da reinterpretagao a posteriori, ou mesmo da ilusao retroativa, ou da ilusto retrospectiva, Tam pouco —e é agui que nos separamos do “corte epistemolégico” — uma ruptura dialética, definitivamente consumada, com 0 pas- sado. Se realmente existe em psicandlise uma espécie de didlética, ela é sempre precdria em sua trajet6ria, é a dialétiea de um “‘cedo demais”: acontecimentos que surgem cedo demais para serem com- preendidos, para assumirem verdadeiramente sua importiincia, ¢ de um “tarde demais”, com todas as jalhas, todos os re'ornos (preferimos empregar o termo regressio) possiveis. Uma historia, portanio, que nunca € téo nova quanto se poderia esperar, mas que também nao é to mondtona quanto se poderia supor. Falei de recurso a Freud, de retorno a Freud; pois bem, formularei agora o programa de um retorno sobre Freud e sobre © movimento psicanalitico. Retorno sobre Freud: 0 proprio Freud o fez imimeras vezes. £ impressionante ver quantas passagens ele dedicou em seus escritos & histéria do sew préprio pensa- mento, como reescreveu sua propria his- 16ria, Além dos textos explicitamente hist6ricos, como Um Estudo Autobiogréfico ¢ A Histéria do Movimento Psicanalitico, em quase © RETORNO SOBRE FREUD A “ANGST” NA NEUROSE 9 todos os escritos se encontra uma retrospectiva histérica, um re- torno sobre Freud por ele mesmo, nesse movimento de espiral Freud reescreveu sua histéria segundo uma éptica muito particular, onde a verdade de certas reinterpretagdes estd intimamente mistu- rada a dejormagio de certos elementos jatuais. Retorno sobre ele mesmo, num movimento de espiral, em que Freud acredita, por vezes, descobrir coisas que jd postulara hd muito tentpo. Em 1920, por exemplo, pensa anunciar uma grande descoberta com a nogio de “ego”, quando esta jd se encontra, na integra, nos primeiros escritos, Redescobre coisas como a “defesa”; e, mesmo no caso da introducdo de um conceito tao particular e tao estranho como 0 de “pulsio de morte”, pode-se perceber que, na realidade, 0 que houve joi antes uma nova redistribuigao do que uma verdadeira descoberta, Isto porque existe apenas uma grande ¢ nica desco- berta que engloba todas as outras: a descoberia, evidentemente, do seu préprio inconsciente. Descoberta do seu préprio inconsciente. Para voltarmos a esta UER e ao setor bem delimitado onde a psicandlise esté explicita- mente “‘programada”', quisemos manter 0, compromisso desse de- enn safio, mas “como analistas”, &. possivel paced ensinat a teoria psicanalitica como ans Berce listas? E possivel transmit, no ensino ¢ no estudo, algo da exigéncia que presidiu 4G descoberta? Quanto a mim, estar aqui significa que nao renuncio @ aproximar:me deste objetivo: um ensino psicanalitico da psica- niélise, Creio que um certo ntimero de condigdes minimas poderiam ser enunciadas, Mencionarei duas delas: Por um lado, esse ensino deve respeitar uma certa dimensio histovica, Uma hist6ria que consiga — e é nisso que o préprio ensino da andlise seria analitico — levar em conta as categorias temporais elucidadas pelo freudismo: a nogdo de repetigio, a nogao de ocultagao ou de recalque, a nogao de retorno do recalcado e, talvez ainda mais, a nogio de posterioridade. Para uma tal abor- dagem, as historias propriamente cronolégicas (Jones, ow Marthe Robert, por exemplo) sé nos podem servir de pontos de referéncia extrinsecos, esquemas ou esbogos. Um ensino psicanalitico da psicandlise também deve tentar ser interpretativo. Interpretar é algo que sempre foi feito; mas Freud 10 AANGUSTIA forneceu um método de interpretagto muito preciso, basealo em determinadas regras: “livre associagto” no analisando e “ctengio livremente fluuante” no analista, Essas regras resultam numa esp6- cie de desestruturagio dos contetidos: tudo 0 que é ouvide, tudo © que é associado, deve ser colocado mum mesmo plano, numa verdadeira aplainagdo. Tratese de um método de interpretactio inteiramente original, que se opde tanto aos antigos métodos a que Freud, no entanto, se refere, quanto aos que constatames com excessiva fregiiéncia em nossos dias: a utilizacdo de conceitos ana liticos como chaves de uma nova hermenéutica. Interpretar Freud, sim, mas interpretar Freud com o método de Freud. O que poderd sobrar para interpretar textos mortos, uma literatura, até mesmo piara interpretar 0 movimento psicanalitico? Em todo 0 caso, nao é — ou nio é essencialmente — recorrendo ao anedético, a viven- cia individual, isto é, @ vivencia de Freud, as transjormagses de sua existéncia pessoal, aos seus “complexos”, que se deve proce- der, Creio que se deve chegar, por um lado, a encontrar uma transposigao desse método de aplainagéo para o nivel da leitura dos textos e, por outro lado, a situar-se num campo intermediario onde funcionaria a interpretacio. Nao se trata de fazer uma psica- ndlise de Freud, de Melanie Klein ou de Ferenczi, mas de visar esse campo intermedidrio que, por vezes, designo com o termo “oxigencia”, Exigencia tedrica que, para nds, é apesar de ‘udo a refrac, no nivel da descoberta (quando esta se exprime ainda em sua fonte), € como a sombra ou 0 embaixador de um desejo que, este, certamente nao pretendemos interpretar. Desejo, prazer, aspiracdo... todos esses termos nos remete- tiam a uma filosofia do futuro, e até do “projeto”. Ora, a psica- nélise € censurada, com certeza, e com fundamento, por tet a pretensio de. ser a desmistificago desta dimensio do projeto. E mesmo esse famoso “‘desejo”, tio exaltado em nossos dias por certos psicanalistas, com acentos quase mfsticos, ndo esté, acima de tudo, matcado pelos primeitos achados que 0 moldaram? Vocés conhecem a famosa f6rmula de Freud: “Encontrar 0 objeto 6, de fato, reencontré:lo.” Toda a psicandlise se constréi sobre uma des- confianga em relago Aqueles que entoam 0 hino ao desejo, A“ANGST" NA NEUROSE n Teré sido para marcar essa nota pessimista, antidionisface, que centralizei este curso no que podemos chamar de afetos nege- tivos: desprazer, dor, angtistia?* Gostaria de tentar, este ano, situar a fuunedo deles: por um lado, no desen- cadeamento do proceso psiquico (em que sentido, por exemplo, Freud atribuiu mais a0 desprazer do que ao prazer a dintmi- ca do processo pulsional?), e, por outro lado, na formaco dos sintomas, uma vez que, aqui, a angistia é central. Mas gostatia também de definir com precisio suas relagdes reciprocas, que estéo longe de ser simples: desprazer ¢ dor, em particular, absolutamente no sio sindnimos, apesar de certas Iei- turas um tanto apressades. Existe em Freud no apenas uma teoria do desprazet, relativamente simples, mas também uma teoria da dor, considerada, em sua relagdo com 0 corpo, como eftagao. Bssas relagdes do desprazer, da dor e da angistia podem até nos ensinar algo acerca da relagao do psiquismo com 0 corpo — no no sen- tido das velhas relagdes da alma e do corpo, mas quanto aos modos de transposicio, de derivagio ou de metéfora segundo os quais, estes dois domfnios se comunicam: 0 da estrutura psfquica (nota damente 0 do ego) & © do corpo. Esta reflexdo talvez consiga esclarecer-nos um pouco acerca da teoria ¢ da fungo geral dos afetos,e acerca daquilo que os psicanalistas denominam registro Cecondmico” Para Freud, esse é uum dos aspectos da teoria psicanalitica Em Seu nivel mais abstrato, que ele denomina “‘metspsicologia”. E, na metapsicologia, ele dis- tingue 0 ponto de vista‘ s6pico,’ também denominado atualmente ponto de vista estrutural, ou seja, 2, consideracio dos diferentes lugares psiquicos e sua interagio; por exemplo, inconsciente ¢ pré- consciente, ou 0 ego € 0 superego. Aqui o psiquismo é considera- do um aparelho constituido de partes extra partes que atuam umas sobre_as_outres. Ao lado desse aspecto t6pico, temos 0 aspecto indmico, que leva em conta a teoria do conflito. Sdo aspectos Gue 86 Se distinguem por abstraco ¢, evidentemente, 0 ponto de FUNCKO, ESSENCIAL DOS AFETOS NEGATIVOS 4. © titulo snunciado para este curso era: “Angoisse, douleur, déplsisic” (Angistia, dor, desprazer") 12 AANGOSTIA vista dinfmico, 0 do conflito, s6 se concebe em relacio_com 0 ponto de vista t6pico. Por fim, hé © ponto de vista éconSmic que leva em consideracdo a quantidade. Essa nogio de quintid de, mantida ao longo de toda a reflexdo psicanalitica, néo apenas em Freud, pode ser considerada, por certo, um remanesceate de certo cientificismo do fim do século XIX. Mas, de fato, adepta-se de maneira privilegiada a um certo campo clinico que Freud des- cobre justamente nesse final do século XIX. Tanto no estudo das “neuroses atuais” — neurose de angtistia, neurastenia (logo tere- mos ocasiio de falar delas) — como, sobretudo, na anélise das histerias, Freud percebe a necessidade de distinguir dois elementos nos fenémenos psiquicos: afeto, por um lado — reago emocional ou sentimental —, e, por outro, representagao — contetido idzativo. ‘A distinggo poderia parecer abstrata, mas a descoberta concreta de Freud € de que temos o direito de distinguir entre afeto © repre- sentagio, pois 0 que se observa € que esses dois elementos podem ser independentes um do outro; que so suscetfveis de se deslocar um em relagéo ao outro; que um afeto pode reproduzirse sem representagio € que a psicandlise pode permitir reencontrar a representagiio ausente; que um afeto pode estar ligado 2 uma certa representagéo que no o justifica de maneira nerhuma, ‘Assim, em Estudos sobre a Hisieria, vemos uma paciente tet uma crise de angtstia ligada ao aparecimento da imagem quase alucina- téria de um certo rosto que, em si, nada tem de assustador. # isso que Freud denomina “falsa conexao”, ¢ todo o trabalho psicana- ico nessa época (e também uma parte desse trabalho em nossos dias) consiste em deslindar essa felsa conexio, em encontrar a representagao que ésté verdadeiramente vinculada a esse afeto © 0 justifica historicamente, em reconstituir as cadeias de representa- ges que ligam essa primeira representacio — que justilica o afeto — a iiltima — esse rosto —, que ndo o justifiea mas que, no entanto, esté associado a ele no sintoma. Assim, nfo foi unicamente em fungdo de pressupostos tebricos que Freud enunciou, no final de um de seus primeiros artigos, 0 principio que rege 0 ponto de vista econémico: “Para terminar, gostaria de mencionar em poucas palavras a represeniagdo auxiliar de que me servi para essa apresentagio das A "ANGST" NA NEUROSE 13 neuroses de defesa. Nas fungdes psiquicas ¢ @ representagéo que se deve distinguir, algo (quantum de afeto, soma de excitagao) que possui todas as caracteristicas de uma quantidade — embora nio disponhamos de qualquer meio para medita —, algo que pode ter aumento, diminuicao, deslocamento e descarga, e que se estende| sobre os vestigios mnésicos das representagdes um pouco como uma) carga elétrica na superficie dos corpos.””* Trata-se, evidentemente, de um modelo fisicalista, mas que esté diretamente fundamentado na experiéncia, De fato, é na clinica que se pode constatar a capacidade de um afeto para aumentar, diminuir, mas, sobretudo, para ser deslocado ou descarregado. A idéia de descarga sugere um dos aspects da terapéutica de Freud nessa época, aquele que consiste em fevorecer uma certa explosio emocional: 0 aspecto “catértico”. “Pode-se utilizar essa hipétese, que, alids, jd se encontra na base de nossa teoria de ‘ab-reacio’ [ab-reacio € o mecanismo do método catértico, 0 fato de uma descarga emocional ser favorecida no decorrer da cura}, no mesmo sentido em que os fisicos postu- lam a existéncia de uma corrente de fluido elétrico, Essa hipstese justifica-se, provisoriamente, por sua utilidade para conceber © ex- plicar uma grande variedade de estados psfquicos.”" Nessa linguagem econdmicd, a oposi¢zo quantidade-represen- taco, ou quantidade-neurénios, é, portanto, a mesma coisa que a oposig&o clinica afeto-representacao, Em nossos dias, dew-se a essa oposi¢ao ainda uma outra interpretagdo, esta de tipo lingiistico: significado-significante, correspondendo o significado ao afeto, ou A quantidade, no pensamento freudiano, e o significante, evidente- mente, & representagao. & possivel, alids, que essas duas concepgdes ni sejam incompativeis. Mas 0 que importa, seja qual for 0 mo- délo, econ6mico ou lingiiistico, € que o afeto, quantidade ou signi- ficado, possa, em certos casos, tornar-se significante, tornarse uma certa representagio. Na teoria freudiana, é toda a evolugio que leva de uma concepoao puramente econémica da angistia, como 5, S, Freud, “Les psychonévroses de défense”, em Névrose, psychose et perversion, op. cit, p. 14. [ESB — As neuropsicoses de defesa; vol. 111.) 6, Ibid. Entre coleheres: comentérios de J. L. 14 AANGUSTIA simples descarga quantitativa, i angistia considerada como um sinal”’. Logo, 0 préprio afeto pode, por fim, assumir 0 valor de representagio. Acabo de evocar essa evolugio da teoria freudiana da angis- tia e isso me leva a indicar rapidamente, para este curso, algumas referéncias em textos freudianos. 12 La naissance de la psychanalyse: obra que retoma a cot- respondéncia de Freud com seu amigo Fliess nos anos 90 e, muito especialmente, duas passagens; por um lado, 0 Manuscrito E, “Comment nait l'angoisse” e, por outro, o “Projet de psychologic scientifique”, que se encontra no fim de volume, um capitulo inti tulado “Llexpérience de Ia douleur” * 28 8 textos sobre aquilo que, a partir de Freud, chanamos de “neuroses atuais” — entre eles o artigo intitulado “Quill est justifié de séparer de Ia neurasthénie un certain complexe sympto- ‘matique sous le nom de névrose d’angoisse” *. 32 Os textos da Métapsychologie: particularmente “Refoule- ment”, € também “Deuil et mélancolie” *, 4° Au-dela du principe de plaisir (mal traduzido mas aces- sivel) ®, 52 Inhibition, sympt6me et angoisse *: texto fundamental para © nosso tema, especialmente um dos apéndices desse trabalhc, que se intitula “Douleur et angoisse”. 62 Abrégé de psychanalyse: texto tardio de Freud. 7. Pads PUR, 3° elie, 1973. [ESB — "Como se oiina » amistad" sim Estraton don Bacomerios Dinles@ Fest Vols 1 Proje past Prcoog Coates ae 13 3. Em Névase, pace of perversion, Pars, PUR, 3* elo, 1878 a LCLrr—~—t—“—™ts—Ss—SsSSsSOesSOSSSO Aro portular ita “nourese de angato’s yl It) 9, Pas, Galinad, 968: [E88 "Repreio', “Tuto ¢ mele em Artie bre Mesa vel, XIV Em fsa de peyohanaie, Dn Payot, 1965, pp, 781. (ESB — Alin: do Principio de Prazer; vol, XVL} a UsPany PUP, 6 cgi, ISTE. (ESB — ibis, Siomas e Ane dade il} invari, PUR, 8 ed vol XT 1995. [ESB — Esboro de Psicandlise: A “ANGST” NA NEUROSE 15 — 2 de dezembro de 1970 Esta teoria nos permitité entrar diteta- mente no tema, isto €, na telaggo entre angiistia ¢ sexualidade. periodo a que me refiro, na evolu- Go do pensamento de Freud, € 0 de 1892-1895, periodo que se desenrola em dois planos relativamente diferentes. Pode-se distinguir 0 plano das publicagdes, em que Freud esté capitalizando uma experiéncia an- terior, suas primeiras psicoterapias das histerias, na obra que pu- blica com Breuer: Estudos sobre a Histeria. Mas, a0 mesmo tempo, ao se ler, por exemplo, @ correspondéncia com Fliess desse perfodo, chama 2 atengao o fato de Freud verse freado por essa colabore: fo, que o obriga a elaborar uma teoria que seja, em éltima ins- tancia, uma espécie de compromisso. Com efeito, ele tem que levar em conta os pontos de vista e as reticéncias de Breuer, tanto no que se refere & teorizago geral quanto em relaglo & descoberta da sexualidade — seu lugar na etiologia das neuroses ¢ da histeria, 2 0 fato de que ¢ sempre necessério retroceder mais e mais na his- téris sexual do individuo, ou seja, chegar & suposicio da existén- ia de uma sexualidade infantil. Portanto, neste plano da publica- Gio, os Estudos sobre a Histeria correspondem a um compromisso © marcam uma certa pause. © outro plano € 0 da atividade terapéutica de Freud, em que ocorre ento um certo deslocamento de interesse: sem divide, ele continua realizando psicoterapies e psicandlises, mas volta-se igual- mente para um outro campo que Ihe parece poder demonstrar, de modo muito mais evidente ¢ mais répido, a etiologia sexual das neuroses. E um dominio em que essa etiologia sexual j4 era admi- tida por outros, em que sua presenga era mais convincente, mani festando-se com freqtiéncia desde as primeiras entrevistes: uma presenca “atual” de dificuldades ou disfungoes sexuais, S20 deter- minadas anomatias da vida sexual atual que af se revelam facil- mente desde as primeiras entrevistas elfnicas, Freud explora esse campo das neuroses de maneira “ndo-psicanalitica” (ou, em todo 0 caso, sem praticar uma psicandlise) num németo considerével de casos de consulta PRIMEIRA TEORIA DA ANGUSTIA: A PROPOSITO DAS NEUROSES ATUAIS fe AANGUSTIA ““A titulo de trabalho preliminar, comecei a reunir uma cen- tena de casos de neurose de angistia; desejaria reunir iguilmente uma quantidade equivalente de casos de neurastenia nos dois sexos © de depressio periddica, estes mais raros. A guisa de comple- mento necessério [trata-se de uma espécie de contraprova, de grupo de controle], eu deveria estudar ainda uma centena de nervo- sos." " Ha, portanto, um plano de pesquisa clinica nfo quantita- tivo nem estatistico, € certo, mas relativamente superficial. Encon- tramos os resultados dessa investigaco nos seguintes textos: — “‘Qu'il est justifié de séporer de Ia neurasthénie un certain com- plexe symptomatique sous le nom de névrose d’angoisse”” (ar- tigo de 1895)"; — Dois manuscritos que correspondem 20 mesmo conteiido, mais breves © menos elaborados mas suficientemente explicitos (ma- nuscritos B ¢ E na correspondéncia com Fliess)#®, + © problema que se apresentou no artigo, como se vé pelo préprio titulo, € aparentemente nosoligico, classificatério: pode-se isolar uma certa sindrome de uma outra sindrome que, até agora, era considerada como fazendo parte de uma certa entidade mér- Dida, @ neurastenia? De fato, para Freud, tratase certamente de um problema nosolégico (Freud nunca fot hostil & -classificacto nosogréfica; pelo contrério, manteve-a ao longo de toda a sua obra); pata ele, a "s{ndrome” (para falar de algo mais préximo da obser- vaco que a doenga) s6 pode ser sepatada se os sintomas apresen- tam entre si uma ligaciio mais forte, mais freqtiente do que com 0 conjunto de sintomas do quit os destacamos ¢, sobretudo, se apre- sentam uma espécie de Tigacdo fiiterna, ou seje,-uma etiologia um mecanismo especifico. Partimos, portanto, da neurastenia, enti- dade isolada antes de Freud e de que muito se falava na época. Ela foi desc ta primeiro pelo ameticano G. M. Beard,-notadamente em dois artigos, de 1881 ¢ 1884. O primeiro intitulase “American ner- DA NEURASTENIA. 13. 8. Freud, La naissance de la psychanalyse, op. cit, p. Of. Entre colehetes: comentérios de JL. 14. Em Névrose, psychose et perversion, op. cit, pp. 15538, 15. Em La naissance de la psychanalyse, op. cit, pp. 61-67 © 8086. A ANGST" NA NEUROSE 7 vousness” (“‘Nervosismo americano”) e 0 outro “La neurasthénie sexuelle (épuisement nerveux)” [“Neurastenia sexual (esgotamento nervoso)'"]. Trata-se de uma sindrome de tipo depressivo, erGnico, com predominio de perturbagdes corporais difusas, perturbagSes de somatizagio, por assim dizer, com um certo néimero de distarbios funcionais mas, sobretudo, dores. Eis como a sindrome neurasténica passou a ser caracterizada em nossos dias, uma vez que ainda € considerada possuidora de um valor descritivo: frontier — por um lado, evidentemente, uma astenia intelectual, mas sobre- tudo fisica (é, na verdade, uma afeccio somética ou psicosso- mética), que se assemetha & fadiga mas se distingue desta por um trago muito particular e paradoxal, ou seja, o seu ritmo invertido durante 0 dia: 0 individuo esta mais fatigado ao des- pertar do que & noite, ou mais fatigado quando no realiza esforgo algum do que apés um esforgos — sintomas dolorosos, notadamente dores de cabega e dores raqui- dianas, igualmente vages; — um certo mimero de distiirbios juncionais das chamadas fun- ‘ges neurovegetativas, perturbagées digestivas, eventualmente cardiovasculates; — e um estado de depressao, de tristeza, de indiferenga. Evidentemente, nessa época foram descrites de mancira pare- cida outras sindromes de tipo asténico. Menciono o que Pierre Janet, mais ou menos na mesma época ou um pouco mais tarde, descreveu como psicastenia, Num caso trata-se de neurastenia, no outro de psicastenia, mas, evidentemente, nfo € nessa diferenca entre astenia nervosa ou astenia psiquica que se deve insistir, ainda que, apesar de tudo, 0 termo neurastenia pretenda descrever ‘0 aspecto fisico dessa sindrome, sua projecZo fisica, por exemplo 0 fato de as dores se projetarem ao longo do eixo “neurol6gico”, tanto da cabega como da coluna vertebral. Fago alusio & sindrome de Janet apenas para indicar que se trata de algo muito diferente. Em Janet, o termo “psicastenia” tem um propésito pelo menos tio explicativo quanto descritivo. A idéia de psicastenia é relacio- nada com a nogdo de que as neuroses estio ligadas a uma baixa de tenséo psiquica. A psicastenia de Janet, em relagao & nosologia 18 AANGUSTIA freudiana, situase grosso mado do lado da neurose obsessiva ou, em todo 0 caso, do caréter obsessive Isso € relativamente pouco importante, mas 0 que € muito mais importante para o nosso tema é 0 fato de que a relagio entre neurastenia ¢ sexualidade foi bem observada pelos psiquistras ou médicos que a estudaram antes de Freud. O proprio titulo do art g0 de Beard o mostrou, mas também em Preyer tense a mesma indicagio. O artigo de Preyer intitule-se: “Les rapports sexuels incomplets, coit interrompu ou onanisme conjugal et leurs consé- quences chez "homme; étude tirée de Ia clinique (“As relagées se- xuais incompletas, coito interrompido ou onanismo conjugal e suas conseqiifncias no homem; estudo baseado na observacio c'inica”), Bis 0 que Preyer escreve propésito da etiologia da neutastenia: “As perversées sexuais..., as diversas espécies de masturbagGes psiquicas podem ter uma aco etiolégica. Mesmo no casamento, € quando existem relagées normais, 0 coito interrompido € capaz de Provocar o surgimento de fenémenos neurasténicos. ..” Assim, 0 Coito interrompido nfo é, de modo algum, algo indiferente; esta na origem, de wm modo permanente ¢ sem que se suspeite disso, dos nervosismos intensos ¢ das fraquezas nervosas, em suas intime ras manifestagSes™®, Podese afirmar que Freud (no entrarei na sua teoria da neu- rastenia, alids menos clara do que a da neurose de angistia) retoma 2 idéia de que » neurastenia € 0 sinal de um esgotamento da ener- | gia sexual, ligado a uma atividede sexual anormal. A neucastenia jeorresponderia a um fendmeno sexual de desvio, ao passo que a | neurose de angiistia teria, em iiltima instineia, um mecanisno mais \quantitativo, Sobre este ponto, remeto voces ao Manuscrite A. Passo por cima da questio da neurastenia. Ela s6 fo. citada @ fim de situer este artigo que nos introduz ao problema da angiistia, Aqui, a contribuigdo nosolégica de Freud consiste, pois, em definir algo que é a neurose de an- A NEUROSE Blstia. E, j@ que estamos nos conceitos DE ANGUSTIA classificat6rios, uma outra distingio a ser lembrada — indispensével para ler qual- quer artigo psicanalitico — ¢ aquela entre neurose de angdstia aquilo que ngo tardaré em ser designado por Freud e pelos psica- 16, Cf, 8. Freud, La naissance de la psychanalyse, op. cit, p. 61, nota 3, A “ANGST” NA NEUROSE 19 nalistas como histeria de angistia. A histeria de angistia (vooés Poderio situé-la melhor lendo a introdugio ao caso do “Pequeno Hans”) é, em linhas gerais, a fobia ou, em todo caso, a fobia na medida em que nio se liga & histeria, Preud caracteriza @ neurose de angistia por toda uma série, uma espécie de eatdlogo de sintomas, cujo interesse seré, evidente- mente, o de verificar qual é sua comunicagéo interna, Eis, em todo 0 caso, como esses sintomas so enumerados, (Vou esquem- tizar um pouco, pois Freud € mais complexo, multiplicando as distingSes em obediéneia aos hébitos da sua época.) Em primeiro 1° lugar, um fundo de excilabilidade geral que Freud considera um. sintoma evidentemente banal mas constante na neurose de angis: tia, e que tem para ele importéncia tedrica j6 que se opse & idéia de uma perturbagdo “em escassez”, em déficit. Pelo contrétio, na neurose de angiistia, longe de haver “escassez” de alguma coisa, ha tum “excesso" (vocts verdo, apesar de tudo, que ha “escassez"” de outra coisa). Tratase verdadeiramente de uma perturbagdo cco- nomiea, pois pOe em jogo as categorias quantitativas “excess0” “escassez", Portanto, esta excitabilidade geral traduz um actmulo de excitagdo que 0 individuo revela-se incapaz de suportar (0 segundo termo que, por assim dizer, serve de fundo ao sin- toma € a expectativa ansiosa. & um estado de ansiedade perma- nente, sempre propenso a se fixar, na menor oportunidade © 20 menor pretexto. Esse (ermo, pretexto, que nfo figura explicitamen- te em Freud, permite compreender do que se trata, O que ecorre primeiro é a ansiedade, e 0 modo como ela se concretiza nada mais €-do que uma circunstincia ocasional, uma maneira de vir a fixar see, em altima anélise, ela poderia fixar-se em qualquer coisa Segundo Freud, trata-se da acentuacGo de um fenémeno normal que se chama correntemente de “ansiedade, tendéncia a uma concep- cio pessimista das coisas"; mas, neste caso, ela se tora compul- va Essa expesativa ansiosa € o sintoma nuclear dessa neurose) » ‘angistia e, de um ponto de vista teérico, podese dizer que “existe aqui presente um quantum de angtstia lvremente fiu-| tuante” coved! a] 17, S. Freud, “Quit est justifié de séparer de la ncurasthénie un certain complexe symptomatique sous le nom de névrose d'angoisse”, em Névrose, psychose et perversion. op. cit, p. 18. 20 AANGUSTIA A angistia € considerada, portanto, quantitativamente mensu- ravel. Teremos que discutir longamente os termos “livre” o “livre- mente flutuante”; a idéia de uma energia livre ou néo-livre & abso- lutamente central no pensamento freudiano, onde angistia é energia re que, na expectativa ansiosa, “domina a escolha das re>resen- tages ¢ esté pronta, # cada vez, para ligarse a qualquer conteddo representative que convenha”"*, A expectativa ansiosa € indeter- minada, pode pegar no pulo, por assim dizer, qualquer evento para transformarse, por exemplo, em acesso de angi — 0 terceiro tipo de sintoma, sobre esse fundo de expectativa ansiosa, € formado, portanto, pelos acessos de angistia”®. Alguns podem ser desprovides de contetido representativo imediato: 0 su- jeito esta ansioso sem saber por qué; ot entio esto ligados a uma representagéo: uma idéia ou uma sensacio somética. O acesso ou 6 desprovido de contetido representative ou tem contetido yago (sentimento de aniquilagdo da vida, de ecabrunhamento, de amea- a de loucura); ou entio esté ligado a algum distirbio sensivel ou a um distirbio de uma funcio corporal (respiragao, fungio cardia- ca, fungéo vasomotora, fung&o glandular, etc.). Por vezes, 6 esse aspecto somético que s¢ situa no primeiro plano, apresentando-se © sentimento de angéstia como simples mal-estar. Assim, a angés- tia, como afeto, pode passar inteiramente para segundo plano; ela estd, na verdade, “ligada” a uma sensagdo somética, Vé-se faci mente gue essa descricdo ¢ essa interpretacdo esto muito proximas do plano que hoje se designa como psicossomitico. — Além desses acessos de angiistia, Freud menciona, segundo 4a terminologia médica, os eguivalentes, isto é, sintomas em que a angistia como afeto ainda est4 mais ausente; € 0 caso, em pa cular, da vertigem. Os acessos de vertigem podem ser totalmente desprovidos de angtistia, apresentando-se verdadeiramente como sintoma somatico. Os neurologistas so capazes — pelo menos idealmente — de distinguir um acesso de vertigem genuinamente determinado por distiirbios neurolégicos — lesdes labirinticas, por exemplo — das vertigens de origem psiquica. 18. Ibid, 19, Ibid. | | A ‘ANG "NA NEUROSE 21 Em toda sa enumeragfo de “acessos” ou de “‘equivalentes Freud no parece, aparentemente, escapar a um desmembramento dos sintomes. De fato, a idéia-mestra € que uma angtistia livre- mente flutuante, presente como fundo, ‘A ANGUSTIA pode fixarse de maneira puramente oca- FLUTUANTE E sional, seja em sintomas sométicos, seja SUA FIXAGAO em representagGes; 0 que € a fixagdo nas representacSes? E exatamente a fobi Ne neurose de angiistia, podem-se ter fobies que tém por mecanis- mmo precisamente essa fixacio, por assim dizer arbitrdria, da angis- tia livre em tal ou tal representacdo inteiramente banal que possa prestar-se a isso. Nas fobias que esto em relago com a expecta ‘a ansiosa, esta pode fixarse em tipos comuns de perigo (ser- pente, tempestade, escuridéo). Sem divida, pode-se encontrar uma certa relacao com um evento histérico, mas sem que este, seja ver- dadeiramente determinante; fnéo_se trata imatismo, “persisténcia de impressdes fortes”. Em primeiro lugar, seria ne- cessario que houvesse expectativa ansiosa e, depois, que pelo me- nos qualquer coisa muito comum, no importa o que, fosse tomada como pretexto. Do ponto de vista do mecanismo, Freud definiu com muita precisio a diferenca entre essas fobies das neuroses atuais, da neurose de angistia, e as fobias das ““psiconeuroses de defesa”, ou seje, as neuroses que admitem uma etiologia pura- mente psiquica e histérica?®. Nos dois casos, “uma representacio torna-se obsedante por sua conexio com um afeto dispontvel. O mecanismo da transposicdo de afeto 6, portanto, valioso para as duas espécies de fobias’”**. Com essa nogio de transposi¢ao, esta- mos diante da dimensio econdmica: o afeto e a representagio sfo | dois elementos separéveis, cada um deslocavel em relago a0 outro. | Portanto, nos dois casos, existe um afeto disponivel que é trans- posto para uma representacio, “Mas nas fobias da neurose dét" angtistia, em primeiro lugar esse afeto € mondtono, sempre o de) angistia; em segundo lugar, nfo provém de uma representacio reprimida, mas a anélise psicoldgica mostra que ele nao é redutivel 20. £ importante assinalar que, nessa época, 0 segundo tipo de fobias {oi ligado por Freud A psiconcurose obsessiva, no i histérica, 21. S. Freud, “Qui est justfié..", em Névrose, psychose et perversion. yp. el p24 22 AANGOSTIA mais adiante, ¢ tampouco é atacado pela psicoterapia.”"* Assim, as neuroses atuais ndo sdo suscetiveis de tratamento psicoterapéutico (pelo menos no sentido da psicanslise), isto, nio podem ser redu- jas por uma anélise que mostraria que originalmente esse afeto estava ligado a uma representacio “X” e foi deslocado para uma representacio “Y". O afeto ndo provém de uma representagdio re- caleada; portanto, a angtistia ndo foi desligada de uma represen- tacio que jé nfo est presente no espftito, de um evento cue foi esquecido. “O mecanismo da substituigito nao se aplica, portanto, as fobias da neurose de angtstia”: isso quer dizer que, teorica- mente, uo se analisar uma fobie da neurose de angéstia, verifica-se ‘que uma certa angtstia esté vinculada a uma certa representagao mas, por trés dessa representagio, nfo se encontra uma outra de que a primeira seria o simbolo, o substituto. Passo agora ao problema, nfo do mecanismo espectfico da sgénese dos sintomas na neurose de angtstia (parece-me estar agora bastante claro, pelo menos quanto & sua diferenga em relagio & fobia das psiconeuroses de defesa), mas, agora, & sua origem. Qual € a origem dessa angtistia? Remeto-os 40 ORIGEM SEXUAL — —p Manuscrito E, que se intitula “Comment DA ANGUSTIA nait Vangoisse””", O fundamento da res- posta é evidente para Freud, orientado a0 mesmo tempo por suas pesquisas sobre a histeria, pela con- cepeao da neurastenia que ele ja encontrou relativamente elabo- rada, e por suas investigagSes clinicas: essa etiologia € sexual. Freud empreende, com base nessas centenas de consultas, de casos ‘elinicos, uma investigagio sistemética sobre a vida sexual dos pa- cientes, sobre suas relacSes sexuais — mais sobre 0 seu modo de vida sexual atual do que sobre a histéria de sua sexuilidade, Essa investigagao (que surpreende ¢ alivia muito os pacientes: “Nunca tinha pensado nisso”, dizem eles) levou a0 agrupamento, do ponto de vista de uma certa tipologia sexual (8s vezes um pouco divertida), das diferentes circunstincias em que pode nascer a an- giistia. Os mais impressionantes, para nés, so os seguintes casos: 22. Ibid. 25. S. Freud, La naissance de la psychanalyse, ap. cit. pp. 8086. A“ANGST” NA NEUROSE 2B — © que Freud denomina # angistia dos individuos virgens, ‘que tém um primeiro contato com os problemas sexuais. "Angdstia dos virgens: neste caso, o campo de representagdes em que deve desembocar a tensio fisica ainda no existe ou é insuficiente.”™* A idéia de Freud, capital quanto co que ela prefigura, por exemplo para a teoria psicossomstica, 6, portanto, que a tensdo fisica sexual néo encontra fiador numa imaginagdo sexual suficientemente de- senvolvida — Angtstia dos individuos continentes: a idéia teOrica que reteremos neste caso é o entrelacamento entre psiconeurose © neu- rose atual ou, mais exatamente, o fato de que a psiconeurose de- semboca numa neurose atual. Esses individuos, com efeito, sio fregiientemente neuréticos, cuja neurose traduz-se pela abstengéo sexual. E o conflito psfquico que leva & continéncia. Mas, a partir da “estase” que daf resulta, a angtistia desbloqueia-se de maneira puramente mecanica. — Ainda uma outra possibilidade: a da angiistia das relagoes sexuais incompletas, quer porque a excitagdo sexual é cou seja, nfo redunda numa relaedo sexual, quer porque o individuo pratica o coito interrompido on reservado. ‘Trata-se realmente de uma etiologia semelhante & que tinha sido evocada a propésito da neurastenia, ou seja, um “‘incémodo”, uma anomalia do ato sexual, ¢ no uma auséncia de realizagio sexual. De sorte que Freud deve estruturar hipéteses bastante complexas para explicar o fato de que anomalias muito semelhantes possam, conforme o caso, redundar ou na neurastenia, ou na angiistia, ou — o que é mais freqiiente — em formas mistas dessas duas neuroses”. Abandonemos essas tentativas de classificagao, que Freud pre- tende ligar, até no detalhe, a particularidades etiolégicas, a fim de abordarmos a questao gerel, metapsicoldgica, da angistia: desde essa época, € ao longo de todo © pensamento freudiano, oferecem- se duas explicagdes para a angiistia. E, se elas vao entrar const femente nao s6 em conflito mas também em dialética, no infcio opdem-se numa interrogacdo muito clara que Freud formula jé em 1892; "Nas neuroses de angtstia, a angtistia emana de uma inibi- 24. Ibid. p. 8. 25. Ihid., pp. 85-84 | oe AANGOSTIA fo da fungéo sexual ou de uma angistia vinculada & sua stiolo- gia?”* Quer dizer: pode a angistia ser explicada, pura e simples- mente, por uma espécie de transformagao de uma energia nio-em- pregeda (portanto de maneiza puramente mectinica)? Ou ento, a angistia, que apesar de tudo apresenta caracteristicas especificas, que nao é um sentimento qualquer, que se traduz por crises que tém uma cetta configuragio — certos distérbios respiratérios, por exemplo — poderé ser reduzida a um evento hist6rico? Portanto, so duas concepgdes possiveis que oponho, de momento, (Freud tentard, mais tarde, apresenté-las numa complementaridade, mas sem chegar a superar a oposigéo entre elas.) — Uma teoria puramente psicoldgica & a “angistia xememo- rada”: a angistia como crise, como estado ou como expectativa seria apenas a reprodugao de um vivido: seja de um acontecimento da vida adulta, seja, & medida que Freud retrocede na exploracio, de um evento infantil; # angistia sobreviria, portanto, num certo momento e depois estender-se-ia fora de sew contexto. No quadro desses distirbios da vida sexual atual que ele estuda entio, Freud pergunta-se, primeiro, se a angéstia, o tomor da mulher de ter tum filho (levando, durante o coito, a todos os tipos de precaugBes), nfo 6 0 que em seguida se encontra como que deslocado, esten- dido ao resto da vida, isto é, a outros momentos, fora das relagbes sexuais, Ora, essa teoria do deslocamento, essa deduptio psiquica da ansiedade, & logo afastada resolutamente por Froud: “Percebi rapidamente que a angtistia dos meus neuréticos era, em grande parte, imputivel & sexualidade, e observei, em particular, de que modo 0 coito interrompido acarretava inevitavelmente na mulher a angistia neuxotica. No comeco, enveredei por caminhos errados. Pareciame que a angtistia de que softiam os pacientes nada mais era do que a continuagao da angistia experienciada durante 0 ato sexual e, portanto, de fato, um sintoma histérico [uma angistia motivada por uma representagio, desligada dessa representaco, transposta para uma outra, esse 6 0 mecanismo da neurose psi- quica ou psiconeurose). verdade que os vinculos entre a neurose |/A_ANGUSTIA | PSICOLOGICA OU | FISIOLOGICA? 26, Ibid., Manuscrito A, p. 59, any ATANGST” NA NEUROSE 25 de angtistia © a histeria sio suficientemente evidentes. Pode haver no coito interrompide dois motivos de angdstia: na mulher, um temor da gravidez, no homem, o medo de falhar em seu desem- \yPenho. Mas a experigncia ensinou-me que a neurose de angistia (~\também aparece onde esses dois fatores esto ausentes e onde os j 4 lindividuos nao tinham qualquer razdo para temer a vinda de uma lcrianca. Portanto, a neurose de angtistia néo podia ser o prolonga- )¥ mento de uma angtistia rememorada de ordem histérica.”*" . — Eis, portanto, momentaneamente abandonada uma teoria puramente psicolégica da angistia como rememoragio, por uma teoria puramente fisiolégica assim enunciada: a angtstia seria a descarga, por outras vias sométicas, de uma excitacio sexual insa- tisfeita, E evidente que na angistia ha fendmenos de descarga so- mética: cardfacos, respiratérios e em outras esferas sométicas. Ora, em todos os casos de neurose atual de que nos ocupamos, verifica-se um actimulo de tensio sexual, ¢ uma incapacidade de descarga des- sa tenso pelas vias normais, “especificas”. O importante aqui é a oposigio entre descargas “‘especificas” e ‘‘nao-especificas”. A sexua- lidade implica, para sua satisfagio, certas acSes ditas “espectficas”. Existe uma certa especificidade e mesmo uma certa estereotipia da descarga sexual, do orgasmo. Ora, quando essa via espectfica néo - pode ser tomada, produzir-se-is uma espécie de descarga anirquica, por vies que nfo estéo organizadas em vista de um ato: € nisso precisamente que consiste a angiistia, ou todos os scus equivalentes possiveis: “Mas por que razio se produz justamente a angiistia? Esta consiste muma sensagio de acimulo de um outro estimulo endégeno — o estimulo que nos impele a respirar e que ignora qualquer outra elaboracao psiquica; assim, a angdstia pode con responder a uma tensfo fisica acumulada qualquer. Além disso, se j considerarmos mais detidamente os sintomas de uma neurose’ de angistia, descobriremos neles os fragmentos dispersos do grande ataque de angistia, simples dispnéia, simples palpitacdes, simples sensacao de angistia e a combinagao de todas essas manifestagées. Uma observacdo mais precisa mostra que se trata das vias de inervacdo normalmente empreendidas por uma tensio fisico-sexual, mesmo quando ela softeu uma elaboracio psiquica. A dispnéia, as 27. Ibid. p. 80. Enire colehetes: comentirios de |. L 26 A ANGOSTIA palpitagdes, acompanham o coito e, se bem que elas sejam geral- mente usadas apenas como meios acessdrios de descarga, consti- tuem aqui, por assim dizer, a tnica safda para a excitagio.””* Assim, @ crise de angiistia assumiria somente 0 acessério no coito, , os fenémenos acompanhantes, essencialmente zardfa cos € respiratérios, e faria deles como que a totalidade de sua manifestacéo. Falei de uma oposicao entre uma teoria puramente psicolégica e uma teoria puramente fisiolégica. Mas percebe-se logo {de inicio que a teoria puramente fisioldgica esté matcada pelo psicoldgico, uma vez que mesmo na crise de angdstia existem ele- Imentos simbélicos, reconhecidos por Freud, Mas, de fato, isso vai muito mais longe. Essa primeira teoria INSUFICIENCIA ndo € exatamente a teoria de Freud (que- DA TEORIA DE ro dizer, simplesmenie, a idéia de que W. REICH 14 repressio da sexualidade, portanto da atividade sexual, ¢ de que a energia se- xual iré procurar sua descarga em outra parte), ov, em :odo 0 es falte-the um elo capital. O elo intermediétio consiste na idéia de que hé uma inadequagao entre a excitagao sexual a9 nivel jsomético ¢ a possibilidade de elaborar essa excitagio ac nivel psiquico. J& encontramos uma ou duas vezes, de passagem, as palavras “elaboracao psiquica”. Essa noglo é to importante que toda a teoria fisiolégica da angtstia é incompreensivel sem ela E 0 paradoxo # se assinalar desde jé consiste em que, nessa época, de. {esau designa por libido, nfo a excitacdo fisica nem 0 desejo t sexual somético, mas justamente' o elemento psfquico, ou seja, as { fantasias ligadas a atividade sexual. Assim, embora a neurose atual ‘se apresente como nao-psfquica, estranha ao conflito psfquico, exis- te, apesar de tudo, um conflito em sua raiz. Mas desta vez € um conflito entre o nivel de excitagio somética e o desejo psfquico — 0 qual € designado por libido, Talvez nao haja exatamente conflito mas, em todo © caso, uma clivagem. Insistamos em que @ | teoria da neurose de angistia no € uma teoria puramente fisiol6. ©" Tica: nfo é a excitaciio somética que, simplesmente, nfo encontra um coito adequado, uma descarga adequada; ¢, isso sim, 2 exci- taco somética que nao encontra seu fiador ao nivel psiquico (0 28. Ibid, pp. 8485, 4 “ANGST” NA NEUROSE 27 que, evidentemente, traduzse pelo fato de o coito nfo ser adequa- do), € € ao nivel de uma auséncia de elaboracdo que se produz a derivagéo sob a forma de angtstia © que, pera Freud, parece provar essa teoria? I o fato de que os individuos portadores de neurose de angéstia, longe de se queixarem de um aciimulo de desejos insatisfeitos, acusam um declinio de desejos sexuais. Curiosamente, portanto, essa neurose “por actmulo" traduz-se, ao nivel psiquico, por uma baiva de libido. Nao hd excesso de libido, no sentido preciso em que 0 | termo é empregado aqui, mas escassez de libido, escassez de fiador | psfquico. Estévamos primeiramente, numa abordagem iniciel, ne pre- senga de uma explicagao que s¢ assemelha muito a um certo nd- mero de concepsdes populares acerca da psicanélise. Por concep- es populares também entendo uma perspectiva como a de Wilhelm Reich, que relaciona a maior parte das neuroses a um elemento atval, isto é, @ uma insetisfacdo sexual vinculada a uma repressio. Para Reich, o essencial da terapéutica das neuroses nfo € uma terapéutica histérica, mas atual, Trata-se, no presente © em pri- meiro lugar, de separar, de eliminar, um certo némero de fatores que impedem a satisfacdo sexual. Nao digo que essa idéia esteja ausente em Freud, mas ela € apenas uma etapa na reflexdo freu- diana e é inteiramente insuficiente. Como testermunho de que essa idéia ndo esté ausente em Freud, menciono, por exemplo, a se- guinte passagem: “Do que precede, decorre que as neuroses so perfeitamente evitaveis mas.totalmente incurdveis [isto é, incur veis « partir do interior, pela anélise; elas sfo suscetiveis de uma higiene ou de uma profilaxia, mas n8o de uma anélise]. A tarefa do médico & inteiramente de natureza profilética. [Trata-se eviden- temente, para Freud, das neuroses atuais, mas € uma teoria que se verd finalmente transposta para o conjunto das neuroses, com Reich, Esse manuscrito, recorde-se, data de 1893!] A primeira parte dessa tarefa, aquela que consiste em prevenir os distirbios sexuais do primeiro periodo [isto é, do perfodo adolescente], con- funde-se com a profilaxia da sifilis e da blenorragia, perigos que ameacam todos aqueles que renunciam & masturbagéo, [Portanto, facilitar as relagdes sexuais, eliminando os riscos somaticos das doencas venéreas.] © outro Gnico sistema seria autorizar as rela- Ges livres entre jovens de ambos os sexos, de boas families, mas wa ea Piacoa A ANGST" NA NEUROSE i 29 mico, suscetivel de troca, de equivaléncia, de/transformagio. Mas ainda mais, aqui, o termo essencial 6 a(estase) conceito médico — estase de um humor, estase do Ifquido cefalorraquidiano, estase do sangue, etc. — quantitativo, pois a quantidade e até a pressio do liquido estagnado podem ser avaliadas, comparadas, medidas. A libido é, portanto, um conceito econémico, jé que € suscetivel | | de ser “excessiva” ou “‘escassa”, e passivel de estase. Mas, a0| | mesmo tempo, € um conceito qualitativo, ¢ esta € sua face psiqui-] ca, uma yez que, em iltima instaficia, s6 existe em relaggo com representagGes. E, por essa face psiquica, ela nada mais é, desta ver do que denjo,vncalndo a repravtstesparedlaes, isso s6 poderia ocorrer se se dispusesse de métodos anticoncepcio- nais inofensivos, Com esse texto do periodo freudiano arcaico, vemos até que : ponto nos acercamos de certas afirmacGes contemporineas; mas isso é apenas uma etapa do pensamento freudiano, pois falta aqui, _» assim como na teoria de Reich, a mediacio da representacic. Esta necesséria, pois sem ela serd impossivel explicar o fato ce que certos individuos que tém uma vida sexual pouco ativa, ¢ até de completa contingncia, nem por isso tenham angtstia — talvez, precisamente, porque tm uma vida fantasmética sexual sufisiente- mente desenvolvida — nem, inversamente, ovfalo de que, nos casos de neurose de angtistia, esbarra-se com muita freqiéncia é wm pwc nesta objecdo por parte do proprio sujeito: “mas eu nfo tenho ete eee aka @ desejos sexuais” ou “tenho menos desejos sexuais” ou “‘longe de gradidak ter desejos sexuais insatisfeitos, eu tenho muito poucos desejos sexuais”. Na teoria freudiena, 0 acdmulo de excitagao somética Em “‘elaboragio” existe a ate labor, 7 — © qual 6, efetivamente, considerado causal na angisiia — A NOGKO DE “trabalho” (em alemdo, bearbellens tne jamais € explicado diretamente pele auséncia de descarga ou de ELABORAGAO balhar). A idéia constante de Freud é orgasmo, Ndo besta, de maneira nenhuma, reinvestir 0 orgasmo PStQuICA de suas prerrogativas, nem de facilitar “as relagées sexuais entre jovens de boas familias”. O que falta, em primeiro lugar, € a auséncia de psiquisagao ou, como se diria num vocabulério mais modemo, a auséncia de “simbolizagao” da excitagio somética, O problema, na neurose atuel, é um problema de simbolizagio ou | mesmo de fantasmatizagio. O que € patogénico é a austnsia de | libido psiquica ou a austncia de elaboracéo psiquica da excitacio. estabelecer um modelo de um aparelho Psiquico, espécie de méquina que efetue um certo trabalho. E existem até esquemas precisos dessa méquina, Citarei dois: por um lado, 0 de Projeto para uma Psicologia Cien tifica, de 1895, onde se apresenta um sistema de neurénios que go é somente uma metéfora neurolégica mas jf representa, no essencial, 0 que vird a ser @ concepeao freudiana de um aparelho 1 A libido: mencionarei rapidamente 0 psiquico. Por outro lado, o modelo apresentado no capitulo VII de APARECIMENTO DA aparecimento deste termo no pensamen- A Interpreiagao de Sonhos, criado exatamente para descrever um “LIBIDO PSIQUICA” to de Freud®, Ela converter-se-d na ener- “trabalho” que af se efetua, o “trabalho do sonho”, Ainda mais gia das pulsdes sexunis, portanto, um tarde, encontraremos @ nogdo, de suma importéncia, de que tam- conceito quantitativo na fronteira do psfquico e do somético, como bbém 0 processo do luto —e ainda, em certa medida, a melancolia sempre se situou a pulsio em Freud. Mas aqui € 0 seu aspecto — deve ser concebido como um certo trabalho; isso, evidente- psiquico que se sublinha. & a insuficiéncia da libido psiquica que mente, vai muito mais longe do que um conceito banal de Iuto acarreta ume derivacéo imediata da tensfo no plano somético. : como simples tristeza, simples estado afetivo indecomponivel em Essa libido é, por conseguinte, um conceito quantitative, zcond- eae acronis fey idueiac tac Minot fale gucise came ve ete festagdes patentes do luto sfo apenas a traducio, em diferentes planos, desse trabalho, por exemplo o empobrecimento que ele Tod, pp. 66, Bre colchetes:comentiri de I. L ° Be ween d acarreta em outras atividades 30. Ja 0 encontramos em Meynert 30 AANGOSTIA Freud sempre se mantém muito vago quanto a'o que'sofre a elaboragao nesse aparelho e, por definigao, nfo se pode dizer grande coisa a respeito, E a quantidade de excitagdo, um “X", ou é ainda © que, em outros momentos, ele designa por “libido”. Em contra- partida, pode-se dizer mais a respeito do tipo de trabalho efetuado; podemos explicité-lo por um outro termo: “ligagio”. O trabalho consiste em ligar essa energia ndo-diferenciada, esse “X”, de modo que justamente ela deixe de fluir livremente, de maneira meeinica, mas fique ligada a certos contetidos. A “ligagdo” (Bindung) tem, como cortelativa um processo inverso, que se pode traduzir por “desligamento” ou “descarga” (Entbindung), que consiste pre- ccisamente numa liberacio stibita de energia. Neste sentido, pode-se = dizer, por exemplo, que a angtistia é um desligamento. A ligagio C € frei da energia psiquica, da libido, freio estabelecido por meio % de representagdes, ¢ também talvez, em nivel menos elatorado, pela ligago com certas reactes sométicas que assumem assim um valor significante, A um outro nivel ainda, a Bindung no consiste apenas no fato de a energia encontrar-se ligada — de a pulsio encontrar-se atada a tal ou tal representacfo, a tal ou tal lem>ranga de um acontecimento — mas no fato de que também entre essas representagdes,,a8 quais j4 so por si mesmas ligagSes, estabeleceu- se toda umalrede)de significagdes. Portanto, deve-se conceber dife- rentes niveis dessa ligacdo e dessa elaboragio; © nivel mais baixo & precisamente aquele onde se coloca 0 problema da angiistia e do afefo, Eis 0 que diz Freud em um de seus primeiros enurciados {bre © angista: “A tensio sexual transforme-se em angistia em todos os casos em que, embora produzindo-se com forga, ela no fsofre a elaboracdo psiquica que. a transformaria em afeto." Por- tanto, 0 préprio afeto j4 € apresentado como um nivel de elabo- Jracdo, um primeiro nivel de ligacio; a angdstia seria, nesse caso, a desorgenizacéo do afeto, ou ainda o afeto mais elemertar, o mais primordial, o mais proximo de uma excitagio que se des- carrega de maneira néo-especifica. B um esquema muito fregiiente em Freud o da derivacdo energética: quando uma via esté fechada, toma-se uma outra via. Se a energia X, que se especifica ou se elabora sob a forma de afeto, encontra a via obstrufda, hi ¢ alter- 31. Tid, p. 84, A “ANGST” NA NEUROSE 31 nativa de uma outra via para a descarga; a energia deve necessa-} riamente escoar por algum lugar, mas ela o faré sob a forma de angiistia, isto € do afeto menos ligado. ay Esquema 1 © ajeto ja é, portanto, uma certa estru- DIFERENTES ‘ura significante, o que nem por isso quer NIVEIS DA dizer que tenha necessidade de represen- IGACAO" tacdes para ser qualificado, O afeto, para a Freud, ¢ concebido de maneira extrem mente (proxima_do somatié3} cle € constitufdo por um conjunts) , organizado (e € af, por certo, que esté a ligac8o) de descargas mo-) 'S toras que se somam a uma certa sensagio de prazer ou desprazer. | Mas, além disso, existe também no afeto um aspecto histérico, 0 qual explica 0 fato de tal afeto ter assumido tal ou tal forma: Em certos estados afetivos, acredita-se poder remontar além desses elementos [dessa pluralidade de reagSes que especificam 0 afeto) © reconhecer que 0 micleo em toro do qual todo 0 con- junto se cristaliza (trats-se realmente de um conjunto significante] é constituido pela repetico de um certo evento importante e signi- ficativo, vivido pelo sujeito [o afeio remete-nos a hist6ria; mas no apenas & histéria individual]. Esse evento pode nio ser mais do que uma impresséo muito_remote, de cardter muito geral, impressao que faz parte da(pré-histéria indo do individuo mas da espécie. Para me fazer entendér-methoF, direi que o estado afetivo aprescnta a mesma estrutura que a crise de histeria, e que, como esta, € constitufdo por uma reminiscéneia armazeneda, A crise de

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