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0. TAREFAS E METODOS DE UMA SOCIOLOGIA DO MOVIMENTO DE JESUS 0.1 O movimento de Jesus cristianismo primitive comegou como um movimento de renova cdo intrajudaico despertado por Jesus, Sao flutuantes as transigdes para o cristianismo primitivo helenistico ¢ 0 judaico. Como critério rudimentar de delimitagio serve um dado geogréfico e cronolégico: o cristianismo Primitivo helenfstico se difundiu predominantemente fora da Palestina, enquanto 0 movimento de Jesus era um fendémeno palestinense com irra- diagéio para regiées s(rias adjacentes. Este veio a constituir o cristianismo judaico auténomo apés 70 d.C. Antes competira com outros movimentos ‘de renovagao intrajudaicos. Apds essa data se impés o farisafsmo, e os cristios foram excomungados. O movimento de Jesus , por conseguinte, © movimento de renovagao intrajudaico despertado por Jesus, em territé- tio sfrio-palestinense, de cerca de 30 até 70 d.C. 0.2 Tarefas de uma sociologia do movimento de Jesus ‘Uma sociologia do movimento de Jesus tem como tarefa descrever © comportamento tipico entre as pessoas do movimento de Jesus e analisar sua interacio com toda a sociedade judaico-palestinense!. H4 que distin- | Hf pouea literatura que trata do tema da sociologia do cristianismo primitivo palestinense, Os subsfdios de inspiraco predominantemente marxista muitas vezes adotam descobertas da pes guisa hisidrico-crftica de modo apenas seletivo, mas coniém valiosas sugestbes: K, KAUTSKY, Der Ursprung des Christentums, 11. ed., Stuttgart, 1921; P. ALPARIC, Die sozialen Urspritnge des Chuistentuns, Darmstadt, 1963; M. ROBBE, Der Ursprung des’ Christentums, Leipzig, 1967. Dentre as contribuigdes teolégicas sobre o toma sejam citadost R, SCHUMACHER, Die sosiale Lage der Christen im apostolischen Zeltalter, Paderborn, 1924; 8, J, CASE, The Social Origins of Christianity, Chicago, 1923; E. LOHMEIER, Soziale Fragen im Urehristentumn, 1921 = Darmstadt, 1973; F.C, GRANT, The Economic Background of the Gospels, Oxford, 1926; Ph, SEIDENSTICKER, Die Gemeinschafisformen der religidsen. Gruppen des Spétjudentams und der Urkirche, Jerusalem, 1959 (Stud. Bibl. Franc., 9), pp. 94-198; G, BAUMBACH, Jesus von Nazareth im’Lichte der jiidischen Gruppenbildung, Berlin, 1971; M. HENGEL, Bigentun und Reichturn in der frithen Kirche; Aspokte einer frihchristlichen Sozialgeschiehto, Stuttgart, 1973, Muitas boas observagSes sociolégicas encontram-se — em geral de passagem — nos artigos sobre o Jesus histdrico, sobre a eclesiologia primitiva, sobre a ética social e principalmente so- brea histdrn da époce. Citemoe aqul sobretido duds obras fundamentis dignas de mérto pela introdugko de aspectos socioldgicos: J. JEREMIAS, Jerusalem zur Zeit Jesu, 3. edo, Géttingen, 1969 (trad, port: Jerusalém no tempo de Jesus; pesquisas dc hist6ria ccon6mico-s0~ cial no perfodo neotestamentirio, 2. eds, Sio Paulo, Paulinas, 1986); M, HENGEL, Judentum und Hellenismus, 2. ed., Tibingen, 1973 (WUNT, 10). i guir as andlises de papéis, de fatores e de fungées. A anélise de papéis in- vestiga modelos t{picos de comportamento; a de fatores, sc condiciona- mento pela sociedade global; a de fungées, suas repercussées sobre a so- ciedade global. Assim, abdica-se da busca por uma prima causa social, j6 que 08 fatores econémicos, ecolégicos, politicos ¢ culturais perfazem um conjunto de interagfo indissocidvel. De igual modo se torna desnecessério definir unilateralmente a funcSo da religiao, pois cla pode contribuir de diversas maneiras para a solugao dos problemas fundamentais de uma so- ciedade, a saber, realizando a integracio de seus membros ¢ superando conflitos por meio de mudancas. Integragao pode significar coagao e res- tric&io, mas também ampliagdo e enriquecimento de potencialidades huma- nas. Conflitos podem ser reprimidos por solugées compensatérias, ou atualizados por novos projetos de solugio. HA pelo menos quatro possf- veis fungées da religifio, que podem ser resumidas neste esquema?: fungdo integrativa fungao antagonista fungao restritiva | domesticagao: compensacao: coagio social repressao ¢ solugao iluséria internalizada de conflitos funeio criativa | personalizagdo: inovagéo: socializagiio da atualizagfo do potencial espontaneidade humana | de conflito A religiio pode ser am4lgama social ou impulso renovador, pode intimi- dar e amoldar a pessoa, mas também conduzi-la ao agir auténomo. Todas essas fung6es também se podem constatar no cristianismo primitivo. Nao obstante, é ineg4vel que a fungSo inovadora da religiao raramente se ma- nifesta com tanta clareza como no cristianismo primitivo. 9.3 Métodos de uma sociologia do movimento de Jesus Se uma sociologia do movimento de Jesus & possfvel ou nfo, de- pende das fontes e das informacées sociologicamente relevantes que elas contenham. Infelizmente o material primério € escasso e pouco acessfvel, sua interpretag&o € controvertida, havendo nele pouco interesse em trans~ mitir informagGes socioldgicas. A obtengao de todos os dados sociolégi- 2.CE. para este assunto meus argumentos em “Problemas tesricos da pesquisa sociokigico-reli- giosa ea andlise do cristianismo primitivo”, neste vol., pp. 1218s. 12 cos demanda penosas pesquisas. Nisto, distinguem-se trés métodos de in- feréncia®: a) Métodos de inferéncia construtivos aproveitam informagées so- ciolégicas pré-cientfficas que aportam dados (prosopogréficos) sobre ori~ gem, posses ¢ status social de indivfduos, ou dados (sociogréficos) sobre programa, organizagéo e comportamento de grupos inteiros. b) Métodos de inferéncia analtticos pattem de textos que permitem observar indirctamente dados sociolégicos. Sao elucidativos os informes sobre eventos particulares que se repetem, os conflitos entre grupos ou as normas éticas ¢ jurfdicas, além de formas literdrias ¢ formulag6es poéticas (p. ex., parfibolas). ©)Métodos de inferéncia comparativos ap6iam-se em movimentos anélogos daquela época. Quanto mais difundido estava um comporta- mento na sociedade judaico-palestinense, tanto mais se pode presumir que ele era determinado pela sociedade toda. Por isso, concede-se aleng fo es- pecial aos movimentos de renovago intrajudaicos existentes ao lado do movimento de Jesus, como os essénios ¢ zelotes. © esbogo que se segue teré que demonstrar se as fontes oferecem dados suficientes que justifiquem a tentativa de uma sociologia do movi- mento de Jesus. I compreensfvel ¢ procedente haver um certo ceticismo por razées metodolégicas: sabemos muito pouco. Muitas coisas tém que permanecer suposigfio. Mas o trabalho cientffico é vélido enquanto for possfvel confrontar, com arguments, hipéteses melhores e piores. 0.4 As fontes Para o movimento de Jesus as fontes mais importantes sio os evangelhos sinéticos, ¢ para o mundo contemporaneo judaico a fonte mais instrutiva é a obra historiogrdfica de Flavio Josefo. Dos evangelhos siné- ticos 6 preciso eliminar somente o que tem origem helenfstica. Tudo o mais pode ser utilizado. Assim pode ficar aberta a questéo, se 0 material representa tradic#o auténtica de Jesus ou nao. Pressupondo a autenticida- de de uma tradi¢o, podemos acreditar que os seus transmissores organ zayam sua vida em consonfincia com ela. Admitindo, porém, o seu surgi- mento no movimento pés-pascal de Jesus, podemos pressupor que os fransmissores configuraram a tradigio em concordancia com a sua vida. Em ambos os casos o resultado & 0 mesmo: conclui-se pela correspondén- cia entre os portadores sociais da tradicfo e a prépria tradigho. Em vista disso uma sociologia do movimento de Jesus situa-se acima da controvér- 3Cf, aeste respeito meu artigo “A interpretagio sociol6gica de tradigdcs religiosas”, neste vol., pp. 101ss. 13 sia entre a exegese “conservadora” e “critica” em torno da autenticidade ¢ historicidade da tradigdo. Nao € atingida pelas aporias da pesquisa sobre a vida de Jesus. Antes, esta sociologia 6 um subsfdio para a solugao des- sas aporias. Pois sugere uma continuidade entre Jesus e 0 movimento de Jesus, abrindo assim o caminho para transferir a Jesus descobertas acerca do movimento de Jesus’. 0.5 A pré-compreensao da anilise sociolégico-religiosa do cristianismo primitive Muitas vezes se contesta menos a viabilidade do método da pes- quisa sociolégico-religiosa do que a sua legitimidade. A objegao é que cla partiria de uma pré-compreensio unilateral e impediria a compreensio “verdadeira”. Por exemplo, uma acusagao € que a sociologia apreende somente 0 geral, omitindo o individual. E verdade que uma sociologia do movimento de Jesus se limita a aspectos gerais, estruturais. Mas realiza esta limitag&o conscientemente. Nao pretende abarcar todos os aspectos do objeto. Além disso, quanto melhor o geral ¢ tfpico for elaborado, tanto mais claramente sobressairé o individual. Para nao menosprezarmos, po- rém, 0 geral e t{pico, sejamos alertados pelas palavras de J. Burckhardt: “Fatos gerais como os da histéria da cultura por certo deveriam ser em regra mais importantes que os fatos especiais, os que se repetem, mais im- portantes que o fato singular!” Quem pretenderia atribuir a J. Burck- hardt falta de sensibilidade para o individual? Qutra crftica afirma que a sociologia reduz fendmenos religiosos a fatores nio-religiosos. Verdade € que a sociologia constata mais relagGes entre manifestagées religiosas ¢ néo-religiosas do que a autocompreensao religiosa quer admitir. Contudo, derivar unilateralmente a causa de fend- menos religiosos a partir de fatos sociais constitui apenas uma interpreta~ gio possfvel — além de improvavel — dessas correlagées. Admitir uma in- fluéncia recfproca em geral 6 mais satisfatério. Ademais, 6 imperioso dis- tinguir nitidamente entre origem e validade: quaisquer que sejam as cau- 4 Pode-se constatar uma continuidade no nfvel macro e micro-sociolégico: dentro da sociedade global judaico-palestinense nfo ocorreram cAmbios fundamentais entre a atuaciio de Jesus (em tomo de 25 a 30 d.C.) € o movimento pés~pascal de Jesus (ca, 30-70 d.C.). Visto sociologica~ ‘mente, o que era possfvel entre 30 ¢ 70 d.C., também 0 foi nos cinco anos anteriores. Mais con- trovertida € a continuidade em nfvel micto-sociolégico. E inegAvel que houve uma continuida~ de de pessoas (o cfroulo pré-pascal dos disofpulos foi portador da f€ p6s-pascal), © ainda, que 0 grupo de discfpulos prosseguiu com o estilo de vida de pregadores itinerantes, Assim, deram continuidade ao carismatismo itinerante de Jesus. Se 0 ceticismo histdrico-formal quanto historicidade das tradicGes estiver baseado na suposigio de uma ruptura sociol6gica entre o pre~ ‘gador Jesus e as comunidades sedentirias locais, ele nfo tem suficiente fundamento. 51, BURCKHARDT, Griechische Kulturgeschichte, Berlin, s. d., p. 6 (Gesammelte Werke, vol. 5). 14 sas do surgimento de um pensamento, sua pretensio de validade € inde- pendente delas. Estas séio apenas duas criticas A pesquisa sociolégico-religiosa do cristianismo primitive. Somam-se a elas outras ddvidas similares, noté- veis, substanciais ¢ profundas, que n&o precisamos abordar aqui. Pois em princfpio vale: nao tem obrigacao de se justificar aquele que apresenta in- dagag6es, mas sim quem as rechaga como incabfveis. Em conseqtiéncia, para legitimar uma sociologia do movimento de Jesus, mencionemos ape- nas brevemente alguns interesses pré-cientfficos de compreensio: h4 um comportamento de curiosidade humana comum, que é estimulada justa- mente pelos fenémenos envoltos numa aura de reveréncia piedosa. Para muitos essa aura dificulta a compreensao. H& também a obrigacéio de jul- gar corretamente eventos decisivos de nossa histéria. Isso requer conhe- cimentos de circunsténcias histéricas ¢ sociais. Enfim, h& aquela questio central da convivéncia humana com que nos defrontamos ao estudar 0 movimento de Jesus: nas tensdes sociais, como € possfvel a renovacao, sem que se desencadeiem novas agress6es destrutivas? Esses interesses de compreensiio sSo sem diivida leg{timos. E as melhores premissas para cor- responder-Ihes sto: disposigfo para corrigir idéias pré-concebidas, simpa- tia participante, e uma suspeita de que todas as coisas tm dois lados. I. ANALISE DE PAPEIS: COMPORTAMENTO SOCIAL T{PICO NO MOVIMENTO DE JESUS A estrutura interna do movimento de Jesus era determinada pela interagio de trés papéis: os carisméticos itinerantes, seus simpatizantes nas comunidades locais ¢ o Revelador. Entre os carismaticos itinerantes as comunidades locais havia uma relagéo complementéria: os carismaticos itinerantes eram as autoridades espirituais decisivas nas comunidades lo- cais, ao passo que as comunidades locais constitufam a base social e mate- tial imprescindfvel dos carisméticos itinerantes. Ambos viviam e recebiam legitimagiio da sua ligagio com o Revelador transcendente. Sua relacio com ele € marcada por expectativas recfprocas. As diversas cristologias expressam expectativas de comportamento dirigidas ao Revelador; os pre- ceitos éticos e religiosos formulam as expectativas deste aos fiéis. Ambos atribuem-se mutuamente determinados papéis®. 1, O PAPEL DOS CARISMATICOS ITINERANTES 4 primeira tese, a ser conferida nas fontes, afirma que Jesus nao fundou primordialmente comunidades locais, ¢ sim suscitou um movi- mento de carismdticos andarilhos. As figuras marcantes dos primérdios do cristianismo foram apéstolos, profetas discfpulos itinerantes, que anda- vam de uma localidade a outra, podendo contar ali com o apoio de peque- nos gtupos de simpatizantes. Tais grupos de simpatizantes permaneciam no quadro organizativo do judafsmo. Encarnavam menos claramente 0 no- vo do cristianismo primitivo, pois estavam vinculados as velhas estruturas por mifitiplos lacos e obrigacées. Portadores do que mais tarde veio a ser 0 cristianismo auténomo eram, porém, carisméticos itinerantes apitridas. O conceito de “‘carismético”’ indica que seu papel nao era uma forma de vi- da institucionalizada, A qual fosse possfvel aderir por decisao prépria. Ao contrério, bascava-se num chamado externo incondicional. Este papel GA fransferéncia da teoria dos papéis para objetos de ff religiosa pode basear-se em H. SUN- DEN, Die Religion und die Rollen, Berlin, 1966; ID., Gott erfahren; das Rollenangebot der Re- ligionen, Guitersloh, 1975 (GTB, 98). Sobre o papel do carismético itinerante, cf. G. KRETSCHMAR, “Bin Beitrag zur Frage nach dem Ursprung frithchristlicher Askese™, ZTAK, 61:21-67, 1964; M. HENGEL, Nachfolge und Charisma, Berlin, 1968 (BZNW, 34); G. ‘adicalismo itinerante™, in: -, Sociologia da crisiandade primitiva, So Leopol- do, Sinodal, 1987, pp. 36-55. * 16 marcou 0 movimento de Jesus, como mostraremos a seguir com os trés métodos de inferéncia jé esbogados. 1.1 Inferéncias construtivas Segundo Lucas, a comunidade primitiva em Jerusalém era dirigida por doze apéstolos (Atos 1.12ss.). Ele esté projetando af para o passado 0 seu ideal de uma comunidade local dirigida por um colegiado. Isto por- que, quando Paulo visitou Jerusalém trés anos apds sua conversio, en- controu da suposta diregéo da comunidade apenas a Pedro (GI 1.18). On- de estavam os demais? A explicacdo mais ébvia é: percorriam a regiZio pa~ ra fazer miss&o e curar. Esta foi sua incumbéncia em Mc 3.13ss. Em parte alguma se falou da incumbéncia de dirigir comunidades. Quinze anos mais tarde Paulo encontrou somente as “‘trés colunas” em Jerusalém, entre clas Pedro (Gl 2.9), que fazia viagens freqiientes (At 8.14; 9.32ss.; 10.1ss.; Gl 2.18s.; 1 Co 1.12). O grupo dos doze liderado por ele em bre- ve se desfez. Conforme Mt 19.28, estavam incumbidos das doze tribos (dispersas) de Israel. Provavelmente se dispersaram pelos quatro ventos. © mesmo vale para o grupo de Estévao. Apesar de aparentemente eleitos para aliviar os doze no servico da distribuicdo de mantimentos e também atender devidamente os membros helenfsticos da comunidade, os seus in- tegrantes rapidamente se apresentaram como missiondrios independentes (At 8.4;11.19ss.). Sua movimentaggo néio pode ser datada apenas a partir de sua expulsao de Jerusalém. Um deles era de Antioquia (At 6.5). Lé ha- via um grupo de cinco constitu(do ecumenicamente (At 13.1): Barnabé vinha de Chipre (At 4.36); Paulo, de Tarso (At 22.3); Liicio, da Cirenai- ca; Manaém foi criado junto com o prfncipe Herodes Antipas, ou em Jeru- salém ou em Roma. Paulo e Barnabé eram pregadores itinerantes. Para os outros é cabfvel supor o mesmo. Em princfpio também eles eram respon- sAveis pela missio para a qual foram ‘‘separados” Paulo e Bamabé (At 13,2). Portanto, Antioquia constitufa a “‘igreja-mae” de um grupo de ca- risméticos itinerantes. Todavia, pregadores itinerantes de fora também se apresentavam ali, entre eles o profeta Agabo (At 11.27ss.), que percorria também a Judéia e Cesaréia (At 21.10). Ainda no tempo da Didaqué (1° metade do séc. II d.C.) profetas e mestres itinerantes constitufam as auto- ridades decisivas, que se estabeleciam numa comunidade por certo tempo (Did. 13,1s.). Acima deles situavam-se os “‘apéstolos”, que viviam ‘‘se- gundo o ensino do evangelho” e podiam permanecer no mAximo trés dias no mesmo lugar (11.3ss.). Todos esses carismdticos itinerantes gozavam de uma consideragao maior do que os cargos locais (15.2). Nao é de ad- mirar que ocorressem abusos. A Didaqué adverte contra profetas cristéios itinerantes que faziam picaretagem com Cristo (12.5). O satfrico Luciano fez troga de um desses profetas viandantes, tachando-o de vagabundo pa- rasita — provavelmente sem razfio (Peregr. 16). Com certeza nfo foi o tni- co a pensar tio negativamente acerca desses personagens. Sucessores de- 17 les ainda podem ser encontrados nas cartas pseudoclementinas Ad virgi- nes. E repetidamente, na hist6ria eclesifstica, a vita apostolica apatrida voltou a ter novos adeptos. Fixemos, pois: as notfcias que ouvimos acerca das primeiras autoridades crist’s referem-se a carisméticos itinerantes. 1.2 Inferéncias analfticas Carisméticos itinerantes nfo eram um fenémeno marginal no mo- vimento de Jesus. Foram eles que marcaram as tradig6es mais antigas e constituem © fundo social para a maior parte da tradigGo sindtica, espe- cialmente a tradigio dos ditos de Jesus (logia). Torna-se bem mais inteli- g{vel muito do que & primeira vista parece estranho ¢ excéntrico quando ponderamos quem praticou ¢ transmitiu essas palavras. As mais significa- tivas delas sio as normas éticas, porque se referem diretamente ao com- portamento dos seguidores de Jesus, contendo em especial o etos de uma vida sem pétria, sem famflia, sem posses e sem protecio. 1.2.1 Vida sem pdtria: Fazia parte integrante do discipulado o abandono da stabilitas loct*. Os vocacionados largavam casa ¢ terras (Mc 1,16ss 10,285s.), seguiam a Jesus ¢ 0 acompanhavam numa vida apétrida. Para ‘a o dito: “‘As raposas tém scus covis ¢ as aves do céu, ninhos: mas 0 Filho do homem néo tem onde reclinar a cabega.” (Mt 8.20.) Pode- rfamos pensar que ap6s a morte de Jesus os discfpulos retornaram A vida sedentaria, Mas nao temos notfcia de tal fato, sem contar as dificuldades préticzs: quem tinha abandonado sua terra natal dificilmente voltaria a ra- dicar-se 14. A nica noticia é que alguns permaneciam em Jerusalém (portato néo na sua pétria galiléia). Podemos supor que a maioria deles prosseguiu na vida andarilha: 0 ‘modo de vida do Senhor”’, como é cha- mada pela Didaqué (11,8). O sermao missiondrio (Mt 10.5ss.) torna obri- gatéria a vida itinerante. E a Didaqué sentencia claramente: “'O apéstolo que permanece mais de dois dias € um falso profeta.” (11,5.) E compreen- s(vel que a vida apatrida nem sempre fosse voluntéria. Em Mt 10.23 ca- rismaticos perseguidos fazem uso da palavra: “Quando perseguirem vocés numa cidade, fujam para outra; porque em verdade Ihes digo que vocés nfo acabariio de percorrer as cidades de Israel até que venha o Filho do bomem.” Eram perseguidos (Mt 23.34; At 8.1) e expulsos de muitos luga- res (Mt 10.14). 1.2.2 Renincia a familia: Um trago afamiliar marca 0 etos dos carismati- Cos itinerantes do cristianismo primitivo. Ao lado de casa ¢ campos tam- bém haviam abandonado a famflia (Mc 10.29). A ruptura com ela inclufa desconsideragio dos deveres filiai um seguidor foi proibido sepultar * N.do E.: Estabilidade de lugar, ou seja, domicflio, residéneia fixa, 18 seu falecido pai (Mt 8.22). Outros abandonaram seu pai em pleno trabalho (Mc 1.20). Sim, o édio aos parentes podia tornar-se uma obrigagao: Se alguém vem a mim e nao odeia a seu pai, ¢ mae, ¢ mulher, e filhos, ¢ ir- mfos, e irmis ¢ ainda a sua propria vida, nfo pode sor meu disefpulo. (Le 14.26.) Da mesma forma, 0 louvor & castragfo (Mt 19.10s.) nZio expressa muito senso de famflia. Compreende-se por que 0 ptofeta cristéo primitivo nao era muito estimado em sua cidade natal, onde residiam as famflias aban- donadas (Mc 6.4). Talvez seja nesse contexto que Pedro ganhou 0 cog- nome “Barjonas” (Mt 16.17). De fato Jo 1.42 traduz a expressfio como “filho de Joo”, mas ‘‘Barjonas” deveria ser “‘filho de Jonas”. A meu ver deve-se atentar para a interpretagio que deriva “Barjonas” de “desértico, vazio, ermo”, entendendo o cognome no sentido de “fora da lei”, “*mar- ginal”. Aos olhos dos que Pedro tinha deixado, ele certamente era um “Barjonas”, alguém que vivia em lugares etmos e tinha uma existéncia marginal, exclufda da sociedade. provével que muitas famflias nao fa~ ziam outro julgamento de seus filhos adeptos do movimento de Jesus que a familia de Jesus acerca do seu “filho perdido”. Simplesmente tinha-o como louco (Me 3.21). No sermao missionério 0 julgamento € expressa- mente generalizado: “‘O discfpulo nfo est& acima do seu mestre nem 0 servo acima do seu senhor. (. . .) Se chamaram Belzebu ao dono da casa, quanto mais aos seus domésticos.” (Mt 10.24s.) Os integrantes do movi- mento de Jesus naturalmente se defenderam da acusagfo de assumirem um ctos afamiliar. Justificavam-se em parte modificando o conceito de famf lia: verdadeiros parentes nao sfo os familiares por lagos de nascenga, mas 08 que ouvem e praticam a palavra de Deus (Le 8.19-21). Bendita nao foi a mée de Jesus, mas os ouvintes da palavra (Le 11.28ss.). Compensagao pelas familias abandonadas os discfpulos encontravam em céntuplo junto aos simpatizantes do movimento de Jesus: “‘o céntuplo de casas, irmaos, ims, mies, filhos e campos”, notadamente j& neste éon (Mc 10.30). A tradigao silencia sobre a pergunta onde as famflias abandonadas deveriam achat compensagao pela m&o-de-obra perdida, mas nfo omite as inevité- veis desavengas com as famflias. Consolavam-se pensando que tais fatos faziam parte das dores do fim dos tempos, sendo por isso necessérios (Le 12.52s.; Mt 10.21). 1.2.3 Rentincia é propriedade: Uma terceira caracterfstica do carismatis- mo itinerante no cristianismo primitivo é a critica & riqueza e propriedade. Podia criticar riqueza e posses sem cair em descrédito quem perambulava pelas estradas da Palestina e Sfria em pobreza demonstrativa, sem dinhei- To, calgados, bastio e alforje de provis6es, usando apenas uma veste (Mt 10.10). Ainda mais quando tinha doado tudo o que possufa. Pois isso era constitutive do discipulado pleno. Por isso 0 mogo rico nao péde de- cidir-se favoravelmente (Mc 10.17ss.). Barnabé agiu diferente, vendendo parte de suas propriedades (At 4.36s.). Quem assumia uma conduta des- 19 sas, podia defender a opinitio de que um camelo passaria antes pelo fundo de uma agulha que um rico para o reino de Deus (Mc 10.25), podia exor= tar para que se armazenassem tesouros no céu ¢ nao na terra (Mt 6.19ss.), podia alertar que nao se pode servir simultaneamente a Deus e as riquezas (Le 16.13) ¢ podia ameagar com a inversdo de todas as condigées terrenas pelo iminente fim dos tempos: Ai de voogs, os ricos, porque tém a sua consolagiio! Ai de vooés que esto agora fartos, porque virdo a ter fome! Ai de vocés os que agora riem, por- que hfio de lamentar e chorar! (Le 6.248s.) Em fantasias plenas de agressividade eram descritos o terrfvel fim do rico © felicidade do pobre no além (Le 16.19-31). E bem verdade que desde sempre os desprivilegiados se consolavam desta mancira. Contudo agora havia mais. Pobreza nfo era apenas um destino, mas uma missio. Pois 0 carismético itinerante podia prover-se somente da rago diéria mfnima ne- cessdtia. Assim o exigia a “doutrina do evangelho” (Did. 11,3ss.). Atrés desta demonstragio de pobreza se ocultava uma confianga incondicional na bondade de Deus, que nfo deixaria seu missionério perecer A m{ngua. Por isso Ihes digo: N&o andem ansiosos pela sua vida, quanto ao que hiio de comer e beber; nem pelo seu corpo, quanto ao que hao de vestir. Nao é a vi- da mais do que alimento, ¢ 0 corpo mais do que as vestes? Observem as aves do céu; nfo semeiam, néo colhem, nem ajuntam em celeiros, contudo seu Pai celeste as sustenta. Porventura ndo valem vocés mais do que as aves? (Mt 6.25-32,) Atrds de tais pelavras ndo devemos supor uma animagfio de passeios do- mingueiros com a famflia. Nao se trata de alegrar-se com passarinhos, flo tes prados, Mas estas palavras exprimem a dureza da existéncia apatrida e desprotegida de carisméticos itinerantes, que percorriam aquelas terras sem posses ¢ sem trabalho. O trecho final: ““N&o se inquietem com o dia de amanha, pois 0 amanha trard os seus cuidados; basta ao dia o seu pré- prio mal” (Mt 6.34) provavelmente expressa uma sabedoria pessimista ba- seada na experiéncia. Essa sabedoria é to digna de crédito na boca de ca- tismaticos itinerantes quanto a prece pelo pio de cada dia, ou seja, pela porcéo difria. Essas pessoas viviam do apoio imprevisfvel de simpatizan- tes, aos quais ofereciam em troca prédica e curas (Le 10.5ss.). E isso, visto de fora, néo representava muito. A prédica era feita de palavras e as curas nfo aconteciam diariamente, de modo que os simpatizantes locais precisavam de motivagio especial para apoiar carisméticos itinerantes: “Quem der de beber, ainda que seja um copo de dgua fria, a um destes pequeninos, por ser ele meu discfpulo, em verdade lhes digo que de modo algum perderé o seu galardio.” (Mt 10.42.) Passando a limpo: dava-se 0 apoio primeiramente a fundo perdido. Somente no julzo vindouro ele seria Proveitoso. Entdo a saudag&io de paz dos apéstolos ¢ profetas ofereceria Protegiio magica, mas sua rejeigo suscitaria vinganga (Le 10.5ss.). Mes- mo que isso no constitufsse mendic&ncia comum, certamente era uma 20 mendicfncia de nfvel superior, mendicAncia carismética, que confiava que © problema do sustento difrio se resolveria por si s6, segundo 0 lema: “Busquem (. . .) ptimeiro o reino de Deus ¢ a sua justica, ¢ todas estas coisas Ihes sero acrescentadas.” (Mt 6.33.) 1.2.4 Desprotecdo: Corria-se conscientemente 0 risco da falta de defesa amparo legal. Quem viajava sem bastiio pelas estradas antigas, renunciava abertamente ao mais elementar meio de autodefesa. E nessa situagao que vale o mandamento de néo resistir ao mal, quando a face direita for ferida (Mt 5.38s.). A exortagio de Mt 5.41: “Se alguém te obrigar a andar uma milha, vai com ele duas”” provavelmente faz referéncia direta A situagdo de carisméticos itinerantes: a quem j4 esté a caminho deveria ser indife- rente ser forgado a prestar um servico de uma ou duas milhas. Esta remén- cia A defesa também era praticada diante de autoridades ¢ tribunais, Con- fiava-se que 0 Espfrito Santo daria as palavras acertadas (Mt 10.17ss.). 1.3 Uma inferéncia comparativa Os filésofos itinerantes cfnicos constituem uma certa analogia com 9 carismatismo itinerante do cristianismo primitivo. Entre eles também to- pamos com uma existéncia errante, conjugada com um etos de rentincia & patria, famflia e propriedade. No tratado sobre os cfnicos, Epicteto levanta a pergunta: “Como € possfvel viver feliz sem bens nem propriedade, nu, sem casa nem lar, sem atendimento, sem servo ¢ sem patria?” E responde: Yejam, Deus thes envio alguém que pode demonstrar pela agiio que isso & possfvel! Nao possuo tudo aquilo, deito-me sobre terra, nao tenho mulher, nem filhos nem palacete, mas somente terra e céu e uma tinica pequena ca- pa. E, apesar disso, 0 que me falta? Nao estou despreocupado ¢ sem temor, nao estou livre? (Diss. 22,46-48,) Esses excéntricos também foram perseguidos, p. ex. sob Vespasiano (Sueténio, Vesp. 10). O parentesco com os fendmenos do cristianismo pri- mitivo esclarece-se também a partir do fato de que um itinerante cristo primitive chamado Peregrino p6de converter-se a0 cinismo. Essas analo- gias nos levam ao 4mbito extrapalestinense, mas & certo que 0 movimento de Jesus desde cedo exerceu influéncia além da Palestina, Carisméticos itinerantes apareceram em Antioquia (At 13.1ss.) ¢ nas comunidades pau- linas, gerando ali dificuldades para Paulo, p. ex. em Corinto. 1.4 Resumo © radicalismo ético da tradigio sinética era um radicalismo itine- rante que podia ser praticado unicamente sob condig6es de vida oxtromas © marginais. Somente era capaz de praticar e transmitir com credibilidade este etos quem estava liberado das amarras cotidianas deste mundo, quem 21 havia abandonado casa ¢ campo, mulher ¢ filhos, quem deixava os mortos enterrarem os mortos ¢ tomava como exemplo os Ifrios e os passaros. Este radicalismo tinha chance apenas dentro de um movimento de marginaliza- dos. Nao nos admira, por isso, que na tradicdo aparegam sempre de novo marginalizados: doentes e deficientes, prostitutas ¢ desocupados, coletores de impostos ¢ filhos prddigos. Com este papel marginal dos carismsticos itinerantes do cristianismo primitivo combina sua expectativa escatolégica imediata. Expectativa do fim e prética vivencial coincidem plenamente. Assim como no agir difrio eles se desligavam constantemente deste mun- do, assim também destrufam sempre de novo a realidade em sua fantasia mitica, por exemplo, quando tinham que digerir a repulsa por parte do mundo. Era fécil, entéio, fazer submergir nas chamas e labaredas do juizo final as localidades adversas (Le 10.14s.). Ainda que combatessem tais fantasias de vinganga (Le 9.51ss.), este fato mesmo comprova a sua existéncia. 2, O PAPEL DOS SIMPATIZANTES NAS COMUNIDADES LOCAIS E imposs{vel entender 0 movimento de Jesus e a tradicao sinética exclusivamente a partir dos carisméticos itinerantes. Ao lado deles havia “comunidades locais”, grupos de simpatizantes sedentarios. O conceito “comunidade” talvez seja equfvoco, pois estes grupos permaneciam no seio do judafsmo e no tinham intengo de fundar uma nova “igreja”. In- felizmente sabemos muito pouco deles. 2.1 Inferéncias construtivas O préprio Jesus era acolhido em casas de simpatizantes, p. ex. na casa de Pedro (Mt 8.14), Maria ¢ Marta (Lc 10.38ss.), Simo o leproso (Mc 14.3ss.). Algumas mulheres o assistiam materialmente (Le 8.2s.). Provavelmente tais famflias simpatizantes constitufram mais tarde os nii- cleos das comunidades locais. Nao sabemos nada ao certo. Isto porque hé provas de comunidades locais no Ambito palestinense somente em Jerusa- Kém (At Iss.) € na Judéia (Gl 1.22). Elas eram mais numerosas nas cida- des-reptiblicas helenfsticas, em Cesaréia (At 10.1ss.), Ptolemaida (21.7), Tiro ¢ Sidom (21.3s.), Antioquia (11.20ss.) e Damasco (9.10ss.). Desta omisséo talvez se possa concluir que no Ambito palestinense sua impor- tancia era menor que nestas cidades. Somente a comunidade de Jerusalém se destacava. Ela pode ter sido a Igreja-m&e dos primeiros carisméticos itinerantes do cristianismo primitivo (p. ex. Pedro e Agabo). Muito em breve, porém, ela foi liderada por Tiago, irm4o do Senhor, que nio era carismético itinerante (cf. At 12.17; 15.13; 21.18; Josefo, Ant. 20,200; Eusébio, H. E. 11,23,4ss.). 22 2.2 Inferéncias analfticas Ha bem poucas tradig6es sindticas cujo Sitz im Leben* € inequivo- camente a comunidade local. Faz parte delas o apocalipse sinético, que convoca ao abandono das casas na catéstrofe do fim dos tempos (Mc 13.14ss.). O texto ilumina, como um raio, a mentalidade das comunidades locais: também nelas havia uma latente disposigéio de abandonar a mora- dia e uma perspectiva de em breve tornar-se um fugitivo apatrida. O exemplo dos carisméticos itinerantes podia fortalecer esta prontidao. No geral, porém, eram menos radicais que os carismaticos itinerantes. Isso se evidencia em trés problemas que precisam ser resolvidos por qualquer grupo de uma forma ou outra: regulamentar a conduta, estruturar a autori- dade e processar a admiss&o ¢ exclusao. 2.2.1 Regulamentagdo da conduta: Nas normas de comportamento certa- mente tinha de haver reflexos domesticadores da profisséo, da famflia e do controle da vizinhanga sobre as comunidades. Nao era possfvel tomar as liberdades diante da lei que os pregadores itinerantes independentes tomavam. Quando encontramos lado a lado nos sindticos normas mais ra~ dicais e mais moderadas, somos facilmente levados a relacionar este fato com a concomitancia de carismatismo itinerante e comunidades locais, se bem que as respectivas afirmacées nunca possam ser claramente atribu(das a uma das duas formas sociais do movimento de Jesus, j4 que natural- mente as tradicgdes dos carisméticos itinerantes eram conhecidas também nas comunidades locais (e vice-versa). Destarte, algumas comunidades queriam ver a lei cumprida nos mfnimos detalhes (Mt 5.17ss.), ao invés de a criticarem (5.21ss.). Para elas, escribas e fariseus eram autoridades legt- timas (Mt 23.1ss.) ¢ nfo imstancias moralmente corrompidas, contra as quais eram cabfveis unicamente imprecagées (23.13ss.). Reconheciam o templo e seus sacerdotes através de sacrificios (Mt 5.23), do imposto para © templo (Mt 17.24ss.), ¢ pela solicitagdo de “‘atestados de satide’”” por parte dos sacerdotes (Mc 1.44), ao invés de condenarem seus negécios religiosos (Mc 11.15ss.). Aceitavam os costumes de jejum de seu am- biente (Mt 6.16ss.) e aprovavam o matriménio e a famflia (Mc 10.2ss.; 10.13s.). Em certos pontos coptemporizavam conscientemente no aspecto exterior, sem renunciar a uma reserva mental interior. Pois sabiam: no fundo estavam livres do imposto do templo (Mt 17.26). No fundo o ates- tado de satide do sacerdote era supérfluo (Mc 1.44). De fato os escribas ¢ fariseus eram autoridades questiondveis, cujas palavras nfo coincidiam com as obras (Mt 23.3). No fundo a reconciliagéio era mais importante que sacrificios (Mt 5.23). Estavam conscientes de que nas esmolas, orages € jejuns nao importava o exterior, e sim o interior, conhecido unicamente por Deus (Mt 6.1ss.). Precisamente estas regras de piedade so aclaradoras. *N. do Bu uugar vivencial, 0 lugar em que determinado género 6 empregado na vida real. 23 Penso que podem ser situadas nitidamente nas comunidades: somente nes- tas havia 0 “quarto fechado” (Mt 6.6), ¢ o intenso controle social pela vi- zinhanga e opiniao publica, do qual tentavam evadir-se pela retirada 20 Iugar secreto’. Diante dele era preciso realgar que queriam cumprir leis, costumes € normas do contexto social — se possfvel de modo mais perfeito que os demais. Buscavam a “‘justica excedente” (Mt 5.20). Havia, portanto, um etos diferenciado para carismaticos itinerantes € para simpatizantes residentes. Disso temos também referéncias diretas. Em Mateus exige-se do jovem rico primeiramente o cumprimento de todos os mandamentos. S6 depois 6 chamado ao seguimento. A vocaciio ao se~ guimento nfo é formulada de forma apoditica, mas condicional: “Se que- Tes ser perfeito, vai, vende os teus bens, dé aos pobres (. . .)."" (Mt 19.21.) Hé mandamentos especiais para os perfeitos. A Didaqué formula-o de maneira similar: “Se podes levar todo o jugo do Senhor, serés perfeito; mas, se néio podes, faze o que podes.” (Did. 6,2.) 2.2.2 Estrutura da autoridade: Inicialmente as autoridades das comuni- dades locais eram carisméticos itinerantes. Autoridades residentes, ade- mais, eram desnecessfrias em pequenas comunidades. Onde dois ou trés estayam reunidos em nome de Jesus (Mt 18.20), ali uma hierarquia era supérflua. Problemas se resolviam ou pela comunidade toda ou por um ca- rismético itinerante que passava. Por isso encontramos lado a lado pala- vras que concedem 0 poder de ligar ¢ desligar & comunidade e ao caris- mético itinerante Pedro (Mt 18.18; 16.19). Comparavel com isto € a con- tradicao entre a rejeigéo de todas as autoridades (Mt 23.8ss.) € o reconhe- cimento de “‘profetas, s4bios e escribas” no cristianismo primitivo (Mt 23.34). Hssa contradig&o pode ser entendida: quanto menos as estruturas de autoridade eram regulamentadas institucionalmente nas comunidades locais, tanto maior tinha que ser 0 anseio pelas grandes autoridades caris- méticas. E inversamente, quanto maior a reivindicagio de poder destes ca- tisméticos, tanto menos interesse tinham em permitir o surgimento de au toridades concorrentes nas comunidades. Entretanto, quando as comuni- dades cresciam, tinham que surgir posigGes diretivas internas e fazer con- coréncia aos pregadores itinerantes. Provavelmente as diferengas entre Tiago e Pedro se explicam desta maneira: o carismético independente Pe- dro podia mais facilmente arriscar um conflito com os tabus alimentares judaicos do que Tiago, porta-voz da comunidade de Jerusalém. Em An- tioquia, Pedro comeu em companhia de gentilico-cristaos. Mas, por meio de enviados, Tiago o forgou & conformidade com as normas judaicas (Gl 2.11ss.). Fato semelhante sucedeu no séc. Il: 0 carismético itinerante Pe- regrino comeu algo proibido, mas sofreu a censura das comunidades lo- cais, perdendo sua influéncia entre elas (Luciano, Peregt. 16). Tais con- 7Cf, @ anlise muito interessante do Sermo do Monte em D. y, OPPEN, Die personale Gesell- schaft, Gutersloh, 1967 (GTB, 39), pp. 9ss. 2A flitos nfo se deviam apenas a animosidades pessoais, como atesta a Di- daqué. Aqui os bispos e didconos eleitos pelas comunidades locais ficam claramente pospostos aos carisméticos itinerantes eleitos. Faz-se necessé- ria uma admoestagio expressa: “Nao os desconsiderem, porque sao dig- nos de igual honra, como os profetas e mestres.”” (15,2.) Por sua vez, os profetas ¢ mestres carisméticos itinerantes devem ser recebidos como 0 préprio Senhor (11,2). Precisam ser alimentados (11,6; 13,1ss.). Possuem os privilégios do sacerdécio veterotestamentario (13,3; cf. 1 Co 9.13s.). Sim, eles tém preferéncia até diante dos pobres (13,4; cf. Mc 14.7). Porém esta obrigagéio de sustentar os carisméticos itinerantes tornou as comuni- dades criticas: os profetas que deixavam perceber de forma muito direta seu interesse por dinheiro e alimento, eram rejeitados como pseudoprofe- tas (11,9.12), Alguns passos mais e se procederé como Diétrefes (3 Jo 9), que proibiu terminantemente acolher carisméticos itinerantes. Mas isso sucedeu em época tardia do Novo Testamento. No movimento de Jesus néo se quebrou a posi¢éo hegeménica dos carismaticos itinerantes. 3 Processo de admissdo e excluséo: Pertencer ou nfo & comunidade local tinha que ser regulamentado por ela mesma, O batismo, original~ mente um sacramento escatolégico que deveria proteger diante da conde- nac&o futura e que constitufa um sinal do arrependimento, provavelmente foi transformado pelas comunidades num rito de iniciagao decisivo (Mt 28.19; Did. 7). Eis que nas instrugdes para carismaticos itinerantes falta uma incumbéncia para batizar (excegao: Mt 28.19). Paulo acentua expres- samente que © batismo nao faz parte de suas tarefas (1 Co 1.17). Para a existéncia dos carisméticos itinerantes ele nao tinha importancia: quem ti- nha abandonado casa e terras, havia se separado claramente do social. A vocag&o ao seguimento dispensava qualquer rito de i Mas esta vocagio nfo era planejével. Em contrapartida, o batismo podia ser institucionalizado. Também surgiram em breve regulamentos para ex- cluir ‘‘pecadores’’ da comunidade local. Em Mt 18.15ss. sfo previstas trés instfincias: admoestagio pessoal, didlogo em presenca de duas testemu- nhas e excluséo diante da assembléia da comunidade. Regras semelhantes existiam em Cunré (1 QS 5,26s.). Nada sabemos de um processo de ex- clusao de carisméticos itinerantes. Segundo Did. 11,1 eles estavam sujei- tos somente ao jufzo de Deus. Providéncias especfficas eram supérfluas. Pois quando nao eram mais recebidos por suas comunidades, perdiam a base material (cf. Luciano, Peregr. 16). 2.3 Uma inferéncia comparativa A concomitancia de exigéncias mais radicais e mais moderadas tem uma analogia no judafsmo contemporaneo: entre os essénios havia grupos com um etos muito severo, que renunciavam & propriedade e ao matrim6- nio (Bell. 2,119ss.; cf. 1QS 6,19), como também grupos com um etos a mais equilibrado, nos quais se toleravam matrim6nio (Bell. 2,160s.; CD 7,68.) € propriedade (CD 13,14; 14,13). E admissfvel supor que a orienta- gfio mais severa se localizava em Cunra, j4 que o etos mais radical podia ser melhor realizado no isolamento de um odsis no deserto do que em meio & sociedade. O etos mais equilibrado, por sua vez, era defendido por grupos que viviam dispersos em “acampamentos” (CD 7,6s.; Bell. 2,124ss.). Entre todos os grupos reinava intensa comunicagdo. Fm cada cidade havia alguém encarregado do atendimento a companheiros que passavam, para “prové-los de roupas e de todas as demais necessidades” (Bell. 2,125). Os viajantes essénios na verdade nao eram carisméticos iti- nerantes (nao ha certeza disso), mas a hospitalidade de grupos essénios sem diivida pode ser comparada com a hospitalidade de comunidades lo- cais cristés para com seus pregadores itinerantes, assim como também o ctos escalonado. Contudo, as diferengas também sto inegdveis. Elas ad- quirem grande importAncia sociolégica. As comunidades locais cristis cram mais abertas para com 0 seu ambiente social. Isolavam-se menos dos demais judeus que os essénios, entre os quais a admiss4o estava regula- mentada com entrega da propriedade, noviciado, exame e juramento (1QS 6,13ss.). Cada postulante tinha que ser examinado rigorosamente, pois de modo geral os demais judeus eram tidos como filhos das trevas. O movi- mento de Jesus, porém, via-os como “‘ovelhas perdidas da casa de Israel” (Mt 10.6) ¢ procurava alcangé-los. Esta diferenca permite que entendamos como o movimento de Jesus sobressafa pouco do judafsmo e pouco dele se separava. Os essénios se portavam de modo muito mais separatista; ¢ nao obstante fazem parte indiscutfvel do judafsmo. Isso vale tanto mais para o movimento de Jesus. 2.4 Resumo A investigagiio de comunidades locais demonstrou que elas preci- sam ser entendidas a partir de seu relacionamento complementar com os carisméticos itinerantes. O radicalismo dos carisméticos itinerantes torna- va-se poss{vel apenas com a base material nas comunidades locais, Eram elas que, até certo ponto, os aliviavam de preocupagées cotidianas. As comunidades locais, por sua vez, podiam permitir-se contemporizacdes com © contexto, porque os carisméticos itinerantes nitidamente dele se destacavam, Uma ética escalonada unia e diferenciava as duas formas so- ciais do movimento de Jesus. 3. O PAPEL DO FILHO DO HOMEM © movimento de Jesus expressou em diversos tftulos cristolégicos as suas expectativas quanto A atuagéo do Revelador. Com eles estavam inicialmente relacionadas diversas expectativas ¢ atribuigdes de papéis. O 26 titulo Filho de Deus acentuava a pertenga ao mundo divino e o irromper da transcendéncia. Por isso ele se encontra em histérias que falam do céu aberto (Mc 1.9ss.; 9.2ss.) ou quando se destaca a origem do Filho no mundo do além (Mc 12.1ss.). O conceito de Messias, em contrapartida, est muito mais ligado a este mundo. Com ele vincula-se a esperanga por um rei que libertard Israel. O movimento de Jesus teve que confrontar-se com a concorréncia de outras esperangas por um libertador poderoso, por um rei terreno. Teve que claborar cardter peculiar de Jesus: seu sofri- mento e sua morte, que de forma alguma cabiam no papel tradicional- mente atribufdo ao Messias. Por isso o tftulo de Messias foi vinculado primordialmente com a cruz (p. ex., Mc 15.32). O tftulo Filho do homem combinava ambos os aspectos: afirmagées de majestade e de humildade, pertenca ao mundo divino (expressa sobretudo pelo titulo Fitho de Deus) € 0 sofrimento sobre a terra (que, paradoxalmente, foi atribufdo ao “Mes- sias”’). JA por isso Filho do homem € 0 t{tulo mais importante. Acresce-se um segundo motivo. Nos evangelhos, Messias aparece quase sempre na boca de outras pessoas, e Filho de Deus na de seres sobrenaturais: Deus ¢ deménios 0 usam. Mas o tftulo Filho do homem é usado sempre pelo pré- prio Jesus. O conceito Messias vé Jesus numa perspectiva que carece de corretivo: Jesus nfo foi o rei messifinico nacional. O tftulo Filho de Deus assume uma perspectiva transcendente. O tftulo Filho do homem, porém, expressa a perspectiva intema do movimento de Jesus. Liga-se a este de forma muito estreita. 3.1 Inferéncias construtivas Ao contrério dos papéis até agora analisados, temos a disposi¢fo grande quantidade de afirmagées diretas sobre o Filho do homem. Podem ser classificadas em dois grupos: palayras sobre o Filho do homem terreno e sobre o vindouro. Entre as palavras sobre o Filho terreno, por sua vez, podemos distinguir também dois grupos. O primeiro abrange afirmagées na voz, ativa: 0 Filho do homem est acima das normas do contexto social, quebra o sdbado (Mt 12.8), nfio se atém a mandamentos de jejum (Mt 11.188.) e perdoa arbitrariamente os pecados (Mt 9.6). O segundo grupo abrange afirmagées na voz passiva: o Filho do homem tem que sofrer diante das reagées do ambiente, & rejeitado pelos homens (Mc 9.31) ¢ sa- crifica sua vida em prol de muitos (Mc 10.45). As afirmagées ativas passivas se complementam, De modo positivo ¢ negativo o Filho do ho- mem est & margem da sociedade, De um lado est4 sobre a sociedade © suas normas, de outro, sofre sob a rejeic&o por parte dela. Possui plena autoridade ¢ 6 rechagado. Muito em breve, porém, esta dicotomia ser solucionada: apareceré de stibito ¢ inesperadamente, num novo papel de juiz escatolégico (Mc 14.62; Mt 24.27ss.), congregaré os seus (Mt 13.41; Mc 13.27) sem que as pessoas saibam com certeza se estiio entre os clei- tos ou nfo (Mt 25.31ss.). O rejeitado entio ser4 juiz, o impotente serd se- 27

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