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Numa carta de 1955, ao amigo Theodor ‘Adorno, Walter Benjamin resumia sua impressio dese grande romance do surrealismo:“0 Camponés de Pars, ivro do qual cu no podia ler mais do que diuas ou trés paginas & nofte, na cama, meu coracilo batendo to forte que me favia detxéio de lad Exatamente setenta snos depois da primeira ediglo, O Camponés de Paris Fessurge, hoje, como tum dos romances do nosso tompo. F tm tratado Inesque evel sobre a cidade — a cidade como centro das mitologias modeznas ¢ a cl- dade como imagem da consciéneia, ou inconseiéneia, Bserita e topologia se en- tecruzam nessas passagens parisienses de Aragon (1897-1982), espagos limitre- fes, onde a razio resistee cede, a0 mes ino tempo, to discurso sagrado ou poético, ea imagem se transforma hhuma verdadeira via inicitica da sensi- bilidade, ‘Traduzido pela primeira vez em nossa 1ingua por Flavia Nascimento — autora também de uma esclarecedora Apresen tagio, onde situa o romance no contexto dias obras de Aragon, em particular dos Surveatistas, em geral, contra o pano de fundo conturbado da Europa do entre- guerras — O Camponts de Paris convoca f absorve a literatura ce Latwtréarmont, ‘Apoliinaire ¢ Gérard de Nerval, num estilo exuberante, que é também uma parédia das meditagBes cartesianas. 'A desericio detalhaca de uma galeria ou de um jardim parisiense, aqui, seré também @ histéria de uma consciéncia, exacerbada pelo efémero, pelo frisson, pelas vertigens do comum. “Iuminogées profanas” se stcedom imprevisivelmen- te mum livro sem género definide e que COLECAO LAZULI O Camponés de Paris Louis Aragon O CAMPONES DE PARIS Apresentagiio, tradugio e notas: FLAVIA NASCIMENTO Postécio: JEANNE MARIE GAGNEBIN Imago Coppi © Eins alas 1975 Th ina le gaee de Pte " Reson ts te. anuna gare ee ape se epee or dpi izing, ose ioncice osetia f 1m jeri ese to, ane ‘evn ara AANDRE MASSON (PSs Casbyetenr ons Scie ds Eres Lvs, BL As7ee se. to. E7142 ‘anges ce Pas / Lis pepe, rae aa, fla Naeneow: psi, ere Mae Ggtia Fade wie: eae €, 986. ae (Coto uaa ‘tects dL psn de Pit ‘sau asvaasre7 1 flonoe farts | ase, Ra, Ti, Sie 5160 0-0 av aba 1396 ac oO TDA z aa Sins Rags. 701A Este ‘TU2E0831 a wie AL Tol (01 2831082 _ Fa (21) 1265, logs mB Pine in Ba SUMARIO Apresentagio — Flavia Nascimento Obras de Louis Aragon © CAMPONES DE PARIS Prefaicio para uma Mitologia Moderna APassagem da Opera O Sentimento da Natureza no Parque Buttes Chaw ‘mont © Sonho do Camponés Notas da Tradiugao Posticio Jeanne Marie Gagnebin uw 3 37 45 139 215 251 par APRESENTAGAO Fldvia Nascimento Grande ensaista, poeta e romancista de personali- dade fascinante, Louis Aragon produziv, ao longo de seus 85 anos de vida, uma dessas extensas obras em que © literério e 0 histérico tecem uma trama de tal forma densa que nao se pode pensé1a sem levar-se em consi- deragao todas as grandes reviravoltas pelas quais pas- saram nosso século. Embora no seja o momento, aqui, de abordé-la em toda a sua complexidade, nao poderia- mos apresentar ao leitor brasileiro esta traductio sem Ihe fornecer, antes, alguns poucos elementos biogréti- cos que possibfiitem avaliar a riqueza de uma obra que nao se limita ao perfodo surrealista, ao qual pertence 0 Camponés de Paris. Em seguida, porém, ao que, fare- mos alguns comentarios sobre este livro e sobre algu mas das dificuldades impostas por sua traducao. Sobre o Autor Aragon nasceu em Paris, no dia 3 ée outubro de 1897"Pilho de bastardo, ele jamais foi reconhecido pelo pai, Louis Andrieux, homem casado, pai de trés filhos + e figura de projeciio, tendo sido procurador da Repuabli- ca em Lyon, préfet de police em Paris e embaixador da Franca na Espanha. A mie, Marguerite ToucesMassil- Jon, tampouco o reconheceu: o menino foi criado em sua companhia, mas passava por seu irmaozinho, pois u quem assumiu a maternidade perante a sociedade foi a mie de Marguerite. O sobrenome Aragon fot inteire- mente inventado pelo pai, que fazia o papel de seu padrinho: assim, Louis Aragon ganhava as iniciais ci fradas de Louis Andrieux. © jovem Louis, entio estudante de medicina, 36 conheceu o segredo de seu nascimento em 1917, aos vinte anos, as vésperas de sua partida para o front, convocado gue foi enquanto médico-auxiliar. Com mais de 70 anos, Aragon revelou que o pai obrigara sua mfe/irmi a Ihe dizer a verdade para que ele no mor- resse na guerra ignorando o fato de que ele era uma marea de sua virilidade.’ Data desta época sua amizade com André Breton, também mobilizado no mesino hospital como estudante-médico-auxiliar. Deste encontro capital, nascia uma amizade que engendraria 0 movi- mento estético-cultural mais importante da Franca da primeira metade do século xx: 0 Surrealismo. No dia 11 de novembro de 1918, com a declaragéo do anmisticio, findava a primeira grande guerra, deixando atrés de si um saldo de sete milhdes de mortos. Aragon permaneceu mobilizado, por conta da ocupacio francesa Go Sarre (regio sudoeste da Alemanha). Breton, de volta a Paris, encontrou Philippe Soupault, com quem escre- veu e publicou em 1919 Les Champs Magnétique, texto reputado como fundador do movimento surrealista, ¢ fruto das primeiras experiénciascom a escrita automatic. © método da escrita automatica, bem como sua denomi nagio, foram tomados de empréstimo a psicanatise, pela qualos ovens autores se interessavarn, Soupaulte Breton buscavam através da livre associagio, 0 “puro ditado do pensamento”, como diria Breton mais tarde, no primeiro Manifesto surrealista. Seu objetivo era desembaracar 0 ri Matisse, roman (Paris: Gallimard, 1971). a2 espirito de toda e qualquer pressio, critica e dos velhos habitos escolares (es corregdes, por exemplo, eram proi bidas}, a fim de explorar um universo de imagens até entio desconhecido, mergulhando diretamente nas fon tes inesgotéveis do inconsciente. Retornando pouco mais tarde a Paris, Aragon jun: tose a Soupault e Breton e, neste mesmo ano de 1919, os trés jovens criaram e passaram ¢ dirigir a revista Littérature. titulo era evidentemente provocatério, pois o objetivo da revista era a busca de formas de expressiio totalmente novas, sem nenhum compromis- s0 com o bom gosto ¢ a tradigao literdria. Tal busca refletia o estado de animo desses jovens para os quais, ap6s a carnificina da primeira guerra mundial, a poesia se tornara impossivel — pois segundo eles nenhuma forma de arte poderia ter sobrevivido a tamanho hor ror. Seu espfrito de revolta encontrou entéo uma forte ressonéincia nos propésitos violentamente iconoclastas do dadaiste Tristan Tzara, que se transferiu de Zurique para Paris, juntandose aos surrealistas. Aamizade com ‘Tzara inaugurou uma fase profundamente niilista das atividades do grupo, repleta de manifestagdes ptiblicas ruidosas e provocadoras, que iria durar até 1924. Neste ano, aparece 0 segundo texto te6rico surrea- lista, obra de Aragon, que o escreveu entusiasmado com 05 resultados obtidos por seus amigos nos experi- mentos com a escrita automatica ¢ 0 sono hipnético. ‘Tratase de Une vague de réves, publicada no outono de 1924 na revista Commerce, dirigide entre outros por PaulValéry. Esse texto, muitas vezes negligenciaco pelos historiadores do movimento, constitui na verda- dea primeira tentativa de definigéa de um vocabulério da teoria surrealista. Alias, uma primeiraconceituaco, ainda que muito geral, dos substantivos surrealidade e surrealismo aparecia ali pela primeira vez, bem como a preocupacio com o estabelecimento de certas nocdes 35 que se revelaram posteriormente de grande fecundida- de para o surrealismo, como as nogies de acaso ¢ de fantdstico. Dois meses depois, Breton publicava 0 pri- meiro Manifesto contendo a famosa defini¢ao da pale- vra “surrealismo” em forma de verbete de dicionsrio,” Este texto determinow a ruptura com o grupo dadé, pois nele os surrealistas nomeavam seus antecessores, entre outros, Sade, Swift, Baudelaire, Nerval, Poe, Rim- baud, Mallarmé. Tal atitude equivalia a uma aquiescén- cia em relacdo a literatura, a uma autoinsereao do movimento surrealista na tradic&o literéria, sendo, por- tanto, inaceitavel aos olhos de Tzara. ano seguinte — 1925 — viria marcar 0 inicio de uma guinada no interior do movimento, que jé se expandira, hé tempos, com grande niimero de adesdes, contando com gente como Paul fluard, Jacques Baron, Roger Vitrac, Benjamin Péret, Robert Desnos, René Crevel, Antonin Artaud e muitos outros. Neste ano, a luta pela independéncia do Marrocos, conhecida como ‘guerra do Rif”, colocou os intelectuais franceses, entre 095 quais nossos jovens surrealistas, diante da necessi- 2 O nome surrealismo fora adotado pelo grupo em ho- menagem a Guillaume Apollinaire. Ele empregou 0 adjetivo pela primeira vez em 1917, para reterir-se & sua pega teatral Les Mamelles de Tirésias como um “drama surreatista”. A definigfo de Breton € a se- guinte: “SURREALISMO. S. m. Automatismo psiquico puro, pelo qual se propée expresso verbal, escrita, ou por qualquer outro meio, o funcionamento real do Pensamento. Ditado do pensamento em auséneia de todo e qualquer controle exercido pela razio, e fora de toda e qualquer preocupagio estética ¢ moral”. Ver Manifestes du surréalisme (Paris: Gallimard, 1994), u dade de uma tomada de posi¢ao. Em junho, L’Humanité publicava uma declaracéo intitulada “Apelo aos traba- Thadores intelectuais”. Sim ou nao: vocés condenam a guerra? A discusséo estava lancada e os surrealistas alinharam-se com os comunistas, praticamente os tini- cos a condenarem a guerra colonial, qe contava na verdade com o apoio de grande ntimero de importantes intelectuais franceses, O passo seguinte e inevitével dos surrealistas foi o questionamento sobre a necessidade de se engajar ou nfo na luta do proletariado. Efetiva: mente, no segundo Manifesto Surrealista, publicado por Breton em 1929, o grupo tomou posi¢io favoravel & revolugéo proletiria, acrescentando a necessidade de mudar a vida (expressa no primeiro manifesto de acor- do com a formula de Rimbaud), a urgéncia de “trans- formar o mundo" (segundo a divisa de Marx). A opgéo pelo materialismo dialético tornava'se desta forma cla- ra, impondo a questo seguinte: os surreelistas deve- riam ou nio aderir ao Partido Comunista? ‘Tal questiio provocou mais de um cisma no grupo surrealista. André Breton e Paul £luard aderiram ao PCF em 1927, mas sua permanéneia nele nio durou mais do que algumas poucas semanas. Aragon aderiu na mesma 6poca, mas, ao contrario dos dois amigos, mor reria comunista. Sua adeséo desencadearia a rupture com o grupo. Vejamos a seqiiéncia dos fatos. Em 1928, Louis Aragon encontrou Maiakovski, que estava de passagem por Paris em companhia da cunhada, a jo- vem escritora etradutora russa Elsa Trio.et (irmé de Lili Brill, com quem Aragon logo passow a viver (unio que durou de 1929 até a morte de Elsa, em 1970). Sua primeira viagem & ex-URSS, tendo Elsa como acompa- nhante, data de 1950, Em Karkov, na Ucrania, Aragon participou da If Conferéncia Internacional dos Escritores Revolucionérios e, em seguida, escreveu o poema Front rouge (1951), em louvor & revolugdo de 1917. © poema 15 Ihe valou uma perseguigéo judicial na Franca por “ex- citagio de militares 4 desobediéncia e provocagio de assassinato com objetivo de propaganda anerquista”. Os surrealistas, liderados por Breton, tomaram adefesa de Aragon apesar de jé nfo compartilharem inteire- mente de suas posigies politicas.” Assim é que Breton escreveu Misire de la poésie (1952), solidarizando-se com o poeta de Front rouge. Mas sua solidariedade se afirmava af através de um deslocamento da importén- ia do plano politico do poema para o plano da liberda- de eserita © da poesia enquanto atividade auténoma, Além do que, Breton inclui em seu panfleto o relato dos propésitos trocados numa reunigo partidéria entre os Girigentes do pcr ¢ os quatro surrealistas comunistas: Aragon, Georges Sadoul, Pierre Unik e Maxime Alexan- dre." Foi este o fator determinante da ruptura definiti va, pois, para Aragon, a revelago publica de uma ses- sio do Partido era inadmissivel. Com o desencadear de todos esses fatos: 0 encontro de Bsa, a viagem & ex-URSs, a publicagto de Front rouge, chega ao fim a pré-histéria de Aragon, como diz Pierre Daix em sua recente biografia do escritor, abrindose 3 Lemibremos que Breton continuou a favor da adesio 20s principios do materialismo dialético, mesmo apés a ‘sua répida passagem pelo PCF, em 1927. Todavia, era contra sua politica partidéria. 4 Tal revelacio era concermente ao affaire Dulita, Dulita @ heroina de onze anos de um texto de Salvador Dali, Publicado pela revista Le Surréalisme au Service de la Ré- vohution. Os surrealistas foram acusados, na referida reunifio, de “freudismo ¢ pornografia” por causa deste texto. Breton quis tomar péblica estas “indigéncias do pensamento” (Misére de la poésie) no interior do Parti- do, o que fez explodir a ruptura com Aragon. 16 para o escritor uma passagem ao real.” Chega ao fim também o periodo do maravilhoso, do surrealismo, a0 qual pertence O Camponés de Paris. Mas o mundo de entio passava por transformagées desagradavelmente surpreendentes: apés a quebre da bolsa de Nova York, na famosa quinta-feira negra de outubro de 1929, uma crise econémica sem precedentes ganhou o mundo ocidental. A inflag&o atingiu indices vertiginosos por toda a parte, sobretudo na Alemania, que abriria as portas do poder a Hitler, que em 1932 triunfou como chanceler alemio, O fascismo tornara-se uma realidade mais do que tangivel. Em 1934, Aragon partiu nove: mente com Elsa rumo @ uRss, onde deveria assistir a0 1° Congreso da Unido dos Escritores Sovieticos, que con- tava com a participagio de diversos outros convidados de prestigio, entre eles André Malraux, Era o tempo da divisa de [danov, segundo a qual o eseritor revolucio nério deveria se converter em “engenheiro de almas”. Ociima era de euforia eo realismo socialista tornouse entiio a profissio de {6 de escritores progressistas do mundo inteiro. O comunismo ganhava em foreas, apa- recendo para muitos como alternativa tinica frente ao impasse criad6 pelo fascismo e pela crise econdmica.’ Sabese como os acontecimentos se precipitaram depois, acelerando o curso da histéria: em 1935 Musso: Uni atacou a Eti6pia; em 1936, manifestagdes de extre- 5” Aragon, une vie @ changer (Paris: Flammarion, 1994). 6 Sabe-se hoje que este congresso encobrie, na verdad, a intstauracio de uma policia politica para o controle da produgio literarie, Mas os convidados, em sua maioria, ignoravam o fato, Pierre Daix (obra citada acima) afir ma que Aragon viveu até os anos sessenta com a ilustio de que nesta ocasitio realmente ocorrera a uniio geral e livre dos escritores do regime soviético. ay ma direita sacudiram a Franca, onde uma coligagio de forcas de esquerda (a Frente Popular) acabou por obter a vit6ria nas eleigdes do mesmo ano, enquanto na vizinha Espaniha eclodia a guerra civil, na qual o poeta Federico Garcia Lorea perderia a vida. Enfim, em 1939 recomecava 0 pesadelo de uma Segunda Guerra Mun- dial, Aragon ganharia novamente as trincheiras em 1940, para ser desmobilizado no ano seguinte, quando passou a viver na clandestinidade, integrando a Resis tencia. Durante a guerra, Aragon vislumbrou na poesia uma fecunda estratégia de resisténcia: resgatando a concepeiio do trobar clus do poeta provencal Arnaut Danfel, passou a fazer a defesa de uma arte poética secreta, de contrabando, como forma de luta contra 0 nazismo.’ Um fortalecimento da ligagdo entre o politico 0 escrito é evidente na produgio de Aragon posterior a 1945. Mas a relagio do escritor eo politico torna- va-se pouco a pouco contraditéria. Prova disso sio os documentos revelados pelos arquivos do escritor so- viético Constantin Simonoy, que elucidaram certas posigdes de Aragon e Bisa em face do Pc: pressionados a se exprimir c abstrata francesas, mais precisa mente contra Picasso € Matisse, entio criticados pelo Pravda (), ambos recuse- ram-se peremptoriamente. E em 1955, com a morte de Stélin, a contradigao tornowse mais Sbvia: Aragon pu- bblicou na revista Lettres Frangaises o retrato do dirigen- mitra a pintura impressionista e a arte 7 “‘Reagon desenvolveu esta concepgao no ensaio “La Le- gon de Ribérac ou l'Europe Frangaise”, publicado pela revista Fontaine (Argel, 1941). Para maores pre- elsdes, ver o livro de Valére Stareselski, Aragon, la tat son délibéré (Paris: L'Harmattan, 1995). 18 ‘te soviético feito por Picasso, como homenagem péstu- ma. ‘Mas aceleremos ainda o curso do tempo, a fim de ‘conhecermos tm pouco de um outro Aragon. O iiltimo Aragon, 0 que completa o circulo —e 0 ciclo — de toda uma vida, unindo uma ponta a outra, a maturidade e finalmente a velhice, & juventude, o realismo ao surrea- lismo, através de um impressionante trabalho tecido @ partir da rememorizacdo e da reflexio. Este jé se insinua ‘em 1956, com 0 volume de poemas Le Roman. inachevé, que ele mesmo qualificou como “a tinica autobiografia” que escreveu.” A partir dai, 0 posta e romancista passou a se distanciar paulatinamente da utopia stalinista. Em seu tiltimo romance, Théatre/Roman (1974), ele afirmava: “Minha vida é escrever. Nao parao teatro, isto é, um lugar que existia fora de mim. Mas sim para um teatro que é meu e esté em mim, Onde eu sou tudo, « autor, 0 ator, 0 paleo, onde no vendo nada a ninguém e sou meu pro: prio e tnico interlocutor. Seria necessério reler tudo (0 que escrevs) deste ponto de vista”.® Louis Aragon morreu num dia de outono de 1982. Grande parte de sua obra posterior ao periodo surrea. lista (com exeegio da produgo poétiea em geral e, sobretudo, a do periodo de Resisténcia) ¢ pouco conhe cida, mesmo na Frange, sem dtivida em raziio de um Preconceito que justifica a catalogagio de Aragon como I” Gitado por V. Staraselak, A autora cita também os ver 08 seguintes, que traduzo livremente e nos quais se vé tima referéncia explicita aos companheiros surreclistas da juventude: “Apesar de tudo 0 que velo nos sepa rar/O meus amigos de entio, vocés é que revejo/ E em tinha meméria témula/ Vooes guardam seus othos de outrora” (em Le Roman inachevé). 9 Citado por V. Staraslsk 19 ‘mero escritor oficial do Fc. O que é no minimo muito simplista, como de resto todas as catalogacdes. Anexas, ‘esta tradugao 0 leitor encontraré algumas sugestbes ibliogréficas sobre o autor do Camponés, bem como ‘uma lista de obras de Aragon, e mesmno uma indicacéo discogrética. Mas, por ora, voltemos ao tenipo em que era uma vez o surrealismo, para dizer algumas palavras, sobre O Camponés de Paris. O Camponés de Paris 0 Camponés de Paris, uma das realizagées mais origi- nais da prosa surrealista — ao lado de Nadja (1928), de Breton ede Les derniéres nuits de Paris (1928), deSoupault herdeiro desses textos que se inserem na tradicio do mito literéirio de Paris, segundo a qual a capital francesa 6 representada mais como uma personage extraordina- ria, dotada de corpo e alma, do que propriamente como um cenério. A génese deste mito remonta ao final do século xvilt, que produziu obras como Les nutts de Paris, de Restif de la Bretonne e Tableau de Paris, de Sébastien Mercier. O século xrx, por sua vez, sé fez enriquecer esta tradigo, sobretudo com Baudelaire, cuja obra se engen- drou a partir do profundo traumatismo sofrido pela cidade e seus habitantes com as transformagées urbants- ticas de embelezamento e saneamento impostas pelo bardo Haussmann, administrador da regidoparisiensede 1855 a 1870. Este, que se auto qualificava como “artista demolidor”, substituiu a fisionomia ainda medieval de Paris, repleta de ruelas sombrias e fétidas, pelo que ela é hoje, dotando-a de grandes eixos de ligagio (os boulevards) teste-oeste e norte-sul, No século xx, os surreelistas cultus- riam a grande cidade como espaco privilegiado para a experiéncia de um certo tipo de “iiuminacao” resultante da observagio de seus intimeros aspectos cambiantes, de 20 4 seu cariter efémero e mesmo da precariedade de todas as suas intimeras formas de vida. Afinal, Baudelaire jé constatara, antes deles, que a forma de uma cidade muda mais rapidamente que o cora¢do de um mortal, o que faz com que tudo se transmude incessantemente em amon- toados de ruinas, em alegorias.’° ‘Os quatro capitulos que compdem 9 Camponés de Paris foram reunidos em livro em 1926. Os capitulos “A Pascagem da Opera” e “O Sentimento da Natureza no Parque Buttes-Chaumont” jéchaviam sido publicados em fothetim pela Revue Buropéenne (em 1924 © 1925, respectivamente), dirigida entio por Philippe Sou- pault. A narrativa se estrutura em torno de dois movi- mentos. Do primeiro resultam o preficio e o tltimo capitulo, que abrem e fechem o texto com um mesmo tom manifestario muito ao gosto das vanguardas do infeio do século. Trate-se de um discurso propondo ‘uma pragmitica, uma ret6rica ou postica, que se carac- teriza por uma logica binéria, pots, ao irtroduzir novas e ideais proposi¢des, nege a validade dos procedimen- ‘tos anteriormente empregacios. Funciona assim como, uum embaixador das novas que pretende instaurar a partir da ruptura que anuncia (o que explica 8 razio pela qual as projetos e manifestos das vanguardas fre- qiientemente antecedem a propria obra). No caso do “Prefiicio” de Aragon, trata-se de denunciar as mazelas 10 Refiro‘me ao poema “Le Cygne”, de Baudelaire: “Le viewx Paris n'est plus (la forme d'une vitle / Change plus alte, hélas! que te coeur d'un mortel)”. E mais adiante o poema diz: “Paris change! mais rien dans ma melanco- lie / N'a bougé! palais new/s, échafaudages, blocs, / View: faubourgs, tout pour moi devient allégorie, / Et mes chars souvenirs sont plus lourds que des rocs” (Tableaux Parisiens, em Les Fleurs du Mal). 21 do “tolo racionalismo humano”, apontado como he- ranga nociva do cartesianismo que fundamenta hé sé- culos os esquemas légicos do pensemento ocidental, ‘contra a qual tanto se bateu 0 surrealismo, sobretudo nos anos vinte, Esta dentmcia se acompanha da inten- ‘eGo de preservar “o sentimento do maravilhoso cotidia- no", condic&o basica para a pragmética surrealista sob a 6tica de Aragon. O iiltimo capitulo, “O Sonho do Camponés", funciona como fecho de reforco neste sen- tido. Ble se inicia com um tom de ensaio filoséfico, que 0s poucos vai se diluindo até assumir completamente a forma do manifesto, com frases curtas disparadas & queimaroupa. O texto se fecha assim declarando a instauragio de ura tempo da vida poética, j6 que é para “a poesia que tende o homem”. © outro movimento da narrativa se tece a partir da deambulacio pela cidade, com os capitulos "A Passa- gem da Opera” e “O Sentimento da Natureza no Par que Buttes Chaumont”. Ambos 08 espacos, como vere- mos, sio uma reférencia a este periodo de decadéncia gue foi o final do Segundo Império, do qual o baréo Haussmann é a figura emblemética por exceléncia, Alguns de seus projets de desventramento de Paris néo foram realizados durante a sua gesto, como foi 0 caso mesmo da demoligio desta passagem parisiense, posta abaixo pelas picaretas da haussmanizaco em 1924, para que mais uma grande artéria, o boulevard Haussmann, pudesse ser aberta. Suas duas galerias (do Bardmetroe do Term6metro) haviam sido Inauguradas em 1821 e ganharam este nome poraue, tendo sido coneebidas como parte integrante da Academia Real de Misica, (nome provisério do teatro da Opera de Paris), serviem de passagem a atrizes e freqiientadores. Em 1878, prédio da Academia foi destrufdo por um incén- dio, 0 que motivo a construgdo do atual teatro da Opera projetado por Garnier e inaugurado em 1878. A 22 passagem sobreviveu ao fogo, mas seu intenso movi- mento comercial fol pouco a pouco diminuindo, até que o lugar se tornasse completamente decadente. Em 1880, o célebre anarquista Auguste Blanqui instalou ali a sede de seu jornal, pelo que se fez expulso, em raziio de todas as idas e vindas dos partidérios da revolucdo. Na década de 20, dadaistas e surrealistas fizeram tam- bém do bar Certa, situado no interior da passagem, a sede de suas turbulentas reunides. Som falar de todas as celebridades que freqiientavam 0 saléo do barbeiro GéisGaubert, responsével pelas cabeleiras de nada mais, nada menos que Balzac e Breton, entre outros. Aragon conheceu a passagem, portanto, no auge de sua decadéneia, quando ela jé era uma espécie de rina do que fora outrora, tendo se transformado assim num lugar insélito, num “‘santuério do culto do efémero”, numa “paisagem fantasmética dos prazeres e das pro fissGes malditas” tornados obsoletos com o avango ine- xordvel do tempo e as mudangas econdmicas e sociais que ele impde, € condenados a se eclipsarem para sempre, soterrados como novas Pompéies. Jé dissemos que este capitulo foi publicado em 1924, mesmo ano em que a passagem da Opera foi demolida. Ele 6, destarte, uma espécie de escrita-obituéria pela qual a morte da propria passagem entra em cena, legando-nos uma deseri¢ao testamentaria minuciosa do lugar, um inventério metédico das lojas, seus objetos, dos fatos que af se passavam e dos hébitos da estranba fauna humana que o animava ainda, em via de desaparicao. Paravisto, langa m&o da colagem, empregando abun- dantemente a reproducao de placas de comércio e ins- crigdes de todo tipo. Mas tal artificio nao visa a propi- ciar uma intromisséo do real na prosa; ao contrévio, Aragon serve-se dele como de um trampctim que passa levar & subversio do sentido ordinario de cenas e obje- tos aparentemente corriqueiros, a fim de Ihes atribuix 28 ‘uma fungio poética e, desta forma, desencadear o aces- so ao “maravilhoso cotidiano”. A colagem cria aqui uma espécie de fenda na leitura, eonduzindo a passa- gem que transportara o leitor do real ao onfrico, do banal ao magico, da reslidade A poesia. Como diz, 0 proprio narrador: da passagem da Opera a passagem da Opera onfrica, O titulo da narrativa cria uma ambi- guidade reveladora: 0 camponés de Paris no vé a cidade como 0 citadino ou o burgués — estes sim seus habitantes nativos — e por esta razio seu olhar é reve lador do insélito: ele entretém com o grande corpo urbano uma ligagio tio visceral quanto a do rastico camponés com a terra, mas este vineulo é acrescido de um estranhamento permanente, do qual dé conta a posigio entre 0s vocsbulos Camponés e Paris. A deambulagio solitéria pela passagem sucede- ré a expedicio a trés (Aragon, Breton e Marcel Noll) rumo ao parque Buttes-Chaumont, Quanto a este, monumental construgio com rochedos artificiais, situado ao leste da cidade, foi obra realizada por Haussmann em vida, que dotou assim a capital de um. de seus pulindes verdes (0 terreno, antigamente pt- trido, servia de depésito de 1ixo). Assim, 0 desloca- mento do narrador pela cidade também apresenta uma estrutura bindria que opde dois espacos diame- tralmente opostos: primeiramente, como vimos, @ pas- sagem da Opera, lugar fechado, quase poderfamos dizer subterréneo, que se localizava num bairro cen- tral da cidade; e depois o grande jardim, devassado, alto, de periferia, Este lugar aninha, segundo Aragon, “g inconsciente da cidade” ¢ assume na narrativa os ares de labirinto inicidtico dos surrealistas. A descrigao minuciosa de todos os aspectos geotopograficos do jardim, feita através de perfodos extremamente longos, chega a saturar a leitura. A intenciio ndo é nada ino- cente e, cxiando uma espécie de desnorteamento, 26 i vem reforcar a idéia do labirinto. Errar pelo jardim em plena noite funciona como técnica alucinégena, cujo objetivo 6 fazer aflorar o que ha de mais primi- tivo no homem; e percorrer esta topogratia eauivale a percorrer 03 caminhos sinuosos do inconsciente. Assim, a minicia deseritiva que pareceria num pri- meiro momento convidar o leitor a verificar a auten- ticidade da narrative, revelase mais uma vez como um trampolim do imaginario: a precisio excessiva de detalhe acaba por criar um efeito de contornos vagos. ‘Aragon limita a cidade a dois lugares: passagem ¢ Jardim, Mas cada um deles é um ponto de encontro de varios outros, de forma que o espago, n’ 0 Camponés de Paris, desdobra-se em intimeras dimensbes, como se pode ver pela quantidade de mfcrocosmos evocados ‘por Aragon através desses dois lugares eleitos e no- meados. Sua cidade 6, portanto, a projegio de um universo postico que se traduz pela mais intensa Ins- tabilidade. Podemos nos servir aqui das palavras de Marie Claire Bancquart, que observou que a Paris dos surrealistas 6 uma cidade ndo-sociol6gica, sem densi- dade humana, que se volta inteiramente para a busca de uma intersecedo entre o real e o imaginério, uma Paris que é transferéncia e projeciio.'’ Sem diivida esta dimensiio da narrativa de Aragon 6 irreiutavel. Se nos perguntarmos, porém, que charme irresistivel ema- nou destas paginas para Walter Benjamin — que en- controu nelas a inspiracdo para sua obra inacabada Paris, capital do século XIX"* (aliés, livro conhecido 11 Em Le Paris des surréalistes (Paris: Seghers, 1972). 12 Numa carta famosa a Adorno, Benjamin dizia: “No comego (do projeto da referida obra) hé Aragon, O Camponés de Paris, livro do qual eu nao podie ler mais do que duas ou trés paginas noite, na cama, 25 como “Trabalho das Passagens”) — poderemos com. preender que o interesse da Paris surrealista de Aragon. vai além da esfera da interseceiio entre real e imagina. rio, sem entretanto negé-la. Para Benjamin, as passagens parasienses, primeira realizagio da arguitetura em ferro que atingiu seu apo- geu durante o Segundo Império, eram um dos elementos que compunbam 0 “universo das fantasmagorias” dos século XIX, do quel ele esboca um denso quadro na obra que citamos. Quanto a Haussmann, seria “o campedo da fantasmagoria da prépria civilizacio”. Nao caberia no Ambito desta Apresentagéo uma discuss aprofundada sobre a nogio benjeminiana de “fantasmagoria”. Que o leitor nos perdioe, mas vamos reduzila a um de seus aspectos essenciais, que consiste neste caréter “ os comerciantes " lesspropriades to vitimas deum as cabagas dos jorados por um | gar eecemo casosja anti, tmultidgo exasperada. O juiz,en- | rar proveitos néo a cidade, mas louuecido,apelou para os gen- Sociedade concesionria. darmes, E desde exe dia,osde- | ete, coperagies de desapropriago das Tecadores do iltimo lote do bow: levord Haussmann, ““Dundidos! LadrSes! Vendidos!” Tais exam as menores amenidades dirigides © porta-voz oficial dos que protestara é uma folha quinzenal que se intitula: 59 LA CHAUSSE D‘ANTIN Seto de Det de est a Eons de Bare A venda entre os dias 18, 5, 15 ¢ 20 de cada mes Chefe de redapao: Jen Gzorces Bern Ninguém duvida de que o chefe de redagio, filho de um antigo deputado de Paris, se prepare para receber a iluséria heranca moral de seu pai. Ele atende todas as segundas e sextasfeiras, das 17 as 19 horas em sua residéncia, na rue de la Victoire n? 93, que é também a sede do jornal. f em nome da Reptiplica que ele lanca um apelo aos pequenos comerciantes. Vejam como se meia as opinides em seu jornal, a fim de organizar a resisténcla, Lé-se na terceira pagina: Pissosconenes, ssejomal éseu 6rat0, ‘seu apoio. O que vords esperar pata sustenté-lo também, conflando the por sua ver tum pouco de pubicidade? Lembrem-se de que tarifas especiats thes so concedidas ¢ que esse jornaljamals ace tard propaganda das grandes lias E na quarta pagina, abaixo das “Casas recomenda- das do bairro”: APELO Fazemnos um insistente apelo junto.a nossos amigos ea todos aqueles que nos aprovam, no sentido de que venham aderir sem demora ao Comité Repu- blicano de Defesa dos interesses do Bairro, cuja 60 a i a aca ea ficha de adesio encontrar8o logo abaino, Basta precricher os dados e enviéla pelo correo ao jornal O terror do La Chaussé d’Antin é 0 senhor Oudin, vereador da cidade. A ele se atribuem todas as faltas cometidas, ele 6 0 homem do Banco Bauer, Marchal e Cia,, acusam-no de inéreia, se ele néo é capaz de defen- der os interesses do bairro, que peca dem:ssio. Precisa- mos de um trabalhador, de um defensor. Nés 0 tere mos”, diz um artigo. E 0 senhor Oudin nem sequer ‘mora mais no bairro. ‘Abandono um pouco meu microse6pio, Por mais que se diga, escrever com 08 olhos postos sobre a lente objetiva, mesmo com o auxflio de uma cémara branca, esgota realmente vista. Meus dois olhos, desabituados de olhar juntos, deixam hesitar ligeiramente suas sen- sages, para depois novamente se emparelharem. Uma espiral inteira se completa as cegas sob minha fronte, para depois recolocar'se no lugar: 0 menor objeto que percebo parece me de proporgdes gigantescas, uma gar rafa ¢ um tinteiro lembram-me Notre-Dame ¢ 0 prédio da Morgue. Creio ver muito préxima minha mio que escreve, e minha pena é um encedeamento de névoas, ‘Tenho dificuldade, como pela manhé, com um sonho desvanecido, & medida que os objetos readquirem seu tamanho em relacdo a mim, em rememorar 0 micros c6pio que ainda ha pouco eu iluminava com meus espelhos, que eu fazia passar pelo pequeno diafragma da atengio. Magnificos dramas bacteriais, é de se espe rar que, seguindo a inelinagio natural do corago quan- do nos abandonamos as suas interpretagées delirantes, - imaginemos para vocés causas passionais & imagem dos verdadeiros pesares de nossa vida. O amor, eis 0 nico sentimento de grandeza sufi ciente para que o emprestemos aos infinitamente pe- guenos. Mas concebamos uma vez suas lutas de interes- 61 ses, micrébios, pensemos em suas firias domésticas. Que errs de contabilidade, que fraudes na escritura- cdo comercial, que extorsées municipais presidem, & margem do fendmeno fisico, as observaveis fagocito- ses? Agitem-se, agitem-se desesperadamente, vibrides tragicos arrastados numa aventura complexa em que 0 observador nao pereebe nada além do jogo satistatério ¢ razofivel das imutaveis leis da biologial O que vocés inscrevem em meu campo ético com essa tormenta de enigmas, 6 cartazes luminosos da aflicdo, pequenos pequeninos? B suas migragGes feito a danga dos colsi- des, o que significa seu cinema? Tento ler nessa répida escritura ea tnica palavra que creio distinguir em meio a esses caracteres cuneiformes incessantemente trans- formados niio é Justi¢a, é Morte. © Morte, encantadora erianga um pouco poeirenta, eis um pequeno palécio para teus galanteios. Aproxima-te suavemente com teus caleanhares torneados, desamassa o tafetd de teu vestido edanga. Todos os subterftigios do mundo, todos os artificios que estendem o poder de meus sentidos, lunetas astrondmicas € lupas de todos os tipos, estupe- facientes semelhantes as vigosas flores dos prados, 4l- coois e seus martelos-mecdnicos, surrealismos, reve- lam-me por toda parte sua presenca. Morte, redonda como meu olho. Eu te esquecia jé, Passeava sem pensar que seria necessério voltar para casa, minha boadomés- tica, para casa, onde a sopa jé esfria no prato, onde tu, esperando-me, trincas rabanetes negligentemente com os dentes, ¢ tuas falanges descarnadas brincam com as bordas da toalha. Olha, no sejas impaciente, eu te darei também amendoins e todo um bairro de bowle- ‘vards para que tu amoles teus graciosos dentes, Néo me importunes: jé vou. ‘Mas eu esquecia de dizer que a Passagem da Ope- ra 6 um grande atatide de vidro e, como a mesma brancura endeusada desde os tempos em que a ado- 62 ravam nos subtirbios romanos, preside sempre 0 du- plo jogo do amor e da morte a Libido que, nos dias de hoje, elegeu coma templo os livros de medicina vagueia agora seguida pelo seu céozinho Sigmund Freud, véemse nas galerias de seus mutéveis clardes que véo da claridade do sepulcro & sombra da volipia, deliciosas jovens servindo a um ¢ outro culto com provocantes movimentos dos quadris ¢ um penetran- te sorriso empavonado. Em cena, senhoritas, em cena, e dispam-se um pouco. “O individuo vivo”, diz Hegel, “apresentase em sua primeira evolugao como sujeito e como nogiio, ena segunda ele incorpora 0 objeto e por af se atribui uma determinago real, ¢ ele é em si o género, a universali- dade substancial. Arelagio de um sujeito com um outro sujelto do mesmo género constitui a particularizagdo do género eo julgamento exprime a relagio do género com os individuos assim determinados.Bisaf a diferen- «60 dos sexos.” Encontro,nessas palavras 2 significagdo verdadetra da historia de Péris. Ninguém duvida de que somente ‘Venus, entre suas rivais, parecie-Ihe mulher, entio ele Ihe jogou 2 mag. Mas como ele agiria aqui? Na Passa- gem da Opera, tantas passantes diverses se submetem, ao julgamento hegeliano, mulheres de idade e beleza varidveis, freqiientemente vulgares e de alguma forma jédepreciadas, porém mulheres, mulheres verdadeira- mente, e sensivelmente mulheres, isso i custa de todas, ‘a5 outras qualidades de seus corpos e almas; tantas passantes nessas galerias — suas ctimplices — conten tam-se unicamente em ser mulheres, que o homem. ainda indeciso e solitério com sua idSia do amor, 0 homem que ainda nao cré na phuralidade das mulhe 63 res, a crianga que busca uma imagem do absoluto para suas noites nada tem a fazer nessas paragens. E como da pena ver os colegiais vermelhos, cutucandose uns 08 outros, encaminharem-se rumo ao Teatro Moder- no: como poderiam escolher alguém 14? Nao parece ser um cuidado estranho as caricias o que arrasta para tal reino toda esse multidao instével de mulheres que concede a voltipia um direito perpé. tuo sobre seus vaivéns, Multiplicidade encantadora dos aspectos e das provocagées, Nao hé uma que roce © ar como outra. O que deixam atras delas, seus vestigios de sensualidade, jamais é 0 mesmo lamento, ‘o mesmo perfume. E se hé algumas que fazem aflorar suavemente em mim o riso, devido & desproporcao que reina entre seu fisico mediocre ou burlesco ¢ 0 gosto infinito que elas tém de agradar, também clas Participam dessa atmosfera da lascividade que como o sussurro das folhas verdes. Velhas putas, con- feitos, mtimias mecénicas, gosto que vocés figurem na decoragio habitual, pois vocés séo ainda clardes vivos pelo prego das mies de famflia que encontramos nos passeios puiblicos. ‘Algumas fazem desse lugar seu quartel general: um amante, um trabalho, talveza esperanga de prender em sua armadilha uma caca que nio é exatamente a dos boulevards, enfim: alguma coisa que tem 0 sotaque do destino fixou-as nesses limites, Outras freqientam a Passagem apenas pela possibilidade do encontro: 0 écio, a curiosidade, 0 acaso... ou entio é um rapaz timido que teme ser visto com elas em pleno dia, ou ainda um devasso que tem aqui suas facilidades e vem examiner sua presa nesse canto trangiiilo, Com fre- qiiéneia, as mulheres com que cruzamos aqui vém pela primeira vez a esses reftigios cOmodos: entretanto no so provincianas, sentar-se a cada dia nos terragos vizinhos. Porém, adentrando essas abdbodas de vidro, 64 ganham a nogao de uma existéncia ¢ de todo um mun- do ¢ lé esto elas pouco a vontade. Falam entre si em voz baixa, riem um pouco alto e examinam cada coisa. No custam @ descobrir particularidades que as exci- tam e chocam. Geralmente andam em duas: isso torna a vida mais fécil, As novatas, somente, se equivocam em relagao a seus pares; mas as outras subem convidé: las sem erro para algum drinque que permita o arranjo de conhecimentos. Séo conversagées delicadas em que a presenca de uma outra mulher introduz um sentido de sociabilidade e polidez, até que a interessada mostre 0s dentes brilhantes ¢ fale com sorrisos a respeito de sua agenda e de suas mais secretas ciéncias. Ha ligacdes antigas que elegeram para seus encontros 0 Cera ou 0 Petit Grillon, Reconhecemos esses casos habituais: a mulher que espera tem um ar de reserva que néo engana, Chega depois ohomem, atarefado. Ele transpi- ra ainda sua vida social, ele tem uma posicao, uma pasta de documentos, a Légion d’honneur, ele se assegu: Ta, com a mio, de que sua barba esté penteada. As vezes ‘4 uma crianga com a mulher. Quanto aela, ndo perde por um instante sequer o sentido do mistério. Mas minha predilegio recai sobre as verdadeiras treqitentadoras. Podemos vélas sempre. Reencontra molas. Néo é necessério aproximarse delas. Com 0 tempo fazemos uma idéiade cada uma. Deum ano para outro quase nio mudam. Seguimos nelas a marcha das estagdes, a moda. Variam insensivelmente com o céu, como essas marionetes dos barémetros da Floresta Ne- gra que pdem um vestido arroxeado nos dias de chuva, A Gria que elas cantarolam muda também: nés a conhe- cemos sempre € mesmo a reconhecemos. Algumes se dispersam, outras envelhecem, A cada primavera reno: va-se um pouco seu contingente. 4s primeiras a chegar, de infcio temerosas ou ruidosas, acabam por se render a disciplina do mefotermo. Tapecaria humana e mével, 65 que se desfia ¢ refaz, Elas trazem ao mesmo tempo os mesmos chapéus ¢ as mesmas idéias, mas nio se furta. riam jamais, pelo modo de andar, de um sentido inde finivel de seus corpos, a no ser por alguns trejeitos canalhas que indicam, mais seguramente que tudo, a convivénciae a camaradagem com inferiores, um certo aviltamento aprazivel que me sobe imediatamente & imaginagio e me aquece o coragao. Em tudo aquilo que é baixo hé algo de maravilhoso que me dispde ao pra- zer. A essas damas, junta-se um certo gosto do perigo: seus olhos, cuja maquilagem fixou de uma vez por todas as olheiras e divinizou a fadiga, essas mfos que tudo, abominavelmente, revela espertas, um ar ine- briante da facilidade, uma zombaria atroz no tom, uma voz geralmente devassa, banelidades particuleres que conta a historia temerdria de uma vida, sinais traido- res de seus acidentes pressentidos, tudo nolas permite recear os perigos ignominiosos do amor, tudo nelas a0 mesmo tempo mostra-me o abismo e cause-me verti: gem, mas eu as perdoarla, com certeza, agora mesmo, por me consumirem. Sou como 0 vendedor de tecidos das Mil e Uma Noites: ele desposara uma jovem do paldcio ¢ depois de ter sido agoitado porque no lavava as mios antes de acericié-1a, sua propria mulher cortou Ihe os quatro polegares com uma navalha; mas ele considerou que isso era pouco ¢ jurowdhe lavar sempre as miios cento e vinte vezes, com dicali, cinza de Alcali esabao; depois comprou uma casa ¢ nela morou duran- te um ano com sua esposa. Um cabeleireiro e um barbeiro, um atrés do outro, seguem-se ao vendedor de selos: o primeiro, cabeleirei- ro para senhoras; 0 segundo, Saido para homens, Cabe- leireiros para os dois sexos, suas especializagdes sfio 66 saborosas. As leis do mundo inserevemse em letras brancas em suas vitrines. Bis af seus clientes: as feras, das florestas virgens, elas procuram suss poltronas fim de se preparar para o prazer e a propagac&o da espécie. Vocés estimulam os cabelos ¢ as faces, aparem as gartas ¢ afiam os rostos para a grande selecdo natu- ral. Rouxinéis roucos foram vistos em suas mortalhas ‘midas: antes de sentar, jogavam na pequena escarra- deira de areia seu charuto ornado de estrelas da noite, depois abandonavam-se as tescuras eantoras e a0 vapo- rizador magico. Quem o teria reconhecido, melodioso passaro, nesse paciente que Ié com negligencia as ecos de La Vie Parisienne?" Bu gostaria de saber que nostalgias, que cristaliza- Ges posticas, que castelos de areia, que construgdes de Iangor e esperancase arquitetam na cabegs do aprendiz no momento em que, no inicio da carreira, ele se cesti- naa ser cabeleireiro de mulheres, ¢ comega por cuider das mios. Invejével sorte vulgar, cle agora em diante ele desenlacaré ao longo de todo 0 dia 0 arcoiris do pudor das mulheres, as cabeleiras ligeiras, as cabeleirasva- por, essas cortinas encantadorasda alcova. Viverd nessa bruma do amor, os dedos fundidos a0 mais sutil da mulher, ao mais sutil aparelho de carfeias que ela traz sobre si com um completo ar de ignorélo. Haveré cabeleireiros que tenham imaginado, como mineiros na hulha, servir unicamente as morenas, outros lancar- se no louro? Teriam eles pensado decifrar essa rede que guardava, ainda agora, um pouco da desordem do sono? Sempre me detive no limiar dessas lojas proibi das.acshomense videsenrolarem:seos cabelosem suas, grutas. Serpentes, serpentes, vocés me fascinam sem- “pre. Assim, eu contemplava um dia na Passagem da Opera os caracéis lentos e puros de uma piton!’ de lourice. E bruscemente, pela primetra vez em minha vida, fui surpreendido pela idéia de que os homens er encontraram apenas um termo de comparagio para aquilo que 6 louro: como 0 trigo, e acreditam ter dito tudo. O trigo, seus infelizes, mas vocés nunca olharam para as samambaias? Durante um ano inteiro, mordi cabelos de samambaia. Conheci cabelos de resina, ca- belos de topazio, cabelos de histeria. Louro como a histeria, louro como o céu, louro como a fadige, louro como 0 beljo. Sobre a palhete das lourices, incluiret a elegincia dos automéveis, o odor dos sanfenos, o silén- cio das manhis, as perplexidades da espera, os destro cos das rogaduras, Como € louro o barulho da chuva, como é louro 0 canto dos espelhos! Do perfume das uvas a0 grito da coruja, das batidas do coragdo do assassino a florfémea™’ dos citisos, da mordida a can- Go, quantas lourices, quantas palpebras: lourice dos tetos, lourice dos ventos, lourice das mesas, ou das folhas de palmeira, ha dias inteiros de lourice, grandes magazines de Louro, gelerias para 0 desejo, arsenais de pé cordelaranja, Louro por toda parte: entrego-me a esse bosque de pinhos dos sentidos, a esse conceito da Iourice que nfo a prépria cor, mas uma espécie de espirito de cor, inteiramente casado com as nuances do amor. Do branco ao vermelho, pasando pelo amarelo, o louro nfo entrega seu mistério, O louro assemelhase 20 balbuciar da volipia, as piratarias dos labios, aos estremecimentos das Aguas limpidas. Olouraescapa ao que define, por uma espécie de caminho caprichosoem que encontro as flores ¢ as conchas. uma espécie de reflexo da mulher sobre as pedras, uma sombra para- doxal das caricias no ar, um sopro de derrote da razio, Louros como 0 reino do abrago, os cabelos se dissol- -viem, pois, na Loja da Pessagem, e eu me deixava mor- rer ha aproximadamente quinze minutos. Pareciame que teria podido passar minha vida no muito longe desse enxame de vespas, nfo longe desse rio de clardes Nesse lugar submarino, como no pensar naquelas 68 herofnas de cinema que, em busca de um anel perdido, encerram num escafandro toda sua América nacarada? Essa cabeleira estendida possuia a palider elétrica das tempestades, o desbotado de uma respiragio sobre 0 metal. Uma espécie de fera enfastiada que cochila no automével. Era espantoso que éla fizesse tanto barulho quanto pés desealgos sobre um tapete. O que ha de mais louro que a espuma? Sempre acreditei ver champanhe sobre o solo das florestas. Eos cogumelos! As orongas!"* As lebres que fogem! A meie-lua das unhas! A cor da madeira! A cor rosat O sangue das plantas! Os othos das corcas! A meméria: a meméria é verdadeiramente lou- ra, Nos seus confins, onde a lembranca s2 casa com @ mentira, 0s formosos cachos de claridade! A eabeleira morta teve de repente um reflexo de vinho do Porto: 0 cabeleireiro comecava as ondulacdes Marcel. Em liberdade na loja, grandes feras modernas es- preitavam a fémea do homem aprisionada pelo ferri- nho de frisar: 0 secador mecanico com seu pescoco de serpente, 0 tubo de raios violeta cujos clhos sio tao doces, o fumigador com halito de verdo, todos os ins- trumentos sorrateiros e prontos para morder, todos os escravos de ago que se revoltario um belo dia. Os simulacros da vitrine, nao direi mais nada’ a respeito dessas ceras que a moda despiu e marcou na carne da pulsacdo dos polegares. Mas onde, diabos, eu tinha encontrado essa mulher que agora passava as mios sobre seu penteado reformado? Por um instante avistei suas espfduas: uma teia de aranha ocultou-as. Depois foi a vez de os cabelos desaparecerem sob um grande _inseto marrom. Uma libélula voava buscando seu ali- ‘mento" um pouco abaixo da cintura, as -nios brinca- ‘vam com Iuvas de areia ¢ uma bolsa de mica acinzen- ¥ Ver Anicet ow te panorama, romance (nota de 1966). 69 a tada. Ela caminhava como se ri e, quando aleangou a porta, viseu pé preso numa armadilha de folhagem esua perna dourada, e pergunteime navamente: Mas quem poderia ser essa esponja? Entio a encantadora lourice, inclinandose para mim, disse: “Pois entéo voc8 j4 esqueceu, entretanto foi ontem mesmo: as folhagens nio murcharam, os lustres no percieram seu esplendor nem os cubsculos seu sombrio rubor. Quando apareci em meio as gargalhadas, era otempo do equinécio, tive apenas que me balangar um pouco ¢ a vaga de sombra subiu sobre os semblantes, e um mar dos bracos masculinos estendew-se em direcdo a Nand." — Nani exelamei, mas como voeé est na moda! — Sou, disse ela, a propria moda, e por mim tudo respira. Voc8 conhece os reirios da mode? Eles esto tio repletos de mim, que nao se pode canté-los, mas apenas murmurélos. Tudo o que vive de reflexos, tudo o que cintila, tudo 0 que perece a meus passos se apega. Sou Nané, a idéia de tempo. Voeé jé amou uma avalanche, meu caro? Apenas olhe minha pele. Embora imortal, tenho o ar de um desjejum de sol. Um fogo de palha que se quer tocar, Mas sobre essa pira perpétua, 6 0 incendiério que arde. O sol 6 meu cozinho. Ele me segue, como voc? pode ver”. Ela se distanciou em direcao & rue Chauchat e eu permanecila, pasmo, pois em lugar da sombra ela deixou ‘um xale de luz que a escoltava sobre o lajendo. Desapare- ceu no zumzum longinquo do Hotel des Ventes."° (© Hotel des Ventes deixa filtrar um pouco de suas paixdes no crivo da Passagern da Opera. Mas a obsessio esse lugar transforma os que escapam dela e é apenas entrando em tal antro que esses jogadores inquietos, esses perscrutadores fervorosos conservam sobre seus semblantes 0 reflexo flamejante dos lances de leildo: avancando por essas galerias encantadas eles se entregam as magias do lugar e tornam-se, por sua vez, homens. No 70 segundo cabeleireiro, porém, alguns dentre eles fazem, uma parada para melhor se livrar do tremor que os faria reconheciyeis. Com suas cabegas embebidas na logéo de Portugal,!’ suas faces entregues as lamins de Sheffield, ‘em que pensam nesse rol de madeira sombria? Os vidros foscos da vitrine enganam um pouco sobre a qualidade desse Salo, bastante severo, com o teto alto, mas menos moderno do que se espera. Nao é o barbeiro francés tradicional, que guarda a lembranga dos anos brilhantes do século passado sob as espécies de ornamentos intiteis, como aquele que encontraremos na outra galeria; tam- bém nfo € o barbeiro a americana que se estabeleceu em Paris ha menos de dez anos como um decalque do origi- nal, com todos os aperfeigoamentos bérbaros de uma cirungia erética; nem sequer é, ainda que o diga a placa, vestigio cle uma civilizago de nossa inféncia, 0 Peluque- ro, tal como é encontrado perto da igreja da Trinité, vindo para a Franga com o maxixe e 0 tango; € muito mais 0 sobrevivente dessa anglomania fora de moda que man- dava clarear sua roupa intima em Londres, 0 Lavatory de aspecto protestante que nao nos parece mais inglés, hoje, do que nos parecia chinesa certa poreelara de Sévres do século xvitt, Que contraste com a loja vizirhal Aqui, nada de cortinadios de veludo azul, nada de caixa enigmética. Bm lugardeostenter, como aprecedente, um aventureiro nome de Opera, Norma, que é como uma varanda sobre vinhas, a casa recomenda-se a si mesma com os patréni- mos de sete cabeleireiros: ‘VINCENT PIERRE HAMBI. ERNEST ADRIEN AMEDEE (CHARLES nm Barbeiros corretos e pouco voluptuosos. S40 como sua loja de madeira sombria e vidros. Barbeiam bem. Cortam os cabelos e pronto. Isso é tudo por hoje. £ que eles so de uma escola em que se tomava o barbeiro por uma ferramenta de preciséo: nao entra nenhuma hu- manidade em seus métodos. Num pafs em que se de- clara abominavel 0 ensaboamento das faces com as maos, tal como se pratica na Alemanha, para preferir a ele a manobra antiga do pincel de barbs, é claro que tais barbeiros puritanos, mesmo a dois passos dos san- ‘tudrios da sensualidade, cheguem a manter uma tradi- gio de secura anglo-sax6nica. Foi sobretudo nos peque- nos barbeiros dos bairros periféricos, em Auteil, e mesmo em Ternes, que encontrei os praticos sentimen- tais, capazes de atribuir aos cuidados da barba e dos cabelos uma espécie de paixéo néo profissional e de revelar, através de repentinas delicadezas inesperadas, uma ciéncia anatémica instintiva que me explica ver- dadeiramente a expresso artista capilar, que hoje tem somente aplicagées irénicas. & para mim motivo de surpresa sempre renovada ver com que desdém, com que indiferengs pelos pré- prios prazeres os homens negligenciam & possibilidade de estender seus dominios. Eles me causam a impres- sio dessas pessoas que lavam as maos e os rostos, acreditando dever limitar em si préprios as zonas da voliipia. Se alguns deles experimentam os encantos do caso, néo os vemos preocupando-se em reproduzi-los. Nenhum sistema, nenhuma tentativa de codificagio do prazer. Nao dé para compreender como eles ainda so suscetivels, de tempos em tempos, aquilo que chamam tdo singularmente de vicios. Nao tratam de seu couro cabeludo e seus barbetros perdem negligentemente a ocasiao de proporcionar a esses ignorantes prazeres ‘ue Ihes seria to ffcil conceder. Néo creio que jamais se tenha ensinado essa geografia do prazer que seria, R na vida, uma singular resposta contra o tédio, Ninguém se ocupou com estabelecer os limites do frisson, os dominios da caricia, a prética da volipia. Localizacdes grosseiras, efs tudo o que o homem tirow da experiéncia individual. Talvez.um dia os sébios partilhario entre si © corpo humano para nele estudar os mneandros do prazer: achardo esse estudo to digno quento qualquer outro de absorver a atividade de um homem. Publica- rio seu atlas, cuja leitura atenta seré preciso recomen- dar aos jovens cabeleireiros. Af eles aprenderioa deixar vagar seus dedos sobre os crénios: aprenderao a fazé-los demorar na altura do lambda," onde o prazer atinge seu pice, ¢ a retirélos de repente em diregdo as esce mas, onde reinos nervosos, sob a influéncia da massa gem, iniciam bruscamente uma danca, enviando curio- sos impulsos rumo as orelhas e as regides vizinhas do pescoco. Sem falar do rosto: que eles aprendam apenas a fazer tremer os miisculos das asas do nariz.e jé pode- rio passar por massageadores sutis. A psicologia, essa velhinha gag,” que nos barbeiros quase que s6 se trai pelos nomes dos perfumes, pelas tinturas e pelo romantismo dos penteados (conhego, na ‘rue du Débareadére, um desses comerciantes que pro- pBe 0 penteado Alberto 1 rei dos Belgas, o penteado Joffre, etc.), hé muito tempo jé nfo tem segredos para 6s alfaiates. Assim é que no fim da galeria do Terméme- tro encontramos Vodable, que atrai os clientes intitu- landose: Alfaiate mundano. Ele vende também malase, como diz: All travelling requisities. Nao posso deixar de pensar que era aqui que Landru,"® experimentador sensivel, se fazia vestir, provando seus temos em meio “as bagagens expostas, bem como tantos outros simbo- Jos misterlosos de seu destino. Desse homem euja cabe- ‘Variante de mexeriqueira, 8 a foi cortada, sei que ele tinha em casa a mascara de Beethoven e as obras de Alfred de Musset, que ele oferecia a suas amigas de encontro um biscoito e um dedinho de Madeira, que ele portava as condecoracies académicas. Curiosa confluéneia de todo um mundo. Parece.-me que esse ponto preciso da galeria em que me encontro tem parentesco, exatamente, com esse ho- mem e seus acess6rios. E penso com pesar que ndo existe no supremo tribunal de justica um programa em. que se possa escrever em itélico: Na corte, como na cidade sr, LANDRU 6 vestido pelo ALFAIATE MUNDANO Mas palavra que, para cada Landru morto, af esto ez desconhecidos encontrados. Séo os clientes do al- faiate: vejo-os desfilarem como se eu fosse um desses aparelhos registradores em marcha lenta que fotogra fam 0 gracioso desenvolvimento das plantas. Nao s30 todos Dons Juans de Paris, mas uma espécie de vinculo que Ihes advém dos ternos revel neles um mistério comum. Aventureiros sentimentais, trapaceiros sonha- dores, no mfnimo prestidigitadores de sonhos, eles vém buscar aqui os elementos de sua ilusio natural. ‘Nada revelaré essas atividades paradoxais que eles p seguem. mais por gosto que por necessidade, ou sem diivida, por gosto e necessidade misturados. Por muito tempo, talvex sempre, exercerdo suas faculdades ima- ginativas nas vias empfricas, por ocasiio de fatos parti- culares ¢ pitorescos. Um acidente, um dia, pode entre- gé:los. Porém mais freaiientemente eu 05 suponho adentrando pouco a pouco numa velhice equfvoca, com a pilhagem das lembrangas. Estranhas vidas insus. peitas que guardam para si mesmas mil relatos cheios de sabor. Hoje o homem nfo vaga mais As margens dos ™ piintanos com seus cies e seu arco: ha outras solidées que se abriram para seu instinto de liberdade. Terrenos baldios intelectuais em que o individuo escapa as sujei- des socials. La vive um povo igmorado, que pouco se preocupa com suas lendas. Vejo suas casas de campo, seus laboratérios de prazer, suas bagagens deméo, suas ruas, suas armadilhas, seus divertimentos. No nivel da grafica que faz cartes de visita ins tantaneos, bem abaixo da escadinha que desce para a rue Chauchat, nesse extremo ponto do mistério em direcdo ao setentrido, 14 onde a gruta se abre no fundo de uma abertura agitada pelas idas @ vindas dos carregadores e entregadores, no limite das duas luzes que opéem a realidade exterior ao subjetivismo da Passagem, como um homem que se sustenta na beira de seus abismos, solicitado igualmente pelas corren- tes dos objetos e pelos turbilhies de si mesmo, nessa zona estranha em que tudo é lapso, lapso da atengdo e da desatengfo, paremos um pouco para experimen- tar essa vertigem. A dtibia flusdo que nos mantém aqui confronta-se com nosso desejo de conhecimento absoluto. Aqui os dois grandes movimentos do espi- rito se equivalem e as interpretagSes do mundo per- dem seu poder sobre mim. Dois universos se desco- lorem em seu ponto de encontro; como uma mulher adornada com todas as magias do amor quando a madrugada, tendo levantado sua saa de cortina, pe- netra docemente no quarto, Por um instante, a balan- ca pende para o golfo heteréclito das aparéncias. Extravagante atrativo dessas disposicdes arbitrérias: eis alguém que atravessa a rua ¢ 0 espago em volta dele € sélido, ha um piano sobre a caleada e carros sentados sob os cocheiros. Desigualdade do tamanho dos passantes, desigualdade do humor da matéria, tudo muda segundo as leis da divergéncia e surpreen- do-me grandemente com a imaginago de Deus: ima- 6 ginagio afeita a variacdes infimas e discordantes, como se o grande negécio fosse aproximar, um dia, uma laranja e um barbante, uma parede e um olher, Dirfamos que para Deus 0 mundo no passa da oca- sido de alguns rabiscos de naturezas mortas. Hé dois ou trés pequenos truques que ele n&o cansa de em- pregar: 0 absurdo, a balbirdia, 0 banal ... ndo hé meios de livré-lo disso. Se desvio alternativamente os olhos dessa encru- zilhada sentimental para a regiéo de desordem ¢ a grande galeria iluminada por meus instintos, a vista de uma ow outra dessas pinturas prestidigitadoras, nao experimento o menor esboco de esperanga. Sinto estremecer 0 solo ¢ encontro-me de repente como um merinheiro a bordo de um castelo em rufnas. Tudo significa destrogo. Tudo se destréi sob minha contem- plagio. O sentimento da inutilidade ests agachado meu lado sobre o primeiro degrau. Esté vestido como eu, mas com mais nobreza. Nao carrega lenco. Ble tem ume expresso de infinito sobre o rosto ¢ nas méos um acordedo azul aberto que jamais toca, e no qual se 18: PESSIMISMO. Passe-me esse pedaco de azul, meu caro Sentimento do intitil: sua cangao agradaria meus ouvidos. Quando junto os foles, véem-se apenas as consoantes: PssMsM Bu os separo e eis 0s Pssinisi € as outras vogais: PessinisMO 6 Ea coisa geme da esquerda para a direita: BSSIMISMO ~— PSSIMISMO — PESSINISMO — PESSIMISMO — PESSMISMO — PESSIIISMO — PESSIMSMO — PESSIMIMO ~ PESSIMISO — PESSIMISM — PESSIMISMO PESSIMISMO ‘A onda atinge a praia com um estrondo birbaro. retoma o caminho de volta PESSIMISMO — PESSIMISM — PESSINS PESSIMI — PESSIM ~ PESSI PESS ~ Pes —PE—P~p..., mais nada A menos que esteja balancando pré li e pré cé com © pé nas mfios, um pouco teatral e vulgar, o cachimbo caido e a boina cobrindo a orelha, ele esta cantando, creio: Ah, se vocés conhecessem a vida dos earamujos da Borgonha... bem no alto dos degraus, em meio a poeira © pontas de cigarro, esse encantador mocinho, o Senti- mento do inttil Voltomme sobre meus passos: a luz novamente se decompée através do prisma da imaginacio, resigno- me com esse universo colorido pelas cores do arco‘ris O que voeé ia fazer, meu amigo, nos confins da realida- de? Bis af seu reino de sal f6ssil, suas estrelas-do-mer e suas famosas Jazidas. Voc bem sabe, gracejo anédino, * que vocé é o Aladim do Mundo Ocidental. Nao sairé Jamais dessa grande nédoa de cor que vocé arrasta no fundo das retinas. Que debate ridfculo, uma chama no fogo. Vocé niio deixard seu navio de iluses, sua casa de 7 praia de papoulas com formoso teto de plumas. Seus carcereiros de othos passam e passam de novo agitando feixes de reflexos. f em vao que, cavando ha vintee seis anos com wm pedago de taziio quebrada, um subterra- neo que parte de seu colehdo de palha, vocé acredita chegar a> bordas do mar. Sua meméria se bre para uma masmorra eterna. LA vocé encontraré sempre as mesmas flores, as mesmas florestas de cabelos, os mes- mos desastres de caricias. Em sua Tebaida, os ledes deitados so clardes de amnésia e 05 fantasmas! os fantasmas nacarados tém o ar de rezar e apagamse. Escravo de um frisson, apaixonado por um murmtitio, niio cessei de decair nesse crepiisculo da sensualidade, ‘Um pouco mais impalpével, um pouco menos apreen- sivel.. a cada dia perco mais meus proprios contornos e enfim desejo tao pouco que me compreendam, e no compreendo mais nem o vento nem o céu nem as menores cangSes nem a bondade nem os olhares. assim, Bee’s polish © aptérix,”” que deslizo, gracas a minha desatengiio, ao longo da vitrine do engraxate, do outro lado da escada de safda pera a rue Chauchat e, voltando em diregio aos boulevards, atravesso a minha direita a abertura do primeiro corredor que retine 0 fundo das duas galerias da Passagem, sem desaparecer nesses negros vernizes que levam ao Teatro Moderno. Diante do alfaiate e dos sales dos cabeleireiros, apenas uum andar de gala que pertence ao restaurante Arrigont, com garrafas italianas de longos pescocos, corseletes de palha, quadro colorido de um banquete memorével em lugar de honra, separa desse corredor o estabelecimen- to de Banhos cor de queijo branco. Hé uma ligacdo bem forte, no espirito dos homens, entre os Banhos ¢ a voliipia: essa idéia antiga contribui para o mistério desses estabelecimentos pttblicos em que muitos nao se arriscariam, de tal forma é grande a superstigao das enfermidades contagiosas e generaliza- 78 daa crenca de que as banheiras, aqui prostituidas, so perigosas sereias para o visitante que se entrega a seu esmalte leproso, a sua folha-de-flandres maculada. As- sim esses templos de um culto equivoco tem um ar de bordel e de lugares de magia. Nada permite ao passante inexperiente assegurar-se, por algum detalhe de arqui- tetura, da desconfianga que ele tem da irregularidade de um tal edificio, Banrios— diz simplesmentea fachada ~ e essa palavra oculta uma gama indefinida de indi cios veridicos, todos os prazeres ¢ todas as maldicées do corpo mas, quem sabe? Palvez em seu abrigo encon: tre-se apenas a agua prometida, clara e murmurante. Ha uma grande tentacao no desconhecido e, no perigo, uma maior ainda. A sociedade moderne leva pouco em conta os instintos do individuo: ela eré suprimir um e outro € sem diivida o desconhecido nio existe mais nesse clima, a no ser para aqueles cujo coracio facil- mente se inebria. Quanto ao perigo, vejam como tudo, acada dia, se torna inofensivo, Hé, entretento, no amor, em todo amor, seja ele firia fisica, ou espectro, ou genio de diamante que me murmura um nome semelhante a0 vigor, hé, entretanto, no amor um prinefpio fora da lei, um sentidg irreprimivel do delito, o desprezo da proibicdo e 0 gosto da pilhagem. Vocé pode querer estabelecer sempre para essa paixiio de cem cabecas os limites de sua morada, ou simular palécios para ela: enttio ela pretenderd surgir em outro luger, sempre em, outro lugar, onde nada fazia com que « esperassem, onde seu esplendor 6 uma fiiria, Que ela cresga onde ningyém a semeou, como a vulgaridade Ihe causa con- vulsdes! Ela tem bruscos sobressaltos de ignominia. Ha possuidos dominados pela Obsesso da rua: somente nela experimentam o poder de sua natureza, Vocés ja devem ter encontrado esses homens sombrios no cora- G0 das multid6es, essas mulheres loucas na primeira classe da Norte-Sul, por volta das einco horas. Quantas 0 ‘vezes perceberam uma alianca no dedo da viajante? Entretanto nada, ela no buscava nada além desse desregramento passageiro. O céu humano tem seus relfimpagos, que ndo podemos seguir. Compensacdes ouvertigens, o que se trama assim nessas extravagantes cleptomantacas da volipia? Eu as aprovo, esposas que imagino aparentemente felizes, por ter a alma altiva o bastante para nfo se contentar com sua sorte. A cami- niho, em busca do infinito! La estéo elas no cinema, completamente extraviadas na sombra, ou entéo nos séis giratérios dos carrosséis das quermesses, o vestido levantado como um desafio. Estéo em busca de si mes- mas, na cruzada do desejo: sera que entregarfo esse témulo, seu coragio? Aqui esté o que o caréter errante da incerteza forgosamente provoca: no instantede uma manobra, um passante pode alternadamente crerse enfim escothido ou, ainda, ser enganado pela imagina- cdo, Outra se compraz, sem prestar muita atencio, em cobicar um homem que néo a vé, em se enganar com uma esperanga croscente, até o cumprimento polido, que tem 0 gosto das magis verdes, quando ent&o ela gritaria. Outra conduz a caga com uma resolucio negra ede repente uma grande tempestade cresce entre cla e sua vitima, nada pode deter essa tormenta adoravel, tudo precipita esse duplo furor. f ent&o que, rogando quase de alto a baixo o corpo que ela atrai, com uma exaltagio selvagem, por um suicidio desumano, com ‘uma tinica retragio ela se recusa e torase una pedra, uma pedra. E além disso uma pedra tdo ria, impassivel diante de todas as solicitages, seu ser inteiro se aban- dona, mas nada trairia que ela se dé conta disso. Nada, nem sequer um labiotrémulo. Depois ela partecom um passo mecfnico, Era provavelmente uma morta, meu caro. ‘Nos Banhos, uma derivacdo bem diferente de hu- mor inclina aos devaneios perigosos. Um duplo senti- 80 mento mitico que nada exprime e que se produz: ini- cialmente, a intimidade no corac&o de um lugar pitbli- co, contraste poderoso para quem o tenhasentido uma verse esse gosto de confusdo que é proprio dossentidos, que 08 leva a desviar cada objeto de seu uso, a perver- to, como se diz, Nao é fécil desenredar a trama que ‘omega aqui: que vontade arrebata primeiro o cliente dos estabelecimentos hidroterapicos? Despir-se, sob qualquer pretexto, pode ser um ato-sintoma, Ou uma simples imprudéncia. Parece que um homem habitua- do a se ver sempre de terno e gravata, ao contemplar seu corpo em pleno dia, expde-se ao risco diferentemen- te aprecidvel de néo poder resistir a inclineco de exer- cité-lo no prazer. Os Banhos aparecem, assim, como o lugar eleito dos comércios fisicos e, mais ainda, da aventura improvéivel de um verdadeiro amor. Como essa ultima hipétese ¢ absurdal Entretantoela me intri- ga. O amor & primeira vista numa banheira: vocés podem rir, mas no sabem do qué. Toda a lasctvia do mundo se esvai assim totalmente, seguindo o assincro- nismo dos desejos. Possibilidade de encontro atroz- mente limitada é quando estou sé em meu quarto, quando durmo, quando corro com toda velocidade, que uma aparicgo deveria se impor para todo meu ser. Oh minha liberdade, como me aprisionam em teu nome. Enfim, tais lugares sio to calmos, dirfamos um outro pafs, alguma civilizacdo longinqua, ah, nfio me falem das viagens. £ preciso nao ter nenhuma inclina- Go a0 frenesi para entrar nos Banhos sem de repente persuadirse de que se entra em pleno enigma! Mas ha no mundo tlio pouca fé nas aspiragdes humanas, so $40 bem conhecidos os limites de toda depravacio, 0 medo universal de se comprometer, a resignagio ma- quinal a felicidade, a rotina (tinica mulher que hoje usa espartilho) que — para meu grande pesar, contesso, perguntome se eu néo faria melhor esgueirando-me ar para uma regido mais de acordo com a mobilidade de minha netureza. Sonho com um povo terno € cruel, com tim povo gato apaixonado por suas garras e sem pre pronto a fazer revirar seus olhos e seus escrdpulos, sonbo com um povo mutével como a ondulagio dos chamalotes e sempre excitado pelo amor — mas nin- guém mais quer propor para nosso écio avido os diver- timentos que ele nfio ousa requerer. Dai esse escdndalo: em Paris diversos estabelecimentos de banhos nao se intitulam assim por eufemismo, Lavam-se neles, como comem em outro lugar. F tal é a decadéncia dos costu- mes nessa cidade, tendo a sensualidadenela se tornado tho indolente, o sentimento do absoluto tio estranha- mente igual para a maioria dos homens, que quase unicamente os pederastas, ainda aturdidos pela tole- réncia nova que encontram e rotineiramente acostu- mados A asticia ea tirania, aproveitam hoje o equivoco dos Banhos. Podem-se contar nos dedos as casas de encontros balnedrios que Ihes escapam complemente. ‘Os gerentes reclamam, a clientela néo vern. Que que rem eles, se esses senhores ¢ senhoras negligenciam um pouco seus desejos? Até os vinte anos, tudo bem. Depois, esta acabado: a curiosidade, o mistério, a tenta cdo, a vertigem, a aventura, tudo acabado, acabado... Eles fazem gindstica para permanecer magros, nfio se ‘pode pedirhes que facam algo para conservar a cor da vida e 0 rubor das faces: exercicios de amor, apés os -vinte anos, nem pensar. Bles aprenderam sua ocupacéo de uma vez por todas. Tém uma técnica e nao a deixa- ro: vocé pega a mulher em seus bracos e Ihe diz... enti, ela cai sobre 0 sofé e exclama: Oh, Charles! Basta ver isso nos filmes bem feitos. Por acaso mostrase neles, alguma vez, uma mulher que acaba de perceber, muda, alguém andando diretamente para ela, com os olhos provocadores, levando de repente a mio as calgas do homem? Tais filmes néo teriam nenhum sucesso, 82 eles dependeriam demais da ficgao. E aquilo que recla- mamos com grande algazarra 6, nfilo duvidem, reslida- des, REALIDADES: As Realidades Fanuta Era uma vez wna reatidade Com seus carneiros de 1a reat CO fitho do rei veio para passar Os carneiros balem que ela é bela A reaa rea areatidade Fra uma vez numa noite Uma realidade que ndo conseguia dermir Entto a fada sua madrinha Tomou-a realmente pela mao A rea.area.arealidade Era uma vez sobre seu trono Um vetho rei que se entediava Seu manto pela noite escorregava Entio deram-the por rainka Areaa rea. realidade CODA: Idade idade a rea Idade idade a vealidade . Areaarea Dade dade A rea Li Dade A realidade Era uma vez 4 REALIDADE”! 5 ‘Mas entremos nos Banhos da Passagem da Opera com um espirito positive. B uma pequena Kodak. £ contrario verossimilhanca imaginar que esse lugar sirva para outra coisa além dos cuidados da higiene. Ele & pouco freqiientado, mas honoravelmente. A loja é inteiramente ocupada pelos primeiros degraus de uma escadaria de madeira marrom que se embrenha pelo subsolo. £m cima da escada, diante do corredor, hé urn magnifico quadro de flores e sobre o lado direito um retrato de mulher do mesmo pintor que tem, em cada um dos lados, duas gravuras roménticas: uma, a0 fun- do, representando um homem que conduz tréscavalos;, outra, em diregio a porta, representando Mazeppa per- seguidio pelos lobos. C4 entre nés, os olhos dos lobos so bem brilhantes e se eu insistisse, perceberia af algum simbolo. A escada, depois de um patamar imponente, choga a um subsolo constituido por dues grandes pe- as; a primeira é mais larga, a segunda, de onde sai um Iongo corredor em direc&o aos boulevards, fica abaixo do restaurante Sauinier. Sobre 0 primeiro e o segundo cOmodos, abrem-se algumas cabines de benhos que parecem as mais luxuosas, com canapé e mesa de toa- Jete, Um grande ntimero de armérios nas paredes com- plotam a decoragio. Esse lugar, repleto de portas ¢ revestimentos de madeira, que s6 vé a claridade devido a0 teto de vidro fosco, & bastante empocirado ¢ solene. Mediocremente iluminado, ele me levaria ao devaneio se eu nao tivesse tomado sébias resolugées. & sem comentarios que assinalarei 0 fato de que todas as cabines do lado direito do corredor, ao contréio desse, tém uma porta que sé fecha por dentro, dando sobre uma Gnica e imensa sala em que dormem diversos aparethos de duchas. Conseqiientemente.,.. se imagi- narmos dois clientes deixando suas banheiras para se refrescar nessa morada de sombra, cles se encontrario sem que ninguém saiba. Nao ha nada de mais misterio- 84 0 af que esses estranhos pequenos postigos que fazem comunicar, acima das banheiras, duas cabines viai- nhas, em muitos estabelecimentos parisienses (rue Fon: taine, rue Cardinet, rue Cambacérés, etc.). Nao se pode dizer que o arquiteto tenha previsto 0 uso que deveriam tazer de sua obra: sera que 0 engenheiro que erguett os planos da ponte Solférino podia suspeitar da libertina- gem que seus arcos abrigariam um dia? NZohénenhuma perversidade no coracdo ingénuo dos arquitetos. Aligs, vejo para que serve esse subsolo, na verdade: 6 um laborat6rio de calorimetria, Os empregados, casal de distintos fisicos, disfargados, mergulham os sujeitos benévolos em seus calorimetros ¢ entregam-se a céleu- los intrigantes sobre a degradacio da energia. Eles esperam surpreender, um belo dia, 0 prircipio de Car- not numa felha. Enquanto esperam, ele permanece boquiaberto, ele 1é romances policiais. LUis! JA vou, ja vou! quem me chama? Lé fora o vaivém prossegue. Ninguém de meu conhecimento... eh, sim, 0 desejo de ver meu nome, tio pouco empregado pelos que me cercam, impresso em letras capitais de alguma importaneia, Diante de mim se estende um grande espago desértico, uma espécie de prado repousante, palavra de honra que € o restaurante Saulnier. Ele vai, incluindo o térreo e a sobreloja, dos Banhos até o corre- dor transversal que desemboca defronte 4 porta do ‘meublé. Verdadeira bencio do céu, esse restaurante. Nao tenho absolutamente nenhuma critica efazer dele, mesmo tendo jantado cem vezes|é. Ali é que as grandes querelas do movimento Dada — vocés conhecem 0 movimento Dada? — faziam relativa trégua para permi- 85 tir aos combatentes que hé duas horas defendiam sua reputagdo no Certa, encontrar num sortimento de frios* um testemunho de alta moralidade, haute coutu- ‘re, como diz. o Antifilésofo dentre eles. Havia entao um tribunal de Salvac&o Dadé e nada deixava prever que, 20 Terror, sucederia um dia 0 Diretério, com seus jogos, seus incroyables” e suas casacas com fendas laterais. £ uma gentalha que vern comer af. Por onde devem entrar, por onde devem sair, o destino de cada um é indicado por flechas e mos apontando o caminho. Boa sorte, criancast ‘Um certo café Biard, que faz face a livraria Rey, bene- ficia da claridede que o atinge por trés fontes de luz diferentes: a galeria do Termometro, o boulevard dos Italia- nos e, finalmente, 0 corredor de que ja falei. Sala co alco, sala posterior, com suas portas miiltiplas, seus vidros quelamentam serapreo café de dois tostées, 0 golpe do americano™ das épocas desaparecidas, com suas pi- lastras e seus espelhos, voeés constituem um formoso palicio de reflexos que se assemelha a tudo 0 que sabe- mos, sonhadores da Europa, sobre a América longingua ce suas sangrentas epopéias. Voc8s so o cenario do crime que se oculta, do atentado projetado, da perseguicioe da armadilha, & em suas perspectivas rompidas que se de- senlagaré todo 0 ridfeulo de uma vida, o grande segredo desses inadaptados Ifricos que fazem nervosamente rir a burguesia na sombra. Eo amor, 0 amor nesse café, que comodidade estranha ele teria afl nesse café em que tudo esté arranjado para os olhares. Falso dia etimplice das exaltagdes verdadeiras: nesse local aventureiro, ainda um conflito de luzes. Oh Deus do inferno, por queos guindas- tes ociosos acariciam assim, cantarolando, 0 mérmore rachado das mesas? 86 Agaleria do Barémetro, como um buraco de toupei- ram meio ao terrao rejeitado, desembocano boulevard dos Htalianos ao pé da vitrine da livraria Flammarion, a alguma distancia do terraco da Taverna Pousset, Umm palhago mantém-se ai batendo perpetuamente com a bengala sobre um cartaz do Teatro Moderno, Baforadas de shimmy" misturam-se a seu discurso, atraindo os olhares em direeio ao comerciante de miisica que se percebe a esquerda, todo atapetado de edicdes Salabert. Os curiosos gostam de se deter aqui, divididos entre as palavras desse senhor elegante e entendiado que pro- mete mundos e fundos para o segundo ato e essa loja em que se vé uma mulher loura encetar ao piano a moda e suas cangées. ‘Como agrada ao homem manter-se no limiar das portas da imaginagdo! Esse prisioneiro sinda gostaria tanto de se evadir, mas hesita no portal das possibilida- des, tem medo de ja conhecer esse corredor que recon- duz a sua casamata, Ensinaram-lhe o mecanismo do encadeamento das idéias e o infeliz, acreditou ter suas idéias encadeadas. Para sua razdo, para seu delirio, ele dé razées delirantes. Meditou o sofisma de Kant: Se 0 cindbrio fosse ora vermelho, ora negro, orwieve, ora pesa- do; se 0 homem se transformasse ora num animal, ora ‘outro; se num longo dia a terra fosse coberta ora de frutos, ora de gelo eneve, minha imaginacde emptrica ndo ‘encontraria a ocasido de recever, no pensamento, o pesado cindbrio com a representagéo da cor vermeiha; ou se wma certa palavra fosse airibuida ora auma.coisa ora a outra, ‘owainda sea mesma coisa.fosse chamada oradeum nome, ora de outro, sem que Rouvesse nenhuma regra & qual os fendmenos fossem jé submetides por simesmos, nenkuma sintese empirica da imaginagdo poderia acontecer. E 0 homem duvida, pois néo gosta das petigées de princt- pios, e vé onde o pequeno Emmanuel quer chegar com suas palavras encantadas, e percebe a falha dessa em- 87 preitada intelectual e diz a si mesmo que querem enga: nélo com as mulheres nuas do harém no segundo ato prometido, com essa miisiea sentimental e vulgar e, ‘quanto Adama, antes de mais nada, seus belos cabelos sio tingidos, Mosquito, saia! Vocé toma os pantanos por terra firme, Portanto vocé jamais se enterraré ne arcia movedigal & que vocd néo conhece a forga infinita do irreal. Sua imaginac&o, meu caro, vale mais do que voce imagina. (0 HOMEM CONVERSA. COM SUAS FACULDADES Sainete A SENSIBILIDADE, ao homem — Seu rosto esté bem entristecido hoje, vocé teria tido algum encontro desa- gradavel no vale? Ou teria sido um ursinho maldoso que marcou encontro com voe8 para essa noite? AVONTADE, levantando uma garrafa de champanhe ~ Nunca mais ele iré de noite 4 montanha (com wm ar rresoluto), Se ele for, vou com ele. AINTRLIGENCIA, endtreltando-se de repente — Mas © eu? Também vou, vocé sabe muito bem que fico com a tropa enquanto o homem caca camureas e ursos. © HOMEM, sorrindo com wm ar melancélico — Ora vamos, para acabar com esse debate, nao sairei durante © dia. O conhecimento, pobre aflito! Desde que néo 0 amo mais ele nao detra seu leito e talvez tivesse mesmo Geixado de viver, nao fossem os cuidados e prescri¢des Gesse bravo ¢ digno médico estrangeiro que mora na casa isolada, A SBNSIDIMIDADE — Ah sim, aquela casa nas alturas, que foi construida com as letras de uma frase antiga, longa demais para minha memaéria. AINTBLIGANCIA— “Voc? nao sabe que acontece aos amantes quando eles véer uma lira, uma roupa, ou 88 algum outro objeto do qual seus amores tém o costume de se servir? £ reconhecendo essa lira que eles recolo- cam no pensamento a imagem da pessoa a quem ela pertencou ... como quando vendo Simias, lembramo- nos de Cebes" ‘A SENSIBILIDADE ~ f precisamente isso. AVONTADE — Nao gosto desse seu médico; a cada vez que vem aqui, causa-me medo. AINTELIGENCIA — E também para que servem seus grandes bigodes, seu barrete de pele, seu rosto magro @ pouco amével e sua grande sobrecasaca forrada? Nun- ca vi ninguém vestido assim, © Hoem — £ um estrangeiro. AVONTADE — Quanto & mim, descontio dos estran- geiros. Dizem que eles comem ou carregam crianci nhas A SBNSIBILIDADE — Imbecill E todos aqueles que to: mam 0 homem por guia, sob as cascatas, sobre as geleiras, ao longo das torrentes? O Amor, a Mentira, 0 Sonho, algumn desses belos estrangeiros mascarados € ricamente vestidos alguma vex. jé comeu ou carregou. seu guia? AVONTADE—~Ora, no 6a mesme coisa! Conhecemos os paises desses af. Mas esse senhor 6 um estrangeiro de outra espécie: IMAGINAGAO, isso nfo é um nome cristo? 0 HomEM — Néo € 0 nome que inquieta vacés. Esse novo habitante s6 nos faz o bem. E quando se tem 0 bem, por que se perguntar de onde ele vem? ASENSIBILIDADE — Ignoramos sua profiss&o, é verda- de. Entretanto, desde que o conhecimento est doente, vele é quem cuida dele, fornece todas as droges e ainda no pediu nada. A INTELIGENCIA — Que malicial Ele espera que o homem tenha matado um bom urso para contar suas memérias, 89 AVONTADE — Ora, devem ser formosas, suas memé- rias! Vio nos amedrontar tanto quanto sua cara. E depois ele diz que néo gosta dos menininhos, que eles tagarelam muito ¢ também que ele 56 esté contente quando se acha 56. OWOMEM — Maledicéncia, maledieéncia. A imagine- ¢40 6 um excelente senhor, benfeitor e humano, A SENSIBILIDADE — Voc# est certo disso, mas esse estrangeiro chegou do vale numa noite de tempestade eninguém 0 conhecia. AVONTADE — Sim, ele caiu entre nés como uma pipa perdida. oO Homes — Falatério imttil AINTELIGENCIA — Jé escutei outros como esse! OHOMEM ~ Vejamos. AINTELIGENCIA — Esse senhor. ASENSIBILIDADE — Talvez seja um grande criminoso que se refugiou em nosso vale para melhor se esconder. (OHOMEM — Um criminoso! Muito bem, mas 0 que é um criminoso? O que voc8 pensa do relampago, 6 minha cara sensibilidade, 0 que vocé pensa dessa flor selvagem e brilhante com que as montanhas ornam as vezes seus cabelos? O relampago é um criminoso ou uma divindade benfeitora? Digame ainda vocé, inteli géncia, o que pensa da imaginacéo. AINTELIGENCIA — No gosto da incerteza. Nesse instante aparece A IMAGINAGAO, tal como a inte ligéncia a descrevera ~ é um velho alto e magro, com seus bigodes & Habsbourg, uma longa sobrecasaca forrada e ‘um barrete de pele. Seu rosto é animado por tiques nervo sos; quando fala, faz 0 gesto de segurar os adornos imagi- nérios de um interlocutor invisivel; traz sob 0 braco Au 125, Boulevard Saint-Germain, de Benjamin Péret. Uma inica coisa parece verdadeiramente extravagant nele: é que ania com um patim de rodinhas no pé esquerdo, 90 colocando 0 direito diretamente na terra, Ad‘anta-se em direcdo ao homeme the diz: DISCURSO DA IMAGINACAO, Guerra é guerra, Vooés todos, com esse costume de resignarse a propria sorte, vocés nfo me levaram em. conta. De uma ilusio a outra, vooés recsem incessante mente a mercé da iluséo Realidade. Entretanto fui eu que Ihes dei tudo: a cor azul do céu, as Pirdmides, os automéveis. Por que voces perdem a esperanca em minha lanterna magica? Eu lhes reservo uma infinida- de de surpresas infinitas. Do poder do espirito — como eu disse em 1819 aos estudantes da Alemanha — tudo se pode esperar. Vejam como puras criagées quiméricas Jé 0s tornaram mestres de si préprios. Eu inventei a meméria, a escritura, o célculo infinitesimal. Hé ainda descobertas primeiras de que nem sequer suspeitam, que fardo o homem diferente de sua imagem, como a fala o distingue em sua grande embriaguez das criatu- ras mudas que o rodeiam. Por que vocés resmungam tanto? Nao se trata aqui de progresso. Eu nfo passo de um vendedor de coco, ¢ minha neve para vocés é mana celeste; reconhhecam nela, passando da lembranca a0 método experimental, a excitagio da mirage.” Tudo depende da imaginac&o e a imaginacéo tedo revela. Parece que o telefone é itil. Ndo creiam nisso. Antes vejam o homem em seus aparelhos de escuta que cau- sam convulsées, o homem que grita Al6! O que é ele, além de um toxicdmano do som, um bébado-morto do espago vencido e da voz transmitida? Meus venenos so ‘05 seus: eis o amor, a force, a velocidade. Voots querem as dores, a morte, ou as cancies? 91 Hoje thes trago um estupefaciente vindo dos limites da consciéncia, das fronteiras do abismo. © que vocés tem procurado até agora nas drogas a nao ser um sentimento de poder, uma megalomania mentirosa ¢ 0 livre exercicio de suas faculdades no vazio? O produto que tenho a honra de Ihes apresentar proporciona tudo isso, proporciona também imensas vantagens inespe- radas, ultrapassa seus desejos, suscita-os, faz com que tenham acesso a desejos novos, insensatos. Nao du dem, séo os inimigos da ordem que pdem em circule: ‘edo esse filtro do absohuto. Eles o passam secretamente sob os olhos dos guardides, sob a forma de livros, de poemas, O pretexto anédino da literatura permiteThes oferecer, por um preco que desafia qualquer concorrén- cia, esse fermento mortal, cujo uso ja é bem tempo de generalizar. & 0 génio em garrafa, a poesia em barra, Comprem, comprem a danagio de suas almas, vocés iro enfim se perder, els aqui a maquina de revirar 0 espirito. Anuncio a0 mundo esse acontecimento de primeira grandeza: um novo vicio acaba de nascer, uma vertigem a mais é dada ao homem: 0 Surrealismo, tilho do frenesi e da sombra. Entrem, entrem, é aqui que comecam os reinos do instanténeo. ‘0 que vocés, fumadores modernos de haxixe, in- vejaro dos adormecidos acordados das mil e uma noites, dos miraculados e convulsionarios,”” quando puderem invocar — sem nenhum instrumento espe- cifico —o conjunto até entéo incompleto dos prazeres maravilbados, quando assegurarem para si mesmos um tal poder visionario sobre o mundo, da invencio & materializagio glauca das claridades escorregadias do estado de alerta, que nem a razio nem o instinto de conservagao, apesar de suas belas mios brancas, poderiio impedi-los de usé-los sem medida, enfeitiga- dos por si mesmos até que, cravando a maneira de um alfinete uma imagem tio bela na encruzilhada 92 | mortal de seu coragfo, voeds se tornaro enfim pare- cidos ao homem que uma tinica mulher para sempre fixou e que nfo passa de uma borboleta fincada nessa cortiga adoravel? O vicio chamado Surrealismo é 0 emprego desregrado ¢ passional do estupefaciente imagem, ou melhor, de provocagio sem controle da imagem por ela mesma e por aquilo que ela traz consigo no dominio da representacao de perturbago- es imprevisiveis e de metamorfoses. Pois cada ima- gem a cada lance forga-os a reviser todo 0 Universo. E hé para cada homem uma imagem a encontrar que aniquila todo 0 Universo. Vocés que entrevéem os clardes alaranjados desse abismo, apressem-se, apro- ximem seus lébios desse célice fresco ¢ fervente. Mui- to em breve, amanhi, 0 obscuro desejo de seguranga que une os homens entre si vai lhes ditar leis selva- gens, proibitivas. Os propagadores de surrealismo sero supliciados na roda e enforcados. Os bebedores de imagens serio encerrados em cmaras de espe- Thos. Entio os surrealistas perseguicos traficario, ao abrigo dos cafés com missica ao vivo,”* seu contagio de imagens. Mediante atitudes, mediante reflexos, mediante repentinas traigGes do nervosismo, a poli- cia suspeitard de surrealismo por parte dos consumi dores vigiados. Vejo daqui seus agentes provocado- res, suas artimanhes, suas armadilhas. Mais uma vez 0 direito dos individuos de dispor de si mesmos ser restringido e contestado. O perigo ptiblico sera invo- cado, o interesse geral, « conservacaio da humanidade inteira, Uma grande indignagéo tomaré conta das pessoas honestas contra essa atividade indefensavel, essa anarquia epidémica que tende a arrancar cada um da sorte comum para criarIhe um paraiso indivi- dual, esse desvio dos pensamentos que nifo tardarao em nomear de malthusianismo intelectual, Destro- 0s espléndidos: 0 prinefpio de utilidade vai se tornar 98 estranho para todos os que praticarem esse vicio superior. O espirito para eles deixard, enfim, de ser aplicado. Eles verao recuar seus limites, farao parti- Thar desse inebriamento tudo 0 que hé na terra de ardente e insatisfeito. Os jovens vio se dedicar perdi- damente a esse jogo sério e estéril. Ele desnaturaré suas vidas. As faculdades ficaréo desertas. Fecharao 08 laboratérios. Nao haveré mais exéreito possivel, nem famflia, nem profiss6es. Entdo, diante desse esvaziamento crescente da vida social, uma grande conjuracéo de todas as forcas dogmiticas e realistas do mundo se formaré contra o fantasma das ilusses. Bles vencerdo, esses poderes coligados do por-que- nfo e do viver-assim-mesmo. Seré a titima cruzada do espirito. Para essa batalha perdida de antemio eu os convoco hoje, coragdes aventureiros e graves, pou- co preocupados com a vitéria, que buscam na noite um abismo em que se langar. Vamos, 0 papel esté vago. Passem no guiché, que € aqui mesmo. O que a imaginagdo designa assim com o indicador transliicido é a casinha de madeira em que se vendem os lugares para 0 Teatro Moderno. Ela fica ao lado duma paligada cinza que se reveste na hora do poente de tons de sabié, e na qual se abre uma porta da livraria Flam- marion. A cada vex que atravessamos seu campo dtico, uma vendedora salmodia detrés de seu guiché o preco das poltronas’¢ @ natureza dos atratives da casa, dos quais trés ou quatro fotografia pregadas a casinhe dio uma idéia simples e suficiente. Esses seios, essas pernas resumem claramente a intengao dos autores, como nas portas dos cinemas as imagens com revolver apontado, arco arrastado pelas torrentes, cowboy pendurado pe- los pés. E no custa quase nada: TEATRO MODERHO PREGO DOS LUGARES. Todos 0 imposts taxa incues O Hotel Monte Carlo estendese, além da palicada, até o corredor que o atravessa. Ble ultrapassa os limites Gos andares e corta transversalmente a geleria na en- trada da Passagem, invocando invencivelmente para mim, nesse nivel, a imagem da Ponte dos Suspiros, tal como g conheco segundo os cartdes postais. No térreo, © Hotel Monte Carlo deixa perceber, através de uma fachada envidracada, de pequenas barras brancas esti io Lufs xvt, um grande hall largo e baixo, inteiramente melancélico, em que se congelam de tanto esperar, sob um lustre de cristal com pingentes, folhagens e viajan: tes. Esses, em suas poltronas de vime, léem os jornais 95 ex6ticos que $6 so encontrados, em Paris, nos boule- vards, Mundo cosmopolita bastante particular ¢ parti- cularmente calmo, freqiientemente pitoresco ¢ quase sempre exausto, Esses jogadores cansados s6 encalham aqui apés belas experiéncias, mas antes, como rodaram mundo com seus passos retardatérios! Alguns sentam- se na galeria como num terraco. Eles tém o ar de quem espera. O qué? Essa felicidade desejada jamais chegaré. ‘Vooés podem ir embora, Diante do hotel, 0 cubfculo do guardiéo vigia uma espécie de pequeno corredor pelo qual se tem acesso a um patiozinho. Ao lado do eubfculo com suas encanta- doras cortinas de croché, poderemos fazer uma breve parada: é 0 engraxate, isso custa apenas doze tostées € poderemos sair de 14 com séis nos pés. So, como se diz, Jojas modernas bastante belas, as dos engraxates. Que espirito decorative nas caixas de brilho, apesar de seu americanismo e da pouca engenhosidade conferida & vitrine. E depois, vejam vocés, os engraxates, que gente ‘esquisital Tém toda a polidez do mundo e uma forma de nos fazer esperar um tempo infinito enquanto esfre- gam inexplicadamente sapatos jé ofuscantes de refle- xos, levados sem dttvida pela paixiio de sua arte, Arte menor, concordo, mas arte arte arte. Podemos sem dtivida lamentar a auséncia de qualquer metafisica na arte do engraxate. Talvez ela fosse um pouco menos contestével se levasse mais em conta as recentes aqui- sigdes do espirito, Podemos lamentar também que, numa civilizago como a nossa, os engraxates quase nfo tenham feito progressos técnicos em relacdo a seus predecessores romanticos. £ mais na decoragio de suas lojas que eles tém exercido até aqui suas faculdades inventivas. A grande descoberta, nesse campo, foi adas poltronas elevadas, cuja idéia dizem ter sido de um engraxate novaiorquino ou, segundo outros autores, de um engrexate italiano que debutou muito jovem nos 96 bares, meditando, assim, sobre a comodidade dos altos banquinhos de baleiio para 0 exercfeio da profissio. Esses estrados em cujos pés o artista engraxate volun- tariamente se humilha so extremamente propicios 20 devanelo. Se os sébios se fizessem engraxar os sapatos, que magnificas macuinas, que concepgdes grandiosas do universo sairiam dos bracos das poltronas dos en- graxates! Mas eis ai a infelicidade: os sébios conservam 05 calgados sujos, e as unhas duvidosas, Nao siio, pois, sébios, esses passageiros dum navio imével, esses pas- santes que vérn aqui se despojar da lama e da poeira para terem acesso & meditacio e que sem diivida temo coracdo inteiramente ocupado por um grende amor. Poetas? Quem sabe, oficiais da reserva, trapaceiros, vendedores de bolsas, corretores, representantes co- merciais, cantores, dancarinos, dementes precoces, perseguidos, jamais sacerdotes, mas sim coragées ele- giacos, camelds milionérios, espides, conspiradores, politicos pervertidos pelos conselhos administrativos, policiais paisana, garcons de café em dia de folga, jomnalistas e protestantes, estrangeiros, assassinos, em- pregados no ministério das Colénias, cafetdes, book-ma- hers ¢ fantasmas. Se fosse fantasma, é pare c4 que eu viria. Daria mous sapatos para lustrar e, espectralmen- te, ei me conservaria num desses tronos do acaso como uma estétua da obsesso. Q Comendador, tal como imagino, é precisamente numa cabine de engraxate gue ele vem se sentar a0 lado de Dom Juan. Esse jé estaria, nessa altura, perdendo-se em quimeras, fuman- do. Hoje Dom Juan fuma. Estaria se preparando para uma nova aventura, Precisaria de sapatos limpos. Bo: njtos sapatos de pespontos. Pespontos de fundo creme, sobre couro preto e marrom, recortado por couro bran- co, Arlequim de pé. Com palmilhase saltos de borracha dividida em laminas. Sapatos para 0 adultério e para a praia, Uma espécie de ferrolho de seguranga dos pas. 97 508, garantido, silencioso. Dom Juan tomou gosto por cesses calgados caramelo ¢ chantili vendo um filme de Los Angeles. Rodou Paris inteira para encontréslos e, finalmente,foi num bazar de quinguilharias do bairro Saint-Georges que desencavou esse par que um negro ‘tinha encomendado num momento de esplendor, an- tes que 0 oficial de justiga, a cocafna e a indoléncia 0 fizessem passar sem ele. Quase nfo pensa nisso, Dom Juan, depois o negro esté a cem léguas de 16, num dancing do interior, entre ura cadeira de palhinha e um matedorrio pede Tommyserte, Dom Juan cochila @ se embalaj os pés a tona da agio do engraxate. Dom Juan.seiabandona e se perde num desenho rosa de camnisa de passamanaria, Ble uve negligentemente a conversagio-do engraxate com seu vizinho. B.aiquarta ver.do.dia.que esse cliente volta, cinco vezes ao todo, Explica que.airue Grange-Batelitre 6 particularmente pocirenta, que a:gente se suja:terrivelmente na rue Réaumter.Mais um louco, entretanto conheco essa voz, Levanntando a cabeca, Dom Juan reconhece o Comenda- dor. O destino, destino maniaco, eis ai vocé téo perto demim. O Comendador esté condecorado como Cristo de Portugal, isso macaqueia a Légion d’honneur. Caro Senhor, eu tinha hesitado entre:esse engraxate, o:do nximero 12 da mesma Passagem (rue Chauchat);e oda Passage. Verdeau. De resto, & a mesma casa; Brondex. Finalmente entrel aqui e encontreiio senhor: portanto; ey nig estava enganado: Com licenga, posse engraxar meus.sapatos? Tenho um-encontro, ¢ aipartesuperion Go.Jeita:é.adornada por! motivos: ovaladbsirepre- sentando as estagées ¢ os trabelhos deHéreules, incmus: trados no bordado inglés, O senhor néo vé queja precit pitagdo.Jaria, pousar af sapatos maculados?."Queira aceitaresse.chamto, disse 0 Comendadori seu cigérro: se apaga’. Momento precioso: Dom Juan toma o chart» to.quesihe estende o.espectro, Esse espetacule’é insu 98 portével. Troco 0 engraxate pelo vendedor de selos postais. 6 filatelia, filatelia: tu és uma deusa bem estre- nha, uma fada um tanto louca, és tu quem pegas pela mifo a crianga que sai da floresta encantada em que finalmente adormeceram, lado a lado, o Pequeno Polegar, 0 Péssaro Azul, Chapeuzinho Vermetho e 0 Lobo, tu és quem ilustras, entZo, Jilio Verne, e trans- portas para além dos mares, com tuas borboletas mul- ticor, os corages menos preparados para a viagem. Aqueles que, como eu, fizeram idéia do Sedo diante de um pequeno retingulo debruado de carmim em que caminha sobre fundo bistre um branco albornoz montado num dromedério das Arabias, aqueles que se tornaram familiares do imperador do Brasil prisio- neiro de sua moldura oval, das girafas da Niassaléndia, dos cisnes australianos, de Cristévéio Colombo desco- brindo a América em violeta, esses, com uma meia pala- vra me compreendem! Porém niio silo mais essas cole- ges de precos diversos, nossas conhecidas, que adomam de reflexos fatigantes toda a prateleira da loja em que estamos. Eduardo vi jé tem oar deum monarca antigo. Grandes aventuras subverteram esses nossos companheiros de infancia, os selos, que mil ames de mistério atam & hist6ria universal. Af esto os re cém-chegados que dio conta de uma recente e in compreensivel reparti¢ao do globo. Ai estio os selos das derrotas, os selos das revolugées. Obliterados, novos, que me importa! Jamais compreenderel coisa alguma em toda essa hist6ria e geografia, Sobrecargas, sobretaxas, seus negros enigmas horrorizamme: elas me furtam um soberano desconhecido, um massacre, incéndios de palacios, e a cangio de uma multidao que marcha em direcdo a um trono com seus cartazes ereivindicagées. 99 Nao hé surpresa, o preco esta sobre a porta, acima da porta na arandela azul e branca que se acende durante a noite. Quero felar livremente dos gabinetes que separam o café Certa da loja de selos. Nao sei que desfavor primério foi lancado sobre esses estabelect mentos. Isso supée, da parte dos homens, repre- sentagSes vulgares e ber pouca forga nostilgica, Da galeria, olhem, entretanto, o lavabo entreaberto onde uma mulher encantadora se pinta e compreendam 0 que é esse lugar, em que a beleza se recompoe apés uma crise natural e o cumprimento de uma necessidade que tem sua grandeza. A toalete, seus detalhes infinitos, sempre prezei seu espetéculo, Outrora, o pretexto de vagos estudos médicos pelos quais me deixei levar quando crianga e algumas relagdes recomendéveis, ti nham-me dado o privilégio de permanecer no lavabo das damas, num grande café em que eu tinha hébitos cotidianos. Eu gostava de ficarlé, ocioso e complacente com uma outra, surpreendendo essas transformagées adoraveis das mulheres, que a natureza vem desfazer ‘um pouco e que sua arte restitui para a sedugio.” As variacdes infinitas de sua postura, suas maneiras as- sombrosas de se comportar, seus pudores e impudores que chegam as raias de grosseria, que elas acreditavan entio serihes permitida, sua dignidade as vezes, € mesmo sua majestade. Eu nao me cansava de ficar nesse hugar de transiclio em que se desenredava 0 espi- rito da luxtiria. Nascia um curioso ardor da diversidade das atitudes. Freqiientemente as viajantes desse trem fugaz tomavam-se ai de um gosto miituo e isso aproxl- mava mos ou labios. Gesto da boca que se volta para © rouge, nuvem de pé-de-arroz, vocts, lilases artificiais que desabrocham diante de mim, sob 0s othos. Eis que atinjoa soleira do Certa, café célebre do qual niio terminei de falar. Uma divisa me acolhe sobre a porta acima de um escudo que agrupa estandartes: 100 AMON NOS AUTES Foinesse lugar que, por volta do fim de 1919, numa tarde, André Breton e eu decidimos reunir deli por diante nossos amigos, por édio de Montparnasse e de ‘Montmartre, também pelo gosto do equivoro das Passa- gens e seduzidos, sem diivida, por uma decoragio ina- bitual que deveria tornar-se‘para nés tZo familiar. Esse lugar € que foi a sede principal das sessées de Dad, quer essa formidével associagio conspiresse uma de suas manifestagées irris6rias e legendarias que fizeram sua grandeza e sua podridao, quer ela af se reunisse por lassido, por 6cio, por tédio, quer ela se agregasse sob © impacto de uma daquelas crises violentas que a sacu- diam as vezes, quando a acusagio de mocerentismo™ era dirigida contra um de seus membros. bem preciso que eu adicione, ao falar disso, um sentimentalismo incerto. De resto, delicioso canto em que reina uma luz de suavidade e a calma, a fresca paz, por detras da tela das, cortinas amarelas méveis que, alternadamente, vedam ou desvendam para o consumidor sentado préximo as grandes vidragas que descem até o cho, que desven- dam e vedam alternadamente a vista da Passagem, conforme a méo enervada da espera feche ou estique sua seda plissada. A decoraciio é marram como a ma- deira ea madeira é prédiga por toda a parte. Um grande balcdo ocupa a maior parte do fundo do café. Ele se encontra desaprumado devido a tongis de grande por te, com suas torneiras. A direita, no fundo, a porta da cabine telefSnica ¢ do lavabo. A esquerda, um pequeno yetiro ao qual ainda retornarei, abrese para a parte intermediéria da sala. Quanto a essa, o essencial de sua mobflia é que as mesas nao so mesas, mas tonéis. H4 na grande sala duas mesas, uma pequena, outra gran- de, e onze tonéis. Em volta dos tonéis estdo agrupados 101 tamboretes de palhinha e poltronas de palha: vinte ¢ quatro de cada tipo, aproximadamente. Ainda é preciso observar: quase todas as poltronas de palha so diferen- tes de suas vizinhas. No mais, confortaveis sempre, ainda que cada uma a sua maneira. Prefiro as mais baixas, que tém uma parte de treliga no alto do espal- dar. £ possivel sentarse muito bem no Certa, vale a pena sublinhar. Quando entramos, vernos & esquerda um biombo de madeira, e 4 direita um porta-casacos. Depois desse, um tonel e seus assentos. Encostados & parede da direita, quatro tonéis e seus assentos. Depois, em diregdo ao lavabo, um novo biombo de madeira. Entre esse ¢ 0 baledo, um aquecedor, 0 mével em que se acham as listas telefénicas, a grande mesa e seus assentos. Diente do baledo e até a entrada do retiro de que falei, na parte intermediéria da parede da esquer- da, trés tonéis e seus assentos. No meio, dois tonéis € seus bancos. Na entrada do retiro, uma mesinha e uma poltrona. Enfim, entre o retiro e a porta da Passagem, 20 abrigo do movimento gragas a um biombo de ma- deira; um Gltimo tonel e seus assentos. No retiro, en- contramos trés mesas encostadas em fileira, com um tinico banco ao fundo, revestido de tecido imitando couro e que ocupa quase toda a largura do aposento, depois cadeiras defronte ao banco e, no canto direito distai,” um pequeno aquecedor mével a gés, muito apreciado no inverno. Juntem a isso folhagens ao lado do balcio, e acima dessas prateleiras de garrafas, acaixa na extremidade esquerda, préxima a uma porta fecha- da por um cortinado, geralmente levantado. Finalmen- te, na caixa, ou sentada na mesa do fundo por momen. tos, detxando correr o tempo, uma senhora que é amével e bonita, e cuja voz é tio suave que, confesso, antes eu telefonava sempre ao Louvre 54-49 pelo prazer tinico de ouvir dizer: “Nao, senhor, ninguém o proc: rou”, ou entéo, “Nao hé ninguém dos Dada, senhor”. 102 £ que aqui a palavra “dada” 6 ouvida de forma um. pouco diferente do que em outra parte, ¢ com mais simplicidade. Bla nfo designa nem a enarquia, nem a anti-arte, nem nada daquilo que fazia tanto medo aos jornalistas,’ que cles preferiam designar esse movi- mento pelo nome de Cheval d’enfant.” Ser dadé nfo 6 uma desonra, Designa, ¢ 6 tudo, um grupo de freqiten- tadores, jovens um pouco barulhentos as v2zes, talvez, mas simpéticos. Dizem: um dad, como dizem: 0 se- nhor louro. Um sinal distintivo vale um outro. E até mesmo vai tfo bem nos costumes, que dadé ¢ aqui o nome de um coquetel. Quero consagrar um longo parégrafo em reconhe cimento as bebidas desse café. B antes de mais nada a * "Hu teria passado por esse mundo, com alguns que so 0 que vocés jamais perceberam de mais puro no céu numa noite de verdo (André Breton, por exem- plo), em meio ao desprezo, aos insultos, sob os,escar- ros. Mas se um dia minhas palavras se,tornarem sagradas e elas j4 so, entio que me ougam ao longe, rindo, Elas nfo servirdo para seus fins miserveis, ho- mens que eréem ridicularizarnos, crépulas. E quando digo jomnalista, digo sempre filho-da-puta. Deixemsse re- preender vigorosamente no Intran, no Comoedia, no Oeuvre, no Nowvelles Littéraires,»® etc., esttipides, ca- nathas, fezes, poreos. Nao hi exceco, nem para esse, nem para aquele: percevejos imberbes e piolhos bar Dudes, vocts nao hilo de se atocaiar impunemente nas"revistas, nas publicagées equivocas. Tudo isso fede, A tinta, Barata esmagada. A imundicie. A morte + voeés todos, que vivem da vida dos outros, do que eles amam e de seu tédio. A morte aqueles cuja mao esta atravessada por uma pluma, & morte aqueles que parafraseiam 0 que eu digo. 108 seu vinho do Porto. O vinho do Porto Certa é tomado quente ou frio, hé diversas variedades dele, que 05 amantes apreciario. Mas 0 Porto vermelho comum, que custa dois francos e cingiienta, jé é to recomendé vel que eu temeria causarIhe algun dano falando dos outros. Causa-me pesar dizer que o bom Porto tornase mais e mais raro em Paris. £ preciso ir ao Certa para bebélo. O proprietério assegurame que nao ¢ sem sacrificio que ele consegue fornecé-lo a sua clientela, Existem vinhos do Porto cujo gosto néio é mau, mas que so de alguma forma débeis. O paladar no os retém. Eles somem. Nenhuma lembranga permanece, Néo ¢0 caso do Porto do Certa: quente, firme, seguro, ¢ verda- deiramente de bom timbre. E o Porto nfo é a timica especialidade daqui, Hé poucos lugares na Franca em que se possui uma gama semethante de cervejas ingle 5as, stout e ales,” que vao do preto ao vermelho, passan- do pelo acaju, com todas as varlacGes do amargor e da violéncia, Eu recomendo — nfio é esse o sentimento da maioria de meus amigos (com excegio de Max Morise) — que no experimentem, como eu, a strong ale de dois francos e cinquenta: 6 uma bebida desconcertante. Re- comendaria ainda a Mousse Moka, sempre leve e bem firme, 0 Théatra Flip e 0 Théatra Cocktail, para usos diversos, esses tiltimos esquecidos no quadro seguinte: 104 Martini Pesfect, Row Brandy ‘Cherpaene Gin Gets St James Derby Omnium Max Waller's Manhattan Oxcae Dads ‘Sherry Champagse Pore Cafe Gace “CERTA” BEBIDAS PRECOS Cokeit Ponto Foe || Bean : sterey : | Fao Now [ee : sours » 8 : ck me Hup : Kis me Quick . Fonte Cafe . ele Wel Mss : Gsiton Cup ‘ Jo Cots in . Brom AP | clover cise cotter Mowse Moke 1.50 | Foro 105 3°50 250 350 3°50 | | | Quadro situade na pequena sala, acima do qual figurava o cartaz-propaganda de uma bebida cujo nome me escapa, pintado por um dos antigos garcons, ‘bem a0 gosto dos quadros mecdnicos de Francis Pica- bia, eque desapareceu hé algum tempo. Um dos encan- tos dos cafés esta nos pequenos cartazes pregados quase por toda parte assim, e que no Certa existem em profu- so, louvando 0 Martini, o Bouril, © Source Carola ou a W. M. Youngers Scotch Ale. As vezes eles se sucedem em ceascata’ | FUIPS._3F. 50 pene eee eee HE ROYAL FLIP 4 f. IMPERIAL FLIP 4 f. Lieores.. 6... + Grandes Mareas +2 B50 ROYAL ........--3 750 IMPERIAL.........5F PORTO CERTA . . - 106 | Alids tudo isso & excelente, sem reprovacii voeé tiver vontade de um caldo, peca um Bovril:® ele seré servido com sal de aipo, experimente depois vocé ‘me conta, e deve ser empregado sem moderacio. Mas, que niio me acusem de parcialidace em relagiio a0 Certa: vou finalmente fazer uma queixa dele, a tmica que vejo. Nao gosto muito da forma como servern If 0 café filtrado: para retirar o filtro, que ¢ um pote de metal, sem se queimar, € preciso servirse de duas colherzinhas cruzadas colocadas no cabo e isso no se faz sem dificuldade. Além do mais 0 fregués solitério nao tem possibilidade de fazé-lo, Em seguida, onde colocar o filtro que continua sempre a pingar um pou- co? Quase que s6 temos & disposicao 0 pires de vidro trabalhado no qual se encontravam os torres de agti- car, mas se gostamos de café adogado moderadamente, deixamos nele um torrdo. Entéo, ou sujamos a mesa, ‘ou estragamos um torrfio. B tudo o que :enho para reclamar do Certa, Pois néo ¢ tudo perfeito lé, a no ser isso? Nunca faz muito frio, a casa é bem aquecida; nunca muito calor, no verdo 6 como uma gruta e 0 ventiladores so bons. Salvo no ssbado & noite, esse lugar quase nao é invadido. L4 sia complecentes, até mesmo indulgentes. B ainda que durante cinco anos eu tenha visto passar tantos garcons por ld, quase todos cram a propria polidez € discric&o, faziam bem os coquetéis, eram mais ou menos artistas emcstravam-se finos 20 receberem as gorjetas. O garcom atual, René, esta nessa tradigio. Ele desenha projetos de cartazes, hhumoristicos contra as desapropriagoes, trabalhados a maneira das caricaturas panfletérias contra a Inglater- rae as pantalones a pont,” tais como eram apreciados no tempo do Diretério. E tempo de dizer também que hhomem cheio de reserva e tato é o proprietario dessa casa. Jé 0 vi sair-se bem diante de fregueses de humor impertinente ou de conduta dificilmente apreciével, 107 com um espirite que o honra, Ele merece uma sorte melhor do que a que Ihe reserva uma administragio municipal inconsciente, que se preocupa mais em alar- gar as ruas da cidade do que em preservar e encorajar uma urbanidade tao rara e dons de cortesia que vemos desaparecendo, mais e mais, dos lugares pttblicos pari- sienses. Desejo que o proprietario do Certa, quando os domolidores 0 tiverem expulsado, abra em outra parte ‘um café ou um bar, do qual terei prazer de ser cliente. Ele é agradavel, ¢ reconfortante sentir em volta dele, gragas A sua discreta inteligéncia, uma atmosfera de cordialidade e suavidade como a que se mantém cuida- dosamente no Certa. Gostaria que se retivesse um exemplo parecido, como de um Vatel ou de um Montagné. Ndoé habitual dirigir 0 espirito critico para o papel dos proprietarios de bar. Sfio pessoas que tém um lugar efetivo na manu- tengo da verdadeira civilizacio. E é nessa paz invejavel que o devaneio é fécil. Eque ele cresce a partir de si mesmo. f aqui que o surrealis- mo retoma todos os seus direitos. Diohe um tinteiro de vidro que se fecha com ume rolha de champanhe e pronto, lé esta vocé em aco. Imagens, desgam como confetes. Imagens, imagens, por toda parte imagens. Notelo, Na pall das poltronas. Nas palhas das bebidas. No quadro da central telef6nica. No ar brilhante. Nas arandelas de ferro que iluminam a sala, Podem nevar, imagens, é Natal. Podem nevar sobre os tonéis ¢ sobre 08 coragdes crédulos. Podem nevar nos cabelos ¢ sobre ‘as maos das pessoas. Mas se, tomado dessa fraca agita- ‘do da espera — pois alguém vai chegar e penteei-me “Onde est4 meu corpo? A noite jé caiu. O Certa se en- contra hoje na rue de l'sly, no lugar do antigo London Bar. E eu, onde estou? 108 trés vezes pensando nisso — levanto as cortinas das vidracas, eis-me novamente entregue ao espetéculo da Passagem, suas idas e vindas, seus passantes. Estranha contra-danga de pensamentos que ignoto, mas que no entanto 0 movimento manifesta. O que querem eles assim, esses que se volta sobre seus passos? Frontes preocupadas e frontes ligeiras. Ha tantos modos de andar quanto nuvens no céu, entretanto alguma coisa me inquieta: 0 que significam as mfmicas desses senho res de meia-idade? Eles se viram, desaparecem e depois, ressurgem, Bruscamente minha desconfianga é desper- tada e meu olhar dirigese de repente para a loja da vendedora de lengos. ‘Aloje de lenos dé para a galeria do Bardmetro por intermédio de duas vitrines que emolduram uma porta , sobre o corredor que se embrenha por detrés do Hotel ‘Monte Carlo, por meio de um conjunto de vidracas ¢ uma porta, separada da parte intermediéria do restau- rante Saulnier somente pela negra extremidade de uma escada que leva aos andares superiores onde se encontram, vestigios de uma agitagio esquecida, os escritérios do L’Evénenement politique et littéraire, Todo o corredor se afunda na sombre ea luz mesquinha que vem do café Biard quase nao ilumina a cavidade em que os garcons empilham algumes cadeiras de reforco nas vizinhancas do hotel. Por que essa viela que quase néo pode ser vista da Passagem abriga, quase sernpre, um passante que se detém? Como as pessoas se tornam af sonhadoras e desapegacias. Tudo em seu aspecto revela pelo menos que estilo Ié por acaso, um puro acaso. No final do conjunto de vidragas obscurecido pelas cortini- nhas de tela, a porta esté fechade. Homens, senhores que para mim tinham 0 ar apressado, que sempre tém, cruzam pela terceira, quarta vez o ponto de parada, Olhe, 1é esté um agente de policia: mas ele, ele se esconde. Beberd de um s6 gole a cerveja leve que, 108 furtivamente, um amigo Ihe traz do Petit Grillon. Pobres sargentos de policia, com que olhos devoram o éden proibido dos cafés. O agente se vai. Os senhores passam novamente, Alguns tém bengalas, outros nao. Alguns tém bigodes. Outros nao. Nas vitrines da galeria, os Jengos simetricamente expostos formam triéngulos suspensos acima de anéguas de cor sombria que impe- dem os olhares de revistar a loja & vontade. Estranhos lengos, na verdade, que néo correspondem a moda alguma, de cambraia vermelha, ou verde, ou azul, mas de um gosto impossivel, com pequenos desenhos, pe- quenos bordados sem luxo, bainhas pretas. Nao é veros- simil que eles possam algum dia tentar alguém. E as anaguas... mas ento existem mulheres que vestem essas anéguas cor de ameixa, de longas riscas tom sobre tom? Dificilmente se percebe o interior da loja se nfo se colar a testa aos vidros: quase que s6 se vé um cesto de costura e uma costura abandonada perto de uma cadeira vazia. Prontamente, a vendedora reaparece no fundo, reconduzindo um cliente que mal vi, mas em todo caso um hornem de idade, venerdvel, ao qual vocé cederia, meu caro, com sua graciosa educacio, um lugar no metr6, Ele vai em diregdo ao corredor. A porta permanece aberta. O velho passa por mim apressada- mente: olhe, ele comprou um lencinho de bolso verme- Iho, ah no, é a Légion d'honneur. A vendedora voltow para sua costura, Pessoa madura, cujo porte, inteiro, cheira & dignidade comercial. Mas ainda uma vez a perturbam. Porém é o solitdrio do corredor, ereio. Con- versam tm pouco, ela Ihe indica a loja de trés e segue-o apenas puxando a porta do corredor, que nfo tem ferrolho na fechadura, Nese momento, um passante que avancava detém-se, um pouco desconcertado. De- pois comega a andar pra lé e pré ed. Sempre observei, do Certa, que a vendedora trata assim sua freguesia, Apenas um penetra por vez, demora dez, quinze minu- 110 tos, a porta traneada, depois sai e a porta se abre até a chegada de um novo visitante, Coqueteria, enfermida. de? As pessoas devem se assoar com freqiiéneia quando nfo so mais jovens. A porta no se entreabre jamais por um longo tempo e se quisermos entrar 6 preciso espreitar o instante propfcio. Vi algumas vezes a vende- dora falar com uma amiga que ela tem, que permanece na parte mais dissimulada da loja e com quem ela roseia um pouco, sem que se possam ver scus tracos. ‘Mas nfo passa de uma amiga e geralmente « comercian- te estd s6 na casa, A espera dos negécios. Aproximo-me na soleira, como é de praxe. Tiro o chapéu e olho a vendedora. Alto ld, infeliz! Quantos raios apressam-se a fazer acima de sua cabeca os barulhos dos bastidores da Grande Opera, Com suas palavras, sua tagarelice, voce indispés seriamente os comerciantes da galeria do Ter- mémetro e aqueles de toda uma parte da galeria do Bardmetro, vocé deu as costas aqueles de que no falou ainda e que temem sua mania de escrever. Essa gente esta perturbada. Leram, sem compreender muito bem, ‘essas paginas em que vocé escrevinha inexplicavelmen- te, encarnicando-se por um designio que sé pode pare- cer burlesco, em descrever esses meandros acocorado: diante da ameaca de uma picareta leventada. Eles nao podem distinguir entre aquilo que vem de vocé e o que voce tira deles. Esto enfermos como criangas diante de um espelho defgrmador. Acautele-se, eles vio chorarou dar pontapés, Jamais teriarm.acreditado que numa so- cidade policiada tivessem 0 direito de dizer a verdade sem rodeios. A palavra meublé parecialhes uma garan- tia contra a expressio casa de tolerdncia, etc. Agora lé estio eles se descabelando, pois acreditam ter sua repu- taco perdida, de repente, Voeé os projudica: 0 que seré de seus direitos na grande luta contra.a Imobiliéria do boulevard Haussmann? Se por infelicidade os homens un da lei lessem esse tecido de invengdes ¢ realidades, o que pensariam? “Bis af pessoas muito pouco dignas de interesse”, é 0 que pensariam. E cada um de seus epitetos poderie diminuir na mesma proporgio o montante das, indenizagées. As solteironas que vendem bengalas na galeria do Termémetro acreditaram morrer de vergo- nha diante da leitura da deserigéo de sua vitrine, Uma alema em seus cachimbos de espuma-do-mar! Por me- nos que isso entramos em conselho de guerra. Outro dia tina uma reunigo dos notéveis da Passagem: um, deles havia trazido os ntimeros 16 17 da Revue Buro- péenne. Discutiram-nos rispidamente. Quem teria dado a vocé as informacées? Suspeitaram de que um agente de negécios bem inocente, que até entio servia aos interesses da Passagem, fazia um jogo duplo e ‘tramava misteriosas intrigas. O pobre homem 0 procu- ra para se desculpar. Veio ao Certa ver se voce estava. ‘Outras de suas vitimas também vieram clamar justica, Bles queriam conhecélo, esse inimigo encarnicado, essa maquiavélica personagem e o que The ditiam en- tio? O que diriam as abelhas do Baedecker™” das col- méias? Num dos tiitimos miimeros do La chaussé d’An- tin, nfo € sem amargura que citam vocé longamente, pois, ao que parece, vocé exerceu sua ironia a custa esse érgio de defesa dos interesses do bairro, precisa: mente porque ele tomava em mios a causa dos peque- nos tubarées contra os grandes. De fato, vocé nao ama muito a vitiva e o 6rffo, Mas suas revelagdes, cuja responsabilidade Ihe é atribuida, assombram esses se- nhores: de onde vacé tira esses niimeros ¢, como dizer eles, seré possivel? = Onde O Camponés de Paris era publicado em folhe- tim, Assim é que nos anos 20 declinavam na Franca 0 nivel dos costumes ¢ 0 dos romances. 112 Brava gente que me escuta, tiro minhas informacSes do céu. Os segredos de cada um, como os dalinguagem € os do amor, revelam-se para mim a cada noite e ha noites em pleno dia. Voces passam pormim, suas vestes esvoagam, seus livros de contabilidade se abrem na pagina das dissimulagdes e das fraudes, sua alcova 6 desvendada e seu coragéo! Seu corac&o como uma bor: doleta esfinge sob 0 sol, seu coragio como uma biissola enlouquecida por um pedacinho de chumbo, como um varal de roupas que seca ao vento, como o chamado dos cavalos, como 0 farelo jogado aos passaros, como um, jomal da noite que acabamos de ler! Seu coragdo é uma charada que todo mundo conhece. Portanto niio te: mam nada de mim quanto a sua reputago, nem que cu entre na vendedora de lengos. Essa dama volta para mim uma cabeca que nao deixa de ter certa majestade. Os tracos um pouco gran- des, o nariz.dos Bourbon, a pele que jé nao deve mais ter aquela elasticidade para a beliscadura propria da Juventude, a grossura do pescogo que entretanto nao impede a magreza do rosto, cilios louros raros e a otho um pouco vermelho atribuindo algum carater noturno ao conjunto, nerhum rouge e pé-de-arroz suficiente para sugerir uma dame de companhia ou uma gover- nanta, 0s cabelos.., 05 cabelos mereceriam um pardgra- fo, com seu jeito de néo se submeter & moda, de ser tingidos discretamente, de nao se erigirem to altos. como 0s das mogas de caixa, de néo se aplainarem tio baixos como 05 das enfermeiras, a vendedora detxa suaveménte sua costura e avanca em diregio # mim, Saboreio ent&o seu modo de se vestir. A saia é larga ¢ mais curta do que as que fazem hoje, ao gosto de 1917 mais ou menos, cortada em forma de cintura arredon- ada. Toda a roupa é de um meio tom gritante (arran- Jemsse para entender o que quero dizer): é uma espécie de ameixa vermetha, um tom de vinagre que dé a idéia 113 dacor viva, coors lantejoulas dos artistas de circo dio idéia dos diamantes. Aquilo puxa para a groselha ago. nizante, para a cereja bieada, assemelhe-se aquelas fitas das condecoragées académicas que viram écido na cla- ridade... ah sim, achei, ovestido é tomassol” puxando Jevernente para a urina. O decote do corpete desobstrui simplesmente a nuca, onde os cabelos perecem penu- gem, ena frente ele apenas descobrea forquilhaem que se salientam graciosamente os tendées convergentes do pescoso. Mas a maravilha des maravilhas é 0 corpe- te, obra-prima da aplicagdio num género desaparecido. ‘Nao se usa mais bolero em nossos dias, o que lamento: mas 0 que dizer entio do falso bolero, que nfo é solto como 0 verdadeiro, mas sim costurado ao vestido preso por pespontos aparentes que constituem um desenho? E imaginem que todo o corpete € paciente- mente enfeitado com fita e passamanaria de um verde um pouco mais vivo que améndoa, um pouco mais apagado que folhas de couve-flor: que a fita forma um pequeno pregueado om toda a largura, disposta em motivos que lembram invencivelmente 0 caramujo ea decoragiio das prefeituras suburbanas. Adicionem a isso que mesmo to vivo, esse Gainsborough, esse Win- terhalter™ quase nfo € mestre da voltipia: seu corpo deformou-se honestamente e, nfo fosse 0 hébito de uma certa inquietude de coruja, uma espécie de con. quista do olhar, essa pessoa, meu caro, poderia ser sua mie ou sua faxineira, Eu sel: umas das principais critieas que podem me fazer, que me fazem, é esse dom de observacéio que gostam tanto de constatar em mim, e pelo qual néo me perdoam. Eu nfo me diria um observador, na verdade. Gosto de me deixar atravessar pelos ventos e pela chu- va. O acaso, eis toda minha experiéncia. Que o mundo me seja daclo, nfo é meu sentimento, Essa vendedora de lengos, esse pequeno acueareiro que vou descrever, aa leis, de minhas maneiras de pensar e quero ser enfar- Ser erereertetm eer ote € que o senhor Oudin venha colocar sua placa : Se PASSAGE | | be LVOPERA ONIRIQUE © estrangeiro que 1¢ meu pequeno guia levanta 0 nariz ¢ diza si mesmo: 6 aqui. Depois dirige-se mecani- camente em diregio ao ponto em que acabo de deixé-lo pelo prazer de meu cartaz e, dirigindo-se com delicade- za & vendedora framboeza e pistache, pergunte-Ihe apés ium grande esforco de imaginacio qual 6, exata- mente, sua tarifa. O preco Ihe parece bastante médico *€, como 0 fotégrafo, a dama nio entrega a ninguém o cuidado delicado de exercer seu oficio, Mas o que mer. gulha o visitante num precipicio conjetural é que o reco nao ¢ tinico, ha trés classes, como nas ferrovias. Ele sonha eam um completo, como no barbeiro, ¢ a0 118 mesmo tempo sobressalta-se. Pensa na idéia que faz do amor; revé num suspiro toda sua vida e sua infancia ingénua, sua jover irmi e seus pais no canto da lareira, uma pintura sobre seda cinza representando Paulo ¢ Virginia fugindo da tempestade, um coragéo perfurado por uma flecha, dois ou trés quartos mobiliados. Enttio ele se resigna ao simulacro menos caro. Seré que li bem nos seus olhos? Essa repentina degradacio de um res peito até entiio de tal forma ardoroso, essa vil procura do efémero sem ilustio de duracdo, essa auséncia de pretexto ¢ até mesmo o anonimato, 0 isolamento no prazer, tudo isso o excita no mais alto grau ¢ ele esté ‘um pouco apressado para desaparecer na sombra em que ja percedo mos enfastiadas que se mexem. Siga bravemente seu gosto, estrangeiro, Bu 0 aprovo e isso asta, creiame. Ele se empertiga. Se torce. Oh! Esse nao demorou muito Qual é 0 murmério sentimental que se levanta? As poltronas da platéia poderiam ser tomades por musi- cos? Faco a apologia de todas as inclinagées do homem ¢, por exemplo, a apologia do gosto do efémero. O efémero é uma divindade polimorfa, bem como seu nome, Sobre esse tripé que soa como uma lenda povos- da de olhos verdes e duendes, meu amigo Robert Des- nos, incomum sébio moderno que tem navios estranhos em cada prega dos miolos, debrugou-se longamente, bus- cando pela escala da seda filolégica o sentido dessa palavra fértil em miragens: us EFEMERO EMR (loucura - morte - devaneio) Os fatos erram por mim OS FARDOS, MAES Fernanda ama Roberto O EF&MERo o EFEMEROS Ha palavras que sio espethos, lagos éticos em diregiio dos quais es mios se estendem em vio. Silabas proféti- cas: meu caro Desnos, tome euidado com as mulheres cujos nomes forem Faénzette ou Frangoise, tome cui dado com esses fogos de palha que poderiam tornarse fogueiras, essas mulheres efemeramente amadas, esas Florenees, essas Ferminas, que um nada inflama & TORNA MAES. Desnos, abstenha-se das Fanchettes Enquanto que A sua esquerda feita de malas, male tas, caixotes, caixas, caixas de chapéus, caixas de prata Tia, frasqueiras, valises, malascabide, sacolas, bolsas, cestos © toda o feitigo das viagens, Vodable, que jé encontramos na outra galeria, ocupa ao lado do Certa a@ ealgada do ntimero 17, os mimeros 16 e 14 8 sua direita dividem-se, depois da vendedora de lencos, en- 417 tre uma loja preta que é a sede social do Journal des Chambres de Commerce ¢ uma loja colorida, Henriette, modas, cujos chapéus se elevam apenas até o nivel da cortina moderna que os esconde. E cuidado com os Jovens que, tomados pelos mistérios do lugar, erguern- ‘se sobre as pontes dos pés na esperanca de alguma irregularidade inebriante. Em seguida as honestas mo- distas sairdo, imprecatérias, atestando o céu da pureza de seu coragio e reprovando, no modo Iirico, 0 comér- cio vergonhoso da vizinhanga, que lanca uma dtivida mitica sobre os gestos harmoniosos do trabalho ¢ da probidade, O conjunto 6 sobrepujado por algo como um frontdo do L’Bvénenement politique et Uttéraire. Avancemos, avancemos, aplainando cuidadosamente daqui e dali, os enigmes do terreno, ou fazendoos surgir quando isso nos convém ou arrebata, A esquer- da, a porta do 17 e sua escada de trevas cercadas de tabuletas, entre as quais me perco. Aido Comércio 1 Andar @ Dire Agfa ticle 1 ander ELEVADOR ue Deménio das suposigbes, febre de fantasmagoria, Passe em seus cabelos de estopa os dedcs sulfurosos enacarados e responda. Quem ¢ Prato, eno primeiro andar, com seu elevador paradoxal, o que é essa agéncia que, por espirito de sistema, s6 posso acredi- tar que seja uma vasta organizacéo para o tréfico de escravas brancas? Voltem-se e, bem em frente, vejam © pequeno restaurante em que encontro durante nos- sa caminhada para as profundezas da imaginagao, os lltimos tragos do movimento Dada. Quando Saulnier nos parecia muito ‘caro, era 1d que outrora, numa atmosfera sufocante e vulgar, saciévamos mal nossos apetites inoportunos com uma cozinha gordurenta de banha de coco e um vinho acido e decepcionante. Mediocres lugares em que se come, quanto de deva- neio e desgosto se arrasta por entre eles. Ai o homem sente a mesa na carne que mastiga e se irrita com convivas comuns e ruidosos, jovens feias e estiipidas, com 0 senhor que pie a vista seu ridiculo inconscien- tee toda a balburdia sem exaltagio de sualament4vel existéncia. Ai o homem muda de lugar os pés mal nivelados de sua cadeira e volta contra o péndulo transtornado sua impaciéncia e seus rancores. Duas salas: uma de aperitivos, com um paleo e a porta aberta dando para uma cozinha baixa e enfumagada, uma outra como restaurante, que se prolonga ao fundo por um diverticulo onde hé lugar para uma mesa, um banco e trés cadeiras, exatamente, e que é um patiozinho coberto para abrigar seis clientes a mais. As figurantes do Teatro Moderno, seus aman- tes, seus cies, seus filhos, esse € 0 pessoal costumeiro dos bancos, além de alguns viajantes de comércio. O conjunto, muros engordurados, gente e comida tri- viais, assemelhe-se a um respingo de vela, ‘Mas entre o armeiro ¢ 0 cabeleireiro, quem é esse velho gordo e desagradével, que brinca com um arco ug de madeira? Sou o inico a espantar-me com ele. Estranho arco pintado de varias cores e de cenas que se encadeiam A mancira das estagdes da via crucis Primeira estagdo: © mar, trés conchas, uma floresta ¢ 0 PuywteDome, Segunda Bstagdo: Uma semente, Tercetra estacdo: A onda, 0 fogo, uma folhagem; uma figura do egoismo, espécie de deus nu e mosquendo, espécie de bizio brandindo uma formula telegrafica, na qual se inscreve: Sou eu, sou eu! e que esquece de mencionar onome 0 enderego do rematente. Quarta estagéio: Uma mulher que escarra flores. 0 Amor, penteado com um arbusto de espinheiro-alvar, debruge-se ao longe sobre a calma das montanhas, Titulo: Esque¢o, Quinta estacao: A semente, Sexta estacite: Sopros sobre a porta do siléncio esperar escravo que nao volta, Setima estagdo: O véu, rasgando-se, deixa poreeber 0 dese. Jo sob a forma de um flamingo. Oltava estacdo: 0 flamingo voa. ‘Nona estacdo: © flamingo perde suas penas ao ar livre, Décima estagdo: O vento. Décima-primeira estagiio: A semente ao vento. Décima-segunda estacdo: O egoismo e o amor, portando as armas de um pais imaginario, enredam seus cabelos enquan- to 0 sol bate meio-dia acima do Puy-deDome, Oestranho velho se distancia em direcio aos boule- vards, empurrando com uma varinha magica 0 arco coberto de iluminuras. Pergunto ao barbeiro que est na, soleira da porta se ele conhece essa pavorosa aparigao: 10 — Ecomo, caro senhor, responde-me o afiivel artis. ta, 8 um freqtientador de meu salio, ur. certo Sch... que passa a vida a brincar com aquilo que ele chama de aroda do devir. Queira entrar, por favor. Gélis- Gaubert, o barbeiro, que ocupa os nximeros 19 €21 da Passagem, foi mil vezes descrito, Néo hé em toda esse Passagem, nfio ha quase em toda a Paris uma loja gue tenha constituido para os jornalistas um assunto mais agradavel e mais fécil para reportagem do género pitoresco e sentimental. O Barbeiro dos Grandes Ho- mens, a cada trés meses alguém 0 descobre ¢ tira seu retrato, com seus bigodes magnificos que contém areia, pimenta e€ algoddéo — pélvora."’ Ao primeiro olhar, compreendemos pelas vitrines que esse barbeiro no & da nova escola, que inventou mil maneires de viver A custa dos clientes. Ble ainda 6 do tempo da barba por cinco tostées, quando sé se pagava para recuperar a juventude e o vigor dos homens, por usar seu tempo ¢ seus perfumes, pelo sabonete, que € tudo o que um barbeiro fornece, pela pedra que € como um lago gela. do, pelo taleo, tudo para recolher apenas um ou dois tostdes de gorjeta. Mais teria valido a pena se fazer de indigente, ou pelo menos ladrio, ou varredor de rua. ‘Também um dia a corporagio se encheu, expandiuse © uso das fricgées mais caras, das massagens, dos aque cimentos, das fumigagdes e de suas modalidades inu- meréveis, a conta crescen e a gorjeta atingiu os trés francos. Se um velho barbeiro, agora retirado dos negé: clos, vem se barbear num confrade que usaos métodos novos,-sua alma se compraz grandements quando o empregado anuncia a caixa a despesa que acaba de fazer, em suas maos, esse cliente que ele ivra doavental € escova com crinas de seda. Mas em Gélis-Gaubert, tudo permaneceu fiel ds feigdes do passado: na vitrine, vemos todos os objetos que até o inicio do século era preciso persuadir habilmente o cliente de comprar a2 para viver barbeandose e penteandose, caso a mania dessa arte, sua vocagao irresistivel o arrebatasse quan- do ele fosse ainda muito jovem para se dar conta de sua loucura: estojos de navalhe e frascos de vidro, frascos para viagem e frascos sedentérios, uns em sua cobertu- ra de madeira, outros com sua sentimentalidade nos ornamentos, com a estrela esculpida no fundo, que faz seu preco para os verdadeiros amadores — es maos de roupa branca, os pentes dobraveis ou inquebréveis, 0 celuldide e 0 casco de tartaruga, combustiveis de ma neira desigual, o chifre e o metal; as lixas e tudo o que faz do cuidado das maos uma branca magia, e as ma- quilagens, os filtros de espanto; os sabonetes, verdes, roses, amarelos, ou desse negro de melaco, transliicido, que lembra as voliipias de meados de agosto, quandoo sol se retirou ¢ sobre o assoalho os juncos de palha esgueiraram-se de través sob os pés crispados e fatiga- dos; e as escovas de dente, os dentifricios, os sais para dor de cabega e 0s vapores, as éguas para os olhos, as pomadas de milagres. De um e outro lado da porta, as vitrines apresentam em sua parte superior dois raios simétricos, o primeiro povoado por garrafas de velouté naturel, o segundo de Glykis. Nao tenho experiéncia com essa ultima especialidade da casa, loco para a pele que deve esse nome de nereida & sua bela cor de esme- ralda. Quanto a outra, que 6 um Hquido dulciticante que se emprega apés 0 barbear, puseram-me dela aqui, e declaro que é uma maravilha. Tomillho e lavanda, 0 proprio odor des montanhas, no dessas montanhas arrogantes que s6 tém gelo e plantas venenosas, mas aquelas que sao resina e mirtilo, onde vemos chalés ornamentarem-se melancolicamente de queijos azuis, tudo no velouté naturel € parecido com uma paisagem da manhé, antes que as arvores jé tenham sacudido completamente a noite, uma paisagem para as faces que, sob esse afresco tétil, abendonam-se a vertigem 322 dos passeios florestais de automével: no esquegam de buzinar! curva perigosa. E 0 que dizer da vitrine de esponjas que completa essa loja, nascida durante o fim do romantismo, quando Os Burgraves" eram vaiados € 08 castelos assombrados deixados ao abandono? Es- Ponjas de bocal, esponjas livres, de textura mais varié- vel que 0 vento, de textura mais varidvel que a da pele das mulheres, fina-fina como um guardanapo ninho de abelha, ou porosa como as grutas sonores do mar em que se espreguicam sempre os tritées penteados de algas verdes, esponjas que incham sob os desgostos da gua. Conheci um homem que emava as esponjas. Nao tenho ohabito de empregar esse verbo no sentido fraco. Esse homem amava, portanto, as esponjas. Ele as tinha de todos os tamanhos, de todos os celibres. Rosas, acé froadas, purpurinas, Ele as tingia. Possufa algumas to tenras, que no podia se impedir de mordé-las. As mais ‘elas ele as vezes rasgava em seu delirio, depois chore- va verdadeiramente sobre seus esplendores esparra- mados, Algumas, lambia. Algumas, nio teria ousado tocar, eram rainhas, pessoas tidas em altaconsideragao, Outras ele comia simplesmente. Tenho também um ‘amigo que fazia amor em sonhos com esponjas. Mas para isso, limitava-se a tomélas em suas palmas e fe. ché-les: vejam voces como é fécil, O interior da loja se compée de uma primeira sala onde se vende perfuraria, em que se encontra 0 caixa, edeuma segunda que as penteadeiras dividem, por sua vez, em duas. Para essa nao pouparam espaco,sob aluz que the chega dos alpendres de vidro: uma espécie de espirito de grandeza, que perdemos um pouzo com a alta. dos valores dos aluguéis, reina ld como se vivésse- mos sempre em palécios. Toda uma parte dessa imensa sala é reservada para a espera dos clientes, que entre- tanto nfo passam de um ou dois. Eles podem permane- cer em volta dos que estdo sendo barbeados, ou distan- 128 ciarse, escolher seu canto para ler, ou somente vagar, ou como gosto de fazer, caminhar de um lado para outro. Ha uma eseada que os diverte com sua voluta. As paredes, enim, so decoradas por mil lembrangas. Foi ‘por aqui que passaram todos os que uma falsa gloria, ou talvez uma giéria verdadeira, reteve no curso de meio século nessas paragens dos freqtientadores dos boulevards de Paris, em que o renome se faz e se destaz com seu rufdo de trombeta: Grévin, Meilhac, Granval, © préprio Morny e os Goncourt, cem caras de bunda, com grotescos, cem ambiciosos, cem cantores, cem dan- carinos, cem escritores, cem folgazdes do mundo, com suas barbas, sous bigodes, suas sufcas e seus cabelos. ‘Tudo isso esbanjava fotografia e assinatura, E hé mes- ‘mo muita gente que s6 é eterna para as paredes daqui. ‘Mas alguns, que eram pobres, pagavam obarbeiro asua maneira: foi assim que um ou dois deram um pequeno Horace Vernet, creio, e que um tal Gustave Courbet, que tinha propésitos anarquistas, e que partfu um dia para o Cairo, saldou sua conta com um quadro de sua autoria, 16 adiante, a direita. Arrigoni, restaurante italiano, ocupa, em seguida ao saldio de Gélis-Gaubert, os ntimeros 25, 25, 27 € 29. Sabe- mos como sfio nese bairro os restaurantes italianos: comese muito bem nesse, mas a um prego bastante elevado; e o servico é um pouco empertigado, em relacdo a0 nivel dos pratos. No armeiro que Ihe faz. face, o estran- geiro que chega a Paris com a cabeca repleta de um mundo galante e gracioso, 0 estrangeiro que procura Montmartre e que bem freqiientemente deu tratos & bola em seu escrit6rio diante de uma fotografia do Moulinde- la-Galette, encontraré talvez um estranho alimento, pre- ferivel aos raviélis ¢ 20 minestrone, um alimento que nfo esperava para sua imaginagio voraz e langorosa: fuzis € suas culatras. Imagine que ele poder contemplar aqui ‘uma peca tinica: uma carabina raiada com um projétiLar- 124 ilo para a caga A baleial Nao serd ele surpreendide por ‘essas arapucas de espelhos para atrair cotovias? Por essas ‘armadilhas para lobo? Ele se perguntaré comoeu, ecomo cu nio saber responder, o que é esse aparelho insélito sobrepujado por um disco de borracha. Ter4 vontade de pegar nos chumbos arrumados nos armérios de acordo com seu miimero, sendo os ntimeros menores para os chumbos mais grossos. Admirard, sobre um alvo espe tado nas costas de uma velha lista telef6nica, essa inseri &o explicativa, acompanhada da bala nova deum lado, deformada de outro, edo buraco que elaé capaz de fazer Bssa bala arada uma lista telténica atravessa mals de mil piginas Bla se deforma om proporgies tae qe qualquer animal atngido 6 demubado imodiatamente, Bla pode ser usada ‘com um fuzil double-choke om qualquer tipo de pélvora, rmesino com a pélvora 7, DEFORMAGAO DA BALA ATIRADA NUMA LISTA TELEFONICA Enfim, o que ele acharé desse encantador recorte de propaganda representando um efo dizendo bom dia a.um outro cio, com essa inserigao: 125 BOM DIA, CARO AMIGO! Ja comeu seus biscoitos MOLASSINE? € esses comentarios: MOLASSINE font dogs & puppies Depois do armeiro vem o fornecedor de champanhe de S.AR,, 0 duque de Orleans. Ele poseul quatro vitrines, que seguiremos dos boulevards, no fundo da Passagem: a primeira contém Chianti, Lacrima Christ e Matvoisie, a segunda contéin Chianti, Lacrima Christi e Asti; a terceira contém aquecedores elétricos de cobre vermelho. A quar 4a, do outro lado da porta, contém apenas champanhe com as armas dos reis de Franca. Na vitrine dos aquece- dores, ha planos e desenhos de casas de campo situaclas em Domront-en-Champagne (no Sarthe), 2trés minutos da estagdo de trem, sobre a grande linha de Paris a Mans. Enfim um cartaz anuncia ao amador: UMA RARIDADE: CALVADOS 1893 Engarrafado APOS DEZOITO ANOS DE TONEL! Ai estamos no canto do segundo corredor, cuja extremidade da no fundo da galeria do Termémetro. 128 Esse Angulo, assim como também do outro lado do corredor o fundo da galeria, 6 ocupado por um ortopedis. ta especialista em hérnias quennfio tem artigos demais em suas lojas para tio heteréclito comércio. Ao lado do ven- dedor,de champanhe, observem como ele expde belas miios articuladas de madeira e outras de uma 56 peca. E bengalas, muletas, ventosas, bastonetes antf-enxaqueca. E depois, que alguém me explique esse crime passional, Guas mios cortadas numa bacia. Ataduras herniérias para todas as variedades de hérnias, simples ou duplas, com seu tampio sustentado por uma cinta metélica elas. tica, ataduras herniérias para adultes, ataduras hernia. rias para criangas, Na loja do fundo do corredor, todos ‘e552 elementos se encontram com muitos outros: meias elésticas, melas para varizes, cuecas, recipientes para aplicar injegdes, alguns decorados com flores, cintas para mulheres, rosas, vermelhas, brancas, de 3orracha, de seda, de linho ou algodio, irrigadores, clisoborbas, clis- teres, fumigadores, pipos de seringas, seringes, bolsas de gua quente, aparadores de madeira para aquecedores de ‘cama, bacias para banharos olhos, sondas e vidos de gra, ttubos de ensaio, etc, e um reclame para o Conservatorio Renée Maubel. Um cartaz trilingtie anuncia também: PRESERVATIVOS Contra diversas ENFERMIDADES HIGIENIC PRESERVATIVE Against various MALADIES 2 PRESERVATIFS Contre diverses maladies 17 Um curioso orgulho, um luxo insensato nos é re pentinamente revelado: ai esto as ataduras herniérias para os domingos. No nivel do disco compressor a arte intervém: sfo os motivos ornamentais ¢ até mesmo uma cabega de gladiador em ouro e prata, sobre fundo de cobre vermelho. O hernioso nao deve resistir ao prazer de mostrar de tempos em tempos essa jéia inti- ma e barbara, Um pequeno esqueleto de ouro, consti- tufdo unicamente por pecas que a indiistria humana pode substituir & obra divina sem destruir sua econo- mia, esté pendurado nesse bazar de esquisitices; ele & quase completo, esse gnomo metélico e brilhante, esse esquema de nés mesmos. B a seu lado, como modernizaram os deuses antigos: duas pequenas estatuetas pintadas, com a carne résea, os cabelos € 05 pelos negros, figuram Apolo ¢ Vulcano. Mas um no braco, outro na perna, aquele na cabeca, esse no ventre, eles sio completados por ataduras e pecas articuladas que arrematam os gestos classicos do Belve- dere e do Etna. Assim chegamos, portanto, a esse ponto extremo em que, orgulhoso de suas ilusdes, vaidoso como seu riso, 0 homem das mamas de granate no conhece mais limites para seus sentidos e seu espirito. Ele se substitui a eles eleva na extremidade de uma Passagen equivoca, no proprio né das correntes de ar, onde a fuga é favorecida pela sombra e pela arquitetu- ra, templos paradoxais para seus erros e enigmas. Aqui o homem finalmente se compraz com uma espécie de onicofagia intelectual: alimenta-se de uma iguaria arse- niosa que é sua prépria substancia e seu proprio vene- no. Que ele lance um tiltimo olhar sobre o corredor que ilumina mal a janela encardida que separa o especialis- ta de hérnias do engraxate, bem diante das duas esca- das das quais uma conduz ao bar do Teatro Moderno, um tiltimo olhar sobre a cozinha do restaurante Arrigo. ni que recebe a luminosidade da Passagem nesse mes. 18. mo Angulo e, mestre-escravo de suas vertigens, que ele 08 leve agora para o nimero 29 c, cuja porta, entre a cozinha ¢ a entrada do teatro, ornamenta-se de um lacénico apelo: MASSAGEM 2° andar Sombria escada, é vocé quem leva ao desabrochar do mundo. No segundo, a esquerda, lemos: MADAME JEHANE MAFSAGEM Abrem ao som da campainha. A sub-gerente loura © amarrotada apressa-nos a entrar. Sao dez francos e © que voc® quiser da mulherzinha. Atrevessada a ante-cdmara em que permanecem dois no maximo, vocé estuta ruidos de voz a direita, mas é 4 esquerda que o levam em direcdo a um desfiladeiro abscuro, atengdo, tem um degrau, e 14 estamos no quarto, Vamos, meninas. Vém apenas duas mulheres vesti- das, vocé escolhe a menor, uma loura, de cabelos cortados encaracolados, com um dente de auro bem visivel do lado, As outras somem, Bla simplesmente 129 abraca vocé e diz: Espere, vou tirar minha schapsha™ © j€ volto, e desaparece. O quarto é sujo, e daf? A cama, no meio, larga e baixa, mobilia quase inteiramente 0 aposento, onde alguns assentos pouco aprumedos, empoeirados, com suas velhas franjas, ainda podem servir de auxiliares para as partes acessbrias do deba- te. Hé uma lareira muito plana, com uma cobertura de veludo. Um cortinado atrés do canapé que fica entre a janela ea lareira, Entre ajenelaea cama, uma porta condenada que se fecha mal. Vé-se a luz por baixo dela, Pequenas estatuetas fora de moda, alguns quadros: dois, sobretudo, se impéem, acima da cama, no fundo do aposento. Sio duas gravuras, bastante castas pensando bem, sem dtivida dois suplementos do Soleil du Dimanehe, de hé muito tempo. Parecem feitas pelo mesmo autor. Uma representa um casal, num campo, que esté a direita em trajes romanticos, a Romeu e Julieta, e que parece experimentar algum langor bem natural: pois todo o campo, em que habi- tualmente borboletas executam grandes escorregade- las multicores, é agora perpassado por Cupidos ala. dos na maior desordem, uns no ar, outros dando cambalhotas na relva, outros maliciosos, que se ager- ram aos culotes do Jovem, muito reservado, ou cochi- cham aos ouvidos de sua bela. A segunda gravara, em preto como a precedente, representa uma alcova cujo cortinado esté negligentemente amarrotado, em que uma bela joven dorme sem acautelar-se com o lengol que escorregou — faz muito calor — e com um seio pudico que Jé se mostra e logo vai estar descoberto. Ela sonha. E so os mesmos amores que a visitam, como uma pé cheia de pélen, que fazem diabruras nas cortinas, no piso do quarto, ¢ até na sombra adoravel de seus cabelos desfeitos. Um segredo no comedimento dessas gravuras torna-as preferiveis para decorar esse lugar, por um instinto irrefletido, 130 em relacio a essas imagens licenciosas que encontra. mos nas paredes das casas de prego mais elevado, Uma espécie de espirito postico. Mas onde encontrei essa verdadeira poesia? Essa sensualidade conheci- da? Esse oficio? No instante em que seu rome me ven aos labios, penetro numa verdade fundamental: hoje a sombra de Théodore de Banville que reina em Paris sobre a mais baixa prostituigao. Sorte invejével para um poeta, antes de mais nada, ade ter assim legado a sua alma aos pequenos socadores clandesti- nos. Isso vale tanto quanto ter conseguido fazer os colegiais aprenderem um poema em que o louro fala na primeira pessoa. A porta se abre e, vestida somen- te com suas meias, a que eu escolhi avanga, dengosa Estou nu, ¢ ela ri porque vé que me agrada. Vern queridinho que eu lavo vocé. $é tenho agua fria, tudo bem? f assim, aqui. Encanto dos seios impuros puri- ficando meu sexo, ela tem seios pequenos e alegres, e jd sua boca se faz muito familiar. Agradavel vulge- ridade, o prepitcio se desdobra com seus cuidados, ¢ esses preparativos proporcionam um contentamento infantil. Acusam-me bastante naturalmente de exaltar a prostitui¢o e &té mesmo de favorecer seus camninhos, pois outorgam-me as vezes um curioso poder sobre 0 mundo. E ainda por cima suspeitam da idéia que, no fundo, eu poderia fazer do amor. Mas entio nio é preciso que eu tenha dessa paixio um gosto e um respeito tio grandes, que acredito tinicos, para que nenhuma repugnincia possa me deseartar de seus mais humildes, de seus menos dignos altares? Pois ndo seria desconhecer sua natureza o fato de consideréla incompativel com esse aviltamento, essa absolute ne gacdo da aventura que entretanto 6 uma aventura de mim mesmo, 0 homem que se lanea a 4gua, com essa rentincia a toda impostura, 0 que tem um sabor ine 181 briante para quem ama verdadeiramente? Denuncio aqui uma mentira, uma hipocrisia que aquele que uma vex tenha tido 0 espirito inteiramente possuide por uma mulher jamais deveria reforgar com seu consent: mento: serd que suas ligagées, suas aventuras tio tolas, ‘Wo banais, cujo andamento vocés nao pensam em in- ‘terromper nem mesmo quando uma vertigem maior se apodera de sua inquietude, seré que esses miseraveis expedientes com suas virtuosas tolices, o pudor ¢ 0 caréter de eternidade sio algo de diferente daquilo que encontro no bordel quando, tendo por uma parte do dia rodado pelas ruas com uma preocupacio crescente, conduzo-me enfim para a porta de minbe liberdade? Que as pessoas felizes me atirem a primeira pedra: elas niio tém necessidade dessa atmosfera em que me vejo mais jovem, em meio aos transtornos que incessante- mente despovoaram minha existéncia, com a lembran- ¢a dos hébitos antigos, cujos tragos, cujos rastos so ainda muito poderosos sobre meu coragio. O que pode me garantir que um homem, orgulhoso por ter conse- guido habituar-se a um s6 corpo, tenha esse prazer que eu encontro aqui de tempos em tempos, quando passei, por exemplo, diversos dias sem dinheiro € ap6s 0 paga- mento uma espécie de sentimento popular lance-me brutalmente em direcio as putas, o que pode me garan tir que um homem obtenha esse prazer por uma espé- cie de masturbacao? Minhas masturbagdes valem a dele. Ha nesse lugar uma atragdo que nao se define, que se experimenta: acredito falar uma lingua estrangeira se for preciso explicar a alguém o que me traz aqui, sem que ele tenha experimentado a mesma coisa, ou se para ele esse lugar ndo passa de algum musichall especial para vir em bando depois de beber e, curvandose a ‘uma lenda do Palais-Royai, para a farra. Ainda hoje no ésem uma emocdo colegial que atravesso as soleiras da excitabilidade particular. Nao concebo — a licenciosida- 152 de nao esta em meu coracéo — que se possa entrar de outra forma no bordel a nao ser sozinho, e grave, Persigo o grande desejo abstrato que as vezes se des- prende de algumas figuras que jamais amei. Um fervor se manifesta, Num instante sequer penso no lado social esses lugares: a expresso casa de tolerdncia no pode ser pronunciada seriamente. Ao contrario, ¢ nesses retiros que me sinto liberto de ume convengio: em plena anarquia como se diz em pleno sol. Oésis. Nada mais me serve, entiio, dessa linguagem, desses conhe- cimentos, e mesmo dessa educacio pelos quais me ensinaram a exercitarme no coragdo do mundo. Mira- gem ou espetho, um grande encantamento luz nessa sombra que se apdia nos batentes dos des:rocos com a pose cléssica da morte que acaba de deixar cair seu suddrio. O minha imagem de ossos, aqui estou: que tudo se decomponha enfim no paldcio das ilusées e do silencio. A mulher consagra-se inteiramente a minhas vontades, antecipase a elas e, despersonalizando re- pentinamente meus instintos, indica com simplicidade meu caralhoe me pede com simplicidade aquilo de que ela gosta, : ‘Tocaram a campanhia, Um outro visitante é intro- duzidoe nao perco uma palavra enquantoo levam para uum quarto vizinho, Brineadeiras pesadas, alustes 20 que ele vern fazer: é um freqtientador, sem dtivida. Ea mesma voz que tepete: Vamos, meninas. Como a luz sob a porta, 05 suspitos passam através do papelio das, paredes. Enquanto me visto, minha parceira, levantan- do 0 cortinade acima do canapé, investiga um vazio embaixo dele, Ela se perturba. Ah! Nao passa de um armario de parede. Essa frase é o bastante para desper- tar minhas suspeitas, Bem, talvez me tenham espiado: relembro velhas historias de voyeurs. Nao farei nada para descobrir. (0 28d 60 Teatro Moderno. Por essa escada estreita que contorna um guiché envidragado temos acesso 20 patamar do primeiro andar, cuja safda vimos sobre 0 corredor e, no mesmo nivel, ao escritério do diretor situado a direita do camarim, além de uma espécie de recepgiio em eujo fundo se encontram os gabinetes, mesquinhos e sujos. O bar, onde é preciso consumir algo, a maioria dos espectadores olha pobremente da entrada, £ um lugar alaranjado, onde se danga ao som. de um piano, com um cantinho para beber. Reencon- tramos ai as mulheres da peca e seus homens. O con- junto tingido pela esperanga insensata de encontrar 0 ‘americano ou ovelho extorquivel. Acreditariamos estar no interior da Alemanha: uma imitagéo deteriorada, sem decoragéo expressionista, do Scala de Berlim. Al guns degraus acima, entramos numa sale. Ser que 0 Teatro Moderno jamais teve sua época de lustro e grandeza? Vendo ai trinta espectadores nos dias de afluéncia, pomo-nos a pensar na sorte desses pequenos teatros, dos quais dizem com razio que sio verdadeiras caixas de bombons. Mocinhos de quinze anos, alguns homens balofos ¢ pessoas ao acaso de: zam por entre as poltronas mais distanciadas, que so as menos caras, enquanto alguns confeitos réseos, pro- fissionais ou atrizes de folga entre duas cenas, dissemi- nam-se nos lugares de vinte e cinco francos. As vezes, um vendedor de gado ou um portugués com risco de apoplexia se page a loucura de uma primeira fila, para ver a pele. Levaram aqui pecas bém desiguais: L’école des Garconnes, Ce coquin de Printemps e uma espécte de obra-prima, Fleur de Péché, que permanece come mode- 1o do género erético, espontaneamente lirico, que gos- tarfamos de ver meditada por todos os nossos estetas com o mal da vanguarda. Esse teatro que s6 tem por objetivo e por meio o proprio amor, é sem dtivida o ‘nico que nos apresent uma dramaturgia sem tru- 134 ques, verdadeiramente moderna. Podemos esperar ver dentro em breve os esnobes cansados do musichall e dos circos desviaremse de rumo, como gafanhotos, para esses teatros desprezados, onde a necessidade de fazer viver algumas mulheres ¢ seus proxenetas, e dois, ou trés michés"” magricelas, fez nascer uma arte tao primeva quanto a dos mistérios cristios da Idade Mé- dia, Uma arte que tem suas convengies e suas audécias, suas disciplinas e suas oposigdes. O assunto mais fre- qiientemente explorado segue mais ou menos esse €s- ‘doco: uma francesa roubada por um sultéo fica plante- da num harém até que um aviador em pane ou um, embaixador vé até 14 se divertir, atrapalhado em seus, amores pela paixo ridicula que ele inspiraa cozinheira ou a sultana mie, e tudo acaba da melhor forma posst- vel. Um pretexto qualquer, festa do harém, album de fotografias folhesdo cantando, é suficiente para fazer desfilar cinco ou seis mulheres nuas que representa as partes do mundo ou as ragas do império otomano. 0 grande poder de agio da comédia antiga, equivocos, disfarces, despeitos amorosos e até os menecmas,” niio sii esquecidos aqui. O proprio espirito do teatro primi tivo esté salvaguardado pela comunhfo natural entre a sala e a cena, devido ao desejo, ou a provocagao das mulheres, ou as conversas particulares que os risos grosseiros do auditério, seus comentérios, a troca de insultos das dangarinas com 0 pitblico indelicado, os encontros marcados estabelecem freqiientemente, jun tando um encanto espontaneo a um texto recitado de mangira monétona e geralmente desafinada, ou titu- beante, ou assoprado, ou simplesmonte lide de altima hora sem retoques. Alguns caracteres eonstantes for- mam 0 fundo bastante restrito da fauna dramética: uma espécie de megera, um lacaio tolo e robusto, um principe efeminado, um heréi saido de La vie Parisien- ne, uma fauna exética que tem amor ao senso tragico, 135 uma parisiense que tem a sua prética ¢ filosotia de acordo com o gosto do bowevard, mulheres nuas, uma ‘ou duas servas ou mensageiras. A moral é ado amor, 0 amor a preocupagiio tinica: os problemas sociais néo poderiam aflorar ai, a néo ser como pretexto de exibi- eo. Acompanhie nfo é paga e toma liberdade com seus papéis, vivendo de aventuras. E também é rude, como uma verdadeira companhia de artistas e suporta mal as brincadeiras ou a baderna. Nos entreatos os piadistas de mau gosto so chamados de lado pelos defensores naturais dos intérpretes: O que a coitada fez pré voce? Ela esta defendendo o seu pio de cada dia, ete. Nessa alhambra de putas termina enfim meu passeio ko pé dessas fontes, dessas confusdes morais, que sia marcadas ao mesmo tempo pela garra do leio e pelos dentes do rufio. No gesto a moda antiga da pequena escrava que se lembra da rue Aubryle-Boucher enquanto representa seu papel: Salve, senhoral e 0 coro canta Bo més de Venus £0 més mais belo (sacrilégio de falsas pérolas ¢ tangas bordadas de lante joules), condensa-se a renda érabe de pedras rosas em que nem o rosto humano nem os suspiros reencontram, © espelho ou 0 eco procurado. O espfrito cai na armadi- Tha dessas redes que o arrastam sem volta em diregio a0 desenlace de seu destino, o labirinto sem Minotauro, onde reaparece, transfigurado como a virgem, 0 erro com os dedios de rédium, essa minhe amante cantante, minha sombra patética. O filete que reveste seus cabe- Jos faz uma pesca magnifica de navalhas e estrelas. AS supersticgdes se erguem como martelos e caem como pedregulhos arremessados sobre as frontes incertas a0 longo das rotas mal iluminadas da noite. O que me importava tanto, minha pobre certeza, nessa grande 136 vertigem em que a consciéncia se sente um simples patamer dos abismos, no que se transformou ela? Eu niio pesso de um momento de uma queds eterna. O pé perdido nfo se reencontra jamais. Omundo moderno éo que convém a minha manei- ra de ser. Uma grande crise nasce, uma perturbacéo imensa que vai se distinguindo, O belo, obem, o justo, overdadeiro, o real... ¢ tantas outras palavras abstratas nesse mesmo instante vao banearrota. Seus contré- ios, se preferidos, logo se confundem com elas mes- mas. Uma Gnica matéria mental enfim reduzida no cadinho universal, apenas fatos ideais subsistem.O que me transpassa é um claro de mim mesmo. E foge. Nao poderei negligenciar nada, pois sou a passagem da sombra para aluz, sou ao mesmo tempo 0 ocidente ea aurora. Sou um limite, um traco, Que tudo se misture 20 vento, eis todas as palavras em minha boca. Eo que me cerca é um sulco, a onda aparente de um frisson. 487 O SENTIMENTO DA NATUREZA NO PARQUE BUTTES-CHAUMONT Ausschawende Idee"? Naqueles tempos magnificos e s6rdidos, preferindo quase sempre as preocupacdes do tempo as de meu ‘eoragao, eu vivia a0 acaso, em busca do acaso, que ere a tinica das divindades que soubera guardar seu pres- tigio. Ninguém tinha ainda instrufdo o processo ¢ al guns lhe restitufam um grande charme absurdo, coi fiando-the até o cuidado das decis6es intimas. Eu me rendia, portanto. Os dias corriam nessa espécie de acard girat6rio. Uma idéia de mim mesmo era tudo 0 que eu tinha em mente. Uma idéia que nascia suave mente, que ebria suavemente suas ramagens. Uma palavra esquecida, uma dria. Nés a sentimos ligada a totalidade de si mesmo e, como uma forma que busca, coutra com sua lanterna no meio de noite, e que voc® vé indo e vindo, tomamos a menor dobra do terreno por um homem, um arbusto ou algum pirilampo. Nessa calma e nessa inquietude alternadas que formavam, enti todo o meu céu, eu pensava, como outros pensam. do sono, que as religiGes so crises da personalidade, e 08 mitos, sonhos verdadeiros. Tinha lido num grosso livro aleméo a hist6ria desses devaneios, desses sedute- res erros. Acreditava que eles haviam perdido, acredi- tava ver que eles haviam pouco a pouco perdido seu poder eficaz nesse mundo que me rodeava e que me parecia prisioneiro dessas obsessdes inteiramente no vas e diferentes. Eu no reconhecia os deuses na rua, impregnado que estava de minha verdade precéria, 139 sem saber que toda verdade s6 me atinge no ponto om que cometi o erro, Eu nfo tinha compreendido que o mito € antes de tudo uma realidade, uma necessidade do espfrito, que ele € o caminho da consciéncia, sua esteira rolante. Eu aceitava sem exame essa crenga ‘comum segundo a qual ele é, ao menos por um instan- te, uma figura de linguagem, um meio de expresso; & ele eu preferia loucamente o pensamento abstrato felicitava-me por isso. O homem enfermo da logica: eu desconfiava das alucinagdes deificadas. Entretanto 0 que era essa necessidade que me ani- mava, essa tendéncia que eu me inclinava a seguir, esse desvio da distra¢do que me proporcionava entusiasmo? Eu experimentava a enorme fora de certos lugares, de diversos espetaculos em relagdo a mim, sem deseobrir © prinefpio de tal encantamento. Havia objetos usuais que, sem diivida alguma, participavam para mim do mistério, merguthavam-me no mistério. Amava essa embriaguez da qual eu tinha a prética, mas nfo o método. Buscava-a empiricamente com a esperanga guase sempre decepcionada de reencontréla, Lenta- mente vim a desejar conhecer a ligacdo de todos esses prazeres andnimos. Pareciame que a esséncia desses prazeres era inteiramente metatisica, que ela implicava uma espécie de gosto apaixonado pela revelagéo. Um objeto se transfigurava sob meus olhos, ele nfo tomava © aspecto alegérico nem 0 caréter do simbolo; ele me- nos manifestava uma idéia do que era essa prépria idéia, # assim ele se prolongava profundamente na massa do mundo. Eu experimentava vivamente a espe- ranga de tocar numa fechadura do universo: como se Ingiieta da fechadura fosse de repente deslizar, abrin- do @ porta, Parecia-me também que o tempo nio era estranho a esse sortilégio. E 0 tempo erescia, no sentido em que eu avangava a cada dia, ea cada dia 2umentava 0 império desses elementos, ainda dispares, sobre mi: 140 nha imagina¢io. Comecava a apreender que a natureza deste reino se alimentava de sua novidade, e que uma estrela mortal brilhava sobre seu porvir. Tais elemen- tos se mostravam para mim, portanto, como tiranos transitérios, de alguma forma agentes do acaso junto minha sensibilidade. A clareza veio enfim: eu tinha a vertigem do moderno. Essa palavra dissolve-se na boca no momento em que se forma. E assim é com todo 0 vocabulério da vida que no exprime estado, mas mudanea. Foime neces- sério convir com a insuficiéncia do pensamento puro para dar conta daquilo que me possufa. Como teria eu tirado 0 sentido do mistério do sentido da possibilidade logica? Entretanto tal era a via que eu seguia e cujo mapa nfio podia mais negligenciar e, nesses meandros, mil vezes surpreendido, comecei a adivinhar uma es- pécle de presenca que tudo me levava « chamar de divina. O que me impressionava na empreitada intelec- tual que me levava a esse ponto 6 que sua fonte estava unicamente nesse pensamento figurativo, pelo qual eu a desprezava. Lembro-me de uma cera em ebuligdo num cabeleireiro, de bragos cruzados diante de seios e de cabelos desfeitos umedecendo sua ondulacéo per- manente na agua de uma taca de cristal. Lembro-me de ume loja de peles. Lembro-me da mimica estranha do eletroscdpio de folhas de ouro. © cartolas! Vocés tive- yam para mim, durante toda uma semana, 0 negro aspecto de um ponto de interrogacdo, No limiar da emociio sensivel, um nada podia me induzir a pensar que em minha idéia limitativa e particular de cada coisa ha mais certeza do que na intuicio absoluta que tenho dela. Isso durou pouco tempo. Depois, sem ditfi- culdade desde entéo, pusme a descobrir o semblante do infinito sob as formas concretas que me escoltavam, andando ao longo das aléias da terra. 141 Solicitado dessa forma, por mim mesmo, aintegrar © infinito sob as aparéncias finitas do universo, eu tomava constantemente 0 hébito de recorrer a uma espécie de frisson que me assegurava a justeza dessa operagio incerta, Chegava a consideréJo como uma prova efetiva e inquietava-me com sua natureza, Disse, de outra forma, que eu a tomava por essencialmente metafisica. A ligacdo intima que eu descobria assim entre a atividade figurativa e a atividade metafisica de meu espfrito, em cem circunstancias que despertavarn a0 mesmo tempo em minha consciéncia, voltou-me em direcio & revisiio das criagdes miticas, que outrora eu condenara bastante sumariamente. Nao pode me esca- par por muito tempo que a propriedade de meu pensa- mento, a propriedade da evolugto de meu pensamento era um mecanismo em todos os pontos anélogo a gene se mitica e que, sem dtivida, eu nao pensava nada que nao determinasse imediatamente em meu espfrito a formagio de um deus, por mais efémero, por menos consciente que ele fosse. Pareceu-me que ohomem esta pleno de deuses como uma esponja imersa em pleno céu. Esses deuses vivem, atingem 0 apogeu de sua forga, depois morrem, deixando para outros deuses seus altares perfumados. Eles séo os préprios princi- pios de toda transformagao de tudo. Eles so a necessi- dade do movimento. Eu passeava, portanto, com em- briaguez, em meio a mil concrecdes divinas. Pusme a conceber uma mitologia em marcha. Ela merecia pro priamente o nome de mitologia moderna. Eu a imagi- nava com esse nome. 0 A lenda moderna tem seus inebriamentos ¢ sem dGvida sempre se acha alguém que cré mostrar sua 142 puerilidade, como a do Olimpo ou a da Eucaristia, Néo escutarei nem o ceticismo nem o medo da vulgaridade, Os sinais exteriores de um culto, a representagio figu- rada de suas divindades importam-me antes de tudo ¢ deixo para os habilidosos as interpretagoes de sutileza das mais belas hist6rias as quais 0 homem jé soube misturar 0 céu. Atravessarei esses campos enormes semeados de astros. Se percorro as planicies, vejo apenas orat6rios de. sertos, calvarios derrubados. A caminheda humana abandonou essas estagSes, que exigiam um ritmo com- pletamente diferente daquele que ela tem. Essas Vir- gens, as pregas de seus vestidos supunham um proces- so de reflexfo nao compativel com o princfpio de aceleracio que governa hoje a passagem. Diante de quem vai se deter portanto o pensamento contempora- neo, a0 longo dessas rotas em que perigos novos 0 limitam, diante de quem vai se humilhar a velocidade adquirida e 0 sentimento de sua fatalidade? Sao gran- des deuses vermelhos, grandes deuses amarelos, gran- des deuses verdes, fixados sobre a margem das pistas especulativas que o espirito empresta de um sentimen- to para outro, de uma idéia para sua conseqiiéncia, na corrida de sua realizacdo. Uma estranba estatudria pre side ao nascimento desses simulacros. Quase nunca os homens tinham se deleitado com um aspecto tio bar baro do destino e da forga, Os escultores sem nome que erigiram esses fantasmas metdlicos ignoravam dobrar se a.uma tradicio tao viva quanto a que trecou as igrejas, em cruz, Bsses fdolos tém entre si um parentesco que 0s torna temiveis, Surapintados de palavras ingleses e de palavras de criagdo nova, com um ttnico braco longo “e flexivel, uma cabeca luminosa ¢ sem rosto, 0 pé tinico © o ventre da roda cifrada, as bombas de gasolina tém as vezes 0 aspecto das divindades do Egito ou dos povoados antropéfagos que adoram somente a guerra. 143

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