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VILEM FLUSSER Como _16f sintomas. Curiosa a ontologia que fundamenta a opiniSo islamica e renascentiste gue 0 mundo da natureza 6 livro, Mais curiosa que as que fundamentam opini Ses como as que afirmam ser o mundo da natureza sonho ou paleo. Porque mui, to mais complexa, "Livro" 6 objeto extraordinério em varios sentidos. for exemplo: 6 um rolo, (scroll), que foi cortado para formar centenas de folha © momento histérico no qual aconteceu tal cortar, no qual o rolo da Tord e do Organon por exemplo passaram a ser biblia, (livros), representa por cere to um corte na historia do pensamento. Porque "folhar" e "desenrolar" sao Processos distintos. Se a natureaa fér livro, deve ser cortada en folhaa para ser lida, isto-€: seu desenrolar deve ser recortado. Outro exemplo: Livro € objeto guardével om bibliotéca, na qual dé as costas ao leitor, 0 qual precisa inverter a posigio do livro para poder 1é-lo. Se natureza for livro, deve ser guardfivel e invertivel para ser lida, % deve, quando guar @ada, dar as costas aos seus futuros leitores, ‘xemplo final: Livro 6 ob- Jeto compopto de folhas cujas duas faces sao cobertas de linhas compostas @ elementos distintos que siznificam algo, (letras), 1ér livro é descovrir o significado de tais elementos, individualmente e em conteto. Se natureza fér livro, deve ter estrutura semelhante, e oa elementos dos quais se com poe deve ser semelhantes a letras. Tal curiosa ontologia, (muito inportan te na hist6ria da ciéneia), formar& o ponto de partida para o presente ensa: Alguns entre os presupostos de tal ontologia sao estes: (a) a natures tem eutor, (b) tem receptor, (c) tem mensagem externa s si vrépria, (metaft- sica), (d) tem estrutura linear, (hist6rica), e (e) ha acérdo entre o autor © recegtor da mensagem da natureza. 0 tltimo vresuposto mencionado & o madi interessante. 0 autor do livro concerda com o seu leitor quanto ao signifi- cado das letras que compor&o o livro, e tal concor@éncia é anterior A escri- tae leitura. "Bserever" 6 codificar nensagem, "1ér" 6 decodificé-la, eo e6digo deve ter sido aceito anteriormente velos que escrevem e pelos que 1é para que livros existam, Wa ontologia para a qual natureza 4 livro o cbdigy pré-existente A naturega pode ser concebido de varias maneiras. Pode ser, por exemplo, o Alcorao, ou a aritmética dos ntimeros ditos naturais, ou a ge- onetria cuelidiana. Mas em tédos os casos tal e6digo deve pré-existir & na tureza, e tanto o autor da natureza quanto o seu futuro leitor devem concor dar em aceitar 0 e6digo como base da escrita e leitura. t outros térmos: © Alcordo, a aritmética, a geomotria, (ou ndo importa que outro ebdigo), 6 “sobrenatural", "formal", "eterno", (ou qualquer outro atributo que articu- le a sua anterioridade com relag&o 4 naturezg. Pois tal atributo entra em choque com o pressuposto (a), “Iimmaridade e historicidade” da ontologia cor siderada. =m choque extremamente produtivo para o pensamento do Ocidente, we & VILEM FLUSSER 0 choque € este: a natureza-livro projeta a sua mensazem licnarmente, de naneira que a Mensagem serf completa apenas na tltima pagina, (no tltimo "dia"). Mas o e6digo no qual a mensagem ¢ articulada é extra-hist6rico e aceasivel extra-empiricamente, (pela f€ ou teoria). Destarte o Alcorao 6 © "logos" do qual Deus ¢ o homem participam no além da naturesa, (da histé ria), e naturega e hist6ria ado signifieativos apenas gracas a tal particd pacdo @z "Ibgica" dos parceiros. A aritmética, a geometria, (e outros cb- digos formais), ¢ igualmente acessivel ao eus-matem&tico e ao cientista ne além da natureza e historia, e estas sao significativas avenas gracas a tal participagéo “estrutural” dos parceiros. A dialéctica produtiva entre ob- servacao e teoria, (que 6 a dinfmica de téda leitura de livros), tem suas raizes neste tipo de ontologia. # é ela que caracteriza a ciéneia do Oci- dente, De modo que tal ciéncia 6 mito mais is?@mica e menos crista que se supe correntemente. forque no cristianismo 0 "logos" nao 6 0 Alcorao, (0 digo que permite a leitura da natureza), mas o Cristo. Tal consideracko su gere que a evolucéo que resultar4 na ciéneia nado passa dos gregos pelos es~ colésticos até os renascentistas, mas passa dos gregos pelos mouros e caba- listas eté os renascentistas., © que renasce no Renascimento 6 mais o Pla+ tio cordobés, e menos o bizantino, E tal sugestao é indubitévelmente con- firmada pelo estudo das "fontes", © presente ensaio tomou taie consideracdes como seu ponto de par- tida, afim de apontar, desde logo, a profunda relacdo que liga as stuais Pesquisas da teoria da comunicagao com a crise epietemolégica que & uma daa caracteristicas da ciéneia ne atualidade. Mo seguinte sentido: Pot cos afirmarao atualmente ser a natureza legivel como um livro., Poucos di~ r&o que os fenémenos naturais “significam" algo que 6 exterior a prépria na tureza, (0 que equivale dizer que poucos crém ser a natureza “conjunto sig nificativo".) Mas isto nao impede que a leitura ds natureza seja contima- da. Apenas mada de carfter, Se o modelo "livro" fér mantido, o seguinté pode ser dito: a natureza & lida atualmente como se 16 um livro nara des- cobrir que tipo de m&quina impressora o produzin, ndo para descobrir o sig nificado de sua mensagem. Mas, 6bviamente, sob tal tipo de leitura o livro deixa de sé-lo. Porque resulta em "conhecimento", (evisteme), diferente do “conhecimento" pretendido pelo autor do livro, Tal leitura 6 negag3o do au tor, (ou pelo menos sua "suspensao"), e € o préprio livro enquanto fenémeno que @ tomado como "monsagem", (é 0 préprio fenémeno que "fala"), Fois sob tal prisma a “crise epistemolégica" 6 resultado da paulatina substituicao da ontologia tradicional subjacente & ciéneia vela fenomenologia. # a te- oria da comunicagdo pode contribuir para a comprensdo e superacdo da crise, J4 que a sua problem&tica 6 fundamentalmente a mesma. ; = 3 VILEM FLUSSER ez Do ponto de vista da teoria da comunicacao tém as letras que compoem um livro pelo menos dois aspectos. Sob um dos aspectos sao as letras aintomas daquilo que os produziu. (Por exemplo: de uma determinada impressora.) Sob tal aspecto livro € parte da natureza, Sob o outro aspecto do as letras e a eetrutura na qual so compostas simboloe de algo. (Por exemplo: de deter minada lingua falada.) sob tal aspecto livro é parte da cultura. Pois tal enfoque sugere imediatamente distingao especifica entre natureza e cultura, “Natureze" passa a ser conjunto de fenémenos ligados entre si "sintomAtica- mente", e tultura" conjunto de fenémenes ligados ensre si "simbélicamente™, ™n outros termos: a comunicagao natural 6 sintomftica, e a comunicagao cul tural simbélica, e 6 0 tipo de comnicagao que fornece um eritério para dis. tinguir entre os dois reinos, E isto sugere por sua vez que o campo da com peténeia da ciéncie "da natureza" 6 a comunicagdo sintomftica, e o campo da competéneia Ga teoria da comunicagio no sentido exato do terme é a comunica eGo sinbOlica, (outrora chamado o campo da ciénela "do espirito" ou "da cul tura"), Em outros termos: Ag ciéneiss "do espirito", “da cultura", as "hu- manidades", (ou néo importa que outro titulo que queiramos dar a tais disci plinas), tretam de fenémenos enquanto simbolos, e adquirem rigor sob formas da teorfa da comunicagdo, e as ciéncias da "natureza" tratam de fendmenos en quanto sintomas, ¢ sdofigorosas apenas se se restringem a isto. Sao duas ma. neiras distintas de leitura. No entanto é claro desde jA que a distineao assim sugerida entre natu- vega e'cultura, e entre as disciplinas que tratam dos dois reinos, involve graves problomas, ¢ deve servir apenas de aproximagao tentativa, Mo fundo, © critério da disting&o 6 a praxis da leitura, Um dado fenémeno cer& "natw val” se lido enquanto sintoma de outro, e "cultural" se lido enquonto simbo lo de outro, 0 critério 6 frégil., = torna-se mais frfégil einda se analiza do um pouco mais minuciosamente, ifas a andlise se torna indisvens4vel para a captacdo do probelma epistemologicp da atualidade. Pare lér um determinado fenémeno enquanto sintoma de outro, devemos pressupér cadeia de causa e efeito que une os dois: o fenémeno "sintoma” & efeito do fenédneno do qual 6 sintoma, Para lér um determinado fenémeno en~ quanto simbolo de outro, devemos pressupér convénio eodificador: o fenémeno "significa". outro apenas para quem admite o cédigo do qual o simbolo faz parte. Rnbora, pois, as duss leituras sejam resultado de pressupostos, (e embora nao Yaja, aparentemente, leitura "ingénua"), os dois pressupostos sao incomparéveis. 0 pressuposto que permite 1ér um fenémeno qnquanto sintoma assume que h& comunicacao entre sintoma e sintouatizedo ao mesmo nivel da realidade. (A letra 6 sintoma da maquina impressora, porque os dois fenéme- nos ocorrem no mesmo nivel da realidade.) Jas o pressuposto que permite 1ér = ot 4 un PUM USGER:© simbolo assume que entre oe imbolo e seu significado h& mediagdo de um convénio, e que portanto os dois nao ocorrem ao mesmo ni vel da realidade. (A letra 6 sinbolo de um determinado som, porque aasin foi convencionada, embora os dois fenémenos pertencam a realidades distin~ tas.) Bm outros termos: o sirtéms se comunica imediatamente com o sintoms tizado, ("apresenta" o sintomatizado), e o simbolo se comunica mediatamen- te com o significado, ("representa" o significado), Na leitura sintomAti- ca dos fenémenos nao h&, como na leitura aimbblica, ruptura 6ntica entre o texto lido e a realidade apontada pelo texto. c Pois tal andlise das dues leituras pode ser interpretada da seguir te maneira: a ruptura éntica que caracteriza a leitura simbblica 6 justa- mente o que caracteriza o "estar-no mundo" humano, isto 6 a "cultura", "Ruy tura 6ntica" e "espirito” sao sindnimos, embora ocorram em contextos dife~ rentes. “Espirito” 6 como a ruptura ontica se objetiva, “ruptura 6ntica" é como 0 espirito se manifesta, Le maneira que téda leitura simb6lica tem o espirito por objeto. A leitura simt61ica tornada auto-consciente na forma da teoria da comunicagdo é, potencialmente, Weigneia do espirito = Geistes- wissenschaft" rigorosa. A leitura sintomAtica, pelo contrario, 6 suspensac deliberada de téda problem&tica ontcifgica, e @ por isto que tem por objetc a natureza, A leiture sintom&tica tornada auto-consciente ¢ "ciéncia da ng tureza" rigorosa. ie forma que as duas leituras Zornecem "conhecimento", (episteme), distinto. fela leitura sintom&tica se conhece o cortexto do texto lido, pela simbélica o pretexto, (fundo), do texto lido. “m outros termos: 0 conkecimento fornecido pela cigneia da natureza amplifica o planc da sua competéncia, e o conhecimento fornecido pela ciéneia do espirito 6 um constante extrapolar para f6ra do seu plano. 0s dois conhecimentos obe- decem a dois modélos diferentes: a um modelo plano o primeiro, a um tridi- mensional o outro. A crise epistemol6gica da atualidade 6 resultado de cor fusdo entre os dois tivos de modelo. #0 erro de querer “amplificar" 0 so- nhecimento pela ciéncia do espirito, e “aprofund&-1o" pela ciéneia da natu- reza, DistingSo nitida entre os dois modelos, (as duas formas de leitura), superaria a cbise. Mas uma interpretagdo como esta é instistent&vel, porque téda dir tingZo nitida entre os dois modelos, (as duas formas de leitura), 6 constaz temente refutada pela praxis da leitura. lo curso de téda leitura sintom4- tica ocorrem sempre instantes nos quais o texto impoe ao leitar dimensao simb6lieca insofism4vel. Eno curso de téda leitura simbélica o cardter siz tomitico do texto se impoe sébre o leitor constantemente, Este ensaio for- necerfi exemplos disto. Mas deve apontar, desde j&, a Sbvia razio de tal impossibilidade pr&tica de distinguir entre ciéncia da naturega e cultura, Re&ba: Tédo simbolo 6 tanbém sintoma, e tédo sintoma pode ser simbolizad 5 - VILEM FLUSSER J outros termos: simbolos sa0 sintomas convencionados, ou: cultura 6 na~ tureza "espiritualizada". E: tédos sintomas sao simboliztveis: a nature- za téda & culturalizével. De modo que quem 1é sintom&ticamente, (faz ci~ éncia da natureza), constantemente esbarra contra a gendéncia de simboli- zar seu texto. (16 a natureza como se fosse livro.) = quem 16 simb6lica mente, (faz ciéncia da cultura), constantemente esbarra contra o fato in- escapfvel que seu texte 6 composto de sintomas, (18 a cultura como fazen do parte da natureza). De forma que a tentativa de distinguir nitidamen— te entre as duas leituras 6, a despeito de Snow, praticamente impossivel. B claro: o problema que as duas leituras colocam pode ser historiei, zado um pouco 8 maneira de Kelsen. Fode ser dito o seguinte: "Histéria" & 0 processo pelo qual a leitura sintomAtica vai substituindo a simb6lica paulatinamente. “No inicio", no momento no qual o homem se assume leitor do mundo, tédo texto 6 lido simb6licamente, Tédo fendmeno é lide como re presentando outro escondido mas apontado. do fenémeno & simbolo, (sig- nificativo), e “conhecer" é decodificar a mensagem do mundo. ™ outros termos: o mundo est& “cheio de deuses" os quais transparecem, "epifainein” pelos fenémenos lidos, Paulatinamente a dimensao simbélica dos fenémenos vai sendo "posta entre parenteses", (ausgeklammert), e seu caréter sinto- m&tico vai sendo descoberto. Destarte surge paulatinamente um névo tipo de "conhecimento". "Os deuses" se retiram paulatinamente do mundo, e es~ te se torna sempre menos "significativo", na medida na qual vai sendo 1i~ do sintom&ticamente. Assim vai surgindo, dentro do contexto que cerca o homen-leitor, o terreno crescente da naturega, o qual invade em tédas as direcdes o contexto “primitivamente" tomado enquanto cultura em sua integ ridade. "Historia" seria pois paulatina naturalizacao da cultura pof pau latina substituigdo da leitura simb6lica pela sintom&tica, isto 6: por pau latina substituigao de ontologia por fenomenologia. Sob tal "visao hist6 rica" os textes ainda lidos simbolicamente na atualidade seriam textos ain da nao libertados de preconceitos codificantes. Em suma: a distinedo en tre natureza e cultura 6 provisoria e finalmente tédo texto sera lido sin tom&ticamente, (tudo ser& explicado naturalmente). Um Gnico exemplo pode r4 ilustrer tal “historicizagdo" do problema, 0s textos artisticos, que formam atualmente parte aprecifvel dos textos ainda lidos simb6licanente, serao, no futuro, lidos sintom&ticamente. Isto 6: explicados, nao muxttix “significativamente", mas "naturalmente", por exemplo fisiologicamente, psicol6gicamente ou sociolégicamente. =m outros termos: as obras de ar- te, como ndo importa que outro fenémeno, serao lidas, nao como simbolos, mas como sintomas. Deve ser confessado que o exempio iluscrador da tese que acaba de VILEM FLUSSER Ser exposta foi escolhido para poder polemizar contra a tese. Porque nao basta dizer que a tentativa de abolir o problema das duas leituras pela op eGo @ favor da sintomitica ¢ altamente desagradtvel. Desagraddvel porque inverte a tese marxista, de acérdo com a qual "histria" @ o processo Pelo qual a natureza se esperitualiza e transforma em cultura, Desagradével por que afirma que a perda de significado é a medida do progresso. Desagradé~ vel porque tende a “explicar", portanto des-enigmatizar e em Gltima anAlise destruir a arte. E desagradével por mfiltiplas razoes semelhantes. Wao bas. ta dizer ser a tese desagravel, 6 preciso mostrar ser ela insustentAvel, e que o problema das duas leituras persiste a despeito dela. Ha varias estratégias para atacar a tese. 0 presente ensaio optar& Pela seguinte: procuraré observar fenomenolégicaments a praxis da leitura, na esperanca de surprender o choque entre as duas leituras em tal praxis, © tonaré para tanto dois textos. Um, no qual tendemos atualmente para uma led, tura sintomitica: "p&assaro construindo ninho". 0 outro, no qual tendemos a- tualmente para uma leitura simb6lica: “pintura surealista". ‘Tendemos para tais duas leituras, porque para nés os dois textos fazem parte de dois con- textos distintos, "P&ssaro construindo ninho" faz parte do conterto da ne~ tureza, ea leitura biolégica & competente para o texto. “Pintura surealig tan faz parte do contexto da cultura, e a leitura da critica de arte 6 com petente para o texto. E claro: "péssaro construindo ninho" nao é mais, para nés, sentenca contida no livro da natureza, Neste sentido a tese a ser combatida & per~ feitamente correta. Dizer que "péssaro" € simbolo de leveza, "ninho" sim bolo do amor materno, e "construgao de ninho" simbolo de trabalho dedicado, nao seria atualuente casiderada lei tura adequada ao texto. Seria considera da leitura Kitsch, (ponto que ser& retomado mais tarde neste ensaio), Nem 6 mais possivel, atualmente, leitura simbélica mais sofistiesda que a propos ta, Por exemplo a aristételica que 16 a construgao do ninho comogsimbolo da justiga que estrutira a natureza, (diké), j& que dentro de tal estrutura o lugar justo do pfssaro é 0 ninho, Tal leitura, (e outras ainda mais refina- das), 6 atualnente impossivel, porque para nés procurar por sentido nos’ fené- nos naturais ¢ empresa enganada, Lemos o texto "pisearo construindo ninho" sintomaticagente. Por-exemplo: 08 movimentos do passaro sao sintomas de cor tas fungdes glandulares, a forma do ninko 6 sintoma de determinada informe: fo genética contida no pfssaro, e o material do ninho & sintoma da ecologia da qual faz parte, Isto nos parece ser a leitura adequada ao texto, e a te- se a ser combatida parece ser valida A primeira vista. Mas nfo resiste A segunda vista. Se leio o movimento do p&saaro como sintoma de funcdes glandulares, é que estou aceitando determinada convencdo t VILEM FLUSSER i da diologia, a qual, por sua vez, se baseia sébbe a convengao que estabele- ceu o cédigo da ‘chamada "lingua comum". Porque o fato é que,embora "passa ro construindo ninho" nao seja mais para nés sentenga contida no livro da 1 tureza, continua sendo inevitavelmente sentenga contida no discurso da bio- logia. Sem querer entrar no labirinto do positiviemo légico deve ser admi- tido que convengoes culturais, e especialmente linguisticas, estruturam na importa que leitura, por sintomftica que seja. Alifs, se digo “passaro", ¢ "construindo", e "ninho", estou recorrendo a simbolos linguisticos que re- presentam os fenémenos que pretendo 1ér enquanto sintomas. = se digo “sin toma", estou aceitando a convengdo estabelecedora da cadeia causal, a qual nao se distingue da ‘justica aristotélica" ontol6gicamente. i outros ter- mos: Para lér sintomas, devo dispér de simbolos que os representem, e 6 is‘ no fundo o que pretende Husserl ao dizer que devem conceder "a palavra" aor fenémenos que nos cercam, A fenomenologia nao pode substituir a ontologia. pode apenas “suspendé-1la", porque a "ruptéra ontolégica" caracteristica da leitura simbolica é caracteristica de téda atividade humana, Em suma: o homen simboliza sempre, inclusive quando 16 sintom&ticamente. A leitura simbblica 6 pois insuperfvel, e a praxis da leitura sintom&tica prova que a tese a ser combatida 6 insustentével, E igualmente claro: "pintura surealista" @ pintura que quer ser 1; da simbolicamente, Isto a distingue, com efeito, de pintura "realista" e "hiper-realista" de um lado, e de "ndo-figurativa" do outro. (A "realista' finge apresentar fenémenos, a “hiper-realista" procura apresentar a essén- cia escondida nos fendmenos, ¢ a "nao-figurativa” quer ser lida sintomAtice mente.) Alias, 0 proprio termo “surealismo" conota a ruptura ontolégica que se manifesta durante a leitura simbélica. Portanto querer lér tais pir turas sintomiticamente parece ser tarefa semelhante A de querer ler livros pera descobrir suas impressoras, Tal leitura parece, a primeira vista, dee virtuar a esséncia da pintura que @ justamente a mensagem simb6lica que transmite. Mas a praxis da leitura de pinturas surealistas desmente tal sv- posicao em varios niveis, © que vemos ao lé-las sao sintomes de determina dos pinceis e determinadas tintas. & inegfvel que tal cardter sintom&tico € essencial para a mensagem da pintura em muitos aspectos. © que vemos ao 18-1las sao tragos de gestos do pintor que sao por sua vez sintémas de sua interioridade, (no sentido fisiol6gico, psicol6gico, cultural e outro do termo.) E ineg&vel que tal carater sintomAtico 6 essencial para a mensa~ gem da pintura, e pode, em certos casos, desmentir a mensagem que o pinter pretendeu. © simbolo pode ser deseméntido pelo seu aspecto sintomtico: o gesto revela a mentira. Pois "mentira" em arte @ Kitsch, e a leitura Hig B VILEM FLUSSER sintomitica de mensagem simbolica pode revelé-lo. (Como, conforme ficou di- to, leitura simb6lica de mensagem sintomftica pode kitschizar o texto.) Fi+ nalmente o que vemos ao lér tais pinturas sintomAtico do esforco simboliza dor do pintor: sua tentativa de pppér cédigo névo. Tal novidade do cbdigo & justamente a dificuldade que a leitura de tais pinturas apresenta. Devemos aprender o e6digo antes de poder lér as pinturas, Pois antes de 1é-las sao as pinturas para nos "textos insignificativos", isto ¢: conjuntas compostes de sintomas. De maneira que a leitura de pinturas surealistas ilustra que téda leitura simb6lica presupos leitura sintom&tica, o que 6 obvio se consi~ derarmos que tédo simbolo pressupoe cédép de um lado, ¢ fenémeno enquanto ai} toma do outro, Fortanto: a tese a ser combattda é insustentével, j& que a leitura simb6lica no pode ser a "primitiva": a leitura sintomfitica 6 légica nente, e portanto historicamente, anterior a ela. Hliminada a tese "historicizante” que procura obviar o problema posto pelas duas leituras, o problema volta a confrontar-nos en téda a sua vrutalidade. Eis como pode ser formulado a esta altura do argumento:, A nos sa circunstancia, (inclusive nés préprios enquanto objetos), se nos apresen— ta como contexto composto de textos legiveis de duas maneiras. Se lidos sin tomAticamente, os textos passam a ser, para nés, “insignificativos", e a nos sa circunstancia adquira a dignidade 6ntica de "natureza". Teremos, sob tal leitura, conhecimento esvecifico, "episteme", daquilo que nos cerca, a saber aquele conhecimento que caracteriza as ciéncias da naturesza. Se lidos simb6 licamente, os textos passam a ser, para nos, "significativos", e a nossa cir cinstancia adquire a dignidade 6ntica de "cultura", Teremos, sob tal leitu- ra, conkecimento, "episteme", distinto do primeiro, a saber aquele conhecine to que caracteriza as ciéncias da cultura, e o qual & formalizado e tornado rigoroso pela teoria da comunicagao humana, As duas leituras se implicam m- tuamente. A leitura sintom&tica pressupoe a simb6lica: a "natureza" pressu- poe a "cultura". Ea leitura simbélica pressupoe a sintomftica: a "cultura" pressupoe a "natureza". fm outros termos: o conhecimento fornecido pela ci- ncia da natureza e o outro fornecido pela ciéncia da cultura, embora funda- mentalmente distintos e irreduziveis um sébre o outro, nao podem existir um sem o outro. Eis como, do ponto de vista da teoria da comunicacéo, pode ser formulada a, crise epistemol6gica da atualidade, Nao h& como minimizar a crise. Com efeito: ela pode ser lida com sintome de crise profunda do Ocidente. Mas o que a teoria da comunicagio po de fazer 6 tornar conscientes os e6digos sébre os quais simbolos nao reconhe- cides como tais se fundamentam. (Porque a maioria dos textos simbblicos que nos cercam & convencionada inconscientemente, de maneira que crémos 1é-los sintomiticamente, quando de fato os lémos simbélicamente.) Isto 6, creio, “9 3 USSER, una UAHA EEUSSER oi paie da teorta da comunicagdo, © uma das razdes porque tal teoria surgiu exatamente na conjuntura histérica presente. mm outraszpe Javras: uma das tarefas de teoria da comunteagao 6 ensinar-nos como lér ain- tomas. Assim: descobrir, em tédo texto que nos 6 Proposto, o ebdigo que o fundamenta, e depois "suspendé-lo*. “Suspendé-1o™, © nfo aboli~lo, porque tal abolic&o 6 humanamente impossivel, Pela razdo simples que t6do texto que nos € proposto 6 texto "para nés", faz parte da nossa “Iebenswelt", ¢ Portento "significativoy. 0 cardter simbélico da nossa etrcunsténcia é de do pela nosso “estar-no-mundo" hunano, mas & possivel empurrar, por suspen- sao, tal caréter simb6lico pare sempre mais longe do nosso horizonte, sen demais poder elimin&-lo, © assim que devemos poder 1ér sintomfticamente: empurrando 0 carter simb6lico da nossa circunstfncia para sempre mais lon 82° destarte adquirir o tipo de comhecimento fornecido pela ciéncia da na turega, eonseientes embora da dependéncia de tal conhecimento do fundo sim- b6lico’ sobre o qual repousamos enquanto “leitores do mundo”, (existéncias humanas), Em outros termos: a teoria aa comunicagdo pode ajudar-nos a lér © mundo sintom&ticamente, (como conjunto de problemas a seren resolvidos), mas com humildade resultante do saber que no fundo o mundo se impoe como con texto simbélico, (coxo congjunto de enigmas e serem decifrades). Talvez tal humildade seria uma forma de superagdo da crise? Voltemos para o ponto de partida deste ensaio. Por certo: o mundo da natureza nao 6 mais, para nés os atuais, livro. £ contexto de textos a serem lidos sintom&ticamente, (contexto "insignificativo"). as continua sendo contexto legivel, porque nbs somos ¢ continuamos sendo “leitores"; transformamos tudo que se nos apresenta em testo. © fazemos isto, porque no fundo somos codificadores codificados. ‘mbora portanto a natureza nao seja mais livro, continua legivel porque n6s somos livros que fazem livros. 0 Aleordo novamente, empurrado para um pouco mais longe? Ou a "mathesis uni~ versalis" husserliena? Nas tal pergunta os horizontes do conhecimento que nos sao impostos. # de "béa estratégia” admiti-lo.

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