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= een) Cee © tespreces dail Dion, 158 16-2009 Marin Boa Livni oF, pra psn ego. SUMARIO Publisher undo Mendon Maris ates Coondenaoeieral Baris Xoaer rod cite fan Nel Cale Produho grin Sine! Sonal jt rion Rot fie Usd Capa. Recs Bere Asda Preparaao Mirna Zin Reve Dente Cert irs Zreowt d Sit Daten nnn de Calg Poles i or aeatcnaetin sr SrA ins Ni intra Dn ei — Introd UgBO ooo oe 9 sth Sino gn ‘We i Et nae, A forma eelacional ..on.ssssmsa 6 ann |As priticas artistieas contemporiineas @ sew projeto sees smpetes meme nee cultura. eee % a es ‘A obra de arte com interstiio social 1» Indices paracatogo stematicn q Aestética relacional e © materialismo aleatério sree 5 Mane Eactane son A i ‘forma ¢ 0 ofhar do outro "ete rs a pt are A atte das anos 1990 “ a ‘Mart Ttzore hn tide oe tanstoidede i ‘sa Pk ames Cava 13 Bees sharia = ee HSS Ser hs Sa “Tiplogia : wo IL 32x00 Fee se Goucegeaimacowmme a Scumetietienan Coneivioe enconteos casuais - 2 Colaboragies © contrat. 4% Rolagdes profissionais cientelas % ‘Como ocupar uma galeria? 7 52 Os espacos-tempos da troea wr Asobras eas troces 37 (O tema da obra ceca IG Espayos-tempos na arte dos an08 1999 vassiunermmne 68 Co-presenca e disponibilidade: a heranca teérica de Felix Gonzalez T0408 so : A homossexualidade como paradigma de coabilagao Formas contemperdneas de manumento O caitério de coexisténcia (as obras © 08 inclividos) Asura Gas obras de arte desiocou-se para seu pliblod wan 82 aeag Abeleza como SOIULBO? oercenn 8 Relagiesetela soe OT A ate de hoje e sens modelos Wono06gh0S eosceresenreinine I A ante €06 291A sun ssnnermnsn - 2 Ale de deslocaliza630 vaucinas ‘SY A tecnologia como modelo ideolégico (do trago ao pro- rama) Sonn _ 96 Actor 28 CPB son n 100 AcxposigS0-CendHO ooo : 100 Os figurantes 103 A arte depois do vidoe 105 ‘Rewind/playtfast forward 105 Rumoa democratizagao 107 Para uma politica das formas... = ut Conbitapies -“ - 1 Notas sobre algumas estensies paseiveis de uma eslitica Se se am Sistemas Visuals occ nn snnnnmnecnnrseemnnsnnnanen TL Adimagem & um momento os susssnsne m2 (© que mostram os artistas. i m2 | | (Os limites da subjetividade individual 113 Acengenharia da intersubjetividede smn 1M Una arte sem efito? oo MA O futuro politica das FORME wnnnn 116 Reabilitara experimentagio 8 Estética relacional esituagies construldas creme TS O paradigm esttico (Pix Guaitarte arte) 120 A sutjetiiade conducia v produzida 12 Desnaturalizar a subjetividade ae Estatuto e funcionamento desubjetividad® se.sosuinseson 125 ‘As unidades de subjetivagio ... iin 109 O paradigm estétco 133, Acaitica do paradigma cientifcsta paoect Orelido,o sintoma e a 0018 enon 135 ‘A obra de arte como objeto parcial - 138 Para uma praxis artstico-ceasica . ow M2 ‘Acordem comportamental da arte atual.. sw ME Glossério 1a? INTRODUCAO ‘A que se dlevem os mal-entendicios que cercam a ar- te dos anos 1990, sendo a uma falha do discurso teérico? Ciiticos e fldsofos, em sua imensa maioria, no gostam de abordar as praticas contemporéneas: assim, elas se man- tam essencialmente ilegiveis, pois nao é possivel perceber sua otiginalidade e sua importancia analisanda-as a par- tirde problemas resolvidos ou deixadns em susponsn plas getagies anteriores. f preciso aceitar o doloroso fato de que certas questées no sdo mais pertinentes—e, por extensao, demarcar quais delas so assim consideradas atualmente pelos artistas: quais sao os verdadeiros interesses da arte contemporanee, suas relagdes com a sociedade, a histéria, acultura? A primeira tarefa do critico consiste em recons- tituir complexo jogo dos problemas Ievantados numa de- terminada época e m examinar as diversas réspostas que Ihes so dadas. Muitas vezes, a critica contenta-se em in- ventariar as preocupagées co pasado apenas pata poder 10 [NICOLAS BOURRAUD Tamentar a auséncia de respostas. Ora, a primeira pergunta em relagao as novas abor’agens tefere-se, evidentemente, a forma material das obras. Como entender essas produ- es aparentemente inapreensiveis, quer sejam processuais ‘ou comportamentais — em toda caso, “estilhagadlas” se gundo 0s padrdes tradicionais -, sem se abrigar na histéria, da arte dos anos 19602 Gitemos alguns exemplos dessas atividades: Rickrit Tiravanije orgeniza um jantar na casa de um colecionador © deixa-lhe © material necessétio para o preparo-de uma sopa tailandesa. Philippe Parreno convida pessoas para praticar seus hobbies favoritos no Primeiro de Maio, nue ma linha de montagem industrial. Vanessa Beecroft ves: te cerea de vinte mulheres, que o visitante s6 enxerga pelo vio da entrada, com roupas iguais e perucas ruivas. Mauri zio Cettelan alimenta ratos com queijo Bel Pacse € os ven de como iniltiplos, ou expile coftes recém-arrombados. Numa praga de Copenhague, Jes Brinch ¢ Henrik Plenge Jacobsen instalam um dnibus capotado que, por emula~ so, provoca um tumulto na cidade. Christine Hill empre- ga-se como caixa de supermercado © mantém uma sala de ginéstica semanal numa galeria. Carsten Holler reeria a formula guimica das moléculas secretadas pelo cérebro humano em estado amoroso, monta um veleito de plis- tico inflavel ou cria tentilhdes para Ihes ensinar um novo canto, Noritoshi Hirakawa publica um pequeno classifica- do num jornal, 8 procura ce uma jovem que aceite partici- a Anca as pet i. ema — ESTETICA RELACRONAL un par de sua exposigao. Pierre Huyghe chama pessoas para a montagem de um elenco, coloca uma tolevisio A dispo- sigdo do piblico, expde a foto de operdrios trabalhando a alguns metros do canteito de obras... Muilos outros no- ries e trabalhos ge somam ai lista: em todos esses casos, a partida mais animadamente disputada no tabuleiro da arte se desenvolve em fungio de nogies interativas, conviviais Hoje, 2 comunicagdo encerra os contatos humanos dentro de espagos de controle que decompéem o vinculo social em elementos distintos. A alividade artistica, por sua vez, tenta efetuar ligaces modestas, abrir algumas passa gens obstruidas, por em contato niveis de realidade apar- tados. As famosas “atita-estradas de comunicasio", com seus pedagios e espacos de lazer, ameacam se impor como 05 tinieos trajetos possiveis de um lugar a outro no mundo humano. Se por um lado a auto-estrada realmente permi- te uma viagei mais répida e eficiente, por outro ela tem & efeito de transformar seus usndcios em consumidores de guilémetros e seus derivados, Perante as midias eletrénii- ca, 08 parques recreativos, 05 espagos de convivio, a pro- liferagao cos moldes adequados de socialidade, vemo-nos pobres ¢ sem recursos, como 0 rato de laboratdrio conde- nado a um percurso invariavel em sta gaiola, com pedla~ cos de queijo espathados aqui ali. Assim, 0 sujeito ideal da sociedade dos figurantes estaria reduzido a condigao de consumidor de tempo e de espago, pois 0 que nao pode ser R NICOLAS ROURRIAUD comercializado esti fadado a desaparecer. Em breve, asre- lagGes humanas ndo conseguirdo se manter fora desses es~ pagos mercantis: somos intimacos a eonversar em volta de uma bebida e seus respectivos impostos, forma simbéli- ca do convivio coniemporaneo, Vorés querem bem-estar e aconchege a dois? Entio provem nosso café. Assim, oes payo das relagies habituais é o que se encontra mais dura~ mente atingido pela reificagdo geral. Se quiser escapar 20 dominio do previsivel, a relagio humana ~ simbolizada ou substituida por mercedorias, sinalizada por logomarcas ~ precisa assumir formas extremas ou clandestinas, uma vez que 0 vinculo social se tornou um produto padronizado. Num mundo regulado pela diviséo do trabalho e pela superespecializagio, pela mecanizacdo humana e pela lei «do lucro, avs governos importa tanto que as relagdes hu- ‘menas sejam canalizadas para vias de saida projetadas pa ra essa finalidade quanto que elas se processem segundo alguns principios simples, controlaveis e repetiveis. A “se. paragio" suprema, a que afeta os canais relacionais, cons- titui a Giltima etapa da transformagio rumo a “sociedade do espetdculo” descrita por Guy Debord, Sociedade em que as relagdes humanas nao so mais “diretamente vivi- das’, mas se afastain em sua representacio “espetacular”. E aqui que se situa a problematica mais candente da arte atual: seré ainda possivel gerar relagdes no mundo, num campo pratico ~ a histéria da arte — tradicionalmente des- tinado & “representacdo” delas? Ao contzatio do que pen- sava Debord, para quem 0 mundo da arte ndo passava de {STENICA RELACIONAL, B um depésito de exemplos do que seria preciso “realizar” concretamente na vida cotidiana, hoje a pritica artistica aparece como um campo fértil de experimentagSes sociais, como um espago parcialmente poupado & suniformizacao dos comportamentos. As obras que sero aqui tratadas es bocam virias utopias de proximidade. ‘Os textos a segue foram publicados em revistas, prin- cipalmente Doctonenis sur 'Art, ou em catélogos de expo sigées,, e passaram por alteragées e reelaboragbes. Outros so inédltos. Além disso, a0 final desta coleténea de en- saios ha ui glossério que o leitor pode consultar quando aparecer alguma nogio problemética, Para facilitar a com- preensio da obra, sugerimos que ele consult desde jé a dlefinigio da palavea “Arte”. Le pacaigne oti Rs Cunt tl pubeado place ‘esta hinges (1983); "Reltion dca opus nocd Bene dea ie em I A FORMA RELACIONAL A atividade artistica constitu nfo uma esséncia imuta- vel, mas um jogo cujas formas, modalidades e fungées eve luem conforme as épocas e os contextos sociais. A tarefa do critco eonsiste em estudé-la no presente. Um certo aspec= to do programa da modernidade jé esta totalmente encer- rado (mas no o espitito que o animava ~ insistamos nesse Ponto em nossos tempos pequeno-burgueses). Fsse esgo- tamento esvaziou 0 contetido dos critérios de julgamento estético que nos foram legados, mas continuamos a apli- los as praticas artisticas atuais. © nove no & mais um critétig, a ndo ser entre os detratores ultrapassados da ar- te moderna que retém do detestado presente apenas aqui 4o que sua cultura tradicionalista Ihes ensinou a abominar na arte do passado. Para criar ferramentas mais eficazes e Pontos de vista mais adequados, 6 importante apreender as transformagies atualmente em curso no campo social, captat 0 que jé mudou e 6 que continua a mudar. Como 16 NICOLAS BOURRIAUD entender os comportamentos artisticos manifestados nas, exposigbes dos anos 1996, ¢ seus respectivos modos de pensar, a ndo ser pertindo da mesma sifuaco dos artistas? As priticas artisticas contemporineas seu projeto cultural A modernidade politica, nascida com a filosofia das Luzes, baseava-se na voniade de emancipagao dos indivi- duos ¢ dos povos: o progresso das técnicas ¢ das liberda des, 0 tecuo da ignordincia e a methoria nas condigdes de trabalho deveriam liberara humanidade e permitis a tauraglo de uma sociedade melhor. Existem, porém, varias versbes da modemidade. Assim, o século xx foi paleo de uma luta entre tres vistes de mundo: uma concepedo ra- cionalista-moelernista deriveda do século xv, uma filoso- fia da espontaneidade e da liberacio através do irracional (adaismo, surtcalismo, situacionismo) e ambas se opondo as forgas autoritérias ou wilitaristas que pretendiam mol- dar as relagdes humanas e submeter os individuos. Em vez de levar a desejada emancipagdo, o progresso das téenicas, eda “Razéo” permite, através de uma racionalizagio geral do processo de produgao, a exploragdo do hemisfério sul, a substituigio cega do trabalho humano pelas méquinas, além do recurso a técnicas de sujeigao cada ver mais sofis ticadas. Assim, 0 projeto emaneipador moderno foi substi- ttrfdo por intimeras formas de melancelia ‘As vanguardas do sérulo x, do dadaésmo & interna ional situacionista, inscreviam-se na linhagem desse pro. STMIGA RELACIONAL 17 jeto moderno {transformar a cultura, as mentalidades, as condigées de vida individual esocial), mando esquecamos que ele era anterior as vanguardas e delas xe distinguia sob muitos aspectos, Pois a modernidade nio se reduz a uma teleologia racionalista nem # um messianismo politico. Hé de se denegrira vontade tle melhorar as condisoes de vi € de trabalho s6 porque malograram suas tentativas con- cretas de realizagio, repletas de ideologias totalitarias ou de visdes histéricas ingénuas? O que se chamava vanguar- da certamente foi desenvolvido a partir do “banho" ideolé: ¢ico oferecido pelo racionalismo moderno, mas, posto isso, seus pressupostos filos6fices, culturais e sociais sao total mente diversos. f claro que a arte de hoje prossegue nessa uta, propendo modelos perceptivos, experimentais, criti- 0s ¢ patticipativos, seguindo 0 rumo indicado pelos fil sofos das Luzes, por Proudhon, Marx, pelos dadatstas ou por Mondrian. Se 2 opinido publica tem dificuldade em re- conhecer a legitimidade ou 0 interesse dessas experiéncias, € porque elas nao se apresentam mais como preniincios de uma inexoravel evolugio histérica: pelo contrério, elas se ‘mostram fragmentérias, isoladas, sem uma visio global do mundo que possa Ihes conferir o peso de uma ideologia Nao foi a modernidade que morreu, e sim sua versio. idealista e teleclogica, combate da moderidade ocorre nos mesmos ter- ‘mos do passado, exceto pelo fato de que a vanguard dei you de ir a frente como batedora, ¢ a tropa imobilizou-se, temerosa, num bivaque de certezas. A arte devia preparar 18 NICOLAS ROURRIALD ou anunciar um mundo futuro: hoje ela apresenta modetos de universos possiveis. Os artistas que inscrevem sua pritica na esteita da modiernidade histdriea nao pretender repetit suas formas znem seus postulados, tampouco atribuir& arte as mesmas fungSes que ela atribuie. Sua tarefaé semelhantea que Jean- Francois Lyotard conferia & arquitetura pos-moderna, a qual "Se vé condenada a gerar uma série de pequenas mo- dificagdes num espago hetdado da modernidade e a aban- donar uma reconstrugéo global do espago habitado pela humanidade”, Alids, Lyotard parece indiretamente la- mentar esse estado de enisas: ole define a situagdo de ma reira negativa, usando 0 termo “condenada”” E se, pelo contrdrio, essa “eondenagio” constitufsse a oportunidade historica a partir da qual, nos itimos dez anos, vem sur- gindo a maioria dos mundos artisticas que conhecemos? ssa “oportunidade” cabe em poucas palavras: uprender a habitar melhor 0 mundo, em ver. de tentar construt-lo a par- tir de uma idéia preconcebida da evolugio histériea, Em. outros termos, as obras jf nfo perseguem a meta de for mar realidades imagindrias ou utépicas, mas procuram, constituir mados de existéncia ou modelos de agao dentro da realidade existente, qualquer que seja a escala escolhi- da pelo artista. Althusser dizia que sempre se toma o trem do mundo em movimento; Deleuze, que “a grama pressio- na no meio" e no por cima nem por bainor 0 artista habi- {oon Fang Lytan, ce reader esi events, Yaa Go ue, Recep. 108 ESTETICA RELACIONAL 1 ta as circunstéincias dadas pelo presente para transformar o-contexto de sua vida (sua relagao com o mundo sensivel ou conceitual) num universo duradouro, Ele toma o mun- doen andamento: & um locatério da cultura, para retomar a expressiio de Michel de Certeaw. Hoje, a modernidace pro- longa-se em priticas de bricolagem e reeielagem do dado cultural, na invenggio do votidiano e na ordenacao do tem- po vivido, objets tao dignos de atenZo e estudo quan- to as utopias messianicas ou as “novidades” formais que 4 caracterizavam no passado, Nada mais absurdo do que afirmar que a arte contemporinea ndo apresenta nentum projeto cultural ou politico, © que seus aspectos subversi vos ndo se enraizam em nenhum solo teérico. No entanto, seu projeto, reforente as condigées de trabalho e de produ- cio dos objetos culturais, bem coma as formas variéveis da vida em sociedade, parecerd insipido aos espiritos forma dos nos moldes do darwinismo cultural ov aos amantes do “centralismo democrético” intelectual. E chegado, como diz Maurizio Cattelan, 0 tempo da “dolce utopia’. A obra de arte como intersticio social A possibilidade de uma arte relacional (uma arte que toma como horizonte tedrico a esfera das interacées hu- manas ¢ seu contexto social mais do que 2 afirmagéo de ‘um espago simbélico auténomo e prioado) atesta uma in- = Mle ee, Mere ea, Pai, ses Galli 20 NicoLAS BOURRALD versio radical dos objetivos estéticos, culturais e politicos postalados pela arte moderna, Em termos socioligicos ge- ras, essa evolugdo deriva sobretudo do nascimento de uma cultura urbana mundial e da aplicag dino a praticamente todos os fenémenos culturais, A ur- banizacio generalizada que se desenvolveu apés o final da Segunda Guerra Mundial permitiu um aumento extraor- dindrio dos intercdmbios sociais e uma maior mobilidade dos individuos (gragas ao desenvolvimento rodoferrovid- rio e das telecomunicagSes ¢ & progressiva abertura dos lo- cais isolados, simultaneamente a uma maior abertura das, mentalidades). Devidlo as estreitas dimensdes dos espagos, esse modelo cita habitéveis nesse universo urbano, assiste-se, paralelamen. te, a uma redugdo na escala dos méveis e dos objetos, que se orientam para uma maior facilidade de manejo: se, por ‘muito tempo, # obra de arte péde ostentar um ar de laxo senhorial nesse contexte citadino (© tamanho da obra, bem como 0 tamanho do apartamento, servia para distinguir do joB0-ninguém seu proprietério),a mudanga da fungie ¢ do modo de apresentagéo das obras mostra uma wrbanizagiia crescente da experiéncia artistica. © que esté desaparecen- do sob nossos olhos é apenas essa concepyao falsamen- te aristocrética da disposiggo das obras de arte, ligada a0 sentimento de adquitir um territério. Em outros termos, jd nao se pode considerar a obra contempordnea como um eespago a ser pereortido (a “volta pela casa” do proprieté ro é semelhante 8 do colecionador). Agora ela se apresenta como uma duragio a ser experimentada, como uma aber sacs a a A cea FSIBHICA RELACION, 21 tura para a discussao ilimitada. A cidade permitiu © ge- neralizou a experiéneia da proximidade: ela é o simbolo tangivel e 0 quadio historico do estado de sociedade, es- se “estado de encontro fortuito imposto aos homens", na ‘expresso de Althusser, em oposiggo Aquela selva den- sae “sem histéria” do estado de naturecn na concepcao de Tean-Jacques Rousseau, selva que impedia qualquer en- contro fortuito mais duradouro. Esse regime de encontro casual intensivn, elevado & potncia de uma regra abso- luta de civilizagdo, acabou eriando praticas artisticas cor respondentes, isto é uma forma de arte cujo substrato é dado pela intersubjetividade e tem como tema central o tar-juntos, 0 “encontro” entre observador e quadto, a ela- boracio coletiva do sentido. Deixemos de lado o problema da historicidade desse fendmeno: a arte sempre foi relacio nal em diferentes graus, ou sea, fator de socialiade e fun- dadora de didlogo. Uma das potencialidades da imagem é seu poder de reliaite [ventimento de ligase], retomando © termo de Michel Maffesoli: bandeiras, siglas, cones, si- nais ctiam empatie € compartilhamento, geram oinculot, A arte (as priticas derivadas da pintura e da escultura que se manifestam sob a forma de exposigfio) mostra-se parti- cularmente propicia & expresso dessa civilizagio da pro- ximidade, pois ela estreita 0 espago das relagées, ao contritio soya bit Altus Epos ales Pais uc IMEC "Michel Maes. Le cademplton sr mite, Pans, Gast 1909 [a Sau: cpt do and ts San Se Pn pe es 22 NICOLAS BOURRIAUD da televisio ou da literatura, que remetem a seus respec tivos espagos dle consumo privado; a0 contratio também do teatro e do cinema, que retinem pequenas coletividades diante de imagens univocas: com efcito, nessas salas no se comenta diretamente o que se vé (a discussio fica para depois do espetdcule) Inversamente, durante uma expost 0, mesmo que de formas inertes, estabelece-se a posst- bilidade de uma discussie imediata nos dois sentidos do termo: percebo, comento, desloco-me num mesmo espa- co-tempo. A arte & lugar de produce de uma socialida de especitica: resta ver qual 6 0 estatuto dese espago no conjunto das “estados de encontro fortuite” propostes pe- la Cidade. Como umaarte concentrada na produgao de tais ‘modes de convivio é capaz de relangar e completar 0 proje- to emancipader moderno? Como ela permite o desenvolvi- mento de novos enfogues culturais e politicos? ‘Antes de passarpara exemplos concretos, éimportante reconsiderar o lugar das obras no sistema global da econo mia, simbélica ou material, que rege a sociedade contem- porénea: para nds, além de seu caréter comercial ov de seu valor semantico, a obra de arte representa um intersticio social. O termo fnterstcio foi usado por Karl Marx para de- signar comunidades de troca que escapavam ao guadto da economia capitalista, pois nao obedeciam Tei do lucre: es: cambo, vendas cam prejuiza, produgées autarquicas ete, O intersticio é um espago de relagdes humanas que, mesmo inserido de maneira mais ou menos aberta ¢ harmonio~ ‘sa no sistema global, sugere outras possibilidades de troca, ISTETICA RELACIONAL 2B além das vigentes nesse sistema. £ exatamente esta a na~ tureza da exposigio de arte contempordnea no campo do. comércio das representagdes: ela cria espacos livres, gera uragées com um ritmo contrério ao das duragies que or- denam a vida cotidiana, favorece um interedmbio humano diferente das “zonas de comunieacdo" que nos s30.impos tas, O contextn social atual restringe as possibilidades de relagiies humanas e, ao mesmo tempo, eria espagos para tal fim, Os banheiros pablicos foram crlados para que as ruas ficassem limpas: & com esse mesmo espirito que se desen- ‘volver as ferramentas de comunicagio, enquanto as ruas das cidades ficam limpas de qualquer eseéria relacional e as relagies de vizinhanga se empobrecem. A mecanizacio geral das fungSes sociais teduz progressivamente o espa- ‘orelacional. Até alguns anos atrés, oservigo de desperta dor pelo telefone era executada por pessoas’ agora é uma vor, sintética que se encarrega de nos acordar... O guich® automndtico tornou-se 0 modelo para cumprir as fungbes socials mais elementares, © 0 comportamento dos prafis, sionais segue os mokdes de eficigncia das maquinas que ‘vém a Substitui-los, executando tarefts que, antes, ofere- ciam ocasides de contato, de prazer au de conilito, A arte contemporinea realmente desenvoive um projeto politico quando se empenha em investir prblematizar a esfera das relacbes. ‘Quando Gabriel Orozeo coloca uma laranja na ban- ca de um mercado brasileiro vazio (Cinzy Tourist, 1991) ou a NICOLAS ROUREALD instala uma rede no jardim do Museu de Arte Moderna de ‘Nova York (Hamoc en el MoMA, 1993), ele estf operando no centro do “infrafino social’, esse miniisculo espago de ges. tos cotidianos determinado pela superestrutura constitut- da pelas “grandes” trocas. Sem legendas, as fotografias de Orozco documentam infirnas revolugdes no cotidiano ur- bano ou semi-urbano (um saco de dormir em cima da gra~ ‘ma, uma caixa de sapatos vavia etc}: elas mostram essa vida silenciosa (still life, natureza morta) hoje formada pe- las relagdes com 0 outro, Quando Jens Haaning transmite hist6rias engragadas em turco, por alto-felante, numa pra- a de Copenhague (Turkish Jokes, 1994), evia instantanea- mente uma microcomunidade — a dos imigrantes unides por um riso coletivo que subverte sua condicéo de exilados, ~ formada na obra e em relagao & obra. A exposigio € 0 lo- cal privilegiado onde surgem essas coletividedes instant reas, regidas por outros prinefpios: uma exposigio criard, segundo o grau de participagio que o artista exige do es- pectidor, a natureza clas obras, os modelos de sociatida de propostos ou representados, um “dominio de trocas” particular. E esse “ciominio de trocas” deve ser julgado de acorco com erilévios estéticos, isto &, analisando-se primei- ro a coeréncia de sua forma e depois 0 valor simbélico do “mundo” que ele nos propoe, da imagem das relagbes hu manas que ele reflete. No interior desse intersticio social, 0 artista deve assumir os modelos simbsdlicos que expde: to- da representagéo (mas a erte contemporainea cria modelos, o propriamente representagSes; cla se insere no tecido _ESTETICA RELACIONA 2 social sem propriamente se inspirar nele) remete a valores ransferiveis para a sociedade. Atividade humana baseada no comércio, a arte € ao mesmo tempo objeto e sujeito de uma ética, tanto mais que, ao contro de outras atividae des, sun sien furigio & se expor a esse comércio, Aarte é um estado de encontro foxtuite. Aestética relacional e o materialismo aleatorio ‘Acestética relacional inscreve-se numa tradigao mate- rialista, Ser “materialista” ndo significa se ater banalida- de dos faios, tampouco supse aquela forma de estreiteza mental que consiste em ler as obras em termos puramen- te econdmicos. A tradigao filoséfica que sustenta essa es- tética relacional foi admiravelmente definida por Louis Althusser, num de seus ditimos textos, como um “mate rialismo do encontro fortuito” ou materialismo aleatério, Esse materialismo tem como ponto de partida a contin géncia do mundo, que ndo tem origem nem sentido pree- xistente, nem Razdo que possa Ihe atribuir uma finalidade. Assim, a esséncia da humanidade 6 puramente transindi- vidual, formada pelos lagos que unem os individuos em focmas sociais sempre histéricas (Mane a esséneia huma~ na é 0 conjunto das relacies sociais). Nio ha “Fim da histé- ria” nem “fim da arte" possiveis, porque a partida sempre é retomada em fungio do contexto, isto 6, em func dos jo- gadores e do sistema que eles constroem ou eriticam. Hu- bert Damisch considerava as teorias sobre 0 “fim da arte 26 NICOLAS HOURRIALD como resultado de uma lamentavel confusdo entre 0 “tim do jogo” (game) e 0 “fim da partida” (play): quando 0 con- texto social muda radicalmente, o que se anuncia é uma nova partida, sem que seja colocado em questa o senti- do do jogo em si". Mas esse jogo iter-tumano que const ‘ui nosso objeto (Duchamp: “A arte é um jogo entre todos ‘os homens de todas as 6pocas*) ultrapassa 0 quadro da- quilo que, por comodidade, ¢ chamado de “arte”: assim, a8 “situiagies construicas” preconizadas pela Internacional si- tuacionista pertencem inteiramente a esse “jogo”, mesmo que Guy Debord Ihes negasse, em diltima instaneia, qual- ‘quer catéter artistico, vendo nelas, pelo contrério, a “supe~ ragao da arte” por meio de uma revolugio da vida cotidiana. ‘A estética relacional constitui ndo uma teoria da arte, que supotia oensinciado de uma origem e de umn destino, sim uma teoria da forma. © qae chamamios de fornia? Uma unidade coerente, ‘uma estrutura (entidade excomoara de dependéncias iternas) que apresenta as caracteristicas de um mundo: a obra de arte nfo detém o monopilio da farma; ela ¢ apenas um subconjunto na totalidade das formas existentes. Na tra- digdo filoséfica materialista inauguirada por Epicuro e Lu- cxécio, 0s détomos caem paralelamente no vazio, seguindo ‘uma leve inclinagao. Se um desses dtomos se desvia do cur~ s0, ele “provoca ima calisdo [encontro fortuito] com 0 ato- 3 Hubert Dams, entire jaune entice, Paris, Ba Seu, 1984 TSHETICA RELACIONAL 7 mo vizinho e de colisdo em colisdo um engavetamento eo nascimento de um mundo”... Assim nascem as formas: do desvio edo encontro aleatério entre dois elementos até en- {0 paralelos. Para criar um mundo, esse encontio fortuito tem de se tornar duradouro: os elementos que o constituem devem se unificar numa forma, isto é, “os elementos tém de dar liga (@xsim como dizemos que alguma coisa ‘dew li- ga)". “A forma pode ser definida como um encontro for- tuito duradouro.” Assim podem ser deseritas as linhas as cotes que se inscrevem na superficie de um quacro de Delacroix, os reftugos que enchem os “quadros Merz” de Schwitters, as performances de Chris Burden: além do tit po de disposigao na pagina ou no espaco, eles se mostram duradouros a partir do momento em que seus componen- tes formam um conjunto cujo sentido “vem” do momento de seu nascimento, suscitando novas “possibilidades de vi- da”, Assim, toda obra é modelo de um mundo vidvel. Toda obra, até 0 projeto mais eriticn e demolidar, passa por esse estado de mundo vidvel, porque ela permite o encontr for- tuito de elementos separados: por exemplo, a morte eas mi- dias em Any Warhol. fo que diziam Deleuze @ Guattari quando definiam a obra de arte como um “bloce de afetos © perceptos’: a arte muatém jumtos momentos de subjetivi- duce ligados @ experiéncias singulares, sejam as macis de Cézanne: ou as estruturas listradas de Buren. A composi- fio desse' aglutinante, por meio do qual atomos colidindo chegam a constituir um mundo, naturalmente depende do contexto histérico: 0 que o piiblico informada atual enten- 28 MTeoR HOLRRALD de por “manter juntas” no é 0 mesmo que se imaginava ro século passado, Hoje a “cola” é menos visivel, pois nos sa experiéncia visual se tornou mais complexa, enriquecida por um século de imagens fotogratficas ¢ depois cinemato~ graficas (introducio do plano-seqiéncia como nova uni dade cindmica), a poato de podermos reconheces come um “mundo” uma colegdo de elementos esparsos (@ ins talagdo, por exemplo) que no estao ligados por nenhuma ‘matéria unificadora, nenhum bronze. Outras tecnologias talvez venham a permitir que o espitito humano reconhe- ca tipos de “formas-mundos" ainda desconhecidos: por exemple, a informatica privilegia a nogao de programa, que altera a concepgae de certos artistas sobre seus trabalhos, ‘Assim, a obra de um artista assume a condigdo de um con- junto de unidades que pocem ser reativadas por um obser- vador-manipulador. Aqui insisto, e certamente de maneira bastante enfética, sobre a instabilidade e a diversidade do conceito de “forma’, cuja abrangéncia pode ser vista na fa~ mmosa exortacio do pai da sociologia, Emile Durkheim, a considerar os “fatos sociais” como “coisas”... Pois a “cot- sa’ artistica 8s vezes se apresenta como um “fato” ou um conjunto de fatos que surgem no tempo ou no espaco, sem que sua unidade (geradora de uma forma, um mundo) se- ja questionada, © quadro amplia-se; além do objeto isola do, cle agora pode abarear a cena inteira: a forma da obra de Gordon Matta-Clark ou de Dan Graham nao se reduz& forma das “coisas” que esses dots artistas “produzem’; ela :nio 6 o simples efeito secundrio de uma composicio, co ESTETICA RELACIONAL 29 ‘mo suporia uma estética formalista, ¢ sim o principio ativo de uma trajetéria que se desenrola através de signos, ob jetos, formas, gestos. A forma da obra contempordnea vai além de sua forma material: ela é um elemento de ligagao, um prinefpio de aglutinagao dinamica. Urna obra de arte & uum ponto sobre uma linha. A forma eo olhar do outro Se, como esereve Serge Daney, “toda forma é um r0s~ to que nos olha’, 0 que se torna uma forma quando esta mergulhada na dimensao do diélogo? O que é uma forma essencialmente relacional? Parece-nos interessante discutir essa questo tomando a definigio de Daney como ponto de referéncia, justamente por causa de sue ambivalenela:j& que as formas nos olham, como devemos olhé-las? Geralmenie, a forma & definida como um contor no que se opSe a um contetido, Mas a estética modernis- ta fala em “beleza formal” referindo-se a uma espécie de (con}fusdo entre forma e fundo, a uma adequagao inven- tiva da primetra ao segundo. Uma obra ¢ julgada por sua forma plistica: a critica mais usual &s novas prticas arts ticas consiste em Ihes negar qualquer “eficécta formal” ou em apontar suas falhas na “resolucao formal”. Observan: do as préticas artisticas contemporineas, deveriamos falar mais em “formagdes” do que em “formas”: ao contrario de lum abjeto fechado em si mesmo gragas a um estilo ea uma assinatura, a arte atual mostra que 5 existe forma no en- 30 NICOLAS ROURREAUID contro fortuito, na relagdo dindmica de uma proposigto ar- tistica com outras forma¢Ses, artisticas ou nao. ‘No existem formas na natureza, no estado selvagem, porque é nosso olhar que as cria, recortando-a8 na espes~ sura do visivel. As formas desenvolzem-se umas a partir das tuulies. © que ontem seria consicerado informe ou "infor mal” jf nao 0 €mais, Quando a discussii estética evolui, 0 estatuto da forma evolui com ela e através dela, Nos romances de Witold Gombrowiez, vemos como, cada individuo gera sua propria forme attavés de seu com- portamento, sua maneira de se apresentar e se ditigit aos outros. la nasce nessa zona de contato em que o individuo se debate com 0 Outro para Ihe impor aquilo que julga ser ‘seu “ser”, Assim, para Gombrowicz, e retomando uma terminologia sartreana, nossa “forma” & apenas uma pro- priedade relacional que nos liga aos que nos reificam pe- Jo olhar. O individuo, quando acredita que se esté olhando objetivamente, no final das contas estd contemplande ape- nas 0 resultado de interminaveis transagdes com a suijeti- vvidade dos outros, Para alguns, a forma artistica escaparia a essa fata- lidade por ser intermediada por uma obra. Nés, pelo con- tratio, julgamos que a forma s6 assume sua consisténcia (€ adquire uma existéncia real) quando coloca em joge in- teragdes humanas; a forma de urna obra de arte nasce de ‘uma negociagio com o inteligivel que nos coube, Através ela, o artista inicia um dialogo. A esséncia da pritica ar- tistica residiria, assim, na invengao de relagoes entre sujet STETIOA RELACTONA a tos; eada obra de acte particular seria a proposta de habitar ‘um mundo em comum, enquanto 6 trabalho de cada artis ta comporia um feixe de relagdes com o mundo, que gera- ria outras relagGes, e assim por diante, até o infinito. ‘Aqui estamos nos antipodas da versdo autoritéria da arte que ge encontra nos ensaios de Thierey de Duve’, para quem toda obra ndo passa de uma “soma de jutzos" hist6~ ricos e estéticos, enunciados pelo artista no ato da realiza- so, Pintar seria se inscrever na historia através de escolhas plisticas, Estamos na presenga de uma estética de tribunal, segunco a qual o artista se coloca perante a historia da arte nna autatquia de suas conviegées, uma estética que rebaxa a pratica artistica ao nivel de uma critica histérica proces stal: 0 “julgamento” pratico assim emitido, peremptério e irrecorrivel, é a negecao do dislogo, tinico a eonferir 8 for- ma um estatuto produtivo, 0 de um “encontro fortuito”. No quadro de uma teoria “relacionista” da arte, a intersubjeti- vidade nio representa apenas o quadro social da recepca0. da arte, que constitui seu “meio”, seu “campo” (Bourdieu), mas se torna a prpria esséncia da pritica artistic E em virtude dessa invencio de relagées que a forma se converte em *rosto”, como sugeria Daney. Essa formula, sem diivida, lembra um conceito fundamental do pensa~ ‘mento de Emmanuel Lévinas, para quem 0 rosto 60 sign da proibigdo ética. O rosto, afirma ele, é “o que me ordena 6 Talay de Dave ati dis Pag do La Ducane, 3687 32 [NICOLAS BOURRLALD servir a outrem’, "o que nos proibe matar”®. Toda “relagio intersubjetiva” passa pela forma do rosto, que simboliza a responsabilidade que nus cabe em relacao ao outro: “o vi culo com o outto s6 se €4 como responsabilicade’, esereve Lévinas. Mas no have:ia um outro horizonte para a éti- caalém dese humanismo que reduz a intersubjetividade a uma espécie de interservilismo? A imagem ~ metéfora do rosto, segundo Daney ~ 96 seria eapaz de criar proibigies através do fardo da “tesponsabilidade”? Quando explica que “toda forma & um rosto que nos olha’, ele nao quer di- zer apenas que somos responséveis por ela, Para entender {sso, basta voltar ao significado profndo da imagem em Daney: para. critico, a imagem é “imoral” quando nos co loca “onde nao estévamas”, quando “toma o lugar de uma ‘outra’ Nao se trata apenas cle uma referéncia & estética Ba- zzin-Rossellini ao postular 0 “tcalismo ontolégico” da arte inematogréfica, a qual, embora esteja na origem do pen- ‘samento de Daney, nao o esgota. Segundo ele, a forma nu ma imagem & apenas a representagio do desejo: produzir uma forma 6 criar as condighes de uma troca, como cevol ver um saque numa partida de tenis. Se estenclermos um poueo mais 0 raciocinio de Daney, a forma é o desejo que foidelegado’ imagem. Aquela 60 horizonte a partir do qual esta pode ter um sentido, designando um mundo deseja- do que © espectador entio considera passivel de discus- séo, ea partir de qual seu proprio desejo pode ricochetear. 7 Knmanel Lvs, thet nf Pai Paya, 1982. Senge Dany, Prato Pars fa. POL. 1982 p18. AIGA RELACTONAL. 33 Essa troca se resume a um bindmio: alguém mostra algo a alguém que Ihe devolve a sua maneira. A obra procura captar meu olhar, como 0 recém-nascido “pede” o olhar da mie: Tavetan Tedorov mostrou, em La Vie conimaue [A vi- «da em comm), que a esséncia da secialidade consiste muito mais na necessidade de reconhecimento do que na compe- Lugo ou na violencia’. Quando um artista nos mostra al- guma coisa, ele expoe uma étiea transitiva que situa stua obra entre 0 “olhe-me” e o “olhe isso”. Os tiltimos textos de Daney lamentam o fim da dupla “Mostrativer”, que 10- presentava a esséncia ce uma democracia da imagem, em favor de uma outra dupla, televisiva e autoritaria, "Promo- verfreceber”, que marca o advento do “visual”, Na concep. ‘0 de Daney, “toda forma é um rosto que me olha” porque tela me chama para dialogar. A forma é uma dindmica que seinsereve no tempo e/ou no espaco, Ela sé pode nascer de uum encontro fortuito entre dois plenos de realidade: pais a homogeneidade néo produz imagens, e sim o visual, sto 6, “a informagao em circuito fechado’ 9 Tevelam Todsow Lao commne, Pris fy Set 184 [TL bras ‘da cm carn, tad: Dene Belimann ¢ Elsner Boremana. Cent, Papi us 1994) A ARTE DOS ANOS 1990 Participagao e transitividade Sobre uma estante de metal hé um fogaozinho ace- 0 que mantém em ebuligo uma panela de agua, Em volta da estante, espatham-se materiais de acampamento, sem nenhuma composiqo. Junto & parede ha eaixas de pape- 10, na maioria abertas, eontendo pacotes de sopas chine- sas desidratadas que © visitante pode consumir a vontade, acrescentando a dgua fervente que esté a sua disposicao. Essa peca de Rirkrit Tiravanija, realizada no Aperto 93 a Bienal de Veneza, escapa a quelquer definigéo. Escultu- 1a? Instalagéo? Performance? Ativismo social? Ultimamen: te esse tipo de pega tem se mulfiplicado, Nas exposigies internacionais, vemos uma quantidade erescente de estan: des que oferecem varios servigos, obras que propdiem a0 observador um contrato especifico, modelos de socialida de mais ou menos concretos. A "participagée” do espec~ 36 NICOLAS ROLRRALD tador, teorizada pelis happenings ¢ pelas performances Fluxus, tomou-se uma constante na pritica artistica. O es- pago de reflexio aberto pelo “coeficiente de arte” de Mar- cel Duchamp, que tenta delimitar exatamente o campo de intervengio do receptor na obra de arte, hoje consiste nu- ta cultura interativa que apresenta a transitividade do ‘abjeto cultural como fato consumado. Com isso, esses ele- ‘mentos apenas corroboram uma evolugéo que ultrapassa largamente o dominio exclusive da arte: & no conjunto dos votores de comunicagfio que o grau de interatividade 6 am: pliado. Por outro lado, o surgimento de novas té cas, co- ‘moa internet e a multimidia, indica um desejo coletivo de criar novos espagos de convivio e de inaugurar novos tipos de contato com o objeto cultural: assim, a “sociedade do espeticulo” se seguiria a sociedade dos figurantes, na qual cada um encontraria, em canais de comunicagao mais ow menos truncados, a ilusio de uma democracia interativa. A transitividade, tao antiga quanto o mundo, constitu uma propriedade concreta da obra de arte, Sem ela, a obra seria apenas um objeto morto, esmagado pela contempla- $80. Delacrots jf escrevia em seu didrio que um quadro bom “condensava” momentaneamente uma emogio que colhar do espectador deveria reviver e prolongar. Essa no- «0 de transitividade introduz no dominio estética a de~ sotdem formal inerente ao dislogo; ela nega a existéncia ‘de um “lugar da atte” espectfico em favor de uma discur- sividade sempre inacabada e de um desejo jamais saciado -ESTETICA RELACIONAL 37 de disseminagio. Jean-Luc Godard, aliés, insurgia-se con ta essa concepyao fechada da pratica artistica, explicando ‘que wma imagem precisa de dois. Se essa proposigao pare- ce retomar Duchamp ao dizer que sto os espectadores que facem es quadros, ela vai além ao postular o diélogo como 2 pripria origem do processo de constituigdo da imagem: desde seu posto de partida jé & preciso negociar, pressupor 0 ‘Outro... Assim, toda obra de arte pode ser definida como um objeto relacional, como o lugar geométrico de uma ne~ -gociagdo com indimeros correspondentes ¢ destinatérios. Cremos ser possivel explicar a especificidade da arte atual com 0 aunilio da idéia de produgdo de relagdes externas a0 campo da atte (em oposigao as relages internas, que Ihe oferecem substrato socioeconémico): relagSes entre indi- vviduos ou grupos, entre o artista e o mundo e, por tran- sitividade, relagoas entre o espectador e o mundo. Pierre Bourdieu considera o mundo da arte como um “espago de relagdes objetivas entre posigdes", isto é, um microcosmo definido por relagdes de forga ¢ embates com que os pro~ dtores tentam “conservé-Io ou transformé-lo”. © mundo a arte, como qualquer outro campo social, ¢relacional par esséncia na medida em que apresenta um “sistema de po- sigGes diferenciais” que permite sua leitura, As derivagoes dessa leitura “relacional” so miltiplas: no Ambito de seus trabalhos sobre as redes, © Cercle Ramo Nash (attistas da colegdo Devautour) sustenta que “a arte 6 um sistema alta- 4. Prete Bourdieu, Reson patie, Pais, £4 du Seu 1994, p. 6 [Ba bras Rt pias, wads M Corea, Compinas, Pepi, 1936, 38 NICOLAS BOURRIAUD mente cooperativo: a densa tede de interconexdes entre os membros implica que tudo o que ocorrer nela acabaté sen= do uma funsdo de todos os membros", 0 que Ihe permite afirmar que “€ a arte que faz aarte, nao osartistas”. Assim, estes seriam simples instrumentos inconscientes ao servigo de leis que os ultrapassam, como Napoledo ou Alexandte, © Grande, na teoria da Hist6ria de Tolstoi... No partilho dessa posigdo ciberdeterminista, pois se a estrutura inter na do mundo da arte realmente estahelece um jogo limita- do de “possfveis’, essa estrutura, por sua vez, depende de uma segunda ordem de relagies, estas externas, que pro~ duzem e legitimam a orciem das relagdes internas, Em su- ima, @ rede “Arte” & porosa, e sA0 as relagdes dessa rede como conjunto cos campos dle producao que determina sua evolucio. Alids, seria possivel escrever uma hist6ria da arte como a histéria dessa produgéo de relazées com 0 mundo, levantando ingenuamente a questo da natureza das relages externas “inventadas” pelas obras, Para esbogar um quadro histérico geral, digamos que estas se situavam, de inicio, num mundo transcendente, ‘onde a arte tinha como objetivo estabelecer modos de co- municagéo com a divindade: ela desempenhava o papel de tuma interface entre a sociedade humana ¢ as forges invist veis que regia seus movimentos, ao lado de uma natureza tepresentante da ondem exemplar que, compreendida, ex pressaria os designios divinos. Aes poueos, a arte abando- nou tal pretensio, passandoa explorarasrelagdes existentes entre 0 Homem ¢ 0 mundo. Rssa nova ordem relacional, ESTETICA RELACIONAL, 29 dialética, se desenvolveu a partir do Renascimento ~ que privilegiava a posigao fisica do ser humano em seu univer- 50, embora ainda fosse dominado pela figura divina ~com © aunilio de novos recursos visuais, como a perspectiva de Alberti, 0 realismo anatémico on o sfuriato de Leonardo. Essa finalidade da obra de arte s6 veio a ser radicalmente questionada pelo cubismo, que tentava snalisar nossas re- lagies visuais como mundo através dos elementos mais tri- viais da vida cotidiana (a ponta de uma mesa, cachimbos, violbes), a partir de um realismo mental que reconstituta os ‘mecanismos méveis de nossa apreensio do objeto. © campo relacional aberto pelo Renascimento italiano ‘passou, enti, a ser aplicado a objetos cada vez mais res tritos: a pergunta “qual & nossa relagéo com 0 munclo fisi- 02" a principio abrangia toda a realidade e depois passou ‘ase referir a segmentos limitaclos dessa mesma realidade, Essa progress, evidentemente, néo foi linear: coexistem Pintores como Seurat, analista rigoroso de nosses modos de percepgéo visual, ¢ Odilon Redon, que tenta trazer a luz nossa relagdes com o invisivel. Mas, de modo geral, a his- t6ria da arte pode ser lida como a histétia dos sucessivos campos relacionais externos, que muclam de acorda com. préticas determinadas por sua prépria evolucio interna: & 2 histéria da producao das relagdes cam o mundo, interme- liadas por uma classe de objetos ¢ priticas especificas Essa historia, hoje, parece ter tomacio um novo ru- mo: depois do campo das relagdes entre Humanidade divindade, a seguir entre Humanidade e objeto, a prética 40 SSICOLAS BOURRALD attistica agora se concentra na esfera das relagées inter-hu- 'manas, como provam as experiéncias em curso desde 0 co- smego dos anos 1990, O artista concentra-se cada vez mais ISTETTCA RELATIONAL 101 thaers se opor & “tautologia da reificagdo” que, para ele, era a obra de arte ~ antecipa genialmente as priticas artisti- cas dos anos 1990 ¢ a ambigtiidade da obra de arte entre 0 valor de exposigao eo valor de uso, ambigitidade esta que aparece em quasc todos os artistas dessa geragio (de Fabri- ce Hybert a Mark Dion, de Felix Gonzalez“Torres a Jason Rhoades). A expasigia Orane (concebida em 1988 por Do- ‘iminique Gonzalez-Foerster, Bernard Joisten, Pierre Joseph Philippe Parreno, ¢ realizada em 1989 na APAC de Ne~ vers e no FRAC corso), que abriu perspectivas de trabalho cruciais para nossa época, apresentaya-se como um “espa- cofotogenico”, isto g, segundo um modelo-cinematografico, ‘uma cimera escura virtual onde os espectadores cireulam como uma cimera, convidados a fazer seu préprio enqua- dramento visual, a recortar angulos de visio e segmentos de sentido, Para além do "cenério® de Broodthaers, que es capatia & fatalidade da reificacdo devido a funcionalidade de seus componentes, Ozone trazia a possibilidade de uma :manipulagio permanente de seus elementos ¢ sua acapta~ 40 A existéncia de um eventual comprador. Concebida co- mo um “programa” gerador de formas e situagies (além de um “Saco” que permitia ao colecionader arrumar sua propria bagagem, havia acessérios de convivio, como ¢a- Uciras e documentos para consulta a disposigio do visitan- tc), Ozone funcionava como um “campo iconogrsfico", um ‘conjunto de camadas de informagées” (© que a aproxima do modelo broodthaersiano), sempre insistindo em valo- res de convivio ¢ produtividade que descortinavam novos, 102 [NICOLAS BOURRIAUD orizontes para a critica social do artista belga, entre cles ‘ode uma arte baseada na interatividade e na produgio de relagies com 0 Outta. Essa definigdo da exposigéo como “espaco fotagénico” foi aptofundada posteriormente com, How we gonna behave Joisten, Joseph & Parreno, na galeria Max Hetzler, Col6nia, 1991), na qual havia méquinas foto- gréficas na entrada da geleria para que o visitante pudesse ctiar seu proprio catalogo visual Em 1990, tentei definir essas priticas falando de uma “arte de diretores’, que convertia o local de exposigao (jo- gando com 0 sentido fotogratico do terme) num filme sem, camera, num “curta-metragem imével’: “A obra nio se Iapresenta] como totalicade espacial a ser percorrida pelo colhar, mas como uma duragio a ser atravessada, seqliéncia Por seqiiéncla, como-um curta-metragem imavel em que o proptio espectador deve se locomover". Portanto, 0 desti ‘no do cinema (ou da informatica) enquanto técnica utili- zavel nas outras artes a0 guarda nenhuma relago com a forma do filme, a0 contrario do que diz a legiso dos opor- tunistas que transpéem para a pelicula (ou para o compu~ tador) modos cle pensamento saidos do século xIx. Assim, |hé muito mais cinema numa exposigao de Allen Rupper- sherd ou de Carsten Holler do que em muitos “filmes de artistas” forcosamente vagos, € muito mais rellexio info- gtética nos rizomas do Cercle Ramo Nash ou nas agGes de Douglas Gordon do que nos amontoados de imagens digi- tais em que se debate o artesanato tido como o mais retrs- 4. us eure, “Ua ant db aia’ Ar Ps, 17 ma 940. Aesposiso Curt menage lis den na rela Veen 1950 FSIEMICA RELACIONAL 103 grado do moments, Como o filme realmente confere forma 3 arle? Com seu tratamento da duragio, com as “imagens movimentos” (Deleuze) que ele gerai assim, como esere- veu Philippe Parreno, a arte forma “um espago em que os objetos, as imagens e as exposigoes so instantes, cenrios que podem ser reapresentados” Os figurantes Se a exposigao se torna um paico, quiem vem encenar? Como os atores e figurantes 0 ocwam? Em meio a que ti- po de cendrio? Um dia seria interessante escrever a his~ téria da arte por meio das populagies que a atravessam das estruturas simbilicas/pratices que permitem acolhé- ‘as. Qual energia humana, reguleca segundo quais moda lidades, entre nas formas artisticas? Como o video, tltime avatar do registro visual, modifica essa entrada de ener- sa? A forma clissica da presenga na tela é a comoocacito, © cengejamento de um ou varios atores levados a ocupar um cendrio: assim, os habitantes da factory warholiana foram convocados a se postar diante da mera. Um filme geral- mente se baseia em atores, esses proletarios que alugam. sata imagem enquanto forga de trabalho. “A filmagem em. csttidio”, esereve Walter Benjamin, “tem essa caracteristi- 1 de substituir o pablico pela méquina’, ¢ permite que a +5 Philippe Parcenu, “Une exposition senitelte uns exposition sans came 0 nan 2 oe malo de 99. ‘Wate basin, Ess Pain, Dorel onthe, 1989, 105 104 [NICOLAS BOURRIAUD linha de montagem dss imagens subutilize o corpo do in- ‘térprete. Com o video a diferenca entre o ator e o passante tende a diminuir. Sue evolugdo quanto a cdmera de cine- ma tem a mesma importancia da invengao do tubo de tinta pata a getagdo impressionista: instrumento leve e manejé- vel, ele permite a tomada ne ar livre, além de uma desen- voltuta diante do material filmado antes impossivel com 1 pesados equipamentas cinematograficos. Assim, a for ma dominante do povoamento videografico é a sondagem, mergulho aleatério na multidao que caracteriza a era tole visiva: a cémmera faz perguntas, registra passagens, fica na altura das pessoas, © humandide comum habita a video- arte: Henry Bond escothe momentos de socialicade, Pier te Huyghe monta eleacos, Miltos Manetas organiza uma discussao numa mesa de café. A cimera de video torna-se ‘um instrumento de interpelagao das pessoas: Gillian Wea- ring pede aos transeuntes que assobiom numa garrafa de Coca-Cola, depois monta as seqiéneias para produzir um som continuo, alegoria da sondagem e pesquisa de opi- nifo, Além disso, a cimera de vitleo desempenha o mesmo papel heurfstico do esbocgo no século x1x: ela acompanha osattistas, como Sean Landers, que filma do carro; Angela Bulloch, que documenta sua viagem de Londres a Génova, ‘onde vai fazer uma exposicio; ou Tiravanija, que filma um trajeto imaginario entre Guadalajara e Madri. F é também informagio sobre o processo de trabalho, como no caso de Cheryl Donegan, que filma a si mesma enquanto produ suas pinturas. Mas a praticidade no manuseio da. cdme- ESIBTICA RELACIONAL 105 ta de video também leva a convert#-la mam substituto rei- ficado da presenga: assim, a instalagéa do. grupo italiano Premiata Ditta, que coloca numa mesa de conversa wna televisio com a imagem de um homem comendo, indife- rente a0 que se passa ao seu redor evoca aquelas imagens de video de sucesso que mostram sma lareira, um aquirio ‘ou um globo espelhado. As uvas d2 Zéuxis continuam ver- des para os passarinhos pés-modernos, Aarte depois do video Rewindlplaylfast forward ‘A praticidade da imagem em video penetra no domi- nio da manipulagdo das imagens e formas artisticas: as ‘operagdes basicas num aparelho de video (voltay, dar pau ‘sa numa imagem etc) agora fazem parte da bateria de de cisdes estéticas dle todo artista. Tal € 0 e480, por exemple, do zapping: como os filmes, as exposigées se tornam, se- gundo Serge Daney, “pequenas grades de programas dis- pares e zappaveis”, nas quais o vsitante pade compor sew pr6prio percureo, Mas a mudangaincontestavelmente mais profunda consiste nas novas abordagens do tempo, ctiadas pola presenca do video doméstico: a obra de arte, como vi- ‘mos, no se apresenta mais comgo traco de uma agdo pas ada, e sim como 0 angneio de um acontecimento futuro ‘o(eito-antincio") ou a proposta de uma acio virtual’. Em 1 Nkces Mousa “The lle effet rn) in Flos et 1988 106 NICOLAS BOURRLALD todas os casos, ela se apresenta coma uma dicrago mute- riql que cada ocorréncia expositiva se encarrega de reatua- lizat ou reviver: a imagem se torna uma imagem fixa, um momento congelado que, no entanto, nao apaga o fluxo ce gests ¢ formas do qual provém, Essa dima categoria 6 de Tonge, a mais numerosa: para citar apenas artistas re- centes, as Personnages vioants @ réactiver de Pierre Joseph, a Arbre d'anniverseire de Philippe Parreno, os quadcos vivos de Vanessa Beecroft e as Peintires homéopathiques de Fa- bbrice Hybert se apresentam como duragées unitarias e es- peciticas possiveis de sevent reencenadas. Nelas, 6 poss vel inerustar outros elementos ou imprimir um ritmo diferen- te (fast forward), come os videos em que tantas vezes re ssultam. Pois hoje parece notmal que uma peca, uma aga ‘ou uma performance resulte numa comunicagao em fita de video: a fita constitui 0 concertrado da obra, que pode ser dilu‘do em diferentes contextos de exposigio. © video, co- ‘mo se constata também no dominio judi 50 Rodney King, filmado por um “amedor” que estava para ser espancado pela policia de Los Angeles, ou com as po- lémicas resultantes do easo Khaled Kelkal), funciona coma ‘uma prova. Na arte, ele significa € comprova a realiciade, a conctetide de uma pritica as veves difusa e fragmen- tada demais para ser apreendida ditretamente (penso em Beecrott, Peter Land, Carsten Holler, Lothar Hempel). Mas essa utilizagio artistica da imagem em video ndo eai do cfu: a estética da arte conceitual jé era uma estética cons- tatadory, fatual, da ordem da prova, ¢ as préticas recentes io com 0 ca~ FSTETICA RFLACIONAL: 107 apenas continuam a apontar 0 “mundo inteiramente ad- rministrado” (Adorno) em que vivernos, com o mode literal e desenvolto que 60 video em vez do modo analitico e des- construtivo da arte conceitual Russo ii democratizagao dos pontos de vista? O equipamento de video participa da democratizagao do processo de produgdi de imagens (dando continuidade logica a fotografia); todavia, ele também marca nossa vida cotidiana coma goneralizagéo da televigilancia, contrapon- toda seguranga publica ds sessbes de vileo familiares. Mas © video ndo tem nada a ver cotn a vigilancia? Nao fazem ambos parte de um mundo acuado pelas objetivas, calado nos procedimentos com os quais observa a si mesmo, 1e- ciclando sempre as formas que produ ¢ redistribuindo-as sob formas diferentes? Poisa arte depois do video torna as formas ndmades ¢ fluicas, permite a reconstrugée analo- stica dos objetos estéticos do passado, a “recarga” de for- mas historicizadas, Nisso, ela justifica a profecia de Senge Daney sabre o cinema: "sO sera guardado o que puder ser refeito"’.. Assim Mike Kelley e Paul McCarthy “rence satam” performances de Vito Acconci usando manequins 1m cenérios de folhetim (Fresh Accorei, 1995); assim Pierre | uyghe filmou um remake, cena a cena, da Janela indisere- uy de Alffed Hitchcock num HLM parisiense. Se 0 video, 15. Serge Demey, “Jounnal de Var pace ix Traffic €. 2, wens, 1991, ca ‘slag 108 NICOLAS BOLRSIALID contudo, permite que (praticamente) qualquer um faga um. filme, ele também facilita a tomada de nossa imagem por (praticamente) qualquer tm: nossos percursos pela cidade estdo sob vigildncia, nessas préprias produgées culturais, estdo submetidas a uma releitura/teciclagem que compro- va a ubigitidade dos instrumentos dticos © seu atual pre~ dominio sobre qualquer outro instrumento de produsio, © progiama Security by fuliz, iniciativa de video-vigilancia artistica “Citigida” por Julia Sher, explora a dimensio po licial e de seguranca piiblica da camera de video. Ao lidar com a iconografia da seguranca (grades, areas de estacio- namento, telas de controle}, julia Sher converte a exposicio ‘num espaco.a que a pessoa vai para ser vista e para conferir sua visibilidade, Numa exposicio coletiva, 0 dinamarqués Jens Haaning instalou um mecanismo de fechamento au- tomético que encerrava o visitante numa sala vazia, exeto pela presena de um video-espido: capturada como um in- selo, 0 observador transforma-se em tema do olhar do ar- tista, representado pola cimera, Para além dos evidentes, problemas éticos suscitados por esse tipo de intervengio @s relagdes entre o artista e © piblico tornam-se rapida- ‘mente sadomasoquistas), somos obrigados a constatar que, ‘ap6s Present continuous past(s) a extraordindtia instalagao de Dan Graham (1974) que difundia a imagem de todos ‘os que entravam, mas apés um pequeno intervalo de tem- po, 0 visitante filmado passou de “personagem’” teatral ‘numa ideologia da representacdo para pedestre suibmetido a uma ideologia repressora da circulagio urbana, © tema {ESTEUCA RHLAKIONAL, 109 do video contempordneo rarainente é livre: ele eslabora para grande recenseamento visual, individual, sexual Gtnico a que se dedicam atualmente todas as instincias de poder de nossa sociedade, A maneiza como os artisias tratardo esse problema definird o futuro da arte enquanto instrumento de eman- cipacio, enquanto ferramenta politica para a liberagio das subjetividades. Nenhuma técnica 6 tema para a arte: ao si- tuar a tecnologia em seu contexto produtivo, a0 analisar suas relagiies com a superestrutura ¢ 0 conjunta de com- portamentos ofbrigatérios que fundamentam seu uso, tor- na-se possivel prdurir modelos de relagdo com o mundo gue seguem no sentido da madernidade, Do contrétio, a arte se tornaré um elemento de decoragao high-tech numa sociedade cada vex mais inquietante PARA UMA POLITICA DAS FORMAS Coabitagoes Notas sobre algumas extensdes possiveis de uma estética relacional Sistemas visuais Antes tinhamos de levantar 05 olhas para © fone (que materializava a presenga divina sob a forma de uma imagem. ‘No Renascimento, a invengio da perspectiva mono= cular central transformou o observador abstrato em indivi- uo conereto; o lugar que lhe atribuia odispositivo pictorica também o isolava dos outros. Evidentemente, cada um po- de olhar os aftescos de Piero ou de Urcello a partir de va- rios pontos de vista. No entanto, a perspectiva atribui um agar simbilieo ao olhar e confere a0 observador seu lugar ‘numa socialidade simblia, 2 [NICOLAS BOURRIALD A arte moderna modificow essa relagio, ao permitir ‘miiltiplos olhares simultneas no quadro ~mas nao seria o caso de falarmos em importacéo, visto que esse modo de lei- ‘a existia, sob formas diferentes, na Africa ¢ no Oriente? Rothko ¢ Pollack inscreveram em suas obras a neces sidade de um “envelope” visual, cabendo ao quadro en- globat, ou melhor, submergir 0 espectador num ambiente cromético. Jé foi bastante apontada a semelhanga entre 0 efeito “envolvente” do expressionismo abstrato € o efetto buscado pelos pintores de fcones: nos dois casos, o que se tem é uma humanidade abstrate, jogada no espaco picts rico. A propésito desse espago que cnvolve 0 espectador ‘num meio ou ambiente construfto, Eric Troney fala mum feito all arotend, em opasigao ao all over, que se aplica s0- mente as superficies planas, A imagem &une momento Uma representagao & apenas um memento M do real; toda imagem é um momento, assim como qualquer pon- to no espago é a lembranca de um tempo x, bem como 0 reflexo de um espago y, Essa temporalidade é parada? Ou, pelo contrério, produ potenciaticades? © que é uma ima- gem que nao contém nenhum futuro, nenkuma "possibili- dade de vida", senao uma imagem marta? que ntosirare os artistas A realidade 6 aquilo que eu posso comentar com ou- trem, Ela se define apenas como um produto de nego~ {STETICA RELACIONAL 113 ciagfo, Sair da realidade & “louco’: fulano v@ um coelho alaranjado em meu ombro, eu néo vejo; af a conversa se fragiliza ¢ se retrai, Para encontrar um espago de negucia- a0, devo fazer de conta que vejo esse coelho alaranjacio em meu ombro; a imaginagio aparece como uma prétese que se fixa no teal para criar mais intercdimbio entre os inter locutores. A arte tem por finalidade reduzir a parte mecd- nnica em nés: ela almeja destruir todo acordo aprioristico sobre o percebido, Da mesma mancita, o sentido é 0 produto de uma in. teragio entre o artista ¢ 0 espectador, ¢ nao um fato auto- ritério. Ora, na arte atual, eu, enquanto espectadar, deve trabalhar para produzir sentido a partirde objetos cada vez ais leves, mais voliteise intangivels. Antes, o decoro do quadro fornecia formato e molduza; hoje muitas vezes te- ‘mos de nos contentar com fragmentos, Nao sentir nada é no ter trabathado o suficiente. (Os lnates da subjetioidade individseal (O que ha de apaixonante em Guattari ésua vontade de produzir maquinas de subjetivagio, de singularizar todas assituagdes para lutar contra “a usinagem mass-mediética’, aparato de nivelamento a que estamas submetidos, ‘Aiidzologia dominante quer que o artista seja sozinho, sonha com o artista solitirio e indémito: “86 se escreve So- zinho", “é preciso se afastar do mundo’, blablablé... Essas imagens de Epinal confundem duas idéias distintas: a re- cusa das regras comunitérias vigentes © a recusa do co- 14 NICOLAS HOURRIAUD letivo. Se for o caso de rejeitar qualquer comunitarismo ‘imposto, é precisamente para substitui-lo por redes rela~ cionais inventadas, Segundo Cooper, a loucura nao esti “na” pessoa, € sim no sistema de relagdes do qual ela participa. Nao se fi- ‘ca “louco" sozinho, porque nunca se pensa sozinho, exce- to para postular que o mundo possui um centro (Bataille). Ninguém esereve, pinta ou cia sozinho. Mas é preciso fa zer de conta. A engonharia da intersubjelivilate 05 anos 1990 viram 0 surgimento das inteligencias coletivas e do modo “rede” no manejo das produces artis- ticas: a popularizagio da rede da internet, as priticas cole tivistas vigentes no meio da mdsica teeno e, de modo mais eral a cresvente industrializagio do lazer cultural produ iram uma abordagem relacional da exposigio. Os artis- tes procuram interfocutores: visto que o paiblico continua a ser uma entidade bastante irreal, eles inchiem esse interio~ cutor tio préprio processo de producao. O sentido da obra nasce do movimento que liga os signas emitidos pelo artis te, mas também da colaboracio dos Individuos no espago expositivo, (Afinal, aealidade é apenas o resultado transi- ‘rio daquilo que fazemos juntos, como escrevia Matx) Uma arte sem efetto? Fssas priticas artisticas relacionais tm sido objeto de tua critica eonsiante: como elas se limitam a0 espaco das — ESTETICA RELACIONAL 15 galetias e dos centtos de arte estariam conteadizendo esse dosejo de socialidade que funda o sent do delas, Assim 80 criticadas por negar os conflitos sociais. as diferengas, aim possibilidade de comunicagdo num espaco social alienado, @ por favorecer uma modelizagao ihisriae elitista das for- mas de socialidade, limitada 20 meio artistico. Mas a pop art deixa de ser interessante por reproduzir os eédigos de alicnagSo visual? Deve-se critica a arte conceitual por ter uma visio virtuosa do sentide? As coisas nio sio tio sim- ples assim. A principal queixa contra aarte relacional é que cla representaria uma forma eduicorada de eritica social. O que esses eriticos esquecem & que 0 contetido des- sas proposigdes artisticas deve ser julgado formalmente: com relagdo & histéria da arte e levando em conta o valor politico das formas (0 que chamo de “sritério de cocxistén- cia”), a saber, a transposigio dos espagos consteuicos ou representados pelo artista para a experiencia vivida, a pro~ jegdo do simisstico no veal, Seria absurd julgar 0 conteti~ do social ou politico de uma obra “relacional” descartando pura e simplesmente seu valor estéteo, como querem os que enxergam numa exposicio de Tiravanija ou de Carsten, iéller apenas uma pantomima falsamente ut6pica, ¢como ontem queriam os defensores de uma arte “engajada’, is~ to é, de propaganda. Pois essas iniciativas nao provém de uma “arte social” ou sociokigica: elas visam & construgio formal de espagos~ tempos que nao representarian a alienacio, ndo transpo 116 NICOLAS BOURRIAUD ria a diviséo do trabalho para as formas. A exposicao & um datersticio que se define contra a alienagao reinante em todos os outros lugares. Por vezes ela reproduz ou deslo. aa formas dessa alienagéo — como na exposisao de Phi= lippe Parreno, Made on the 1 of May (1995), eyjo centro era uma linha de montagem de atividades de lazer. A exposi= $0, portanto, néo nega as relagies socials vigentes, ies cla as distorce e projeta num espago-tempo coditfieado pe- lo sistema da arte ¢ pelo proprio artista, Pode-se perceber ‘numa exposigio de Tiravanija, por exemplo, uma forma de animago ingénua, e deplorar a fragilidade ea artificialida- de do momento de convivio proposto: a meu ver, isso seria ‘um equifvoco quanto ao objeto da prética. Pois sua finali- dade nio & 0 convivio, e sim o produto desse convivio, ou. seja, uma forma complexa que alia uma estrutura formal, objetos colocados’a disposigao do visitante e a imagem efé- ‘mera nascida do comportamento coletivo, De alguma ma nelra, 0 valor de uso do convivio mescla-se a seu valor de exposigdo dentro de um projeto plastica. Ngo se trata de representar mundos virtuosos, mas de produzir as condi- ‘es para taro. 0 jiaturo poten das formas No falta um projeto politico & nossa época, mas ela aguarda formas capazes de enearné-lo, Pois a forma pro- uz ou modela o sentido, orienta-o, leva-o a repercutir na vida cotidiana. A cultura revolucionéia crion ou popula- zou varios tipos de socialidade: a assemblia Gaviotes, {STETICA RELACIONAL 17 Agoras), o sit-in, a manifestagio © seus cortejus, a greve © suas derivagies visuais (bandeirolas, paniletos, organiza- Go do espaca ete). Nossa cultura explora o dominio da estase: paralisa Ges, camo a de dezembro de 1995, em que 0 tempo € or- ganizado de outra maneira; free parties que se prolongam. por varios dias, empl lia; exposigdes que podem ser vistas durante 0 dia inteiroe so desmontacdlas apés o vernissage; virus informaticos que bloqueiam milhares de programas an mesmo tempo. E no congelamento das maquinas, na pausa sobre @ imagem, que nossa época encontta sua eficicia politica lo, asin, « nog de sone © vigi- inimigo que primeiro devemos combater se encarna nama forma social: a generalizagao das relagdes fornece dotfcliente em todos os niveis da vida humana, do traba- Iho’ moradia, passando pelo conjunto de contratos técitos ‘que determinam nossa existéncia privat, A sociedade francesa é tanto mais afetada por sofrer de um duplo bloqueio: as instituigdes nacionais apresen- tam um deficit democratico, ¢ a economia mundial tenta Ihe impor modos de reificago que afetam todos 0s aspec- tos da existéncia, Pode-se ver o relativo fracasso de maio de 1968 na Franca por meio do baixo indice de institueionalizagiio da liberdade.” © fracasso global da modernidade evidencia-se na transformagie dao relagSee inter-humanas em produtos, us ‘NICOLAS HOURRIALD za pobreza de alternativas soliticas e na desvalorizagio do trabalho enquanto valor naa econdmico,& qial no corres- ponde nen huma valarizagao do tempo livre. A ideologia glorifica a solidao do criador e zomba de qualquer comunidade. Sua eficdcia consiste em promover o isolamento dos autores, revestindo-os com um produto de segunda mao € louvando sua “originalidede”, mas a ideologia ¢ invist vel: sua forma é no ter forma, A falsa multiplicidade é sua asticia suprema: diariamente, reduz-se o leque dos pos- i, enquanto proliferam os names que recobrem essa realidade empobrecida. Reabilitar aexperimentagio A quem se pretende erganar com a ideia de que seria bom e vitil voltar a valores estéticos baseados na tradigao, no dominio das técnicas, 10 respeito As convengées his ‘ricas? Se hé um campo ence ndo existe 0 acaso, & 0 da eriagao artistica": quando se quer matar a democracia, co- meca-se arquivando a experimentagio e termina-se acu- sando a liberdade de hidrofobia, Estétca relacional + situagdes construidas © conceito situacioniste de “situagio construida’” pre- tende substituit a representagio artistica pela realizagio *O acs ¢ importa, as gens ns fea da peda Un wer pst, abe aba tide da Sind eto ele poet ea tec STETICA RELACIONAL nn experimental da cnergia artistica nos ambientes do coti diana, Se 0 diagnéstico de Guy Debord sobre 0 proceso de produgdo espetacular nos parece implacdivel, a teoria si- tuacionista negligencia o fato de que 0 espetéculo, ao ata- car priotitariamente as formas das relagSes humamas (ele 6 "uma relacao social entre pessoas intermestiada por ima- gens"), 56 poderé ser pensado ¢ combatide por meio da produgiio de novos modos de telagies entre as pessoas. (Ora, a nogio de situago no implica obrigatoriamente ‘uma coexisténcia com meus semelhantes: pode-se imagi- nar “situagées construidas” para uso pessoal, cam exchi~ sio deliberada dos outros. A nagio de “situagao” reconduz a unidade de tempo, lugar e agao para um teatro que no supe necessariamente uma telagdo com © Outro, Ora, a pritica artistica & sempre a relagio com o Outro, ao mesmo tempo em que constitui uma relagdo com o mundo. A situa ¢@o construida nao cortesponde forgosamente a um mundo telacional, que se elabora a pertir de uma figura da troca. Seri por acaso que Debord divide o tempo espetacular em dois, 0 “tempo intercambiavel” do trabalho ("acumulagéo infinita de intervalos equivatentes") e 0 “tempo de consu- mo” das férias, que imita os ciclos da natureza, mas no passa de tum espeticulo “a um grat mais elevada”? A no- io de “tempo intercambiavel” mostra-se aqui puzamente ncgativa: 0 elemento negative no € o intercémbio em si, que é fatot de vide e socialidade; s8o as formas capitalistas da troca que Debord identifica, talver indevidamente, com co dnterc@mbio human, Essas formas de treca nascem do 20 NICOLAS ROLRREALD “encontra’” entre a acumulaydo do capital (0 empregador) ¢ ‘a forea de trabalho disponivel (0 empregadc), sob a forma de um contrato. Blas representam nao a traca no abso to, e sim uma forma hist6rica de produgao (0 capitalism}: © tempo do trabalho, portanto, 6 menos um “tempo inter cambiavel” em sentido estrito do que um tempo compnivel por um salarto. A obra que forma um “mundo relacional’, ‘um interstfio social, atualizao situac lia, na medida do possfvel, com 0 mundo da arte. smo e © reconci- O paradigma estético (Félix Gucttarie a arte) A obra prematurameme interrompida de Félix Guat- tari nfo constitui um conjumto claramente recortado, com ‘um subconjunto que tratasse especificamente da questo estética, Para ele, a arte era um material vivo, mais do que uma categoria do pensamento, © essa distingle define @ propria natureza de seu piojeto filosGfico: para além des sgéneros e das categorias, escreve ele, “o importante & sa~ bet se uma obra concorre efstivamente para uma produgso mutante de enuinciagio®, e nfo delimitar os contornas es pecificos de tal ou tal tipo de enunciado. A psykhié de um. lado, 0 sacius de outro, ambos se constroem sobre arranjos produtivos, e a arte, mesme que privilegiada, € apenas um entre outros, Os conceitos de Guattari so ambivalentes, maleaveis, a ponto de ser possivel traduzi-los em muiltiplos sistemas: € 0 caso, portants, de discernit af uma eatética STENCA RELACIONAL, m potencial, que adquire uma consisténcia real somente 0 caso de se entregar a uma constante transcoditicago. Pos © psiquiatra da clinica de La Borde sempre concedeu um. lupar de destaque ao “paradigma estético” no desenvalvi- ‘mento de sua reflexio, mas escrevent pouguissimo sobre a arte propriamente dita, exceto o texto de wna conferéncia sobre Dalthus ¢ algumas passagens de suas obras princi pais, no Ambito de um assunte mais geral. Esse paradigma estético, porém, jf 6 exercico na prs- pria escrita. O estilo, na medida em que podemos empre- gar esse termo—ou melhor: o reo da escrita guattariana ~ cerca cada conceita com vias imagens: os processos de pensamentos sio descritos, na maioria das vezes, como ca: as fendmenos fisicos, dotados de consisténcia espe “placas” que andam a deriva e os “planos* que se encal- am, a8 “maguinarias” ete. E um material sma sereno, em que os conceitos, para ter eficScia, devem revestit 03 con- tornos da realidade comereta, devem se tervitorializar em imagens. A escrita de Guattari é trabalhada por um cui- dado plastico evidente, e até esculturel, mas com pouca preocupacio pela clareza sintética, Sua linguagem as ve~ 20s pode parecer obscura: ele ndo hesita em formar neo- logismos (“nacionalitério’, “refranizar”) e palavras-valise, lem usar termes em ingles ou alemao tal come Lhe vém a0 ‘papel, em encadear as proposigGes sem consideragao pelo leitor, em jogar com significayées secundérias de um ter- ‘mo corrente. Seu fraseado é totalmente oral, caético, “de- Tirante”, espontineo, repleto ¢e abreviaturas enganadoras, 122 OLAS BOURRIAUL 0 contrétio da ordem conceitual que reina nos eseritos de seu colega Gilles Delewe Se Guattari ainda nos parece muito subestimado, fre qientemente reduzido ao papel de acclito de Deleuze, ho- je & mais facil reconhecer sua contribuigdo especitica nos textos a duas mios, desde LAnti-Oedipe (1972) a Ouiestoe (que la phitosophie? (1991). Do conceita de *reftdo” &s pas sagens magistrais sobre os mods de subjetivacio, a marca guattariana destaca-se nitidamente, ressoando com forga crescente no debate filoséfico contemporineo. Por sua ex- trema singularidade, pela atengao que concede & “produc de subjetividade” e seus vetores privileglados, as obras, 0 pensamento de Félix Guattariligam-se diretamente ds ma- quinarias produtivas que constelama arte de hoje. No atual cestatlo de pentiria da zeflexao estética, cromos ser cada ver. ‘ais dtl, qualquer que seja o grau de arbitrariedade envel- vido em tal operacao, proceder a uuna espécie de enrerto do pensamento de Guattari no campo da arte contemporanea, criando, assim, um “enlagamento polifénico” cheio de pos- sibilidades. Agora, trata-se de pensar a arte com Guattari, com a cata de ferremantins que ele nos deixou, A subjetividade conduzida e produzida Desnaturalizar a subjetividade A nogio de subjetividade cestamente constitui o prin- cipal fio condutor das pesquisas de Guattari, Ble consagrou {SIRNICA RELACIONAL 128 sua vida a desmontar e reconstruir as mecanismos e redes tortuasas da subjetividade, a explorar seus componentes ¢ ‘modos de funcionamento, chegando a converté-la na pe- dia que sustenta 0 edificio social, Psicanilise e arte? Duas modalidades de producae de suibjetividade interligadas, dois regimes de funcionamento, dois sistemas de instru- mentais privilegiados que se unem para a possivel solugdo do “mal-estarna eivilizagao™...A posigao central que Guat tari atribui a subjetividade determina de pontaa ponta sua concepedo da arte e seu respective valo:. A subjetividade como produgao, no dispositivo guattariano, desempenha ‘papel de pivd ao qual a modos de conhecimento e agao podem se engatar livremente e se langarem busca das leis do socius. Aligs, & isso que determina o campo lexical em pregado para definir a atividade artistica: nao resta nada Go fetichismo habitual nesse registro discursivo. A arte 6 Gefinida como um processo de seiniatizagi ni verbal, e ni como uma categoria separada da produgio global. Extir- pparo fetichismo para afirmar a arte como modo de pensa~ mento e “invencao de possibilidades de vida" (Nietzsche) 4 finalidade itima da subjetividade é a conquista inces- sante de uma individuagio. A prética artistica forma um territétio privilegiado dessa individuasda, fornecendo mo~ elizagies potencials para a existincia humana em geral. Enisso que 0 pensamento guattariano pode ser definide coma unt vasto empreendimento de des-naturalizagio da subjetividade e seu desdobramento no campo da produ- (G0, teorizando sua insergio no quadro da economia ge- 124 NICOLAS BOUREIALD sal das trocas, Nada mais natural do que a subjetividade. E nada mais construido, elaborado, trabalhado. Criam-se no- ‘was modalidades de subjetioagao assim como um artists pldsti- ca cria nonas formas «partir da patetaa sua disposic@o. © que importa ¢ nossa capacidade de criar novos arranjos dentro do sistema de equipments coletivos, formado pelas ideolo- sits € categorias de pensamento, criagio que apresenta va rias semelhangas com a atividade artistica. A contribuigéo, le Guattari para a estética seria incompreensivel s¢ niio destacdssemas seu empenho em desnaturalizar e desterri- Lorializar a subjetividade, em tiré-la de seu dominio reser vado, o sacrossanto sujeito, para enfrentar as inguietantes rmangens em que proliferam os arranjos maquinicos € 0s territdrios existenciais em formagao, Inquietantes porque © ndo-humano faz. parte delas contra os esquemas feno- menolégicos que crivam 0 pensamento humanista. Proli- feragdo porque se toma possivel decodificara totalidade do sistema capitalista em termos de subjetividade: ela reina por toda parte, tanto mais poderosa quando presa em suas redes, seqiiestrada em proveito de seus interesses imedia~ tos, Pois “tal como as méquinas sociais que podem ser clas- sificadas sob a rubrica geral de equipamentos coletivos, a rmaquinas tecnolégicas de informagio e comunicagio ope- 4a Gusta, Oma Paes, Geli, 1992, p18 [8 as Cane septa: Ane Lila de Olver Lida Cid Lsto, S50 Paul, Ears 3, 1938 ‘cea erases pment geando sass citadesremeterem 14m d= ‘Srvslvinenta do sur Pwr exemple algomascagboe nig serio especiicadas orjossce contd remotes was passopens cua virast9s ESTETICA RELACIONAL 125 smmzno centro da subjetividade humena*?.€ preciso apren- der a “captar, enriquecer e reinventar” a subjetividade, sob pena de vé-la se transformar numa aparelhagem coletiva rigida a servigo exclusivo do poder. Estatuto e funcionamento de subjetividade Essa dentincia da naturalizagio de fato da subjetivi- dade humana é de importancia capital: a fenomenologia brandeia a subjetividade como emslema insuperével da realidade, fora da qual no poderia existir nada, enquan- to o estruturalismo via nela uma supersticio ou o efeito de uma ideologia. Guattari oferece uma leitura compie- x2 ¢ dindmica ~ a0 eontrério do endeusamento do sujei- to que ocorre na vulgata fenomenoldgica -, mas também refratéria & petrificagao operada pelos estruturalistas, que colocam a subjetividade na intersegio dos jogos de signi ficantes. Pode-se dizer que o método de Guattari consiste ‘em levar @ ebuligio as estruturas congeladas por Lacan, Al thusser ou Lévi-Strauss, ao substituir a ordem imével das andlises estruturais © os “movimensos lentos” da historia Draudeliana pelas ligagdes inéditas, cinamicas e ondula- térias que a matéria acquire quando é reorganizada sob o efeito do calor. A subjetividade guattariane é determinada por uma ordem cadtica, ¢ ndo, camo no caso dos estrutu- ralistes, pela busea dos cosmos ocukas sob as instituigGes a Sis op p18 126 [NICOLAS BOLIKLAUD cotidianas. “Resta encontrar um certo equilfbrio entre as descobertas estruturalistas, certamente importantes, ¢ sua gosta pragmatica, para nao sogobrar no abandonismo so- Gial pés-moderno”. Esse equilibrio 56 surgird com a condicdo de obser- var 0 sacius em sua temperatura real, no calar das relacdes inter-humanas, ¢ ndo artificialmente “resfriado" para me- Ihor observar suas estruturas... Essa urgéncia cadtica leva a. um certo mimero de operacbes. A primeira consiste em descolar a subjetividade do sujeito, em dissolver os lagos que formam seu atributo natural, E preciso, portant, tra~ ar uma cartografia que ultrapasse largamente os limites do individuo; mas ¢ estendendo o territério do subjetivo até as maquinarias impessoais reguladoras da socialidade que Guattari pode apelar i sua “re-singularizagio”, supera~ io do conceito tradicional de ideolagia. Apenas o dorninio dos “arranjos coletivos” da subjetividade permite inventar arranjos singulares; a verdadeira individuago passa pe Ja invengao de dispositivos de reciclagem eco-mental, as- ‘sim como Marx $6 pode trabalhar para uma emancipacao do Homem no mundo do trabalho depois de ter posto em evidéncia a alien: econémiea, Assim, Guattari apenas mostra a que ponto a subjetividade esta alienada, na de- pendéncia de uma superestrutura mental, indica possibi- lidades de Iiberagéo. 3 Chnesmowe, p23. [ESTENTCA RELACTONA 27 Esse fundo marxista se vé até nos termos com que ‘Guattari define a subjetividade: “o conjunto das condigoes que possibilitam © surgimento de instincias individuais, e/ou coletives como Territério existencial auto-referen- te, na adjacéneia ou na fronteira de uma alteridade tam: ‘bém subjetiva"s, Em outros termos, a subjetividace s6 pode sor definida pela presenga de uma outra subjetividade; ela 86 constitui um “territGrio” a partic de outros territScios que encontra; formagéo evolutiva, ela se molda pela di- ferenca que a constitui em principio de alteridade. 6 nes- sa definigao plural, polifénica, da subjetividade que surge © abalo de perspectivas que Guattari inflige & ardem fi- oséfica. A subjetividade, expliea ele, néio pode existir de maneira autnoma, e nunca pode fundar a existéncia do sujeito. Ela existe apenas em acoplamento: associagio com “grupos humanos, maquinas socioecondmieas, méquinas informacionais’s Intuigao fulgurante, decisiva: se 0 aba- Io de Marx, em suas Teses sobve Feuerbcl, consistin em de- finir a esséncia do homem como “o conjunto das relagdes sociais’, Guattari, por sua vez, define a subjetividade como © conjunto das relagdes que se criam entre 0 individuo & os vetores de subjetivagio que ele encontra, individuais o1 coletivos, humanos ou inumanos. Percepgao decisiva: bus cava-se a esséneia da subjetividade no sujeto, e vem-se a encanta, sempre descentrada, em “regimes semiéticos has po, 5 sets lp, Pa, Cali, 198 p24 [Asis lags, as Maia Cristie F tenon Capes, Paps 195), 128 NICOLAS BOURRLALD a-significantes”... Com isso, Guattarl mostea-se ainda tr: bbutdrio do universo referencial estruturalista. Tal como na floresta lévi-stranssiana, o significante reina no “incons- ciente maquinico” de Guattarit: a “produgio de subjeti- vidade coletiva” fornece os significantes em abundancia, f eles servirao para construir “tenitérios minimos” com 608 quais 0 individuo podera se identificar. Quais 530 05- ses significantes fluidos que compdem a produgdo de sub- jetividade? Em primeiro lugar, o meio cultural (‘a familia, a educagio, o ambiente, a religiéo, a arte, o esporte”); de- pois, 0 consumo cultural (‘os elementos fabticados pela inctistria das miiias, do cinema etc”), artefatos ideolGgi- cos, pegas destacaclas da maquinaria subjetiva... B por fim © conjunto das maquinarias informacionais, que formam, © registro a-semioligico e a-lingiiistico da subjetividade contemporinea, pois “funcionam paralela ov independen- temente do fato de produzirem significagdes". © proces- so de singularizagao/individuagio consiste exatamente em intograr esses significantes em “territérios existenciais” pessoais, enquanto instrumentos que servem para inven- tar novas relagdes “com o corpo, com o fantasma, com © ‘tempo que passa, com os ‘mistérios’ da vida e da morte’, e também para resistir & uniformizagdo dos pensamentos e comportamentos?, Nessa perspectiva, as produgdes sociais devem passar pelo crivo de uma “ecosofia mental”. A sub- jetividade individual forma-se a partir do tratamento dos 6 Linconscient ruchinique. Essa de sctizoonelye, Paris, Recherches, 1979. "is es oon ape, 922 [STHTICA RELACIONAL 129 proditos dessas maquinarias frato de dissensos, de sepa- races, de distanciamentos, ela ¢ insepardvel do conjunto das relagSes socials tal como os problemas ligados ao am- biente sio indissocisveis do conjunto das relagées de pro- dug, Essa determinagao de tratar a existéncia como uma rede de intertependéncias que biota de ume ecologia uni ‘ria define as relagées de Guattari com a coisa axtistica ela nao passa de uma placa de sensibilidade entre outras, ligada a um sistema global. Assim, ateflexdo sobre a ecolo- gia leva Guattari a tomar consciéneia, antes da matoria dos “profissionais” da estética, de que os modelos roménticas, ainda vigentes para descrever a arte moderna, sao obsole- tos. A subjetividade guattariana fornece a estética um pa- radigma operacional que, por sua vez, & legitimado pela pratica artistica dos tiltimos trinta anos, Asunidades de subjetivagio Se Kant admitia as paisagens e 0 conjuito das formas naturais no earnpo de aplicagio da estética, sabemos que “Hegel restringia esse campo, reduzindo-o exclusivamentea essa classe particular de objetos constituida pelas obras do cespitite. A estétiea roméntica, que talvez ainda ndo tenha- ‘mos realmente abandonado’, postula que a obra de ar te, produto da subjetividade humana, exprime o universo ‘mental de um sujeito. No século xx, intimeras teorias dis- Sheringham, dtmuntin@ i piso tite, Fas Paya 130 SICOLAS BOURRAUD cutiram essa verso romantica da criaglo, sem conseguir, porém, derrubar totalmente seus fundamentos, Citemos a cobra de Marcel Duchamp, cujos ready-mades redziram a intervengao do autor a escolha de um objeto em série e & sua insercdo num sistema lingilistico pessoal —assim rede- finindo o papel do artista em termos de responsabilidade para com 0 real, Ou ainda a estéticn generalizada de Roger Caillois, que colocava em pé de igualdade as formas nas idan por acaso, por erescimento ou por molde, ¢ as for- mas safdas de um piojeto’, As teses de Guattari, por um, lado, seguem na mesma diregio ao recusar a nogaoroman- tica de génio e ao conceber o artista mais como um opera corde sentido do que como um puto “criador” dependent de uma inspiracio criptodivina; por outro lado, no cor respondem aps hinos estruturalistas & “morte do autor” Para Guattati, & um falso problema; sdo os provessos de produciio de subjetividade que precisam ser redefinidos na, tica de sua coletivizagao. Como o individuo néo detém ‘© monopéilio da subjetividade, pouco importa © modelo do Autor e seu suposto desaparecimento: “os dispositives de produgaio de subjetividade podem existir na escala das megal6poles ou na escala dos jogos de linguagem de um. individuo”®, A oposigdo romantica entre individuo e so- ciedade, que estrutura 0 jogo artistico de papéis © seu sis- tema mercantil, tomnou-se totalmente eaduca. Apenas uma concepgio “transversalista” das operagées criativas, dimi 4. Roger Calo: Coteneasenneses, Pari Callan 1978 10, Chose p38 oie ate et conte [SSTPNICA RELAGONAL, 131 nuindo a figura do eutor em favor da do artista-operador, pode abarear a “mutagdo” em curso: Duchamp, Rauschen~ berg, Beuys, Warhol, todos construiram suas obras sobre uum sistema de trocas com 06 fluxos sociais, deslocando © ito da “torre de marfim” mental que a ideologia roman- tiea atribui ap artista, Nao por acaso,a progressiva desma- terializagao da obra de arte, ao longo de todo 0 séeulo xx, vyeio acompanhada por uma Srrupgéo da obra na esfera do trabalho. A assinatura, que no campo artistico sela os me- eanismos de troca da subjetividade {forma exclusiva de sua ifusio, que a transforma em mercadoria), implica a perda a “polifonia’, dessa forma bruta da subjetividade que 6 a polivocidade, em favor de uma fragmentagao esterilizan- tee reificadora, Guattari, em Chaosmose, lamenta o fim de ‘uma pritica usual nas sociedades ateaicas, que consistia em dar vérios nomes préprios & mesma pessoa, Noentanto, a polifomia recompde-se num outro.nivel, naqueles complexos de subjetivagzo que ligam dominios heterogéneos: esses blocos “individao ~ grupo—miéquina~ trocas miltiplas"* que “oferecem a pessoa a possibilidade de recompot para si uma corporeidade existencial, [.] de se Tessingularizar” no quacro de uma tetapia psicanaliti ca. Basta aceitar que a subjetividade nao brota de nenhu- ma homogeneidade: pelo contrario ela evolui por recartes, segmentando ¢ desmembrando as unidades ilusérias da vida psiquica. “Fla nao conhece nenhurna instancia dami- Ti Glasnwe, p12. 102 NICOLAS ROURRIALD nante de determinagio que guie as outras instancias se- gundo uma causaliéade univoca"Y. Aplicada as priticas artisticas, essa constatacio provoca 0 desmoronamento to- tal da nogdo de estilo. O artista, munido da autoridade da assinatura, geralmente & apresentado como o maestro da corquestra de faculdades mannais ¢ mentais concentradas ‘em torne de um principio Ginico, eeu eslilo: 0 artista ocicon- tal moderno define-se, em primeito lugar, como um sujeito ccuja assinatura funciona como agente “unificador dos ¢5~ tacos de conseiéncia’, alimentando uma confusdo delibe rada entre subjetividade e estilo. Mas serd ainda possivel evocar 0 sujeito criador, o autor ¢ seu dominio, quando os “companentes de subjetivagao” — que "trabalham mais ou ‘menos por conta prépria’*~s6 aparecem unificados devi- do a uma ite sdo a assinatura e 0 estilo, garantias da mercadoria? © sujeito guattariano é formado por placas indepen- entes que remetema diferentes ecoplamentos 4 deriva, in do ao encontro de campos de subjetivacio heterogéneos: (0 “capitalismo mundial integrade” (CMI, descrito por ‘Guattari, nao se preocupa com os “terrtérios existenciais” que cabe & arte produzir. Por meio da valorizagio exelusi- va da assinatura, lator de homogeneizagao e reificagéo dos comportamentos, ela pade continuar com seu oficio, isto & transformar esses territéeios em produtos. Em outros ter mos, a arte propde “possiilidaces de vida” ¢ © CMT nos manda a fata. E seo veriadeina estilo, come dizem Delew- consensual, cujos guardises autorizados 12 Canons 9.12 EE Leng, 9.26 ee ten sree ae IS a ESTENICA RELACIONAL 133 ze e Guattati, for néo a repetigéo de am “fazer” reificado, & sim “o movimento do pensamento”? A homogeneizagio © a padronizagdo dos modos de subjesividade Guattari con trapie a necessidade de engajer 0 ser em “processos de he- terogenese”. Tal € 0 primeiro principio da ecosofia mental: articular universos singulares, formas de vida raras; culti- var om sia diforenga antes de passé-a pata o social. Toda a argumentagio guattariana parte dessa modelizagao prévia, interna, das relagies sociais: nada sera possive profunda transformagao ccoldgica das subjetividades, sem a tomada de consciéneia das interdependéncies fundadoras de subjetividacle, Nisso, ele se une & meiotia das vanguardas do século xx, que defendtiam uma tansformagio conjunta das mentalidades ¢ das estruturas sociais, O dadafsmo, 0 surrealismo, os situacionistas tentaram promaver uma ze- volugio total, postulando que nada foderia muda na infra~ pestrutura (os dispositivos de producéo) se a superestrutura (@ ideologia) nao fosse também pro‘undamente remodela: dla, Adofesa guattariana das “ts ecologias” (ambiental, so cial e mental, sob a 6gide de um “paradigma estético” capaz, de reuni as diferentes reivindicagSes humanas,situa-se na linha diteta das utopias artisticas modems. © paradigma estético Acritica do paradigma cientificista No univers “esquizo-analitioy” de Guattari, a estéti~ ‘ca poosui win ootatuto & parte. Fla constitu um “paradig 134 [NICOLAS BOURRIAUD ma‘, um arranjo maleével capaz de funcionar em varios niveis, em diferentes planos do saber. &, em primeiro lugar, como a base que Ihe permite articular sua “ecosofia”, oma (6 modelo de ptoducao de subjetividades, como o instru- mento para fecundar & pritica psiquidtrieo-psicanalitica, Guattati recorre & estética para se contrapor & hegemonia do “superego cientista’, que fixa as préticas analiticas em. férmulas: 0 que ele critiea no “pessoal psi” & 0 retorne ao pasado pelo manuseio dos conceitos freudianos ou laca~ rnianos como certezas inoxpugnéveis. O préprio incons ciente vé-se equiparadoa uma “Instituigto, um equipamente celetivo”... Revolugao permanente no método: Deveria ser [..] como na pintura ou na literatura, do- infos nde cada pecformance conereta tem a woeagion dle evolu, now inaugurar abertsas de perepectvas, sem que seus autors possam se var ele fundamen tos teSrcos parantidos.on da autordade de um grupo, «ama escola um consersatiro ou urna academia A tinica coisa que conta 6 0 work én progress: 0 pen- samento brota de uma atte, que ndo é sindnimo de reté~ rica... Assim ndo nos surpreenderé a definigdo de filosofia para Delewre/Guattark: “arte de formar, inventar, fabri car conceitos”s, De modo mais geral, Guattati pretende remodelar o conjunto das ciéncias e téenicas @ partir de Las toi p20. 15 Delevonvatri Quest que ie phtsopier Pars, Mine 9p ‘BSTEMTCA RELACIONAL 135 ‘um “paradigma estético”. “Minha perspectiva eonsiste om transleviras ciéncias humanas eas citncias sociais dos pa radigmas cientificistas para os paradigmas ética-estéticos”, explica ele. Voto que se aproxima de um eeticismo cientifi- 0: as teorias ¢ 08 conceitos, para ele, possuem apenas va- lor de “modelos de subjetivagdes” entre outros; nenhuma certeza 6 irrevogivel. O primeito eritério da cientificidade, segundo Popper, no 6 o da falseabtidade? Para Guatiari, ‘9 paradigma estético deveria contaminar todos 0s regis tros do discurso, inocular o vereno da incerteza ctiativa & da invengdo defirante em todosos campos do saber. Nega- io da pretensa “neutralicade” cientiica: “o que agora esté na ordem do dia & 0 resgate de :ampos de virtualidade ‘fu- turistas’ e“construtivistas’**. Retrato do psicanalista como artista: “assim como um artista atribui a seus predecesso- res e a seus contempordineos o® tragos que The convém, eu também convido os letores a aceitar e refeltar livemente meus conceitos”” O refrito, 0 sintoma ea obra A estética guattariana, tio tributdria & de Nietzsche, considera apenas 0 ponto de vista do criador, Nao se en- contra nenhum vestigio de consideragdes sobre a recep- fo estética, salvo nas paginas que tratam da nogéo de “ceftdo" [piournelle: ele toma 0 exemplo de assistir& tele- 7 sth dogs p27 7 Osmo p38 136 [NICOLAS BOURRLALD visdo. Pois ligar a tevé € expor seu “sentimento de identi- dade pessoal” a uma explosio tempordria—o telespectador entao se encontra na enc-uzilhada de vérios nédulos sub- jetivos: © “fascinio perceptive” provocado pela varredura eletronica da imagem; o arrebatamento Ceaptura’) pro porcionado pelo contetido narrative, mado com os “pa- rasitas” perceptivos que surgem na pega (por exemplo, © telefone}; 0 “mundo de fantasmas’, enfim, criado pe- la emissio, percebida como um “motivo existencial” que funciona como um “atrator” no “caos sensivel e significa cional” “Presa” ao que esté olhando, a subjetividade plural, aqui vira um reftéo, prekidio da constituicio de um “ter ritGzio existencial”, Aqui também ocorre a contemplagio Ga forma, nao como uma “suspensdo da vontade” (Scho- penhaued) & sim como um proceso termodinamico, um fendimeno de condensagzo, de acumulagio da energia psi quica sobre um “motive” numa perspectiva de agao. A arte fixa a energia, vefraniza-a, transferindo-a pata a vida ¢o- tidianar repereussio, ricchete... Puro “enfrentamento de uma vontade e de um material”, a arte segundo Guattari € compardvel a atividade, totalmente nietzscheana, de tra~ car textas no cos do mundo; em outros termos, ao ato de “interpretar e avaliar”... Os *motivos existenciais” ofere- idos contemplagao estética, em sentido amplo, captam (0 diversos componentes da subjetividade e Ihes do dire- $0: arte & aquilo sobre o que e em tomo de que a subje- “Chto 9.38 OF tai Fle Guat “Cracks in thesia STENICA RELACIONAL 197 tividade pode se recompor, como varios raios luminosos se nem num feixe de luz para iluminar um tinico ponto. O contraia dessa condensacao, que tem na arte seu exemplo mais cabal, seria a neurose, na qual 0 “refrao", caracteriza- do por sua fluidez, se “entrijece’ na obsessao; ¢ também a psicose, que implode a personalidade ao fazer com que os “componentes parciais” da subjstividade sigam “em linhas delirantes, alucinetérias”™.. Iso nos leva a pensar que 0 pr6prio objeto 6 neurético: aa centrério da fluidex.com que retorna 0 refrfo, com suas sucessivas cristalizagdes que re- batem em objetos parciais maledveis, a neurose “enrijece” tudo © que toca, O capitalismo integrado, que transforma 10 territérios existenciais em mercadorias e leva a enenpia subjetiva a derivar para os produtos, funciona neurotica- mente: ele gera um “imenso vazio na subjetividade”, uma “soliddo maquinica”, ao se engolfar nas dreas que ficaram vvogas devido & desertificagso des espagos de trocas diretas, Fese vazio #6 poder’ ser preenchido forjando-+ contrato cam o inumano, isto & com a maquina, © pensamento de Guattati organiza-se em totno de uma perspectiva analitica eujo horizonte distante é a cw: um novo todavia, a modalidade de uma recuperagio parcial surge para recompor o quadro estilhagado das subj ivagies. A arte no se confunde com @ sintoma, mas nunca est mui~ to Longe dele. O sintoma, “a partir do momento em que se PP Chasse p23 2 Fi Gute “Rofonde es patios soci” Le Moe poate, “Vagonic dela cular’ cutabr 1993 138 NICOLAS HOURRALD repete, funciona como refraa existencial”, quando o refraio “se encarna numa representagdo ‘entijecica’, por exemplo,, uum ritual obsessivo”. Mas st a analogia entre a tomada de autonomia do doente e a criagio art demais, Guattari abstém-se de “equiparar a psicose a uma obra de arte ¢ o psicanalistaa um artista”...Com a ressalva de que ambos tratam do mesmo material subjetivo, 0 qual deve sobrevir para “curat” afeitos catastroficos da homo geneizacio, essa violencia que o sistema capitalista exerce contra 0 individuo, essa repressiio dos dissensos que sos, {inicos capazes de fundar sua subjetividade. Em todo caso, a arte e a vida psfquica estio imbricadas nos mesmos ar ranjos: Guattari descreve a arte em terms imateriais s0- mente para melhor materializar os mecanismos da pays, Tanto na andilise como na atividade artistica, “defxa-se de sentir o tempo; orienta-se, ege-se sobre ele, objeto de mu tages qualificativas”. Se 0 papel do analista consiste em cals vezes vai longe “criat focos mutontes de stbjetivagio®, 2 mesma femula seria facilmente aplicivel ac artista. A obra de arte e>mo objeto parcial ‘Aobra de arte interessa a Guattari apenas na medida em que ndo é uma “imagem passivamente representative’, ou sea, um produto, A obra materializa territérios existen- ciais, onde a imagem assume o papel de vetor de stthetioa- oto, de shifter capaz de desteritorializar nossa percepy antes de "re-ramificé-la” para outros possiveis: papel de ESTETICA RELACIONAL 139 um “operador de bifurcagdies na subjetividade”. Aqui tam~ pouco a arte pode se vangloriar de qualquer exclusividade, mesmo que ofereca 0 modelo desse “conhecimento pati- co” préptio da estética, essa “experiéncia nao-discursiva da duragio".. Bisse modo de conhecimento $6 & possivel sob a condiggo de ndo consderar a contemplagao da obra de arte como simples deleite. Guattari vagueia pelas pa- ragens nietzscheanas, transpondo o vitalismo do flésaio alemao (“E belo o problema que nos estimula & supera~ ao") para 0 campo lexical 2sico-ecol6gico que the apraz: ele vé na contemplag: estética um process de “transfe réncia de subjetivacio”. Fsso conceito, tomado a Mikal Bakhtine, designa o momento em que a “matéria de ex- pressio" se torna “formalmante criadora’, 0 instante em, que o tesiemunho passa do autor para o espectador: Aqui, 0s postulados de Guattari mostram-se muito préximos aos de Marcel Duchamp, emunciados em sua fa- ‘mosa conferéncia de 1954 sebre “o processo criativa’=, em Houston: 0 espectadar & 0 ¢0-autor da abra, penetrando nos arcanos da criagéio por meio do “coeficiente de arte", isto 6, a “diferenga entre o que (0 artista] havia projeta- do talizat € 0 que ele realizou’. Duchamp desereve esse fendmeno em termos préximos aos da psicandlise: é uma “transferéncia” da qual “o actista nao tem nenhuma cons- ciéncia’, © a reagdo do espactador diante da obra se ope- 2 Cheon 28 22. Maret Dochamg, “Le puosssus itt” i Daan da ore. Pane Flammavie, 1998 ’ 140 NIOOLASBOURRLALD ra no registro de uma “osmose estética que ocorre através da materia inevte: cor, piano, marmore etc”. Essa teoria Inansicional da obra de arte ¢ retomada por Guattari, que a converte na base de suas intuigdes sobre @ natureza fuida da subjetividade, cujos componentes funcionam engatan- do-se temporaramente, como vimos, em “territ6rios exis tenciais” heterogéneos, A obra de arte nao detém o olhar € 0 processo fascinador, para-hipnético, do olhar estético que cristaliza em torno dela os diferentes componentes da subjetividade e os redistribui para novos pontos de fuga. A obra € 0 contrétio do prira-choque definido pela percepgio cestética ckissica, que se exerce sobre objetos arabacos, to- talidades fechadas. Essa fluidez estética é indissociivel de ‘um questionamento da autonomia da obra. Guattari define a obra como um “objeto parcial, que goza apenas de uma “autonomizagio subjetiva relativa’, a exemplo do objeto # no inconsciente lacaniano”, Aqui, 0 objeto estético adquire ‘oestatuto de wm “enunciador parcial”, cuja tomada de auto nnomia permite “secretar novos campos de referéncia’ Essa definigao se casa muito bem com a evolugio das formas ar~ tisticas ~a tearia do objeto parcial estético como “segmento semistico, destacado da produgo subjetiva coletiva pa- 1a “trabalhar por conta prépria’, descreve perfeitamente 08, métodos de produgao artisticos mais correntes na atuali- dade: sampling de imagens e informagSes, reciclagem de formas passadas, jf socializadas ou histozicizadas, inven. 2 Chanmos, p27 [STETICA RELACIONAL m1 fo de identidades coletivas... Tasso os aracedimentos da arte atual, nascidos de um regime de inragens hiperinfla- cionado, Essas estratégias para objetos parciais inserem a ‘obra no continam de um dispositivo existencial, em ver de the conferir, no registra do dominio coneeitual, a autono- mia tradicional da obra-prima, Essas obras jé ndo so pin- huras, eseulturas, instalagdes, termos que correspondem a categories do dominio ¢& orem dos produtos, e sim meras superficies, volumes, dispositivos que se ex.caixam em esira~ tégias de existincia, Aqui tocamos os limites da definigao a atividade artistica, proposta por Deleuze ¢ Guattari em Quiest-ce que ln phitosophie: “conbecimerta da mundo por perceptos e afeios”... Poisa prépria idéia Ye um objeto par- ial que remete componentes heterogénens da subjetivida~ ea um movimento de singularizaggo invoca uma idéia de totaldade: “o enunciador parcial” a que correspande a obra de arte niio depende de uma categoria particular da ativi dade humana ~ como, entio, ela poderia se Fimitar a esse cordenamento particular sugerido pelo plano dos “afetos” e “perceptos”? Para ser plenamente obra de arte, ola também, deve propor os conceitos necessérios ao funcionamento de tats afetos e perceptos, no dmbito de uma experiéncia total do pensamento, Sem isso, a categorizacéo combatida pela fungGo ird se recompor fatalmente no plano dos materiais que fundam o pensamento. Portanto, parece mais adequa- do, i luz dos préprios textos de Guattari definir a arte en- quanto construeto de conceitos como custo de perceptas e fetes, visando a um conhecimento do mundo... 192 [NICOLAS ROURRIALD Para uma préxis artistico-ecoséfica © fato ecosdifico consiste numa articulagio ético-po- ica entre o ambiente, o social ¢ a subjetividade, Trata- de reconstituir um territério politico perdido, visto que fol despedacado pela vieléneia desterritoriatizante do “capita- lismo mundial integrado” ‘A época contempordinee, a0 execerbar a produgio de bens materials ¢ imateriais em detrimento da consis: téncia © das Territérios existenclais individuais e de grupo, gerou na subjetividade um imenso vazio, que endl a se tornar ead vex mais absusdo e inevitavel™. A pritica ecosst ca, centrada nas nogdes de globali- lade © interdependéncia, pretence reconstituit esses ter ritérios existenciais a partir ce modos de funcionamentos da subjetividade até agora ciosamente mantidos em mino: ria. A ecosofia pode propor-se a “substituir as velhas ideo logias que setorializavam de maneira abusiva 0 social, © privad e o civil". Nesta pemspectiva, a arte també mostra de grande auxilio, na medida em que fornece um. “plano de imanéneia”* — ao mesmo tempo muito orga- nizado e muito “absorvente” — para o exercicio da subje- tividade. B ainda mais porque a arte contemporfinea se desenvolvet no sentido de negara autonomia (e, portant, Be strep 1 3 chaamee p18, 3 Quist el phi pip. 38 STETICA RELACIONAL 3 a setorializagio) que Ihe era conferida pelas teorias forma- listas do “modernismo”, que tiveram seu principal defen- sor em Clement Greenberg Hoje, a arte define-se apenas como um lugar de im- pottago de métodos e conceitos, uma zona de hibridagies. Como dizia Robert Filliou, um dos animadores do movi- ‘mento Fluxus, a arte oferece um “direito de asilo” imedia to.a todas as préticas desviantes que nio encontram lugar fem seu leito natural Assim, muitas obras importantes dos ‘itimos trinta anos surgiram no campo da arte pela nica taz3o de ter atingido um ponto-limite em outros campos Marcel Broocithaers encontrou uma maneira de continuar €@ poesia nia imagem ¢ Joseph Beuys, de perseguir a politi- cana forma, Ao que parece, Guattari registrou esses desli- zamentos, essa capacidade da arte moderna de abarcar os ‘mais diversos sistemas de produgio. Fle critica freqiiente- ‘mente a arte como atividacle especttice, conduzida por uma corporasdo de offcio particular. A experiéncia da clinica, para muitos, consiste nessa surpresa perante tal fragmen: taco dos saberes, perante ossa “subjetiviclade corporati- vista” recente que nos leva, por exemplo, num reflexo de “setorializacdo”, 0 “esteticizar uma arte rupestre que tue Go nos leva a pensar que tinha um alcance essencialmente tecnol6gico e cultural”. Assim 6 que a exposigo Primitivismo na arte do séou- Jo x1, recentemente realizada no MoMA de Nova York, fe- tichiza “correlagies formats, formalistas., enfim, bastante superficiais” entre obras arrancadas a seu contexto, "de

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