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ANTONIO SAMPAIO CARAMELO. A “AUTONOMIA” DA CLAUSULA COMPROMISSORIA E A COMPETENCIA DA COMPETENCIA DO TRIBUNAL ARBITRAL Separata PROF. DOUTOR INOCENCIO GALVAO TELLES: 90 ANOS HOMENAGEM DA FACULDADE DE DIREITO DE LISBOA AT MRNINA — 2007 A “AUTONOMIA” DA CLAUSULA COMPROMISSORIA E A COMPETENCIA DA COMPETENCIA DO TRIBUNAL ARBITRAL ANTONIO SAMPAIO CARAMELO™ SuMARto: A) A “autonomia” da cldusula compromissoria. B) A com- peténcia da competéncia do tribunal arbitral. A) A “autonomia” da cl4usula compromisséria 1. A assergo de que a convencio de arbitragem que constitua cléu- sula de um contrato principal tem “autonomia” (é “aut6noma”) em relagio a este — assercéo que aparece frequentemente sob a veste de um principio que se afirma ser reconhecido pela maioria das legislagdes nacionais e pela quase totalidade das conveng6es internacionais em vigor sobre arbitragem comercial (ou, mais genericamente, sobre arbitragem voluntdria de direito privado) — é uma das ideias mais comummente sublinhadas na vasta litera- tura portuguesa e estrangeira dedicada a este meio de resolugao de litigios!. Com esta qualificacao dada a clausula compromisséria? pretende-se, na maioria das vezes, afirmar que a validade, eficdcia e a existéncia jurf- * Advogado. 1 Basta para tanto citar, entre muitos outros possiveis exemplos, duas obras de refe- xéncia sobre arbitragem internacional: uma, em lingua portuguesa, do Professor Luis DE LIMA PINHEIRO, “Arbitragem Internacional ~ a determinagéo do estatuto da arbitragem”, Almedina, Coimbra, 2005, pp. 119-122; outra, em lingua inglesa, de FoUCHARD, GAILLARD © GoLDMAN, “On International Commercial Arbitration”, Kluwer Law International, The Hague, 1999, pp, 195 e segs. 2 Veremos adiante que as questdes que neste estudo sero versadas principalmente a prop6sito de cléusula compromisséria, tém também pertinéncia relativamente ao com- promisso arbitral, 106 Anténio Sampaio Caramelo dica da clausula de um contrato que determine que sejam dirimidos por Arbitros os litigios que relativamente aquele possam futuramente suscitar- -se, nio dependem da (no so postas em causa pela) eventual invalidade, ineficdcia ou inexisténcia juridica do contrato em que tal cldusula se insira, de tal modo que nao sera por uma das suas partes ter arguido a existéncia de vicios ou a falta de eficdcia juridica daquele, que os arbitros deverao considerar-se impedidos de, com base na competéncia? que Ihe é conferida pela cldusula arbitral, se pronunciarem sobre todos os litigios que se situem dentro do perimetro tragado pela cldusula arbitral (que, em regra, compreende todos 0s litfgios respeitantes ao contrato principal). E certo que podem existir vicios comuns ao contrato e a cléusula compromiss6ria que determinem a invalidade ou a ineficdcia de ambos. Ser 0 caso, para citar apenas os exemplos mais frequentemente referidos na doutrina da especialidade, da falta de poderes de quem assinou 0 con- trato para representar a pessoa, singular ou colectiva, que deveria tornar- se parte do mesmo. Se 0 pretenso representado nao conferiu ao signatdrio poderes suficientes para celebragio do contrato, essa falta de poderes atinge também a cléusula compromisséria. Outro daqueles exemplos € 0 da ocorréncia de alguns (nao de todos) vicios da vontade que tornam necessariamente invdlidas todas as cléusulas do contrato, incluindo a cléu- sula compromiss6ria, como € 0 caso da coaccao fisica ou moral exercida sobre quem assinou tal contrato. Mas a expresstio “autonomia de convencio de arbitragem” é, por vezes, usada com outro significado. Nessa outra acepgdo, que se encon- tra principalmente na doutrina e na jurisprudéncia francesas, tal expres- sSo designa a alegada independéncia da convengao de arbitragem em relago todas as “leis ou direitos nacionais”, 0 que remete para um pro- blema inteiramente distinto do anteriormente mencionado — o da deter- minagdo das normas jurfdicas com base nas quais deve ser apreciada a 3 Ou “ jurisdigiio” ou “poder jurisdicional”; adiante tentaremos introduzir alguma preciso no uso destes termos frequentemente usados em sinonfmia. 4 Pelo contrério, no caso de erro essencial sobre qualidades da coisa que ¢ 0 objecto do contrato, a invalidade do contrato com fundamento nesse vicio nao atinge a cldusula compromissoria que deve ser considerada como vélida independentemente da sorte das outras cléusulas, a fim de que esta possa ser decidida mediante arbitrage, em conformidade com a vontade das partes. V., neste sentido, PIERRE MAYER, “Les Limi- tes de la Séparabilité de la Clause Compromissoire”, Revue de L’Arbitrage, 1998, n.° 2, pp. 360-361. A “autonomia’ da cléusula compromisséria 107 existéncia, validade e eficdcia da convengio de arbitragem>. Neste estudo nao cuidaremos, porém, deste segundo possivel significado da autonomia da convencfo de arbitragem, limitando a nossa atengdo ao teferido em primeiro lugar. 2. Vejamos o que sobre este tpico escreveu o Prof. Lima Pinheiro: “Quando a convengio de arbitragem constitui cléusula de um con- trato principal coloca-se a questo de saber se a validade e eficdcia da cléu- sula depende da validade e eficécia do contrato em que se integra. Esta questo tem muita importéncia prdtica uma vez que a compe- téncia do tribunal arbitral depende da validade da convencio de arbitra- gem. Se a validade da cldusula compromiss6ria dependesse da validade do contrato, bastaria que uma das partes invocasse a invalidade do contrato para justificar a intervengdo do tribunal estadual. Neste caso, o tribunal arbitral s6 seria competente se o tribunal estadual conclufsse pela validade do contrato. A fim de evitar este bloqueamento do processo arbitral os principais sistemas juridicos consagram a regra da autonomia da convengio de arbi- tragem,” Mas ser realmente a cléusula compromisséria “auténoma” em rela- go ao contrato em que esté inserida? Colocando a questo de modo ligei- ramente diferente, sera o conceito de “autonomia” o mais adequado para designar a separagfo que importa estabelecer entre os vicios que possam afectar a existéncia juridica, validade ou eficécia do contrato principal e a existéncia juridica, validade ou eficécia da cléusula arbitral que dele faca parte? Antecipando 0 que procuraremos demonstrar adiante, parece muito mais correcto falar de “separago” ou “separabilidade” da cléusula com- promiss6ria, acolhendo a terminologia mais frequentemente usada nas obras dos autores anglo-sax6nicos, a grande maioria dos quais, sem dei- xarem completamente de se referir 4 expressao “autonomy of the arbi- tration clause”, preferem tratar esta problematica sob o epigrafe da “se- 5 Sobre essa outra acepeio da “autonomia da convengio de arbitragem”, cfr. Fou- CHARD, GAILLARD, GOLDMAN, 0b. cit., pp. 197 € 218 e segs. © V. autor e obra citada, p. 119. 7 CRalc, PARK and PAULSSON, International Chamber of Commerce Arbitration, Oceana Publications, New York, 3.4 ed., 2000, pp. 48 a 52. 108 Anténio Sampaio Caramelo parability” ou “severability” da cléusula arbitral (ou da “doctrine of separability”)8. Esta ideia de separagdo entre 0 contrato principal e a cléusula arbitral nele inserida € levada ao extremo por alguns autores, como, por exemplo, o Juiz Stephen Schwebel, num célebre artigo? em que defendeu que “when the parties to an agreement containing an arbitration clause enter into that agreement, they conclude not one but two agreements, the arbitral twin of which survives any birth defect or acquired disability of the prin- cipal agreement’. Isto, a despeito de ambos os contratos estarem vertidos no mesmo documento!9, Com esta concep¢ao assente na ideia de que a clausula compromis- s6ria constitui um contrato separado, paralelo ao contrato principal, pro- curaram este e os demais autores!! que aderiram tal concepgdo conferir uma justificacao tedrica a referida doutrina da separabilidade. No entanto, como salientam ALAN REDFERN e MARTIN HUNTER, é manifesto que esta doutrina é, sob diversas formas, uma “conveniente e ® Assim, ALAN REDFERN and Martin HunTER with NIGEL BLACKABY and CoNs- TANTINE PARTASIDES, “Law and Pratice of International Commercial Arbitration” , ‘Thompson, Sweet & Maxwell, 4. ed., London, 2004, pp. 251-252, 9 “The Severability of the Arbitration Agreement” , International Arbitration: Three Salient Problems, Cambridge, 1987, pp. 1-60, em especial, p. 5. 1 Com decorre do transcrigao acima feita do seu estudo sobre este tema, para 0 Juiz Schwebel, a justificagto teorética do princfpio da separacao da clausula arbitral resi- diria na presumida intengao das partes que, dessa maneira, teriam querido atribuir a érbi- tros o julgamento de quaisquer litfgios que entre elas viessem a suscitar-se e se relacio- nassem com o contrato, incluindo os respeitantes & sua validade. Mas a esta justificagao pode retorquir-se, como observaram CRAIG, PARK and PAULSSON (in ob. cit., pp. 49-50), que, em vez. da presungao defendida por Schwebel, seré mais plausivel presumir que o que as partes quiseram foi criar um contrato valido, pelo que, se nio for esse 0 caso, desa- -Parece a base para se presumir seja 0 que for a respeito do que teria sido a vontade das artes, na hipétese de assim nfo ser. Assim, para estes autores, 0 excerto acima transcrito do Juiz, Schwebel no é de facto uma boa justificagio teorética para o principio da sepa- abilidade ou da autonomia da cléusula arbitral, mas simplesmente uma maneira de des- crever o resultado que se quer atingir, o que equivale a dizer que a verdadeira justificagao para o “principio da autonomia” é de cardcter pratico e nfo teorético. Neste ponto, a visio destes autores coincide com a que hoje prevalece na doutrina da especialidade, como se refere adiante neste estudo, 11. a indicagdo dos autores que aderiram este entendimento, no estudo de PIERRE Maver, “L’autonomie de l’arbitre international dans l’appréciation de sa propre compé- tence”, in Recueil des Cours de !' Académie de Droit International, The Hague, T. 217 (1989), p. 431, nota 157, A “autonomia” da cléusula compromisséria 109 pragmitica ficgdo”. Com efeito, tal doutrina possibilita nao s6 que a vali- dade da clausula arbitral nao dependa da validade do contrato como um todo, mas também que a cldusula arbitral, sobrevivendo a cessacaio do contrato principal, constitua o necessdrio acordo das partes para que os diferendos entre elas sejam dirimidos por arbitragem, fornecendo, por essa via, a base legal para a constitui¢ao do tribunal arbitral. Mas, se o tri- bunal arbitral decidir que tal cldusula nao é uma vdlida convengao de arbitragem, a base da autoridade ou competéncia daquele desaparece. Em boa verdade, se essa cldusula nao constitui uma conveng&o de arbi- tragem valida e eficaz, aquela competéncia nunca existiu. Contudo, por causa das suas 6bvias vantagens prdticas, esta doutrina é generalizada- mente aceite pelos regulamentos de arbitragem e pelas leis nacionais sobre esta matéria!2, Nao €, com efeito, necessrio, ir ao extremo de afirmar ou postular a dualidade dos acordos, conforme o preconizado por SCHWEBEL e pelos autores que partilham o seu modo de justificar a “separabilidade” da cléu- sula arbitral relativamente ao contrato em que se inclua, para se defender que 0 conceito (ou principio) da “separabilidade” (“separability” ou “seve~ rability”) da cléusula arbitral relativamente ao contrato principal € muito mais adequado do que o de “autonomia” para exprimir a ideia resumida no excerto da obra do Prof. LIMA PINHEIRO acima transcrito. E que nos propomos demonstrar a seguir. 3. O conceito de “autonomia”, na maioria dos sentidos em que fre- quentemente usado, nao se ajusta a relag&o que se estabelece entre a cléu- sula arbitral e 0 contrato em que se insere. Num daqueles sentidos, a clausula compromisséria que seja inserida num contrato nfo pode qualificar-se como autdénoma relativamente este, melhor lhe convindo a qualificagao de acessério!3 do contrato que alguns 1 V. A. REDFERN and M, HUNTER, 0b. cit., pp. 251. 3 Refere a doutrina civilista que os “acessdrios” a que se refere o artigo 582.°, n 1, do C.C,, determinando que se transmitem com o crédito cedido, “devem ser enten- didos em termos amplos, de forma a compreender varias situagdes juridicas que, de uma forma ou de outra, se encontram em conexio com o direito de crédito” (Luts pz MENEZES LaITA0, Cessdo de Créditos, Almedina, Coimbra, 2005, pp. 325). Segundo ANTUNES VARELA, “os acessérios seguem, em principio, o destino da coisa principal (acessorium sequitur principale), imprimem-lhe cardcter, robustecendo muitas vezes a sua consisténcia juridica, ¢ tal modo que sem eles, 0 crédito nao seria, em regra, o mesmo, perderia identi- dade” (Das Obrigacées em Geral, Almedina, Coimbra, Vol. II, 7.* ed., 1997, p. 323. 110 Anténio Sampaio Caramelo autores Ihe dao, visto que se transmite com aquele em caso de cessaio do mesmo contrato bem como em caso de cess&o de todos ou de alguns (ou de sub-rogacio nos) créditos dele emergentes. A cldusula arbitral!4 pode, na verdade, ser considerada como um dos “acess6rios” do crédito (v. artigo 582.°, n.° 1, do Cédigo Civil) ou de toda arelago contratual cedida, uma vez que de tal cléusula se pode prevalecer (e por ela fica vinculado) o cessiondrio de crédito ou da posigdo contratual cedida!5, Cedido 0 crédito, se surgir um litigio entre o cessiondrio e o cedido, que caiba no 4mbito das matérias delimitadas na cldusula compro- miss6ria constante do contrato de que aquele crédito fazia parte, nenhuma dtivida havera que esse litigio tera de ser dirimido por arbitragem e 0 mesmo se pode dizer em caso de cesso de posig&o contratual. Logo, pelo menos neste sentido, a clausula compromisséria nao € auténoma, antes € im “acessério” do contrato em que ela se integra ou um “acessério” do(s) crédito(s) que desse contrato emerge(m). Mas também noutra acepgao do termo “autonomia” repugnaré atri- buir tal qualificativo & clausula compromissé6ria!®, Diz-se, com efeito, que dois contratos ou acordos s4o “auténomos” quando, mesmo que constem de um tnico instrumento, sao independentes entre si, 0 que implica que a respectiva duraco possa sem inconveniente diferir, que a inexecug4o de um nfo influa sobre a eficécia do outro, que a nulidade de um nao afecte a validade do outro e, sobretudo, quando cada um constitua um todo auto-suficiente. Ora, nao € possivel ver na convengio de arbitragem um contrato “au- ténomo”, neste sentido do termo. A cl4usula compromisséria seria incon- cebivel na auséncia do resto do contrato, tal como o seria 0 compromisso arbitral na falta do litigio (tenha este ou n&o fonte contratual) a que diga respeito, visto que nao se pode prever o recurso A arbitragem in vacuo. A arbitragem prevista pela cléusula compromisséria tem por objecto os litigios (por vezes, certos litfgios) a que podem dar origem as outras cléu- sulas do contrato de que aquela faz parte, o que equivale a dizer que o 14 Q que se diz no texto vale igualmente para o compromisso arbitral, como melhor explicard adiante. '5 Cfr. ANTUNES VARELA, 0b. cit., p. 325, que qualifica expressamente 0 compro- misso arbitral com um “acessério” de crédito cedido, sendo que nenhuma raziio ha para se pensar que este autor no aceitasse estender tal qualificasao & cléusula compromisséria V. também, sobre a transmissao dos “acessérios” em caso de cessaio da posigao contratual © que consta da p. 405 da mesma obra deste autor. 16 Como salientam, entre outros, os autores citados na nota 18 infra. A “autonomia” da cldusula compromisséria ui objecto da cléusula compromiss6ria € constituido pelo resto do contrato!’. Logo, também neste sentido, a cléusula compromisséria no é “auté- noma”, mas antes acesséria!8, Em terceiro lugar, como salienta PIERRE MayER!9, a cléusula com- promisséria nfo é “auténoma”, porque ela constitui um elemento do regime contratual querido pelas partes, tendo por fungio fazer face a uma eventual inexecugao ou dificuldade de interpretago da relacdo contratual que aquelas entre si estabelecem, entrando assim a fazer parte do con- trato, a titulo que nao difere do qualquer outra estipulagdo que o integra. Ela é uma cléusula, entre outras, de um contrato tinico, tendo no seio deste ainda menos “autonomia” do que a maioria das restantes clausulas desse contrato. Sob este aspecto, essa cldusula pode ser comparada a cléusula atri- butiva de jurisdigao”0 e a cléusula de escolha da lei aplicdvel ao contrato (a professio juris prevista no artigo 41.°, n.° 1, do Cédigo Civil), que tam- bém nao tém “autonomia”, pois s6 adquirem sentido enquanto elementos do regime contratual querido pelas partes, em caso algum podendo tais clausulas existir por e para si préprias. Tal como nfo teria sentido uma cléusula de escolha de lei na auséncia de um contrato a que tal lei fosse aplicavel, mais sentido nao faria uma cldusula compromisséria a que fal- tasse a relagdo contratual principal cujo regime ela contribui para precisar (tal como as duas outras cl4usulas “nado auténomas” supra-referidas). Pelas razdes que se deixam expostas, ndo pode surpreender que, em estudo recente?!, PmeRRE Mayer tenha afirmado que a “a autonomia da cldusula compromiss6ria deve ser banida do debate”. 17 Do mesmo modo que 0 objecto do compromisso arbitral é 0 litigio (de fonte con- tratual ou nao) a que aquele respeita. 'S Cfr, Pierre Maver, “Les Limites de 1a Séparabilité de la Clause Compromis- soire”, Revue de L’Arbitrage, 1998, n.° 2, pp.360-361; SYLVAIN Bouté®, “La Clause Com- promissoire et le Droit Commun des Conventions”, Revue de I’Arbitrage, 2005, n.° 4, p. 925. Observa este tiltimo autor, citando 0 Dictionnaire Larousse, que "é acessorio 0 que se acrescenta, © que acompanha uma coisa principal, a qual se subordina ou inferior”. 19 No estudo citado na nota anterior. 2 Do mesmo modo que 0 compromisso arbitral pode ser assimilado 20 pacto atri- butivo de jurisdigéo (v. a 1.* parte do n.° 1 do artigo 99.° do C.P.C.), 21 “La «circulation» de conventions d’arbitrage”, Journal de Droit International, 2005, n.° 2, p. 254 112 Antonio Sampaio Caramelo 4. Se 0 conceito de “autonomia” nao é adequado para caracterizar arelagdo que se estabelece entre a cldusula arbitral e 0 contrato de que faz parte, o de “acessoriedade” também nao se lhe ajusta perfeitamente. A convengio de arbitragem nao é “acesséria” em relacao ao contrato a que se diz respeito, no sentido em que a lei afirma a “acessoriedade” da obrigagdo do fiador em relagéio a obrigagiio do fiador principal (artigo 627.° do Cédigo Civil), sendo sabido que uma das manifestagdes dessa acessoriedade é a que se traduz no facto de a fianga nao ser valida, se nao 0 for a obrigacao principal (artigo 632.°, n.° 1, do Cédigo Civil). Ora, jé acima salientémos que é principio consagrado na esmagadora maioria das legislagdes nacionais e convengées internacionais sobre arbi- tragem voluntéria, 0 de a invalidade do contrato principal nao acarretar a nulidade da cldusula arbitral nele inserida (artigo 21.°, n.° 2, da Lei de Arbitragem Voluntaria, adiante designada por “LAV”). Foi este principio que acima designamos por “separabilidade” da cléusula compromisséria relativamente ao contrato principal. Para evitar confuses com as varias acepgdes em que 0 termo “aces- soriedade” é usado nos varios direitos, nomeadamente no portugués, pro- pomos apelidar de “instrumentalidade” as varias facetas da subordinagao funcional da cléusula arbitral relativamente ao contrato de que faz parte (que foram evidenciadas no mimero anterior), termo esse que visa traduzir a ideia de que a cldusula compromisséria serve para dar a relago contra- tual uma determinada configuragao no plano dos seus eventuais desenvol- vimentos contenciosos, isto €, na vertente do direito de acco que é ine- rente a todo o direito material (artigo 2.°, n.° 2, do C.P.C.). “Separabilidade”’ e “instrumentalidade” sdo, pois, os conceitos a que preferimos recorrer para caracterizar o especffico modo de relacionamento que se estabelece entre a cldusula arbitral e o contrato principal em que se integra ¢ entre ela ¢ os varios direitos (nomeadamente, direitos de crédito) que desse contrato emergem. E esse especifico modo de relacionamento que importa agora anali- sar com maior profundidade, seguindo de perto a construgiio Proposta por PIERRE MAYER?2, 5. Vejamos 0 que se passa quando é transmitido — por cessaio, por sub-rogac4o ou por qualquer outro meio — 0 crédito emergente de um con- trato em que haja sido estipulada uma cl4usula compromisséria. 22 No estudo citado na nota anterior. A “autonomia” da eléusula compromisséria U3 Sustenta-se correntemente, quer na doutrina portuguesa quer na es- trangeira, que a cldusula compromisséria se transmite juntamente com o crédito transmitido, quando essa transmissao se opera por cessao de crédi- tos ou por sub-rogacao, porque a cléusula compromisséria constitui um “acessério” do crédito que é cedido ou € objecto de sub-rogagéo (no Ambito do direito portugués, por forga do disposto nos artigos 582.°, n.° 1, 2 594.° do Cédigo Civil)23. Mas, se bem se atentar, esta explicagdo nao pode satisfazer. Se a cléu- sula compromiss6ria se transmite ao cessiondrio do crédito por ser um “acess6rio” deste, isso pode justificar que ela seja oponivel por aquele ao devedor cedido ou por este Aquele. Mas fica por justificar 0 facto de a clau- sula compromiss6ria continuar a aproveitar a (e a vincular 0) cedente, no que toca as relagdes daquele com o cedido que porventura sobrevivam a cessao. Se se transmite como um “acess6rio” de crédito cedido, como se compreende que continue a integrar a esfera juridica do cedente, em tudo o que diga respeito as relagdes que ele ainda mantenha com o cedido? De igual modo se passam as coisas em caso de cesso de posi¢ao contratual: a clausula compromisséria transmite-se ao cessiondrio desta posic¢aio, mas continua a aproveitar ao (e a vincular 0) cedente nas relagdes que ainda mantenha com 0 cedido, apds a cessao. A explicagao que PIERRE MayEr24 propée para este fenémeno juri- dico, parece-nos muito convincente. Como acentua este autor, a cessiio do crédito que as parte acordam entre si tem por objecto apenas este e nao a cldusula compromisséria?5. Aconteceu, porém, que, com a inclus&o de uma clausula arbitral no con- trato de onde emergiu 0 crédito, tal inclusao produziu um efeito sobre esse crédito: ela configurou-o ou, mais exactamente, configurou 0 direito de 23 Y., além de ANTUNES VARELA, citado na nota 14 supra, RAGL VENTURA, “Con- vengio de Arbitragem”, Revista da Ordem dos Advogados, 1986, II, pp. 396-398; L. Lima PINHEIRO, ob. cit., p.121. No mesmo sentido, na doutrina estrangeira, v. VICENT CHULIA, Introduction al Derecho Mercantil, Tirant Lo Blanch, Valencia, 2004, p.189; FOUCHARD, GAILLARD, GoLpMaN, ob. cit., pp. 420-422 e 424-430 e segs.; J. F. POUDRET et S. BESSON, Droit Comparé de I’ Arbitrage International, Bruylant, L.G.D.J., Shulitess, Bruxelles, Paris, Zurich, 2002, pp. 258-267; Laurent AyNés, Anotation de Jurisprudence, Revue de L’Arbitrage, 2004, n.° 3, pp. 626-630, entre muitos outros autores que poderia citar-se a este respeito. 24 No estudo citado na nota 21 supra. 25 Como RaGL VENTURA jé fizera notar (v. ob. cit., p. 397). 14 Anténio Sampaio Caramelo acgao que é inerente ao crédito (como, de resto, a qualquer outro direito subjectivo material — cfr. 0 artigo 2.°, n.° 1, do CPC.). Na verdade, toda a relagaio juridica comporta uma dimens&o substan- tiva e uma dimensao processual, que normalmente nao sao separaveis, sendo concebidas como um todo pelas partes. E a dimensdo processual do direito ou da relacao em que este se integra que € configurada pela clau- sula arbitral, de modo que o direito de acg&o passe a s6 poder exercido por via de arbitragem. Dai resulta que cessionario e cedido ficam obrigados a submeter a arbitragem os litigios atinentes aos direitos materiais transmitidos, nao porque ambos tenham sido partes na anterior convencao de arbitragem (considerada como um acto juridico bilateral), mas porque sao partes na relagdo juridica configurada por tal convengio, relacao juridica essa que constitui o objecto da cessao?6, Esta construgo explica igualmente que, no caso de cessdo da posi- go contratual, a cléusula compromisséria aproveite ao (e vincule 0) ces- siondrio nas suas relagdes com o cedido, ao mesmo tempo que continua a aproveitar ao cedente nas relagdes que porventura continue a manter com. 0 cedido, apés a cesso do contrato. Também aqui a chave da explicagéio do fenémeno esta na inserg#o de uma cléusula compromisséria no con- trato, tendo como efeito configurar a dimensao processual dos direitos que integram aquele, isto é, configurar o direito de acg&o que é inerente a esses direitos, passando tal direito de acgdo a ter de ser exercido por via de arbitragem, em vez de o ser perante os tribunais estaduais, como acon- teceria se tal cléusula arbitral nao tivesse sido estipulada. O objecto dessa cléusula é, como acentuou Pierre Mayer no estudo anteriormente citado (v. n.° 3 supra), o de precisar 0 regime processual dos direitos substanti- vos emergentes do contrato. Por conseguinte, quer no caso de cessio de crédito (e de sub-rogagao) quer no caso de cessao de posic&o contratual, a clausula compromisséria aproveita e € oponivel aos novos titulares da relagaio cedida, ao mesmo tempo que continua a aproveitar e a vincular as partes originais de tal rela- go, na medida em que os direitos substantivos que tal cldéusula configu- rara na sua dimensdo processual nao tenham deixado de existir entre essas partes. 26 Explicago idéntica poe ser dada a0 caso de transmissio do crédito por sub- -rogagio. A “autonomia” da clausula compromiss6ria 115 6. Esta construgdo permite também explicar de um modo plena- mente satisfatério que, no caso de ter sido celebrado um compromisso arbitral a respeito de um determinado litigio, se uma das posigGes na rela- ¢&o juridica litigiosa contemplada nesse compromisso for cedida a outra pessoa, 0 mesmo passe a aproveitar e a ser oponivel aos actuais titulares da relacao jurfdica litigiosa, ndo obstante um deles nfo ter sido parte no dito compromisso. Seria incorrecto conceber tal factualidade com uma cessio de posi- co contratual (de natureza processual27) no compromisso arbitral, um vez que nenhum acordo teré normalmente existido entre o cedente e 0 cessio- nario da referida relacao litigiosa, tendo por objecto a cessao da posigao no compromisso arbitral, cessdo essa que, de resto, para ser eficaz, reque- reria 0 consentimento da parte cedida (artigo 424.°, n.° 1, do Cédigo Civil). Normalmente, 0 acordo das partes ter tido por objecto apenas a cessao da relagao litigiosa, mas uma vez que os direitos litigiosos inte- grantes de tal relagdo haviam sido configurados (na sua dimensio pro- cessual) pelo compromisso arbitral celebrado entre as partes iniciais da mesma, foi assim que eles foram transmitidos. Com efeito, também neste caso se pode afirmar, com todo o rigor, que a celebracio do compromisso arbitral configurou o direito de acco que constitui um acessério dos direitos substantivos integrantes da relago litigiosa supramencionada, de tal modo que esse direito de acgdo passou a s6 poder ser exercido mediante o recurso a arbitragem?8, 7. Contra a construgao proposta por PIERRE Mayer, n&o valeré invo- car 0 alegado intuitus personae da convencio de arbitragem, que impe- diria que a mesma pudesse ser oposta aquela parte que nao deu o seu expresso consentimento 4 mudanga de titular do outro pélo da relagao a que a convengao respeita. Importa comegar por observar que o problema, a existir, s6 se podera pér em relagdo a parte que for cedida na relagao material objecto da ces- sao. O cessiondrio, como é evidente, nenhuma objecg4o podera mover ao 27 Pois a convencao de arbitragem € um negécio jurfdico processual; é esse o enten- dimento largamente maioritério da doutrina. V., nesse sentido, entre muitos outros, José Lepre DE FREITAS, “Algumas implicacdes da natureza da convengio de arbitragem”, Estu- dos em Homenagem @ Professora Doutora Isabel Magalhdes Colago, Il Vol., Almedina, 2002, pp. 625-641, em especial, pp. 627-628; PERRE Mayer, ob.cit., p.254 2 Cfr. PIERRE MayER, 06. cit., p. 255. 116 Anténio Sampaio Caramelo facto de o direito por ele adquirido, configurado como veio (na sua dimen- sdo processual) pela cl4usula arbitral inserida no contrato de onde aquele emergiu, o obrigar a fazer dirimir por arbitragem os litigios que no ambito das matérias definidas pela dita cléusula se suscitam entre ele e 0 cedido, pois que, quanto a ele, poderd sempre responder-se como fez o Supremo Tribunal da Suécia, no Acérdao Emja, de 1997: “Se 0 adquirente nao con- corda com a cldusula de arbitragem, ele pode sempre recusar adquirir os direitos do cedente”?®. Quanto ao cedido, & eventual objeccao provinda deste, de que néo dera o seu consentimento A transmissao da posigao na convengao de arbi- tragem para 0 cessiondrio ¢ de que fora devido a sua particular relacdo pes- soal com 0 cedente (intuitus personae) que ele aceitara o recurso & arbi- tragem como meio de resolugao de litigios eventualmente decorrentes do contrato celebrado, caberd responder que este pretenso intuitus personae no tem qualquer suporte na normal realidade de tréfico juridico. Como nota PIERRE Mayr, uma instAncia arbitral nao é uma situagdo que requeira um maior confianga miitua do que a situacdo juridica subs- tantiva que ela acompanha, constitufda por obrigagdes de fazer, de entre- gar ou de construir, etc. Além disso, o entendimento ora em apreciacao implicaria um agravamento destazoavel da posigio do cessiondrio do direito substantivo, pois que assim ele, apesar de ter aceite tal cessio com todas as suas implicagGes, nunca saberia de antemiio se a configuragao da dimensao processual desse direito pela cldusula arbitral seria ou niio apli- cavel, pelo facto de o cedido poder vir alegar que, quando celebrara o con- trato de onde emergiu o direito cedido, tivera exclusivamente em mente a hipGtese de, caso tivesse de se recorrer A arbitragem, esta vir a desenrolar- -se entre ele (cedido) e o cedente. Nao parece razodvel subscrever um tal entendimento, agravando assim, sem justificagdo valida, a posig&o do cessiondrio. A posigéo que melhor corresponde a uma justa ponderacao dos interesses em presenga é, pelo contrrio, a de impor & parte de um contrato em que se preveja o recurso a arbitragem para a resolugio de futuros litigios dele emergentes, que nele faga consignar que a aceitacao do recurso & arbitragem s6 valer4 para as relagdes entre as partes originérias do contrato, caso ela entenda que é em atengéo sua particular relaco pessoal com a contraparte ori- gindria que aceita tal modo de resolugao de litigios, deixando aberto o % Citado em PERRE MAYER, 0b. cit., pig. 236. A “autonomia” da clausula compromisséria 17 recurso aos tribunais estaduais para os litigios que suscitem com quais- quer transmissérios dos direitos emergentes desse contrato. Admitindo-se, como deve admitir-se, a possibilidade de uma tal estipulagdo, temos de convir que a sua verificagio ser4 muito improvavel30. 8. Face a entendimento proposto por PIERRE MAYER, a que aderimos, evidente se torna que, se nao houver transmissiio de um direito ou conjunto de direitos subjectivos materiais (de fonte contratual ou outra), mas sim novacio de uma relaciio juridica, o direito de acco configurado mediante a insergao da cléusula compromisséria no contrato de onde emergiram esse ou esses direitos também nfo se transfere. Essa novagao pode ser subjectiva ou objectiva, isto é, envolver a constituigéo entre novos sujeitos de uma relag&o obrigacional idéntica a primeira, extinguindo-se do mesmo passo a primeira obrigagiio, ou envolver a extingao de uma obrigagio e criagdo de uma nova relagao obri- gacional entre os mesmos sujeitos. Em ambos os casos, extinguem-se 0s direitos que anteriormente haviam sido “configurados” através da inser¢fio de uma cldusula arbitral no respectivo contrato, surgindo no lugar deles novos direitos, j4 sem tal configuragao. Nenhum fundamento haverd, portanto, para que eventualmente se pretenda opor ent&o a anterior cléusula arbitral aos sujeitos da relagao obrigacional criada ex novo3!. B) A competéncia da competéncia do tribunal arbitral 9. Estreitamente relacionado com o princfpio ou doutrina da “auto- nomia” (que pelas razées atrés expostas, preferimos designar por “separa- bilidade”) da cléusula arbitral, encontra-se o princfpio da “competéncia da competéncia do tribunal arbitral” (também designado por “kompetenz- -kompetenz’3?, ou “competence-competence” ou “compétence-compé- tence”). 20 Preere Maver, ob. cit., pp. 256-257. 31 Cfr, PIERRE MAYER, 0b. cit., p. 257; SYLVAIN BOLLEE, ob. cit., p. 923. 3 FOUCHARD, GAILLARD, GOLDMAN (ob. cit., pp. 396-397) chamam a atengio para a inadequagdo da expresso kompetenz-kompetenz, nao obstante o seu uso muito difundido, para designar a competéncia da competéncia do tribunal arbitral, no sentido que ela assume na generalidade das leis nacionais e convengGes internacionais sobre arbitragem comercial, Isto, porque tal expresso, na doutrina alema, tem o significado de atribuir aos arbitros 0 118 Anténio Sampaio Caramelo 9.1. A doutrina costuma distinguir na andlise deste principio um efeito positivo e um efeito negativo. O efeito positivo do principio da com- peténcia da competéncia do tribunal arbitral consiste em habilitar este a decidir sobre a sua propria competéncia; neste sentido, o principio é aco- Ihido pela generalidade das leis nacionais e convengGes internacionais sobre arbitragem comercial. O efeito negativo do sobredito principio tra- duz-se em permitir aos drbitros serem, nao os tinicos juizes (0 que nao € aceite em lado nenhum), mas os primeiros juizes da sua competéncia; por outras palavras, de acordo com este efeito do princfpio em anilise, © tribunal estadual s6 pode apreciar a competéncia do tribunal arbitral depois de este se ter sobre ela pronunciado, podendo fazé-lo por via de impugnagiio da decisio interlocutéria sobre a competéncia ou da decisio sobre o fundo da causa ou em sede de oposigao a execugao desta sentenga. Este tltimo efeito do princfpio da competéncia da competéncia do tribunal arbitral, tanto quanto sabemos, sé foi consagrado no direito francés, na Convengao de Europeia sobre Arbitragem Comercial Internacional, assi- nada em Genebra, em 26 de Abril de 1961 (de que Portugal nao é parte), e no direito portugués (LAY, artigos 21.°, n.° 4, € 27.°, n.° 3)33, 9.2, Embora os principios da “autonomia” da clausula arbitral e da “competéncia da competéncia do tribunal arbitral estejam estreitamente interrelacionados, eles devem ser rigorosamente distinguidos, pois nao é idéntico 0 seu contetido. Enquanto o principio da autonomia ou separabilidade da cléusula arbitral é um principio de direito substantivo, o principio da competéncia da competéncia do tribunal arbitral tem essencialmente uma dimensio processual34, Como observam PoUDRET et BESSON (citando PIETER SANDERS)?5, se as sortes do contrato e da clausula arbitral nao fossem distintas, o Arbitro, poder de proferirem uma decisio final sobre a sua competéncia, sem haver lugar & subse- quente revisdo da mesma por um qualquer tribunal estadual. Ora, entendido deste modo, tal principio € rejeitado na Alemanha, tal como em qualquer outro pais, sendo rarissimos 08 autores que defenderam a adopeio dessa solugio de jure constituendo, Dat que Fou- CHARD, GAILLARD, GOLDMAN — seguidos, neste ponto, por JEAN-FRANCOIS POUDRET et S#BASTIEN BESSON, ob. cit., p.407 —recomendem o abandono de tal expresso, propondo que, em vez dela, se use a expresstio inglesa competence-competence”. 33 Cfr. FOUCHARD, GAILLARD, GOLDMAN, 0b. cit., p. 401; POUDRET et Besson, ob. cit, pp. 406-415; ¢ L. Lima PInnERRo, ob. cit., pp. 134-135 34 CratG, PARK, PAULSON, ob. cit., pp. 48-49. 35 PoUDRET et BESSON, 0b. cit., pp. 135-136. A “autonomia” da cléusula compromisséria 119 ao admitir a nulidade do contrato principal deveria, do mesmo passo, negar a sua prépria competéncia, de tal modo que nao poderia decidir sobre o fundo da causa e declarar a nulidade assim constatada. Chegar-se- -ia assim a um impasse que sé poderia ser resolvido mediante a instau- ragéo um novo processo perante o juiz estadual. Por outras palavras, a autonomia (ou separabilidade) significa que, se 0 4rbitro constatar que 0 contrato principal é invalido, ele nao perde por esse facto a sua competén- cia. A competéncia da competéncia do drbitro pode ser considerada como o instrumento processual do principio de autonomia (ou separabilidade) da cl4usula arbitral, que o habilita a decidir, ele préprio, sobre a nulidade do contracto principal. Para CRAIG, PARK, PAULSsoN®6, a doutrina da separabilidade permite aos rbitros invalidar o contrato principal (por exemplo, por ser ilegal ou por ter havido fraude na sua celebragao), sem o risco de que a sua decisio ponha em questo a validade da clausula arbitral da qual deriva a sua com- peténcia. Por outras palavras, a doutrina da separabilidade da aos arbitros instrumento com 0 qual exercero a sua fungao, examinando a totalidade do acordo das partes. Além disso, a separabilidade requer que os tribunais estaduais, quando tiverem de decidir sobre se a arbitragem deve ou nio prosseguir, examinem apenas a validade da conveng&o de arbitragem. A separabilidade, contudo, nada diz sobre a validade da prépria cléusula arbitral ou por quem ela deve ser determinada. O facto de uma clausula arbitral poder ser valida, no obstante os vicios existentes noutras estipu- Jagdes do contrato, nao significa que ela seja necessariamente valida nem que uma decisio errada dos arbitros sobre a validade da clausula arbitral escape ao escrutinio judicial. Por seu turno, o princfpio da “competence-competence” permite aos Arbitros examinar a causa da arguida invalidade ou ineficdcia nao sé do contrato principal mas da propria cldusula arbitral (embora se sujeitem porventura a uma subsequente impugnacao judicial), No entanto, s6 por forca do principio “competence-competence”, sem a “doutrina-irma” da separabilidade, os arbitros nao poderiam declarar o contrato principal invalido por ilegalidade, sem com isso fazerem ruir a sua jurisdigo para 0 fazer37. 36 V. ob. cit., p. 515-516. 37 Noutro passo da sua citada obra, (0b. cit., p. 49), CRAIG, PARK, PAULSON anotam que, “num sistema juridico que nfo aceitasse 0 principio da “competence-competence”, ‘mas aceitasse o principio da autonomia da cléusula arbitral, a arguico da nulidade de todo 120 Antonio Sampaio Caramelo Salientam os mesmos autores?8 que “separabilidade” e “competence- competence” apenas se intersectam no sentido de que os rbitros que decidem sobre a sua jurisdi¢ao olham sé para a cléusula arbitral e no para a totalidade do contrato. Também FOUCHARD, GAILLARD, GOLDMAN?9 chamam a atengo para 0 facto de os principios da autonomia da cléusula arbitral e da “compe- tence-competence”, apesat de estarem estreitamente ligados e de terem um objectivo comum, sé parcialmente se sobreporem. Em alguns aspectos, 0 alcance do principio da autonomia estende-se para além do da regra da “competence-competence”. Esta permite aos Arbitros examinarem a sua prépria jurisdig&o. Se acharem que o contrato principal é ineficaz, s6 com o principio da “competence-competence” nao teriam outra op¢ao senio declinar a jurisdigdo. Contudo, o principio da autonomia habilita os drbitros a declararem o contrato principal ineficaz, sem concluirem necessariamente que a cl4usula arbitral € igualmente ineficaz e, consequentemente, declinarem a jurisdig&o. Dito de outro modo, a decisiio dos frbitros de reterem a jurisdigao e declararem depois invalido ou ineficaz o contrato litigioso deve ser fundada no principio da autono- mia e ndo apenas na regra da “competence-competence” . Noutros aspectos, salientam os mesmos autores‘, a regra da “com- petence-competence” vai muito mais longe que o principio da autonomia. O principio da autonomia n&o pode servir para basear a jurisdicio dos arbitros perante um ataque directamente dirigido a (validade ou eficdcia da) cléusula arbitral ¢ n&o ao contrato principal. Numa tal situagfio é que se tornam claras as vantagens da regra da “competence-competence”. Como referem CRAIG, PARK, PAULSSON, a organizacdo interna de algumas leis de arbitragem pée a “separabilidade” e “competence-compe- tence” no mesmo artigo, enquanto que outras leis esto organizadas de forma a separar as duas doutrinas. E este o caso da nossa LAV que, no © contrato no poderia ser apreciado em arbitragem, porque, sendo todo 0 contrato nulo, aquela questo teria de ser decidida pelo juiz, mas este tiltimo enviaria o assunto para a arbitragem, caso se mostrasse que a cléusula arbitral aut6noma nao fora, ela propria, afec- tada pela invalidade do contrato, Pela mesma ordem de ideias, os arbitros que aplicassem © usual principio da “competence-competence” teriam de se declarar eles préprios sem jurisdigao, se achassem que o contrato principal era nulo e se a lei aplicavel, ao contrério do que usualmente acontece, nao reconhecesse o prinejpio da autonomia, 38 V. ob. cit., p. 516. %® V. ob. cit, p. 214-215. 40 V. ob. cit., p. 214, A “autonomia” da cldusula compromi 121 n.° 1 do seu artigo 21.°, estabelece o principio da competéncia da compe- téncia do tribunal arbitral, enquanto a separabilidade da clausula arbitral vem consagrada no n.° 2 do mesmo artigo. 10. Explicada como ficou a estreita ligagdo entre o principio de sepa- rabilidade da cldusula arbitral e 0 da competéncia da competéncia do tri- bunal arbitral, procuraremos agora examinar, mais de perto, o significado ¢ alcance do segundo destes princfpios, apés 0 que tentaremos identificar 0 seu fundamento. Todos os tribunais*! tem competéncia para apreciar a sua compe- téncia*? para decidirem sobre o fundo das causas que lhe hajam sido sub- metidas. Os tribunais arbitrais também tém competéncia para decidirem sobre a sua propria competéncia, mas a sua “competéncia da competéncia” nfo pode ter o mesmo fundamento que aquela que assiste aos tribunais esta- duais, assim como a deciso que sobre essa questo prévia o tribunal arbi- 41 Tal como, em geral, todos os érgios de soberania. Sobre as origens de expresso “competéncia da competéncia” e sobre o seu entendimento deste conceito, no inicio da sua adopgio, como elemento definidor do conceito de soberania, v. MiGuEL GALVAO TELES — “Legitimidade e Legitimagao da Justiga Constitucional” — Actas do Coléquio no 10.° Ani- versdrio do Tribunal Constitucional — Lisboa, 28 e 29 de Maio de 1993, Coimbra Editora, 1995, pp. 105-107. Ou melhor, “jurisdigao”, se se seguir o ensinamento da doutrina do proceso civil. Segundo o Professor ANTUNES VARELA (Manual de Processo Civil, 2.* ed., Coim- bra, 1985, p. 196), “na linguagem técnico-juridica, distingue-se para determinados efei- tos, entre a competéncia e a jurisdi¢do. Em bom rigor, a jurisdigdo designa o poder (de julgar) genericamente atribuido, dentro da organizagao do Estado, a0 conjunto dos tri- bunais, (artigo 202.° da Constituigao da Repiblica)”, ou seja, “o poder (de julgar) glo- balmente reconhecido aos tribunais em confronto com os demais érgios do Estado”. Para este autor, “a competéncia refere, por seu tumo, o poder resultante do fraccionamento do poder jurisdicional entre os diferentes tribunais”. Distingdo conceptual substancialmente idéntica foi adoptada pelo Professor JoAo DE CASTRO MENDES, para quem “a jurisdi¢ao 6 a fungo do Estado, desempenhada pelos tribunais ~ ou 0 correspondente poder destes ~ de compor os litigios, impondo a aceitagdo da hierarquizagio dos respectivos interesses @ vencendo para isso toda a resistencia”, enquanto que a “competéncia 6 a medida da juris- digo atribufda a cada tribunal” — Direito Processual Civil, Ligdes 1986-1987, AAFDL, vol. I, pp. 116-123 e 344-348. No presente texto, seguindo a orientagao generalizadamente adoptada na literatura sobre a arbitragem comercial intemacional, usaremos os termos jurisdigdo e competéncia em sinon{mia. Cfr., entre muitos outros autores, FOUCHARD, GAILLARD, GOLDMAN ~ ob. cit., pp. 394-397, ¢ REDFERN and HUNTER, 9b. cit., pp. 248-255. 122 Anténio Sampaio Caramelo tral profira nao tem o mesmo significado, autoridade e forga vinculativa que tém as decisdes emitidas pelos tribunais estaduais sobre a sua propria competéncia. 10.1. Como realgou PizrRE MAYER, no curso que proferiu, em 1989, na Academia de Direito Internacional‘, nas arbitragens de direito privado, internas ou internacionais*4, nem o poder de julgar do 4rbitro (competén- cia para decidir sobre o fundo da causa) nem poder de ele decidir se tem ou nao competéncia para tanto (competéncia da competéncia) podem ser consideradas como um aspecto da soberania, ao contrério do que acontece com os correspondentes poderes dos tribunais estaduais que (estes sim, no aquele) so 6rgdos de soberania. O fenémeno da arbitragem revela, alias, que o poder de julgar (poder jurisdicional) nfo é necessariamente um aspecto de soberania. O que é reservado ao Estado (rectius, aos seus tribunais) é 0 poder de proferir jul- gamentos que tenham, de modo incontrolado (por outras entidades), forga executéria. Se se entender que o “poder jurisdicional” consiste, pura e sim- plesmente, no facto de se estar habilitado a pronunciar uma deciséo que pée termo a um litigio, pode-se afirmar que.o Arbitro tem tal poder. Mas a decisées proferidas pelo arbitro sé adquirem cardcter obri- gatério (autoridade de caso julgado e exequibilidade), na medida em que isso Ihes seja reconhecido pela(s) ordem(s) juridica(s) do Estado(s) que tenha(m) uma ligacdo significativa com a arbitragem em que tais decisdes hajam sido proferidas. Com efeito, mesmo os autores que defendem, relativamente as ar- bitragens internacionais, a tese da (relativa) “autonomia” (perante as directrizes dos ordenamentos jurfdicos estaduais) do poder de julgar dos Arbitros, aceitam que “a competéncia jurisdicional destes assenta prin- cipalmente no reconhecimento estadual: depende das ordens juridicas estaduais a relevancia da convengio de arbitragem perante os tribunais estaduais (designadamente como excep¢ao processual); a efectivagaio de decises processuais por meios coercivos, 0 efeito do caso julgado da deci- sao arbitral perante os tribunais estaduais e a execucdo forgada de decisao judicial”*5, 43 V. a obra citada na nota 11 supra. 4% Sobre o modo como esta questo se poderd equacionar nas arbitragens de direito internacional piblico, v. o estudo de MiueL GaLvAo Tees, citado na nota 41, pp. 104-110. 45 Cf, L, LIMA PINHEIRO, 0b. cit., p. 465. A “autonomia” da cléusula compromisséria 123 E porque esto sujeitos ao controlo (que, mesmo que nao seja efecti- vamente exercido, se mantém como possibilidade e como tal desempenha um papel eficaz) dos tribunais do Estado no ambito de cuja ordem juridica foram proferidas (no caso das arbitragens domésticas) ou dos Estados com 0s quais a arbitragem a que respeitam tenha uma ligaciio significativa (nas arbitragens internacionais)*°, que as decisdes dos Arbitros tém cardcter obrigat6rio e susceptibilidade de execugao por meios coercivos, que lhes sGo generalizadamente reconhecidos pelos ordenamentos juridicos da grande maioria dos Estados (nomeadamente dos mais de 130 Estados que ratificaram ou aderiram 4 Convengiio de Nova Iorque de 1958, sobre o Reconhecimento e a Execugao de Sentengas Arbitrais Estrangeiras). 10.2. Por outro lado, é inegavel que a competéncia da competéncia dos arbitros tem um significado e obedece a pressupostos diferentes da dos tribunais estaduais. Como sublinhou PIERRE MayEr‘?, ao contrério dos juizes dos tribu- nais estaduais que gozam de uma investidura “subjectiva” e permanente (poder de decidir sobre a sua competéncia em relagéio a qualquer litigio que lhe seja submetido), a competéncia da competéncia do drbitro depende de trés condigées: (i) em primeiro lugar, € preciso que uma convengio celebrada entre as partes tenha validamente previsto a arbitragem para esse preciso litigio ou para uma categoria de litigios 4 qual ele pertence; (ii) é necessério, depois, que uma das partes (ou ambas conjuntamente) requeira ao rbitro a instauragao de um processo arbitral, segundo as formas e nos prazos previstos pela lei e pela convencao; (iii) e € preciso, por tiltimo, que a designaco do rbitro (ou a constituigéo do tribunal) tenha sido feita regularmente. Dai que, antes de um 4rbitro ter sido designado e de, mais ou menos ao mesmo tempo, ter sido perante ele deduzido um pedido, s6 se possa falar de competéncia‘8 do arbitro para exprimir o facto de um litigio entrar 46 Estados esses que so nfo s6 aquele em que se situe a “sede” de arbitragem mas também aquele(s) em que se viré a requerer o reconhecimento e/ou execugo da sentenga arbitral. 47 V. 0 estudo referido na nota 11 supra, pp. 329-331, citando MoTULsKy. 48 Como recorda PIERRE MAYER, poderd usar-se a nogao da “competéncia” a prop6- sito dos drbitros, se se atender a que a “ideia-chave” que essa nogo encerra € a de reparti- io: a funcdo das regras de competéncia é a de repartir poderes entre varias pessoas, pelo que perguntar se um drbitro 6 competente equivale a perguntar se é a justiga arbitral ou & justiga estadual que um determinado litigio deve ser submetido, 124 Anténio Sampaio Caramelo na categoria daqueles que as partes validamente convencionaram que seriam submetidos a arbitragem; ou seja, para traduzir a virtualidade de que um tal arbitro conhega de um pedido cuja declaragiio se encare, mas que ainda nao se formalizou. Feitas estas clarificagdes preliminares, aderimos 4 tese sustentada por Pierre Mayer, de que a “competéncia da competéncia do drbitro” nao é afinal mais do que o poder — que Ihe é reconhecido pela generalidade das legislagdes nacionais ou convengées internacionais sobre a arbi- tragem comercial (ou arbitragem voluntéria) — de declarar infundada a contestagao que haja sido deduzida & sua competéncia, para dai tirar a consequéncia de que pode e deve proferir uma sentenga sobre o fundo da causa“, Por outras palavras, a chamada “competéncia da competéncia de rbitro” traduz simplesmente a auséncia da obrigagao para o 4rbitro sus- pender (ou o poder de n&o suspender)®° a decisdo sobre 0 fundo da causa, quando uma das partes alegue que ele nao é competente, ficando assim a verificagéo dessa competéncia remetida para uma eventual inst4ncia perante a jurisdigdo estadual. Trata-se aqui, note-se, néo de um poder con- ferido ao Arbitro pelas partes, mas de uma permissio legal de nao suspen- sao da instAncia arbitral. 10.3. Esta permissdo consignada nas legislagdes nacionais ou con- vengées internacionais sobre a arbitragem comercial baseia-se, como PIERRE MAYER bem realgou, principalmente em raz6es de cardcter prag- mitico, dispensando 0 recurso a justificagdes de natureza teorética ou concepgées impregnadas de ideologia (como as que, visando acentuar a autonomia da posicdo do drbitro internacional, maximizando a import4n- cia do seu papel em relagao ao juiz estadual, faz daquele o juiz normal da sua competéncia)5! Tais raz6es de cardcter pragmatico radicam, em primeiro lugar, no prop6sito de impedir ou desencorajar actuagées dilatérias das partes que tivessem interesse em suster 0 desenrolar do processo arbitral, o que, sendo por demais evidente, dispensa mais explicacdes. 4 V. ob.cit., pp. 342-345 ¢ 405-406. 50 Até que o tribunal estadual confirmasse ou infirmasse a suposta competéncia do arbitro, 31 V. ob. cit., pp. 346-351. A “autonomia” da cldusula compromissbria 125 Em segundo lugar, o preceituar-se que o tribunal estadual s6 podera verificar a competéncia do Arbitro depois de este se ter pronunciado sobre esta questdo5?, tem por efeito que a intervengao do juiz estadual, chamado a controlar essa decisdo do arbitro, possa mesmo ser dispen- sada (se esta deciso, fundamentada de forma convincente, for acatada pelas partes, como acontece com grande ntimero de decisdes arbitrais) © que, caso tal controlo venha a ter lugar, uma vez que é efectuado com referéncia a uma decisdo anteriormente tomada, 0 seu exercicio seja mais simples e eficaz. O princfpio do duplo grau de jurisdigdo assenta, alids, nesta ideia. Na verdade, 0 exame sucessivo é uma garantia de boa administra- yao da justiga, pois que o juiz poder inspirar-se na motivagio adoptada pelo arbitro ou, pelo contrario, encontrar nela a falha que justifique a anulagdo. Por outro lado, a prévia discussio da questo da competén- cia do arbitro perante este, fara com que 0 juiz, quando for chamado a controlar a decisdo do 4rbitro, beneficie das particularidades do pro- cesso arbitral, nomeadamente de uma instrugao mais completa e da troca de pegas escritas com argumentaco mais desenvolvida do que possi- velmente aconteceria, se a questo fosse logo submetida ao tribunal es- tadual. 11. Conceber a “competéncia da competéncia do arbitro” do modo como ficou sugerido no ntimero anterior, permite, a nosso ver, fazé-la escapar A critica de ser um conceito “autoreferente”, reparo que é habi- tualmente feita 4 competéncia da competéncia dos tribunais estaduais53, ® De acordo com 0 chamado efeito negativo do principio da competéncia da com- peténcia do tribunal arbitral que, como se referiu atrds (v. 9.1. supra), foi acolhido pelo Convengao de Europeia sobre Arbitragem Comercial Internacional de 1961, pelo direito francés e pelo direito portugués, mas nao pela generalidade dos outros ordenamento ju- ridicos % Sobre esta critica, v. MIGUEL GaLVAo TELES, ob. cit, pp. 120-123. Como observa este autor, as proposigées autoreferentes conduzem a uma regressio ad infini- tum. Assim, “a norma segundo a qual o tribunal A tem competéncia para julgar se 6 com- petente para julgar os casos que Ihe sejam submetidos significard, na totalidade da sua extenso, relativamente, por exemplo a um caso X, que o tribunal A é competente para julgar se € competente para julgar 0 caso X; que o tribunal é competente para julgar se é Competente para julgar se € competente para julgar 0 caso X; e assim sucessivamente” (0b. cit., p. 121). 126 Antonio Sampaio Caramelo E que o principio de competéncia da competéncia do arbitro, enten- dido como ficou explicado, n&o implica que se aceite, também aqui, que o “fundamentado decida sobre o préprio fundamento”, como acontece em relacdo & competéncia da competéncia dos tribunais estaduais4, A deciso de um tribunal estadual (ou do conjunto da hierarquia de tribunais estaduais a que pertence o tribunal em questio) sobre a sua pr6- pria competéncia é definitiva, nao estando sujeito ao controlo ou verifica- ¢4o da outra entidade. Por isso se diz que ela implica ou um circulo vicioso ou uma auto-afirmagao55. Ao invés, a competéncia da competéncia do Arbitro traduz-se apenas no poder, que as leis nacionais ou as convengoes internacionais aplicaveis lhe conferem, de proferir uma decisio sobre o fundo da causa, apesar de ter havido uma denegaciio da sua competéncia (por uma das partes) que 0 4rbitro considere infundada, ou seja, 0 poder (atribuido por lei) de néo suspender, em tais circunstancias, a prolacao da decisio sobre o fundo da causa, nao esperando que o tribunal estadual viesse a confirmar ou dene- gar a sua competéncia para o fazer. Continuando a acompanhar a tese de PIERRE MAYER, a que, na parte que aqui interessa, aderimos, entendemos que o 4rbitro, ao declarar-se competente nfo est4, em bom rigor, a arrogar-se essa competéncia — 0 que © faria incorrer, sob 0 ponto de vista légico, no reparo acima referido. O rbitro, ao declarar-se competente para julgar sobre esta questao prévia, apenas profere uma decisao preliminar proviséria (tendo, nesse momento, apenas eficdcia intraprocessual) que fica sujeita, tal como a sua decis&o sobre o fundo da causa, ao controlo e verificagao dos tribunais estaduais competentes do ordenamento(s) jurfdico(s) com o(s) qual(is) a arbitragem tem uma ligacio significativa. E é esse controlo (ou a mera possibilidade da sua efectivacdo, que é compativel com a hipétese de as partes acatarem as decisdes do rbitro, prescindindo de fazer actuar 0 controlo dos tribu- nais estaduais) que vem a legitimar, légica e juridicamente, a “decisio” (melhor se diria, a opinido) que o arbitro emitiu sobre a sua competéncia, a fim de que o processo arbitral pudesse prosseguir e ele pudese julgar sobre o fundo da causa. . 12. Para terminar estas breves reflexdes sobre a competéncia da competéncia do arbitro, seja-nos permitido ainda observar que 0 reco- 54-V, Micust GaLvAo Tstes, ob. cit., p.122. 95-V. MIGUEL GALVAO TELES, ob. cit., p. 122. A “autonomia” da cléusula compromisséria 127 nhecimento da competéncia dos tribunais estaduais para decidirem so- bre a sua propria competéncia também costuma ser fundamentado em consideragées de natureza essencialmente pragmitica, revelando indife- renga pela critica que Ihes possa ser movida no plano puramente légico- -juridico. Com efeito, os especialistas de processo civil fundamentam a com- peténcia da competéncia do tribunal estadual naquilo que uns designam por principio de auto-suficiéncia do processo% e outros por principio de tutela provisoria de aparénciaS? e que se traduz na seguinte proposigao: “em matéria processual, a aparéncia vale como realidade para o efeito de se determinar se essa aparéncia corresponde ou no a qualquer realidade. E este principio que justifica que, por exemplo, o tribunal incompetente tenha competéncia para apreciar a sua propria competéncia ou que a parte ilegitima tenha legitimidade para alegar a sua ilegitimidade, pois que a aparéncia de competéncia do tribunal ou de legitimidade da parte 6 suficiente para permitir a discussao ¢ a apreciagdo dessa competéncia ou legitimidade. Assim, as questdes suscitadas no processo pendente so resolvidas nesse proprio processo: 0 processo € quanto a elas, auto-sufi- ciente”58, Como se vé, € uma preocupacao de economia processual (0 resultado processual deve ser obtido com a maior economia de meios) que justifica a competéncia da competéncia do tribunal estadual, prevalecendo sobre a critica que, no plano puramente I6gico, Ihe pode ser dirigida. 13. As diferentes modalidades que pode assumir a aplicagao o prin- cfpio de competéncia de competéncia do tribunal arbitral, sob 0 ponto de vista das formas e tempos em que pode ter lugar o controlo, pelos tribu- nais estaduais, da decis&o que os Arbitros profiram sobre a sua compe- téncia originam um leque bastante diversificado de solugdes legais que se podem encontrar consagradas numa anélise de direito comparado, assim como suscita um bom ntimero questées técnico-juridicas de diversa indole, a que as legislagdes nacionais e as convengGes interna- cionais aplicdveis neste dominio nao dao resposta inteiramente satisfat6- 5 V, Micuet Tercera DE Sousa, Introduedo ao Processo Civil, Lex, Lisboa, 2000, pp. 51-52; do mesmo autor, A Competéncia Declarativa dos Tribunais Comuns, Lex, Lis- boa, 1993, p. 37. 57 Y, Joao DE CastRO MENDES, ob. cit., vol. I, p. 205. 58 V. MicUEL TsIxEIRA DE SOUSA, Introdugdo cit., pp. 51-52. 128 Anténio Sampaio Caramelo tia. Mas a andlise dessas diversas solugées legais e das questdes técnico- -juridicas que permanecem sem resposta completa encontra-se suficien- temente feita nas obras gerais sobre arbitragem comercial (maxime, nas que tratam da arbitragem comercial internacional)®9, pelo que nao valeré a pena retomé-las aqui. ~ 59 Ver, entre muito outros autores que poderia citar-se, sobre as diferentes solugdes que, neste domfnio, se encontram consagradas nas legislag6es nacionais ¢ nas convengées internacionais e sobre as questées que permanecem em aberto, no ambito da aplicacio desses textos normativos, L. LIMA PINHEIRO, ob. cit., pp. 131-142, e PoupRET et BESSON, ob. cit. pp. 465-481

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