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jatrice Pavis vale-se, em O Teatro no Cruzamento de OTe OR eeu Rene cc gia para identificar, no teatro, os elementos intrinsecos da Pee eee oe eT ccc Lae PU Re Pu Rese ek CO en ocak ec Cie Cre ne yee urea desempenho, disposi¢ao plastica ou sonora etc.) — e vai Be eae eee ee ny Ce Tce eRe ane oe) Co Re Co eee ed Cree rod eee Dee ene tad teatro ocidental e europeu mais representativo na virada do século xx, pesquisando textos classicos e mademos do Fee ue Lu eon ae eee ec te ec td teatral (transposicao intergestual e intercultural) nos casos concretos das montagens de Peter Brook (Mahabharata), Ariane Mnouchkine (Indiade e Noite de Refs) e Eugenio Bar- PO eee Me ENS ene Fee eC ores DCU Se RCM ea especialmente a visdo e o pendor interculturalist Dc ee cee OC pois Ihe abre veredas instigantes para novas abordagens Crete ieee Rae Re Mn CTE) sua inclusdo na colegdo Estudos da editora Perspectiva, NR eae ot) See ‘siaed ‘d Patrice Pavisfocaliza neste livro um tema ‘ental da vida contemporinea, sob um EO een ace ker ee Cea ee er ns Ce ee eee Dee Re eee Pe erect ce Serrated eee ene Eee ce een a Cer ee cee es ee ee er Pee eee eee en ee BO eee ees pect ee cn ee ca Pe ete eae ae tem ma 1a explosiva e da colagem inexticivel de suas linguagens, na quase infinita poten- cialidade de sua poliglossia, como nos dias que correm. E, sob este angulo, para a interscegio apontada, 0 teatro con: ee eee ec ¢gico. Sobserudo na sua Forma viva, a do one nee eer ee eee ce ee ee ees te em uma plataforma, onde as culuras Ree ee ee Cee eee ee een eer te Rene ee ery ¢ audigo, na relagio viva entre ator ¢ Patrice Pavis O TEATRO NO CRUZAMENTO DE CULTURAS SV, As 2 praspecriva tuto do original ances Le thedive au croisement sles cultures © Livraisie dost Conti, 1990 Dados Internacionais de Catalogayao na Publicagte (CIP) (Camara iratloira de Livre, SP, Hrs) vravis, Patrice ‘0 teatro no cruzamento de culturas / Pawiee Pavis + [taduyio Nanci Fernandes}. ~ Sae Paulo > Perspectiva, 2008, (Estados ; 247 / divigida por 1. Guinsbara) ‘Finulo original: Le thaitee ay ctoisement cles cultures ISHN O78-RS-273-0800-0 1, Comunicagao intercultural 2. Cubura 3, Teatto, esociedade 1. Guinsbury, J. 1, Titulo. Ul. Série, eons cpp-206.484 ge om atiC! Sociologia 306.484 Wale cullund Sociologia $06,484 ireitos reservados em lingua pormguesa & DITORA PERSPECTIVA S.A, Av. Brigadeito Luts AniOaio, 3025 01401-000 Sao Pauto SP Brosil ‘Telefian: «011) 3885-8388 swmneditoraperspectiva.com-be Sumario Proticio 4 Edigao Brasileira ss . ix Para uma ‘Teoria de Cultura e de Encenagao Do Texto para o Palco: Um Parte Difieil Algumas Raz6es Sociolégicas do Sucesso dos Classicos no Teatro na Franga depois de 1945 A Heranga Clissica do Teatro Pos-Modern0 sone “Mal-Estar na Civilizagao”: A Representayao da Catastrofe no Teatro Franco-Alemao Contempordnco « sie TD Da Teoria Considerada como uma das Belas-artes © de sua Influéneia Limitada na Dramaturgia Contemporainea, Majoritaria ou Minoritaria. se 99) Eespecificidacle da Tradugae Teatral: A Tradugao, Hnteryestaal ¢ Intercultural wo 123 8. “Dangar com Fausto”: Reflexdes sobre uma Encenagao Intercultural de Barba... 155 9. © Interculturalismo na Encenago Contemporanea! Almagem da india em O Mahabharata, A Indlada, A Nolte de Reis © Fausto von a WT Bibliografia 209 Prefacio 4 Edi¢ao Brasileira J4 se passaram vinte anos desde a escritura do meu livro O Teatro no Cruzamento das Culturas. F muito tempo considerando-se um mun- do que muda de um dia para o outro. Ocorreram, especialmente, a queda do muro de Berlim em 1989 ¢ os atentados de 11 de setembro: dois acontecimentos certamente imprevisiveis, mas que entretanto cram imagindveis. Para um teatro que esta situado no cruzamento '= caminhos politicos, culturais e interculturais, tais acontecimentos 86 poderiam deixar feridas mal cicatrizadas. Se a cultura é uma realidade que parece, na atualidade, desapare- cer a olhos vistos e sem remissito, por que também nao deveria o teatro intercultural sofrer uma completa mutago, em constante desagreg: 0? Mas se trata, realmente, de espeticulos que se tornaram ilegiveis ‘ou que no sAo politicamente corretos o suficiente? Nao 6, antes de lo, a sua apreenstio teérica que motiva o problema, a dificuldade de se utilizar uma teoria que engloba a imensa produgdo intercultural? Deve-se recordar que a categoria do teatro intercultural € muito recente: remonta quando muito aos anos de 1970, particularmente com Peter Brook, Esquece-se que cada cultura tem sua propria de! higiio de cultura ¢ de intercultural. Aquilo que se faz passar no mun- do ocidental por uma grande descoberta aureolada de mistério, e até ransgresitio, haveria de parecer evidente no contexte japonés, chines on ev vel, portanto, espe- F sempre ent qual Context € CoM Ue objetivo Se al juljany as produgdes eénicas intercultra x (© TEATRO NO CRLZAMENTO DE CULTURAS. Hi vinte anos, tem-se a tendéneia de atribuir a mundializagao (glo~ balizagao) todos os males do mundo, Ela seria a responsavel pela uni- formizactio das praticas culturais, como se tal fendmeno j4 ndo Fosse observavel em outros periodos ¢ como se as culturas tivessem sido algum dia puras ¢ auténticas. Muito mais preocupante parece ser a derivagao da cultura seja rumo a uma concepgao comunitarista, seja rumo a uma visio congelada e essencialista. No primeiro caso, um grupo, fregilentemente religioso, arroga-se o dircito de decidir qual ¢ ‘a boa cultura © como esta deve aprisionar seus membros nas regras opressoras ¢ eliminar qualquer liberdade individual; no segundo caso, a cultura tende a congelar-se dogmaticamente num pretenso modelo universal, mas que somente aproveita a mesma classe esclarecida © jé no poder: “Tudo isso nos convida a uma revisio epistemologica do intercul- turalismo. Uma teoria universal de trocas talvez nao seja possivel, na medida em que visar-se-ia uma previsao global de todas as trocas, ne- las incluindo-se consideragdes econdmicas c politicas. Entretanto, ¢ este nariz de cera teérico que deve ser mantido. A falta dele, caso se yenuncie a teria reduzindo-a a alguns casos particulares para espetii- culos site-specific, ligados a um contexto muito particular, perde-se a faculdade de compara-los € analisa-los em outras produgdes, renun- ciando-se assim a qualquer avalingao, a qualquer visdo de conjunto, a qualquer reflexao, ‘A perda de prestigio da (eoria, tanto nas Américas quanto na Europa, a dificuldade em fundar-se um modelo verificavel, a comple- xidade de um sistema provido do minimo de cocréncia ¢ exemplari- dade, conduziram a uma visio globalizada e globalizante das culturas ©, portanto, dos espeticulos. Como explicar esta simplificagao ¢ esta Freqdentemente, (ei-se reprovade a primeira onda da pratica tcoria intercultural (a de Brook e a deste livro) 0 sucumbir a uma tendéncia essencialista e a negligenciar a andlise socioccondmiea dos espetaculos em proveito apenas de uma dimensio estética. Com ete to, a dificuldade ¢ mais a de se langar um olhar de cconomista ou de historiador sobre a obra intercultural analisada. No entanto, se niio nos faltam excelentes economists € socidlogos, a dificuldade & aplicar o sen saber ao objeto estético, ao invés de reescrever 0 mesmo capitulo da histéria do colonialismo. E por isso que, até prova em contrario, exatamente na dimensao of the “inter-corporeal work which an actor confronts his/her technique and professional identity with those of the others” (do trabalho intercorporal, no qual um ator confronta sua identidade técnica ¢ profissional com as dos demais) ¢ que podemos esperar apreend © corpo, os da (roca, Com efeito, po de contradigoes socials © pol eno apena’ PREFACIO A EDIGAO BRASILEIRA x Para nova época, novas questées. As objegOes A teoria freqiien- jemente se encontram levantadas na prittica recente do interculturalis~ tno. A partir do momento em que se assumiu mais como performer dio que como encenador, a pritica foi, apesar disso, reconduzida a ina experiéncia pessoal caracteristica da evolugao de uma socieda~ dle. O exemplo de Guillermo Gomez-Pefia impde-se como modelo desta tendéneia de reconduzir as grandes trocas de géneros teatrais a wna série de identidades miiltiplas. Com ele, no decorrer destes vinte Hltimos anos, passamos “from a static sense of identity to a repertoire | of identities” (de um sentido estitico de identidade para um reperté- iio de identidades). ‘A multiplicagio de identidades ¢ infinita: para além das identida- dos sexuais, étnicas, histérieas, religiosas etc., podem-se imaginar as fomunidades que multiplicam as marcas de pertencimento e, portan- fo, de exclusaa. “O isolamento identitério traz 4 luz a recusa do ou- fo", Porém, o que sera pior: 0 isolamento identitirio comunitarista 6\\ « multiplicagao ao infinito ¢ a absurdidade das identidades que Mecompem o ser humano? Nao é, no fundo, a mesma coisa? Quais as novas tarefas que se apresentardo 4 eneenagao inter- eultural se temos, ainda, vinte anos 4 nossa frente para fazer a teo- i? Sob a égide de Gomez-Pena, retornar-se-ia 4s fronteiras entre culturas, as pessoas, os tipos de identidade: seria 0 caso de rede~ ;n\-los constantemente, transp0-los, contrabanded-los, reconecti-los. econsiderar-se-ia a pratica européia ou americana — do Norte ¢ do al recorrendo-se a8 nogdes chinesa, japonesa ou coreana a fim de sificar se elas nos ajudariam melhor a abordar as nossas produgdes. h, procedimento certamente metaférico! O Kean nos mostraria atra~ 4 de um relato enigmatico entre mestre ¢ aluno de zen-budismo que puro raciocinio légico ¢ insuficiente; somente 0 Koan pode provo- Wo Sateri, o estada de ihiminagao. Para explicar as obras pos-mo- nas, estas duas nogdes paradoxais e imprevisiveis nao seriam uma, inasia. O mais importante, porém, é que aprenderiamos dessas cul fs como criar e analisar as obras que se acreditam ser ocidentais ie no 0 sao mais, ou que verdadeiramente jamais o foram, Ha winta anos desenvelveu-se uma tcoria pés-colonial, Como Jos os “pos”, ela nao significa outra coisa sendo que a sua matéria lo depois da colonizagao, depois daquilo tudo que existia antes, em. mma, © pos-colonialismo 6, por outro lado, necessariamente critico, ticolonialista c intercultural? Nem mais nem menos do que as outras uinits cle Leatro contemporaneo, as quais se inscrevem naturalmente nirechoque das culturas ¢ dos discursos. Certamente, os estudos w-coloniais podem ter parecido injustamente negligenciados, mas J Pronk Miche, artige Smétissaze” (mestigagem), em Michela Marzano (ed), elas existem desde o momento em que nos interessamos pelas formas extra-européias de espetéculos, sob outros nomes evidentemnente. Muitos debates de ma fé sobre a culpabilidade ¢ 0 arrependimento dos descendentes dos coionizadores nos teriam sido poupados se de- termindssemos quem e qual época esti em julgamento. Tanto quanto 0 individuos ou os regimes politicos, dever-se-iam poder mudar as mentalidades: “Descolonizar o pensamento nao significa dar razao ao colonizado da atualidade contra o colonizador de ontem, € instaurar um diélogo, ou mais exatamente, conceber 0 pensamento como in- trinsecamente dialégico, ou seja, interconectado™ E uma honra para mim que este livro dedicado ao teatro intercul- tural seja editado no Brasil, pats da mestigagem, do contato entre as culturas, pais onde Lévi-Strauss tornou-se ele mesmo. Esta tradugao, chega num momento em que © mundo se interroga sobre o futuro fisico do planeta e no qual a reflexdo sobre a mestigagem das cultu- ras assume nova importineia, sem poder permanecer separada das condigdes econdmicas mundiais. O Brasil sera, talvez, 0 laboratério em escala mundial onde se testarao as solugdes para a nossa sobrevi- véncia. Que 0 teatro, o espeticule, os produtos culturais de todas as ordens sejam as condigGes, tanto quanto a aposta em nossa sobrevi- véncia natural e cultural, eis af © que nao nos deve assustar, mas que ao contrario deve nos encorajar @ perseguir ¢ a aprofundar a reflexto sobre © empreendimento intercultural 1. Para uma Teoria de Cultura e de Encenagao Este livro tem como objetivo 0 cruzamento das culturas no trabalho teatral contemporanco. Este cruzamento, pelo qual passam em rajada culturas estrangeiras, discursos estranhos e milhares de efeitos arti licos de extranhamento, & um lugar muito ineerto, porém nos proxi- mos anos ele poderia fi s como © de um fearro de Cultura(s), allernando-se assim com aquilo que se denominou Teatro de Arte © substituindo a encenago historicizada dos clissicos, ‘© momento 6, ao mesmo tempo, propicio € dificil. Em nenhuma uta epoca a humanidade contemplou ¢ manipulou tanto ar vérias culturas mundiais, porém jamais se deu conta Go mal de sua inesz0- tivel tagarelice, de sua mistura explosiva, da inextrieavel colagem de suas linguagens. A encenagao teatral talvez seja, hoje em din, 0 timo refiigio desse cruzamento e, por tabela, o seu mais rigoroso laboratério: ela interroga todas essas representagdes culturais, as da a ver ea entender, avalia-as ¢ apropria-se delas por meio da interprs io do palco e do piblivo. Nao obstante, © acesso a este laboratério excepcional permanece dificil; isso se deve tanto aos artistas, que nao gosta muito de falar sobre suas criagdes, quanto aos espectadores, indefesos diante de fendmenos to complexos e inefiveis, quais se- jam os fenémenos interculturais. Serd que isto nlo é devido a uma fa das culturas, que acredita po- socioecondmica ¢ antropolégica? Ou que pretenderia jogar a antropologia contra a semiologia e a sociologia? Visio puramente estética © consumis UMA TEORIA SATURADA Quando se procure o homem, encontra.se a st mesma, Toda teoria envotve umn poco de auto-retrato [ANDRE LEROL-GOURHAN A teoria tem costas largas. Costuma-se reprovar-Ihe ora a sua comple: xidade, ora a sua parciulidade, Ao se querer conceber o teatro no cruza- mento das culturas arrisca-se, de fato, a perdler-se todo o controle sobre ele, a remové-lo de um universo para outro esquecendo-o no meio do caminho, a ponto de nio se ter mais os meios para observar todas as manobras que acompanham essa transferéneia ¢ essa apropriagao, No entanto, a teoria que haveria de permitir o entendimento desse deslizamento de culturas esta, ela prépria, em constante evoli- sao... O modelo da intertextualidade, proveniente do estruturalismo € da semiologia, cede seu lugar ao da interculturalidade. Com efeito, nao basta mais descrever as relagGes dos textos (ou mesmo dos espe- tdculos), entender o seu funcionamento interno: é preciso da mesma forma, ¢ acima de tudo, compreender a sua insergao nos contextos & culturas, bem como analisar a produgao cultural que resulta desses destocamentos imprevistos. O termo inferculturalismo parece-nos adequado, melhor ainda que os de multiculnuratlisma ou transeultura- lismo, para nos darmos conta da dialética de trocas dos bons procedi- mentos entre as culturas. Ao se expandir para a troca intercultural, a pratica teatral contem- pordinea — de Artaud a Wilson, de Brook a Barba, de Heiner Maller 4 Mnouchkine ~ nao age estabanadamente: ela confronta ¢ interro; as tradigdes, os estilos de representagdo € de culturas, que nunca se leriam reencontrado sem estes siibitos apelos de inspiragiio. Tal inte- resse repentino pelas relayOes interculturais explica-se, igualmente, pela presse palitien muito forte exercida sobre as artes, com o intuito: de que assumam a fungao de lazer, de animagiio ou negécio cultural © contribuindo para resolver as tensdes sociopoliticas dos grupos nicos em eontato. A teoria, como décil servigal da pritica, nao sabe mais o que fazer: a semiologia descritiva ¢ asséptica nao satisfaz mais, 0 so ciologismo foi devolvido aos fogareiros formais melhor afinados, a antropologia & compreendida em todos os seus estados — fisico, eco- némico, politico, filoséfico e cultural — sem que nunca saibamos a na- tureza de suas verdadeiras relagées. Contudo, a unitio mais dificil de se fazer continua sendo a do modelo sociossemiética com o enfoque antropol6gico, durante muito tempo considerados como exclusivos © incompativeis. Ora, esse encontro torna-se te mais imperative, por- que leva a produgio teatral de vanguarda a procurar superar 0 modelo de historicidade por meio de um confronto de culturas as mai versas, através do recurso (1 0) 40) 16 sem algum risco de Folelori PARA UMA TEORIA DE CULTURA F DE ENCENAGAO ritual, ao mito ¢ & antropologia enquanto modelo integrador de todas esas experiéncias (Barba, Grot6vski, Brook, Schechner). Para abarcar essa vasta gama de cxperiéncias, o tedrico necessita de um modelo que possua a paciéncia ¢ a minticia da ampulheta. UMA AMPULHETA VERSATIL Contamos os minttos que max faltam pear viver e dat char couthamos a ampullicts para aceleréos Uma ampulheta? O que € que uma ampulheta, meu querido Alfred, tem a ver com a jovem geragho de reldgios a quartzo? Ela € um esiranho objeto que tem um funil e o molinete. Na bola superior encontra-se a cultura estrangeira, a cultura-fonte que esta mais ou menos codificada ¢ solidificada em diversas modelizagdes antropolégicas, socioculturais ou artisticas. Essa cultura deve passar, para podermos absorvé-la, através de um estreito gargalo de afunila- mento. Se os gros da cultura, o seu conglomerado, forem suficien temente finos, escoardo sem problemas, ainda que lentamente, para a bola inferior, a da cultura destinataria, ou cultura-alvo, a partir da qual observamos o lento escoamento, Tais grdos se incorporario a um agrupamento que pareceria gratuito, mas que no entanto € regulado, em parte, pela passagem por entre a dezena de filtros colocados pela cultura-alvo e pelo observador, Com efeito, a transferéncia cultural nao apresenta um escoamento automdtico, passive, de uma cultura para outra, Ao contratio, é uma atividade comandada muito mais pela bola “inferior” da cultura-alvo e que consiste em ir procurar ativa~ Fonte, come que por imantagho, aqnile de que ne- nente na cultues- cessita para responder ds suas necessidades conere! De outra parte, a ordem dos filtros reconstituides na cultura-alvo nao € forgada, niio € absolutamente linear. O modelo é, antes de mais Ja, interativo: eada etapa pode projetar-se e deslizar nas outras, Logicamente, seria preciso antes de mais nada reconstituir, na cullura-fonte, as diversas etapas (3 2 9) que podem ser distinguidas na cultura-alvo, Na verdade, a determinagao dessas etapas poderia ser consideravelmente influenciada e modelizada pelo nosso conhe- cimento © pela vinculaggo com a cultura-alvo, na qual nos situamos enqui 10 observadores. Dois perigos espreitam a ampulheta, Se nada mais for do que um. cela triturars a cultura-fonte, ao destruir toda especificidade molinete © ao deixar cair na bolt receptora uma matéria inerte e disforme, que ent perdiclo as sas: modelizagdes de origem sem ter conseguide mo- dolar-sic nay da culturs-alve, Pelo contrario, se nada mais for do que 4 © TEATRO NO CRUZAMENTO DE CULTURAS. PARA UMA TEORIA DE CULTURA E DE ENCENACAO 5 um funil, entao absorvera indistintamente a subs de origem sem reconstrui-la e adapti-la por intermédio da série do filtros. Este livro destina-se ao estudo dessa ampulheta e dos filtros in- terpostos, entre a “nossa” cultura c a dos outros, a esses obsticulos de acothida que freiam e fixam os grfios da cultura, a0 reconstituir as ca- madas sedimentares que configuram outros tantos aspectos, © as con- es atisticas eretizagdes da cultura. Para melhor demonstrar a relatividade da nogao. —= de cultura € a correspondente relago complexa que mantemos com ela, abordamos aqui (bem como no capitulo 9 e, mais genericamente, ao longo de todo o livro) o caso da transferéncia intercultural entre cultura-fonte © cultura-alve. Examinar-se- a maneira pela qual uma cultura-alvo analisa e se apropria de uma cultura estrangeira ao filtrar € ao ressaltar determinados tragos culturais em fungo de seus proprios interesses ¢ pressupostos. Observar-se-i de que forma essa apropriagao ativa se faz acompanhar de uma série de operagdes teatrais, Essa apropriagao da outra cultura nfo & jamais, entretanto, defi- nitiva. Ela vai inverter-se Wo logo o utilizador de uma cultura estran- geira se questione, por scu lado, de que forma poderia comunicar a sua propria cultura para uma outra cultura-alvo; ou, muito simples mente, como € que projetamos, a partir desse momento, a posicao do receptor (ocidental), as nossas categorias, na cultura-fonte que temos a pretensao de apropriar, A ampulheta & feita para ser virada, para remeter de volta toda a sedimentago, a fim de que se escoe indefini- damente de uma cultura para outra. __ CULTURA FONTE a a Model Modelizagbes culturais Objetivo dos adsptadores “Trabatho de adaptato Trabatho preparatério dos atores Escotha de uma forma teatral CAVIDADE, CADINHO, ENCRUZILHADA, Representago teatra da cultura ES SUA NARI 2 teatro & uma encrusithada de ctv Adaptadores da reeepes0 es. E vm hngan de Lewibitidade victor Hue Modelizasdes sociokigicns A areia esta tanto na parte de cima como na de baixe. Sim, natu- ralmente; mas somente na aparéncia. Isso porque ndo devemos nos ami importar somente com os gréios isolados, delgados dtomos do sentid Modelizagoes cultarais € preciso examinar a sua combinatoria, a sua faculdade de associar-se em conglomerados e em camadas de espessura e composigao vari Veis, mas nunca arbitrarias. CULTURA-ALVO ‘Aareia impede-nos de acreditar ingenuamente no melting pot, no cadindio em que as culturas seriam miraculosamente fundidas e redu- Seqigneins dadas © antecipadas zidas a uma substincia radicalmente distinta. Nao existe teatro — que hiio se chateie Victor — no ccufinho de uma humanidade na qual toda a especificidade basear-se-ia numa substéneia universal: no existe vol de cr Inmchirida para © portupniés. (N. dat) 6 © TEATRO NO CRUZAMENTO DE CULTURAS ~ teatro na cavidade reconfortante de uma mao familiarmente entrea berta. Ena eneruzithada dos caminhos que se cruzam, das tradigoes & Praticas artisticas, que talvez possamos perecber a hibridagao distinta das culturas, bem como onde se reencontraro os tortuosos caminhos da antropologia, da sociologia e das praticas artisticas, © eruzamento é tanto um entrecruzar de caminhos, quanto a hi- bridagao de ragas ¢ tradices. Essa ambigilidade ajusta-se maravilho- samente para a descrigo dos lagos que existem entre as culturas: isso porque as mesmas se interpenetram, seja uma passando para o lado da outra, seja reproduzindo-se e reforgando-se gracas A mestigagem. Ao escolher por objeto o teatro e a encenagao interculturais, este liyro elegeu o caso de uma figura ao mesmo tempo classica € pos-mo- derna, eterna © nova. Eterna no sentido de que a representagao teatral tem misturado, desde sempre, tradigdes e estilos os mais diversos, traduzidos de uma lingua ou de uma linguagem para outra, percor- rendo espago e tempo em todos os sentidos: move no sentido de que f@ encenagao ocidental, nogao esta recente, pratica tais cruzamentos de representagdes ¢ tradigdes de forma consciente, afirmativa € es tética, somente a partir das experigneias das vanguardas (Meierhold, Brecht, Artaud, Claudel), ¢ mais radicalmente, apds os grupos multi- culturais de Barba, Brook ou Mnouchkine (para citar apenas os cria- dores ocidentais mais vis que sito os que aqui nos interessam), A motivagdo da visao oriental de tais artistas (de Brecht ou Artaud a Mnouchkine ou Brook) certamente foi originada mais pela crise do teatro ocidental e pelo desejo de vivificaglio do que por uma preocupa- gio ctnolégica de conhecimento do outro: tais equivocos siio aquilo que Barba chama de “mal-entendidos produtives” na pritica teatral européia. Estudaremos neste livro apenas os easos de permuta no sen- ido a partir da cultura-fonte ~ para nds (ocidentais) estrangeira — em diregao a uma culturmalvo, isto & a cultura ocidental na qual traba- Iham os artistas € na qual se situa 0 publico-alvo. © corpus destes estudos encontra-se, em sua maior parte, facil- fe circunscrito: a Franga de 1968 a 1988, com alguns desborda- mentos temporais ou geograficos. Apés a abertura maior de 1968, estes foram os “anos de chumbo” do bloqueio ideolégico e artisti co, da liquidagao de um pensamento dialético e de uma dramaturgia historicizada — os iiitimos lampejos da paixdo teérica, o fim de um Pensamento radical da cultura que ainda era a de Freud e Artaud. De 1973 a L981, 0 recuo das ideologias ¢ da historicidade acentuou-se ainda mais, os consclheiros em comunicagao ¢ os patrocinadores nos dando 0 pao nosso de cada dia, a crise econémica freando as inicia- tivas; as culturas estrangeiras Sendo percebidas mais como ameaga ou objeto de exploragao do que como séeias na troca; esse entor pecimento geral. esse inde! rico nao impedindo, contudo, que alguns eriadores, na entimento entediado, esse ronrom PARA UMA TEORIA DE CULTURA E BE ENCENACAO 7 subvencionados, ensaiassem uma permuta de culturas; a geografia ¢ a antropologia substituindo a histéria desfalecida. J4 nao se tratava mais de encenar as obras do passado nacional, porém de tornar as culluras estrangeiras mais familiares. De 1981 a 1988, a experienc socialista francesa fez. soterrar um dltimo tabu (o assim chamado caos socialista), porém defrontou-se com as duras realidades da admini: tragdo, saboreando a social-democracia das idéias; o debate sobre a relatividade das culturas e sobre La défaite de la pensée (A Derrota do Pensamento)', acabou por abater toda a perspectiva historicizan- te e redescobri os horizontes geogrdficos e culturais, que recuperou com um ceticismo e funcionalismo pos-modermos, A cultura esti no centro de todos os debates: tudo & cultural, mas onde é que foi parar, enttio, a cultura, especialmente a cultura teatval’? SEUS DUPLOS Jamais, no exato momento em que a propria vida se vai falousse tanto de civilizacaa e cultura. E carne wm extra nnho paraletismo entre exte desmoronamento seneralizade dda vide, que estd na bave da desmorattzagsia tial, © a Preoeupacdo com un cultura que munca colncidie com a ila, © que no entarto foi fewta para governar ex vide A CULTURA E OS Reconhegamos (nao sem um pedido de desculpas a Artaud): a nossa cultura ocidental, seja ela moderna ou pés-moderma, esta cansadis- ia; em vio a {eoria aspira englobar © conjunto dos problemas tr zidos pela extensio do conceito. Os conceitos aos quais ela se ops o totalmente variados, sejam eles a vida (Artaud), a natureza (Lé Strauss), a tecnologia (McLuhan), a civilizagdo (Elias, Marcuse), © ca0s, a cntropia ou a ngu-cullurs (Lounat), INO teatro, 2 definigao ain- da é mais truncada e a exclusio mais manifesta, visto que o primeiro ato cultural consiste em tragar um circulo ao redor do evento cénico, © como conseqiiéncia separar 0 jogo do nao-jogo, a cultura da nao- cultura, o interior do exterior, o observade do observador. Antes de acompanhar o encaminhamento da areia de uma bola para a outra, balizando-se os filtros © sedimentos, talvez nao seja de todo initil trazer a baila, para o teatro e a encenagao, algumas defini- yes © problematicas da nogao de cultura propostas pela antropologii © pela sociologia, Inspirar-nos-emos na excelente sintese de Camille Camilleri? ¢ mos sucessivamente concepgdes culturalistas © enfoques ‘cos antes de analisar de que forma podemos detecti-los em cada um dos niveis da ampulheta, bern como, igualmente, como & va a (entativa de dissocid-los. ACEPCOES CULTURALISTAS A antropologia cultural “classica”, notadamente a americana (Bene- dict, Mead, Kardiner), interroga a cultura através da relagio com a coeréneia do grupo, no conjunto de suas normas e simbolos que es- truturam as emogdes ¢ os instintos individuais; “procura descobrir as caracteristicas de uma cultura pelo estudo de suas manifestagdes através dos individues ¢ de suas influéncias no seu comportamento” (@anov ¢ Perrin: art. “Culturalisme”), Globalmente, dir-se-a que a cultura é um sistema de significagao (um sistema modelante, no en- foque de Lotman), gragas a0 qual uma sociedade ou um grupo com- preende-se a si mesmo na sua relacao com 0 mundo. “A cultura”. escreve Clifford Geertz, um dos atuais representantes da interpretative anthropology (antropologia interpretativa), um sistema de simbolos gragas 208 quais © homem fexperignela, Os sistemas de simbolos eriades pelo homem, compartihados, conven Clonais, ordenados &, evidenteaente, apreendids, fornecem aos hemiens win exquernt ‘Contendo sentido para se orientarem tus em relagio aos outros, oM atraves da relago com 0 mundo ambiente © consigo mesos! nore significado & sua propria Definicoes mais especificas, inspiradas pela reflexdo de Camilleri, permitirdo que se tome conscigneia das ramifieagdes da cultura cor todos os niveis do empreendimente teatral DEFINIGAO (1): “A cultura é uma espécie de modos de clinagSes* determindveis que as nossas representag tos € condutas assumem, em geral de forma breve, considerados todos os aspectos de nosso psiguisme © mesmo do nosso organismo biolégi sob influéneia do grupo™. ‘Transposto para a cena, pode-se observar que qualquer elemento, vo ou animado, do espeticulo é submetido a um determinado Feitio, € retrabalhado, cultivado, inserido num conjunto significante. O tex- to dramético compreende inumeraveis sedimentos que, igualmente, possticm tragos desses feitios: no corpo do ator, nos ensaios ou na representagiio, ele é como que penetrado pelas “técnicas corporais” proprias de sua cultura, de uma tradigao de representagao ou de uma aculturagao. Impossivel, ou quase, “expandir” esse corpo complexo & compacto, cuja origem ignoramos. 3. The Interpresation of Cultures. 9.250. PARA UMA TEORIA DE CULTURA E DE ENCENAGRO ° DEFINICAO (2): “Esta inclinagdo € comum acs membros de um mesmo grupo”. O ator também possui uma cultura, que é a do seu gru po e que adquire prineipalmente na fase preparatoria da encenagio. Es processo de enculturagdo, consciente ou inconsciente, faz com que assi- mile as tradigdes e as técnieas (especialmente corporais, vocais e retori- cas) do seu grupo. O ator pertence a uma determinada cultura, a partir da qual possui certezas © expectativas, técnicas ¢ hibitos de interpretagao, dos quais nao pode mais prescindir. Ele se define pelas “técnicas do corpo” (Marcel Mauss), das quais dificilmente poder se desembaragar © que Sao a inserieao corporal da cultura no seu préprio corpo, posterior- mente no seu desempenho. Uma parte de seu trabalho consiste, segundo Barba, em se desfazer desta “enculturacdo” natural, dese comporta- mento cotidiano. a fim de adquirir uma nova “técnica de corpo”, Mesmo © ator naturalista, que deveria estar livee de tal dominio por conta de seu mimetismo ¢ de sua pretensa “espontancidade”, esta submetide a todo um repertorio de signos, atitudes, efeitos de autenticidade. DEFINIGAO (3): “A ordem cultural é artificial no proprio sentido do termo, quer dizer, é produzida pela arte do homem. Ela é distin- ta da ordem natural”. A cultura oposia & natureza, 0 adquirido a0 inato, o artificial e a criagdo a espontancidade. Este célebre oposigdo Iévi-straussiana: “Tudo que € universal, no caso do homem, depende da ordem natural’e se caracteriza pela espontanei- dade: tudo aquilo que se disciplina por uma norma pertence a cultura © apresenta os atributos do relativo ¢ do particular”. “O que a heredi- tariedade determina no homem ¢ a aptidao geral de adquirir uma cul- tura qualquer, porém aquela que se tornard sua dependera dos azares de seu nascimento e da sociedade na qual recebera a sua educagao’ No teatro, 6 palco ¢ 6 ator representam sob a mesma ambigtidade do meio natural € do objeto artificial construfdo. Tudo tem a tendéncia transformar-se em signo, a semiotizar-se. Inclusive, a utilizagao na- tural do corpo do ator insere-se numa preserigao de sentido que exige dda carne hesitante a sua parte de artificialidade e codificagao, » sentide da DEFINIGAO (4): “A cultura se transmite através daquilo que, des- de entao, chamamos “heranga cultural”, ou seja, de determinado n fo de técnicas por meio das quais cada geragdo faz interiorizar, seguinte, a inclinagio comum do psiquismo e do organismo na qual consiste a cultura, ©. Levitan, Lev sterctires émentaives te ta prarenté. 1 W 10 © TEATRO NO CRUZAMENTO DE CULTURAS. No caso da encenagao, é impossivel constatar-se muito claramente a intcriorizagao das técnicas. Ao contrério, certas tradigdes de imterpreta- ‘gdlo em géneros muito codificados e estabilizados transmitem essas téc- nicas € os comediantes ja tm interiorizado, ja “incorporaram” um estilo de intorpretacao (como a Commedia dell’Arte ou a Opera de Pequim), DEFINIGAO (5): Algumas culturas se definem essencialmente pelas caracteristicas nacionais que se opdem, algumas vezes, as culturas ™) noritirias com o objetivo de melhor se afirmarem (ef. capitulo 6). Tais culturas majoritarias so, por vezes, tio poderosas que so capazes de se apropriar —no sentido negativo do termo, desta vez —das culturas es- trangeiras, transformando-as para os seus préprios fins. Estamos de tal modo presos na tein de nossas modelizagdes culturais nacionais— curo- centristas, no nosso caso —, que temos dificuldade em conceber o estudo da interpretagiio ou de um género teatral sob uma perspectiva alternativa em relagao aquela de nosso conhecimento na pratica européia do teatro. A partir dessas definigdes, inspiradas pela antropologia cultural, decorre uma série de conseqtiéncias ligadas @ hipétese geral seguinte’ “As culturas sfo, sem divida, o principal meio inventado pelos homens para regular 0 seu psiquismo plistico e pouco determinado, com o in- tuito de conseguir uma homogeneidade psiquica minima que permita a vida em grupo". A. Esta regulagiio pela cultura é ao mesmo tempo uma repressao da espontaneidade individual ¢ pulsional ¢ uma expresso da eriativida- de humana, S. FREUD: © edlifieio da eivilizagie repousa no prine tivas [...] ¢ postula precisamente a no a pulses instin~ atisfag (repress, reealque ou outro mecca ais existiu um document de cultura que nie tenha sido igual tum documento de barbaric (Sétima Tese sobre a Filosofia da Historia) No teatro, esta regulagaio é especialmente assegurada pela enc naga, que impede qualquer sistema de signos de assumir uma im- portancia desmesurada ¢ unilateral. A propria fungao do encenador 6 relegar-se a uma auséncia fisica, a um superego que no se mostra nunca diretamente. A autoridade real foi, portanto, “internalizada™ “civilizada”. E “o charme discreto da boa direeao”, B. O principio de internalizagio da autoridade consiste em fazer-se aceitar a fungao repressiva e expressiva da cultura. A encenagiio rea- 10. Idem, p. 18 M1. Maat dans tr Chottisation, pA. PARA UMA TEORIA DE CULTURA E DE ENCENACAO, u grupa as diretrizes para fazer representar 0 espetaculo, ao aceitar as imposigdcs do sentido. Da mesma forma, 0 ator internaliza um con- junto de regras de comportamentos, de habitos de representagiio. Ele aceita a efemeéride do teatro, 0 seu cariter nao armazenavel, intan- givel, nto memorizavel. Estas so as suas leis no escritas que tudo comandam e que perduram. “O que dura pouco”, escreve Eugenio Barba, “nao 6 0 teatro, é 0 espeticulo. O teatro é feito de tradigdes, convengdes, instituigdes, habitos que tém uma permanéncia ao longo do tempo", Fenémeno de internalizagao da autoridade, em que seria conveniente inspirar-se uma semiologia “negativa”, que deveria ser capaz de apontar aquilo que, no signo, esti escondido, aquilo que parece signo sem ser signo, aquilo que mostra o ator ou a cena ao escondé-los. ‘Todas estas definigdes acentuam a unidade cultural do homem, po- rém tendem a isoli-lo do seu contexto sécio-histérico para apreendé- lo apenas sob um Angulo antropolégico muito abstrato. Elas devem, portanto, ser complementadas (¢ ndo substituidas) por um enfoque sociolégico, melhor ancorado na histéria e no contexto ideolégico. ACEPGOES SOCIO-HISTORICAS © enfoque idcolégico, especialmente 0 marxista, tende a ser elimi- hado devido a sta propria abertura para as culturas estrangeiras © a0 slargamento da nogao antropoldgica de cultura. Na operagao, as no- ges de grupo, subgrupo, subcultura ow minoria substituem muitas Yores as de classes om luta, E verdade, inversamente, que a sociologia marxista tem simplificado muito freqiientemente o debate © proposto respostas sem tm conhecimento completo de todas as implicagses do debate cultural. Dizer, por exemplo, que “em termos marxistas, a cul= turn € a superestrutura ideologica relativa, numa dada civilizagao, na infracestrutara material da sociedade” (Dictionnaire Marabout, att. “Culture”) nao contribui, convenhamos, para esclarecer os mor cultursis em jogo. Seria preciso mostrar que a cultura a0 m (cmpo condiciona e é condicionada pela ago social, sendo-the causa © conseqiiéneia Propusemos, em outro trabalho, uma teoria dos ideologemas e de un fungio na constituigdo ideolégica e ficcional do texto dramatico ur), Isto dava-se, porém, na perspectiva da inscrigao do texto dramiitico na historia, mais do que na cultura. Os fenémenos so, evidentemente, ainda muito mais complexos na medida em que forem ubordidos em contextos culturais os mais diversos, notadamente ex- tra-curopeus, Deve-se, po Lo, imawinar uma teoria de nediagio, de frova. de transferénein intercultural, wins “cultura de lagos”, no sentida Uc Brook, de “relagdcs cntre o homem ¢ a sociedade, entre uma raca F outra, entre o mierocosmo e 0 macrocormo, entre a humenidade © a maquina, o visivel © © invisivel, entre as categorias. as linguagens, o5 géneros', A imagem da ampulheta foi aos inspiruda pela necessidade de compreender a dinamica do excoumento e do depésito dos scdi- mentos sncessives. Pus ia, dese modo, cada etapa da translerencia cultural, observance gual cuncepeao de cultura esté pressuposta por cada uma das operagdes em cada afvel da wupullicta, (DO) Modetizagtio socintigice eeu urtivtics Uma primeira dificuldade, particularmente em nossas socieda- des ocideutais, cousiste em deseobrir, na culura-fonte, em (1) © em @), assim cnme na culluralve em (10 A) e (10 B), modelizagies que sujain clurumente especifieas, quer no caso da atividade arlisti quer no caso da codificagho propria de um subgrupo on de determi nada cultura, Com 1 multiplicagao dos subprupos e das subculturas. & cultura, particularmente a cultura nacional, tem muita dificuldade om integrar e refletir © conjunto das cociheacces particulares € minorit vias, Fla tande, esereve Camilleri, a “tornarse aquilo que permanece- ria comum aos subgrupes que constituem a sociedade, wma ver. que se teria deseartudo das diferengas. Porém, tal coutetialy unautis Wanna Se cada vex mais difieil de defini". Para a ences contemparinea < praticamente impossivel cuimpicenderse o que € que ura peg Ue bulevar, uma opereta, uma pega de vanguarda on um espeticulo de Dumaku, (1 er comuin. no sumente devido as codificagoes arts ticas em jogo, qne so de uma extrema vuriedade, mas sobretide por ayuilo que faz parte de sua fingao Ideoldgica e estética Em suma, a dificuldade em todos estes exemplos é perceber se a ligagao ¢ a diferenga entre as modelizagous artusticas ¢ as Model: ges sociolégicns cou antropoligicus, Constate se que a comprecn= sa0 dos codigos espeviticamente artisticos produz um mteresse pela compreensiio dos cédigos culturais © que, inversamente, ¢ conheei- mento dos codigos culturais gerais & indispensivel para a compreen- silo des cAdigos ortisticus esperitivus, © faty de se U1 funcionamenty simbélico de uma sociedade (1) convida 4 pereepoao. das codificagSes artisticas em particulit (2). Av se aboruar a cullura- Fonte ea eulmra-alvn ect saempenen go a relagaio de (1) © (2) espeeifica em cada cultura, bem came o desi vamenio que se prodnz qnande 9 culturn-fonte € recebida na culture alvo, daf us relagoes entre (1) ¢ (2), tanto quanto uquelas entre (10 A). (ay aoc, Jat, (av Paitin AA, Gera 14. F rook, He Siyting Points p. 139, 15.€. Camilleri, op. eit. p. 25 GB) Misdo dos adaptacores A partir do momento em que se trata de dar conta deste esta- mento das modelicugdes por exemplo, ae oe tentar communicar cullura estrangeira & nossa tradigdo ocidental ~, lorma-se dilicil neontrar ura ponto de vista unificador; disso decorre um relativisme ue concepedes do real e das culturas vy sucicdiades inlusieis, pelo meHOS a ELEM, intense ua ele to dos sisiemus de pensamenta, Como no € possivel erie, no cus, virias Vonades ohre @ mesma ponte, hahiniama nas eensdleran qin eens store (rm fiver clow proprins, Aa anbenitucas de sdifercnece wubgripe sim pow icos) 820 simplesmente pontos de vista sobre o real, a0 ligar de forma abran iente on sujeitos penumtes Diao resulta « apariqio do espirio do relativisins, que nila «in paralale com © prontssre da demacralieagho © relativisino esti evidente de forma especial naquilo que » (capitulo 4) Ue eurenayay pér-snudeiua Jus Clissivus. a retusa de {qualquer leimea centralizadora @ enpajada, 0 nivelamenta dos cédigns, a esienanguiangay cas ns, a recuse Ue Hom! SepREAAO CLEE CULL 4 “cultivnda” ¢ cultura de massa, sia em grunde parte sintomas da ze inivizagao des pontos de vista. Nao nos constrangemos mais diante dos ‘oscrtipulos de Marx, a0 ver na arte eldesica (erega, por exemsplo), certa- inente, uma cultura “cultivada” deturpada por uma classc, mas, acim dle tudo urns umiversalidade potencial » que deve, poranta, sar praser Yoda. Atualmente, a clivagem entre valores classicos provactos e valores inoxlemos « soren provadas no existe mnis: nda se acredita mais na \niversalidade ecoerafica. temporal ¢ ternatica dos elassicus. A sua en- Senayto opta por urna alitude decieiclamemie relalivistst commumiden ‘em conseqiiéncia pés-modema, visto que o seu th Yonte, na sua integragzo a um disewso que nfo esta mais obceeado nem elo sentido, nem pela vertae «nem pela tolalidade on coerencia ) A Vien dae Ardaptadares (3) 4.0 cen trabathes de adaptagae f& interpretagao (4) sto infinenciados pola cule “oultivada”, a sa bee. ura de um subgeupo restrilo que possui (ou arroga-se) 0 sonhecimento, a instrugao, 0 saber ¢ 0 poder de decisao. Essa cul- “transforma ce nm cddigo merodolégico, que a competeneia permite aprofundar 0 conhectmento: PAdquitimos escuemas de pensamente, in equipumento que, a par- HF dlessas informacoes, permite nos descobrir Oulros tantos, e através isso aprofunds Tal coneepeao nfio esti muito Longe da Soneepelo semidtica de cultura segundo Lounan, a de uma “hierar has saiticantes pareiaisy Ue wine suid de leads @ de Biull sinte ‘ ( HEATRO NO CIRUZAMENTO DE CULTURAS unbinagho de fungdes que Ihes correspondem, e por fim de um mo que pera os seus textos”, Pole codigo metodoldgico, este saber, € muitas vezes uma “cifra cultural” (Piette Bourdieu) que toma possivel 0 ato de deciframento; ele ¢ assim, por vezes, o instrumento de um subgrupo contra outros. 0 homem cultivado é, neste caso, como observa Michel de Certeau, “se- nelhante a6 modelo elaborado nas sociedades estratificadas por uma categoria, que introduziu as suas normas 14 onde impés o seu poder”, A dificuldade, geralmente, reside em adivinhar onde o saber se instau- ra enquanto poder: em perceber as flutuagdes de cédigo e poderes a ele conferidos. Tomemos como exemplo o tratamento dos chissicos: na época do “teatro popular” de Vilar, os clissicos cram apresenta- dos implicitamente como um bem universal, porém represemtayam, na realidade, muito mais um bem cultural cuja aquisi¢ao conduz a uma promogao social (ef. capitulo 3). Atualmente, a utilizagao pos-moder- na desses mesmos bens classicos nao visa mais dar ao ptiblico uma bagagem cultural ou armas politicas, mas manipular os cédigos e rela- tivizar todas as mensagens, especialmente as politica (5) O wrabatho preparatorio dos atores no envolve simplesmen- te os preparativos dos ensaios ou a escotha de uma forma teatral (6), mas sim toda a cultura do comediante, ou seja, © seu “saber teatral, que transmite, de geragiio em geragao, a obra de arte viva, que é 0 ator”. O ator realiza © projeto semidtico da cultura concebida como relembranga das informagdes passadas e de geracao das informagoes, futuras. A cultura &, neste sentido, sempre de acordo com Barba, a ‘capacidade de adaptar-se ¢ de modificar 0 meio ambiente, como forma de organizar e alterar as numerosas atividades individuais & coletivas, como capacidade de transmitir a ‘sabedoria’ col de experiencias distintas, de saberes técnicos diferentes” ra do comediante, especialmente a do comediante ocidental, nao & sempre legivel e codificada de acordo com um conjunto de regras © priticas estiveis ¢ recorrentes. No entanto, mesmo ele nfo esti a salvo de um estilo dominante ou uma moda, técnicas corporais ou codificagdes especificas. Ele também esti impregnado de receitas, de habitos de trabalho que sao o motor das codificagdes antropolgicas © sociolégicas do seu meio, codificagdes essas imperceptiveis que, certamente, fazem de tudo para ser esquecidas ¢ para melhor realgar © génio original do ator, porém que, na verdade, esto onipresentes © sao facilmente perceptiveis ¢ parodiaveii A cultu- 18, CPJ. Lotman, Travanx sun les sustémes de signe 19. La eure au plurtel, p. 235, 20, B. Barba, Le thédtre eurasien, Jew, 1.49, p. 64. 21. arehapol da shire, 122. PARA UMA TEORIA DE CULTURA E DI ENCENAGAO, 1s (2) A represemtacao teatral da euluira forga a busca de meios es- pecificamente cénicos para poder-se representar (ou atwar —¢o perform) tima cultura estrangeira ou domestica, que se utilize 0 teatro como ins trumento para transmitir e produzir informagdes sobre a cultura veicu lada, O teatro pode redundar numa das dificuldades da antropologia, a saber: traduzir/visualizar os elementos abstratos de uma cultura como tm sistema de erengas ou valores, utilizando-se dos meios eoncretos: por exemplo, ao invés de explicar um ritual, realiza-lo; em vez de dis Sertar sobre as condigdes socinis dos individuos, mostri-las através de-um gestus imediatamente legivel. E verdade: um ritual perde 0 set. sentido assim que for extraido do seu contexto e transposto para o palco, porém nada impede o teatro de se autodeclarar como 0 lugar flo uma outra ceriménia, na qual o ritual procurara a sua validade. A fencenasao ca representacao teatral sao sempre uma tradugto eénien (aragas a0 ator e a todos os elementos do espetaculo) de um conjunto cultural distinto (am texto, uma adaptagzo, um corpo). Quando nos damos conta, com Lotman, de que a apropriagao cultural da realidade se faz sob a forma da traduca0 de uma parcels da realidade em um texto, compreende-se que, «fortiori, a encenacao ow a transposi¢ao intercultural sao uma tradugio sob a forma de apeopriagsa da cultura estrangeira, a qual possui as suas préprias modelizagdes. (8) O limite de apropriagao indica, suficientemente, que 0 adap- Jor € © receptor apoderam-se da cultura-fonte segundo a sua pré pria perspectiva, fato do qual decorre o risco do ctnocentrismo — do eurecentrismo, no caso presente. Este eurocentrismo é menos uma recusa das formas orientais do que uma miopia em relagio as outras formas © a outros instrumentos conceituais com exclusao daqueles conhecidos na Europa; do que uma ineapacidade de se pensar, teé- rica © globalmente, as modelizagGes culturais, ocidentais ¢ orientais. A espera da instauragao de tais instrumentos conceituais (alids, mui- to problemiticos na sua hibridagao mesma) ¢ que dizem respeito ao contexto ocidental ¢ oriental, a Comunicagao intercultural precisa de ‘fidapiadoras derecepeaa (8), de *corpos condutores” que organizern \ passagem de um universo para outro. Esses adaptadores permitem reconstituir uma série de prinefpios metodolégicos a partir da cultura~ , adapti-los & cultura-alvo. fonte e, asst cdo de alumna dana exdtica fascinante nao significa que se pos ilase- antes de mais mada, ¢ preciso captar umn inspirasso, 1. mais exatamente, uma série de prineipios metodalogicos, os quais sera ‘ninuie centre do esquctna da nossa cut 16 (0 TRATRO NO CRUZAMENTO DE CULTURAS. Seja qual for a natureza dessa adaptagaio — um personagem, uma dramaturgia (Shakespeare como modelo dramaturgico para a Indiade [Indiada] ou para a adaptagio do Mahabharata) —, esses adaptado- res eolocam-se sempre na perspectiva dos receptores ao simplifiear e modelizar alguns elementos-chave da cultura-fonte. Neste sentido, eles tém necessariamente uma posigao etnocentrista, porém, estando conscientes dessa perspectiva deformante, podem relativizar tal defa- sagem e procurar uma tomada de consciéncia das diferengas. (9) As legibilidades esto encarregadas, também clas, de relativi- zar a produgao de sentido e o nivel de leitura variével de uma cultura para outra, Sdo uma resposta A crise do sujeito transcendental © uni versal que pretenderia, em nome da razao universal cartesiana ¢ da razao-de-Fstado centralizadora, reduzir a totalidade das diferengas “Todas as formag6es humanas ‘gerais’ voltam-se contra 0 homem, caso nfio sejam quotidianamente reapropriadas pelo sujeito concreto, por meio das operagoes quotidianas™ ‘A teoria dos niveis de legibilidade (capitulo 9) explica como 0 receptor escolhe, com maior ou menor liberdade, com qual nivel deve ler (por exemplo: narrative, tematico, formal, ideol6gico, sociocultu- ral etc.) os fatos culturais que Ihe so apresentados pela encenagio, Esta teoria pressupde uma preocupagao epistemolégica, qual seja a de proporcionar os meios de conhecer o outro, e guid, do outro. Atransfe~ réncia cultural realiza-se, na maioria das vezes, gragas a uma mudan- ca de nivel de legibilidade, o que modifica profundamente a recepgao da obra em (10). Essa mudanga do nivel da legibilidade corresponde freqientemente a uma luta idcolégica entre cultura dominante ¢ cul- tura dominada, Na transferéncia de (1)-(2) para (10), determinados elementos sito assimilados ¢ desaparecem — 0 que Darlrymple chama de uma ideologia residual, a saber, aquilo que sobra das idgias e das praticas de uma cultura pertencente 4 outra formagao social. Outros elementos, ao contririo, aparecem e sto integrados & ideologia domi- nante em (10); essa ideologia emergente pede tornar-se um modelo normative de codificacao socioldgica (108) ou cultural, num sentide amplo (10 C}* (10) Ao examinar o confronto cultural entre (1)-(2) ¢ (10), esco~ Iheu-se comparar, avaliar, fazer dialogar a cultura-fonte ¢ a cultura- alvo, porém tal enfrentamento foi, por assim dizer, atenuado pelos filtros que, de (3) a (9), preparam o terreno e transformam gradual- mente a cultura-fonte, ou cuftura-referente, na cultura de recep¢! qual nos situamos. Ao invés de fugir dessa confrontacao, julgamo’ 23. C. Camilleri, Culture et soeigics \¢ PARA UMA TEORIA DE CULTURA E DE ENCENAGAO "7 ir ao seu encontro. Isto porque é preciso prevenirmo-nos da demago- gia, que consiste em recusar a comparagdo, para nfo nos arrisearmos ahierarguizar © a valorizar as culturas confrontadas, demagogia que conduz ao relativismo cultural e, acima de tudo, a indiferenciagao. Tzvetan Todorov eriticou suficientemente essa recusa, razio pela qual torna-se iniitil voltar a ela®*. Encorajados por Todorov ¢ Finkielkraut, imulados per Montaigne ¢ Lévi-Strauss, ousamos ~ na excelente companhia de Brook, Barba e Mnouchkine —, comparar duas culturas fortemente dispostas em dessimetria, na medida em que uma se apro~ pria da ovtra, eno momento em que a cena-alvo acolhe todas estas misturas de cruzamento de linguagens ¢ culturas. Deixamos a outros julgar se esse confronto teatral vai desembocar numa aculturagio seneralizada, numa interdestiuiysu ou, pelo contrario — como pensa mos nés—, num “reencontro amoroso” (escolhemos de propésito esta metifora deliciosamente suave), numa “bricolagem” (Lévi-Strauss), hum teatro eurasiano (no caso de Barba), numa “cultura de lagos"** ou huma “influéneia” do “teatro oriental”’. Na realidade, esta ampulheta, 6 um objeto suficientemente complexo para evitar, exatamente, uma confrontagao direta de povos, linguas ou valores éticos. Comparamos de preferéncia, acima de tudo, as priticas ¢ as formas teatrais [entre (2) (10 A)], a8 medelizagdes € as codificagdes suscetiveis de se atre- lare de se entrecruzar (ao invés de se perderem umas das outras). (UD Seqiiéncias dadas e antecipadas ‘Ao fim da translagao de uma bola da ampulheta para a outta, © espectador a tiltima e nica garantia que a cultura tem, quer seja estrangeira ou familiar, de que sucesso acontecera. Terminado 0 espeticulo, toda a areia repousa, doravante, sobre os seus frigeis om- bros,,. Mado de dizer, Tudo se deposita nas lembrangas © naquilo fe ele esqueceu. (A este prupisito, lembramo-nes da tirada profun damente acertada de Edouard Henriot: “A cultura é 0 que sobra de- pois de nos esquecermos de tudo, é 0 que falta quando ja aprendemos judo”!), Ao término deste escoamento incessante dos gros de cultura, quando os castelos de areia que sao as encenagdes jit desmoronaram, espectador estar, com efeito, em condigdes de accitar que o espeta oul se metamorfoseie nele, quer este o beneficie ou se evapore, quer se anule para melhor renascer. E preciso que aceite o esquecimento, que escotha tudo para si; que o enterre vivo sob a areia, esquecimento que, por si s@, acaba por atenuar o sofrimento. Esse esquecimento & galvador e sabe Deus 0 qu & que se pode esquecer no teatro. (Gragas Dew « cultura que © espectador reconstitui © y Assim send. 18 (© TEATRO NO CRUZAMENTO DE CULTURAS que 0 constitui como sujeito espectatorial esta em perpétua mutagao: passa por uma amnésia seletiva: “A dimensdo essencial do espetdicu- lo teatral resiste ao tempo, nilo se congelande numa gravacao, mas transformando-se™", Assim, torna-se dificil acompanhar as transformagdes da memé- ria, prever de que forma 0 espectador organizaré a sua leitura, de que forma aceitaré ou recusard a série dos filtros que foram predispostos € selecionados da matéria cultural, muito especialmente a maneira estrangeira. F ainda mais problematico determinar como o espetéculo, prosseguira nele: “Os espectadores, em sua unicidade, decidem aqui- Io que concerne A profundidade: ou scja, até que ponto o espeticulo conseguiu fin s raizes em algumas memGrias individuais Poderiamos observar, alias, no que Wange aus criauses do espetieule, semelhante transformagdo: eles terao sido transformados também, ou. pelo menos redirecionades, pelo seu trabalho. Malgrado esta relatividade de aprofundamento do espetéculo em nés, culturalmente é sempre pertinente observar 0 que 0 espectador retém © 6 que exclui, como define a cultura e a ndo-cultura, o que The parece signo, 0 que descarta. © receptor — 0 qual consideramos cliente-rei, um leitio de festa, uma “porgao de vitela” (Cyrano de Bergerac, 1, 2) ou, mais raramente, um parceiro — é, atualmente, obje- to de muitas pretensoes tedricas, No entanto, esta siibita preocupacao, esta descoberta de sua liberdade de escola, de sua produtividade, desemboca muitus vezes numa concepgao antiteériea ¢ antiexplica~ tiva da arte: “Nés devemos”, afirma Susan Sontag, “redescobrir os nossos sentimentos. Devemos aprender a ver mais, a entender mais, a sentir mais’. E verdade, porém como? © sentimento encontra-se no dominio do self-service, énos repetido. 5 possivel; no entanto, & gente ndo tem que, pelo menos, passar no caixa? “O teatro niio deve interpretar, deve nos dar a possibilidade de coutempl refletir sobre ela”, nos previne o grande Bob". Que s contemplemos. Todos esses testemunhos revalorizam, aparentemente, a fungae do espectador © do receptor, porém desembocam também num rela- tivismo © num ceticismo tebrico. A teoria da recepgao anula-se a si mesma caso confira ao receptor 0 poder absoluto de produzir o seu percurso critico sem se dar conta suficientemente dos dados objeti- vos da obra, sob © pretexto de que, liberado ao grato prazer do texto, ele poderia servir-se 4 vontade no se/fservice do sentido. Teremos wna obia © Ne: so, 28. Quatre spectateurs, op. cit, p. 27. 29. fdem, ibidern = No original: cochon de payer (N. da T) 30. Kunst und Antikunst p. 18. 31. Wilson, Spiegel Gesprich mic Robert Wilson ber Haren, Sehen Dat Spiclen, Der Spieseh 1. 1. p, 208 PARA UMA TEORIA DE CULTURA E DE ENCENACKO, » a oportunidade, no corpo deste livro, de retornar a este relativismo pés-moderno, que veste muitas vezes os trajes do intercultural a fim de melhor disfargar um diseurso anti-historico e relativista, 10 qual as obras ¢ seus contextos nada mais sao do que pretextos amavei para os divertimentos indiferenciados, encontros transferides para os cruzamentos da nebulosa pés-moderna, Os ensaios reunidos neste volume foram escritos a0 longo dos liltimos anos, de 1983 a 1988, tendo como perspectiva central a ques~ to, evitada artificiosamente durante muito tempo pela semiologia, da relasaio do teatro com as onéras cultures. Tratava-sc, no eas0, de propor uma (coria materialista da apropriagao intereultural que no se deixasse intimidar, nem por um sociologismo pouco cuidadoso com as formas, nem por um terrorismo antitedrico. Tratava-se também de aventurar-se para fora do hexégono — no sem riscos! Num momento em que, na Europa central, a teoria nao mais apa renta ser oportuna, em que se enterram os conflitos e a luta de classes. as ideologias © as utopias, em que se esquece a relagao da cultur com os dados socioecondmicos, em que 0 Ocidente se apressa pi engolir 0 ex-Oriente, em que a antropologia € muitas vezes brandida como uma teoria funcional da harmonia e do consenso para melhor enaltecer a indiferenciaao ¢ a indiferenga ‘anything goes”), tude isso parecen salutar, ainda que intempestivo, para provocar reagdes;, também tentamos refazer 0 percurso do texto para o paleo. a partir de um modelo cldssico relativamente simples (qual seja, o do texto dra- mitico e da encenagio ocidental) para um modelo ampliado ¢ global de intereulturalisme. ‘0 estabclccimento deste modelo sociossemiético da cultura © da encenagSo intercultural foi feito — ¢ tanto a organizagao, quanto a cronologia dos capitulos deste Tivro embutem esse trago ~ por meio dc uma seqiéncia de aprofundamentos do modelo de funcionamento da encenagito (capitulo 2), visando uma teoria da tradugio (capitulo 6) € de intercuituralidade (capitulo 9). Este modelo € prova, alids, da extrema dificuldade de teorizagaio em relagao as formas sucessivas € distintas de teatro: 0 teatro de texto (o texto dramatico & encenaga0); (ro eenografica"™, no qual © visual ¢ 0 visivel sao fundamentais © 0 texto fica reduzido a “servir de apoio”: o teatro intercultural, pro- duto do contato entre as culturas, Tais estudos foram apresentados sob formas as mais diversas, como conferéneias ou coléquios internacionais, 0 que me permitiu, 1 varias ocasides, ajustar e aprimorar as minhas idéias, transportar juicring: Problem ihrer Analyse, Zetsednif lie Semtortt 20 (O-TEATRO No CRUZAMENTO DB CULTURAS para outros contextos, para outros auditérios, uma problematica inter Cultural em constante evolugao. Nao quis igualmente, ao retrabalhar essas conferencias sobre o interculturalismo, suavizar o seu eardter de enunciagio as cireunstincias particulares que as suscitaram IE uum prazer agradecer ais pessons que me pediram esses textos © gue me ajudaram com seus conselhos e sua amizade. Tenho também @ sentimento de empreender em pensamento um iltimo percurso para lem das fronteiras muito estreitas da Franga, em diregao ao interior Ga Europa (onde se haven de respirar seguramente melhor) e, mais, Tonge ainda, no vasto mundo do intercultural em cuja diregao ¢ som- pre muito bom escapar, O meu reconhecimento vai especialmente {na mesma ordem dos eapitulos) a Desiderio Navarro (La Havana) © Francisco Javier (Buenos Aires), Michae! Issacharoft (Londres), Karl Bliher e Alfonso de Toro (Kiel), Michael Hays (Ithaca), Wilfried Floeck (Mayence), José-Angel Gomez (Barcelona), Hanna Scolnicov Gerusalém), Eugenio Barba (Holstrebro), Erika Fischer-Liebte (Frankfurp, Gay McAuley (Sydney), Marianne Kénig Jegenstorf, Suiga), Mary © Hector Mactean (Melbourne) © Hyun-Sook Shi (Seu). 2. Do Texto para o Palco: Um Parto Dificil” Pare Eugenio Bara e particpantes do Ista (Salerno, 1987) |, OBSERVAGOES PRELIMINARES Levar um texto para o paleo € um dos partos mais diffe to momento em que 0 espectador estiver assistindo a0 sera demasiado tarde para conhecer o trabalho pi > do en. eenador; o resultado ja esta ali: um pequeno ser sorridente ou am gurado, ou seja, um sslo mais ou menos bem sucedido, mais ‘ou menos compreensivel, no qual o texto nada mais € que um dos. contigue aos ateres, a0 cspazo, ao ritmo temporal esse momento, ja nAto é mais possivel apreciar, através de uma des~ brigao cronolégica, os fatos gestos dos atores c/ou do encenador, pois a encenagao, tal como a examinamos aqui, é 0 ato de colocar & Vista, sincronicamente, todos os sistemas significantes cuja interagao © produtora de sentido para o espectador. Portanto, ndo falaremos mais de encenador — a pessoa privada due esta encarregada pela instituipgo teatral de assinar com seu pro~ prio nome © trabalho eénico —, porém da encenagdo, definida como bolocar em relagio, num espago e tempe determinados, materiais os inuis diversos (sistemas significantes) em fungaio de um piblico. A é ogao estrutural, um objeto tedrico € um objeto de lor, esse pai desconhecido da nossa pard: peticulo, jf aration 2 (©-TRATRO NO CRUZAMENTO DE CULTURAS. bola, nao nos interessa aqui diretamente, e assim sendo o substitui- remos, nao antes de nos desculparmos junto aos artistas © técnicos pela nogdo estrutural de encenagio. Esta nogAo, no entanto, & também, histériea, pois aparece nao somente num momento determinado da his- téria, como também é determinada pela sua inscrig%io no contexto. Vejamos, dessa forma, se uma teoria da encenagao ocidental é pos- sivel ¢ sobre quais bases. Este ensaio ¢, de forma mais geral, este livro, constituem uma tentativa de elaborar uma teoria materialista de eneenagio, teoria que se arroga a tarefa de descrever os mecanismos de constituigdo de sentido do texto dramiitico © da encenagao — neste caso, uma teoria que apela, como o seu duplo, para uma abordagem histérica que descreva as condigSes materiais da pratica teatral. ‘Ouliy exclaceinenie vocaliular. Parece-nos importante distinguir: O texto dramédtico: © texto linghistico tal como & lide enquanto texto escrito, ou tal como © ouvimos pronunciar no decorrer da repre: sentagao (atentemos para esta diferenga de estatuto). O easo que aqui ‘amente o de um teatro de texto, no qual o texto como por se considera ¢ exeh pré-existe & encenagao como trago escrito, e que nao vezes acontece escrito ou reescrito apés os ensaios, \edes ow representagdes (MARGEM 1). Situamo-nos decididamente, portanto, sob a dtica logocéntrica, ji que temos sempre presente na memoria que a encenagdo esti li- gada a um texto dramatico escrito pré-existente, numa perspectiva tipicamente acidental A representacao: tudo aquilo que & visivel e audivel sobre © palco, porém que ainda nfo foi recebido © descrito como um sistema de sentido, como um sistema pertinente de sistemas cénicos signifi cantes, Por fim, « encenagdo ou a colocagao em relagao de todos os sisteinas siguificantes, em particular da cnunciagao do texto dramé tico na representagao, Assim sendo, esta encenagao nao € © objeto empirico, a reuniao incoerente de materiais, nem muito menos a ati- vidade mal definida do encenador e de sua equipe antes da entrega do, espeticulo, E um objeto de conhecimento, 0 sistema das relacdes que tanto 2 produgao (os atores, o encenador, a cena em geral), quanto a recepeao (os espectadares) estabelecem entre os materiais cénicos a partir dai constituidos por sistemas significantes. Essa distingao, entre a representagio considerada como objeto em- pitico ¢ a encenagsio como objeto de conhecimento, permite ponderar e, acima de tudo, ultrapassar outra oposigio: a de uma estética da pro: dugao © de uma estética da recepgdo'. Com efeito, a encenacho ~ e e 1. Ch: P Pavis, Production et riception au théatre: ta conerdtisation du texte dra matique ot specticulaine, Revue dex Setences Humans, 189, Retamade em Vis et mange ie lar sete 9, 28-290 DO TEXTO PARA 0 PALCO: UM PARTO DIFICIL 23 sera a nossa hipétese principal — nfo existe no que tange ao sistema estrutural sendo quando recebida ¢ reconstituida por um espectador a partir da produgao, pela equipe artistica, da colocagao em relagao d sistemas significantes. Decifrar a encenagao consiste em receber ¢ in- terpretar o sistema que se encontra na base da produgio (no sentido inglés da palayra) da equipe artistica, Nao se trata de reconstituir as in- tengdes do encenador, mas sim de emitir uma hipétese sobre o sistema escolhido pelos produtores, através daquilo que o espectador recebe. Dedicar-nos-emos, na seqiiéncia, a estabelecer uma teoria da en- cenagiio, pelo menos na nossa tradi¢do ocidental, ou seja, a colocagdo em jogo, numa abordagem estética ¢ subjetiva, de um texto dramati- vo pré-existente, A encenagao ocidental é reveladora da maneira pela qual uma cultura pensa a fabricacao do sentido, especialmente como intereambio de sentido na co-presenga dos sistemas de sig 2, DENEGAGOES Bvitaremos as imilar a semiologia do texto dramatic ao a da repre- sentagao. Estaremos alertas para manter separados a sua metodologia © seu objeto de estudo, para nilo situar no mesmo plano ou no mesmo espago tedrico o texto © a representagdo, bem como para nao reduzir um ao outro. A falta do que, chegaremos rapidamente a assimilagaio da elo texto/representagio, as velhas oposigdes entre significado ¢ icante, alma € corpo, fundo € forma, literario ¢ teatral ete, No estudo do texto dramatico. destacaremos sempre o fato de se estar abordando o texto antes ou independentemente de uma enuncia- (lo cénica, ou se 0 estamos analisando como um dos componentes de uma encenagao concreta, levando sempre em conta, nesse caso, 8 enunciagaio ea “coloragso” que Ihe imprime a cena, se as duas Semiologias devem guardar a sua autonomia, isto se dleve ao fato de que texto e representagao respondem a sistemas se- miolégicos diferentes e que a encenayio nao significa a redugaio ou tiansformagao de um em outro, mas pelo contrario, © scu confronto, Antes de definir esta relagao delicada entre texto e representagao, co ‘garemos por afirmar aguilo que a encenacao nao & © dessa forma fecusara maneira pela qual cla é ainda, algumas vezes, definida abu- sivamente. Ao invés de dizer aquilo que a encenagio nao deve ser (vi- alo normativa demais), gostariamos de estabelecer aquilo que a teoria da eneenagaio nao pode, ou ndo pode mais, afirmar. Seguramente, ao {iuerermos estabelecer no abstrato a teoria da encenagao, arriscamo- fox em todos os momentos a fazer, na descrigao dessas operagdes prineipay meros julgamentos normatives sobre sua fungao e seu particularmente por aquilo que & a construgsio de senti- Formulame 1c de denega desempenhe do resultante que serdo tpualme icdes dlestacada 2 © TEATRO NO CRUZAMENTO DE CULTURAS 1. A encenagao nao é 8 realizagao cénica de uma potencialidade textual (porque, sendo, seria o caso de se comegar a explicar em que consiste essa “potencialidade”). Nao consiste em encontrar significa- dos cénicos que repetiriam, de maneira necessariamente redundante”, aquilo que 0 texto ja estaria dizendo, Uma tal procura de redundan- cias entre signos provenientes do texto € signos utilizados em cena, ignoraria e zeraria a materialidade significante dos signos lingdisti- cos on cénicos ¢ traria a suposigao de que os signos utilizados na representagao fazem abstragao de sua matéria significante e eliminam qualquer diferenga entre o verbal © 0 no-verbal. (MARGEM 2) ‘Toda semiologia teatral que pressupde, a priori, possuir 0 texto dramatico uma teatralidade que se trata de extirpar do texto a qual- quer custo a fim de exprimi-io ue palco — ow seja, uma matriz tea~ tral ~, de ver uma partitura que, quando muito, dé ao texto dramético uma existéncia visando uma futura representag’o, parece-nos que se trata de reduzir abusivamente a encenagdo a um mero decalque do tex- to ea estabelecer implicitamente que a encenagao é a expressiio do texto, que cle a contém implicitamente e, portanto, que existe apenas uma 56 € boa encenagiio previamente contida no texto. (MARGEM 3) 2. A encenagaio nao tem que ser fiel ao texto dramatico, Essa no- Ao obsessiva do discurso critico quanto a fidelidade ¢ initil, pois faria Tevar a que se dissesse, em primeiro lugar, no que se funda a compa- ragio entre ponto de partida e resultado’, A fidelidade a uma tradigao de representagiio (alias, muito mal conhecida no que diz re: texto elissico) & insuficiente como critério para novas encenagées Por fidelidade entendemos, de fato, coisas as mais diversas: fidelidade a “pensamento” do “autor” (duas nogdes, em conseqiléncia, muito movedigas), fidelidade a uma tradigto de representagto, fidelidade “ forma ou 0 sentido” cut virude Ue “priucipios estéticos ou ideols- gicos™. Fidelidade, acima de tudo e num sentido muito ilu representagiio com relagio Aquilo que 0 texto j4 disse claramente. F se, no obstante, produzir uma encenagao fiel ¢ repetir— ou antes, © poder repetir —, através da figuragao cénica, aquilo que 0 texto ja esta dizendo, nesse caso, por que a necessidade de encenar? (MARGEM 4) eit ao 3. Inversamente, ao contririo, a encenagio nao aniquila, nem dis: solve o texto dramitico; este resguarda seu estatuto de texto linguist co, mesmo no caso de se tratar de um texto feito a propésite durante « encenaedo, ou seja, enunciado de acordo com determinada situagao ¢ dirigido com vistas a um sentido muito mais determinado. Na media | 2. Ch sobre esta nogo: M. Corvin, Maligre ct sex mettenrs en scene d'ajound'hus. | 3. CF b. Fischer-Lichte (ed). Das Drama nd sete Inszemiorun, Ch tamnbsin 3 Jacquot: A. Veinstein, Lar aise en scene des nomvres dit pas 4. dncquot, cine por M. Corvin, ip ciba ps 3% le DO TEXTO PARA 0 PALCO: UM PARTO DIFICIL 25 em que se trata de um texto preparado durante a encenacao, é impos- sivel para o espectador pensar na passagem cronolégica do texto para a representago, isso porque todos 0s dois sio entregues a0 mesmo tempo, ainda que de acordo com ritmos espeeificos préprios a cada sistema significante. A dialética vale para os dois sentidos, 0 proble- ma da fidelidade da encenagio ao texto inclusive se coloca pouco, tio pouco quanto se coloca de saber se, inversamente, 0 texto dramati~ co € fiel A sua encenagao, se corresponde Aquilo que a cena mostra, se 0 texto de Moliére ¢ fiel & encenagao de Vitez, (MARGEM 5) 4. As encenagdes de um mesmo texto dramitico, particularmente as realizadas em momentos historicos diferentes, no dao @ ler 0 mes- mo texto. & verdade que a letra do texto é a mesma, porem o seu es- pirito varia consideravelmente. Compreende-se 0 texto apenas como resultado de um processo de leitura que chamaremos, com Ingarden* © Vodicka®, de sua concretizagdo, Devido a isso, 0 texto nao & um reservatrio ndo estruturado de significades, um Bawmeterial (um material de construgiio), como diria Brecht; é exatamente 0 oposto, isto é, 0 resultado de um cireuito historicamente determinado de con- cretizagao: significante (obra-coisa), significado (objeto estético) Contexto Social (abreviagao daquilo que Mukarévski chama de “con- texto total dos fendmenos sociuis [ciéneia, fMosofia, religido, politica, economia ete.] de um dado meio”), sto varidveis que modificam a coneretizagdo do texto © que € mais Ou menos poss{vel reconstituir. 5. A encenagao nao ¢ a figuracao, pela representagao, do referen- te do texto dramatico. Alias, nao temos acesso ao referente do texto; nfo obstante, quando muito temos a simulagao (a ilusdo) desse refe- Fente por meio dos signos que o designam através da convencao. ‘Aencenagao nao &, absolutamente, a coneretizagao visual de “bu- rcos” do texto que estariam a espera de representagiio para ganhar ilo. Qualquer texto — € nao apenas o texto dramatic ~ é esburaca- do, porém sob outros aspectos é, também, “repleto de sentido”. (© que se precisa ter em mente, muito mais que estes locais va- 410s ou cheios, impossiveis de se determinar, sfo antes os processos dle determinagao e indeterminagio no/para 0 texto © 6 paleo: a ence- Hage poe em foco tal fungao de esvaziamento/preenchimento das mbigdidades estrucurais. 5. CER Inganden, Day lieranisele Kunenrerk, CEJ, Mukurovsky, [art ait seiniotostique, Aeves cic baniéone comerds 26 0 TEATRO NO CRUZAMENTO DE CULTURAS 6. A encenagao nao é 0 reencontro de dois referentes (textual © c6nico); ela ndo visa, portanto, encontrar uma homologia estrucural entre os dois referentes. E necessirio, ao invés de reencontrar os re- ferentes, criar uma teoria da ficefio que compare texto ¢ cena no seu processo especifico de ficcionalizaco que a encenacio realiza tendo em vista o espectador. A ficgo pode parecer um meio-termo e a me: diagaio entre aquilo que © texto dramitico conta € aquilo que 0 paleo faz figurar, como se a mediacao tivesse sido realizada através da fi- guragio, textual e visual, de um mundo ficcional possivel, construido em especial pela andlise dramatirgica na leitura, depois figurado pela realizagao no palco. Essa hipétese nao soa falsa se nos prevenirmos no sentido de ndo reintroduzir, sub-repticiamente, a teoria do refe~ rente atualizado que figuraria esta mediagao. Com efeito, caso haja uma relagio evidente entre texto e representagao, isso nao se daria sob a forma da tradugio ou duplicagao do primeiro no segundo, mas da translaco ¢ confrontagaio de um universo fiecional estruturado a partir do texto e de um universo ficcional produzido pelo palco; sao as modalidades desta evidéncia que se trata de questionar. 7. A encenagtio nao € # realizagdo performativa do texto. Os ato- res ndo esto incumbidos, ao contrario do que acredita Searle”, de seguir as instrugdes do texto © as indicagdes cénieas para produzir interpretaco, com a forga clocutéria de uma “receita para fazer halo”. As indicagses cénicas “revestem” o texto de uma série de dire~ tivas que prevéem certo tipo de enuncingao, em cujo interior o texto dos didlogos assumira um sentido mais ou menos “pretendido” pelo autor. A encenagio, em conseqtiéneia, esta livre, essencialmente, para “colocar na prética enunciativa” tio somente algumas das indicagdes cénicas, quiga até nenhuma. Portanto, cla nao esti incumbida de se guir ao pé da letra as indicagGes cénicas no sentido de reconstituir uma situagéo de enunciagao correspondente, em todos os pontos, as indicagées. Tais indicagdes cénicus nao s2o nem a verdade iiltima do texto, nem a ordem formal de montar o texto desta ou daquela manei- ra, e nem a transigo indispensavel entre texto ¢ palco. O seu estatuto textual é incerto: extratexto que se pode ou no usar? Metatexto que determina o texto dramético? Pré-texto que sugere uma solugao antes de 0 encenador decidir-se por outra? A avaliagdo do seu estatuto esta ligada a histéria; sem nos esquecermos de que a palavra pode parecer autoritiria, é necessdrio igualmente nos lembrarmos de que a ence- nagao pode escolher inspirar-se ou, ao contrério, como antigamen- te Gordon Craig, considerar as instrugdes do texto como um insulto, feito a liberdade do encenador. Pelo menos parece fora de questao receber-se as indicagSes eénicas, dentro de uma teoria da encenagao. 5, C4. Searle, Le statut tongue du discours de la fet come diretiva absoluta para a encenagao e como discurso que a repre- sentagao necessariamente percorre. Eis, portanto, muitas das denegagdes ¢ interdigdes com relagao 4s conexdes entre texto © representago (MARGEM 6). Agora vamos atrisear, de modo decididamente afirmativo, algumas hipéteses quan- to A fungao da encenagao no estabelecimento dos lagos entre o textual \. A ENCENAGAO COMO REGULAGAO DA RELAGAO TEXTO/REPRESENTAG. Ao invés de refletirmos sobre a ligacdo entre texto © representagao como passager, Gansiagao, redugau de uit a Guuu, preferiinos de> crevé-la como a criagao de efeitos de sentido © contraste entre temas semistices diferentes (verbal/ndo-verbal, simbélico/icénico, por exemplo); como um distanciamento ao mesmo tempo espacial & temporal entre signos auditivos do texto ¢ signos visuais da cena, Nao é mais po sentagao (08 signos cénicos) como conseqiiéncia légica ou temporal de signos textuais (mesmo que na realidade eles sejam produzidos, na maioria dos casos, a partir da en- eenagao de um texto pré-existente). Texto e cena sao percebidos ao mo tempo ¢ no mesmo lugar, sendo impossivel declarar-se qual es 6 anterior ao Outro. (MARGEM 7) oO ‘vel eonceber-se a repr $a, A mnunctagdo Cénica e o Circuito da Coneretizacdo ‘A encenagao esforga-se por encontrar, para © texto dramatico, uma situagao de enunciagao que corresponda a uma mancira de dar sen- tido aos enunciados. Assim, os enunciados textuais apareceriam por vores Com o pLUUUlY dat CHuuciAyaY © dO (AY a pail do qual a cH ) imagina uma situagdo de enunciagao, dentro da qual 0 texto ganha o seu sentido. A encenagao nao é uma translagio do texto para 4 cena, mas sim um teste teérico, que consiste em colocar © texto “sob tensao” dramiitica ¢ cénica a fim de experimentar no que é que a shunciagao eénica provoca o texto: instaura um circule hermenéutico e enuncindo para dizer ¢ enunciagao “abrindo” o texto para mu lus interpretagdes possiveis. ‘Aalteragdio da enunciagio caminha em paralelo com a renovagao da concretizagao do texto dramatico; uma relagao de troca estabelece- ne entre texto dramatico e Contexto Social. A cada encenagio o texto S colocado em situagao de enunciagae em Fungo do novo Contexto Social de sua recepgao, a qual permite ou facilita uma nova andlise do Contexto Social da produgao textual © cénica, fato que modifi ca igualmente a andtise dos chunciados textuais, ¢ dai até o infinite, Fote teste teorieo, este distanciamento entre ext © cena, leitura do 28 © TEATRO NO CRUZAMENTO DE CULTURAS Contexto Social de ontem € leitura do de hoje, constitui a encena- gio. A encenago é a hipdtese sobre uma enunciagao que resulta, sem cesar, na coneretizagio de enunciados novos; ela sempre esté para acontecer, Visto que se limita a colocar balizamentos, a dispor 0 tex- to em fungao de uma enunciacio e a dar a conhecer suas intengdes. [ Bla nao € apenas uma concretizagao-ficcionalizagao como qualquer Ieitura de um texto escrito; é uma pesquisa de enunciados cénicos que, reunidos pela encenagao, produzem um texto espetacular global deniro do qual o texto dramatico adquire um sentido bem especitico. Do mesmo modo, no ocorre nada parecido a um empilhamento de sistemas visuais construidos sobre o texto; nfo é, escreve Alain Rey, ‘uma soma, nem uma cebola; é (deveria ser) um projeto coletivo rea- lizado em torno de um constrangimento da linguagem, uma estrucura feita para comunicar-se"", 3b. Verbal ¢ Nao-Verbail: a Leitura em Agao A encenagao é uma leitura em ago: 0 texto dramatico nfo possui um Ieitor individual, porém se trata de uma leitura possivel ¢ coletiva proposta pela encenagho. A filologia ou o comentario servem-se das palavras para explicar os textos, enquanto que a encenagai utiliza-se de ages cénicas para “interrogar” o texto dramético. A encenacao € sem- pre uma pardbola sobre a permuta impossivel entre o verbal e 0 niio- verbal: © ndo-verbal (isto 6, a figuragdo pela representagao ca escolha de uma situago de enunciagao) faz falar o verbal, reitera a enunciagao. como se o texto dramatico, uma vez emitido ém cena, conseguisse m reeserever outro texto, através da evidencia~ go daquilo que é dito ¢ daquilo que é mostrado. Pelo fato de a ence: a0 mostrar, ela diz. sem dizer, de sorte que a denegagao la Fernemung treudiana) & 0 seu modo de existencia habitual. Els sempre convida, implicitamente, a comparar o discurso textual © 9 figuragao céniea escolhida, a fim de acompanhar (seguir ou preceder) © texto. Ao dizer sem dizer, a encenagdo (mais exatamente a repre sentagaio) instaura como que uma denegagao: “diz sem dizer”, fala do texto gragas a um sistema semidtico distinto que nfo 6 linguist co, mas “icénico”. Entretanto, isso nao implica que a imagem cénica (08 significantes visuais ¢ auditivos da cena) ndo possa ser traduzida em um significado, quer seja aquilo que se opde a semiotizagac ou 4 tradugdo em um significado, A alternativa considerada por Michel Corvin par n, estar teoricamente falseada desde seu ini- cio: “A relagdo com a imagem cénica permanece, no caso, ambigua: for lida em toda sua plenitude ideolgica, sera assassinada como 10. CA. Rey, Le théatre, quTest.ce que e"est?, em D. Comtys A. Rey eds.) f sheave, 9.88, DO TEXTO PARA 0 PALCO: UM PARTO DIFICIL 2 imagem; se nos contentarmos em recebé-la ingenuamente e, gragas a Deus, recusando concebé-la na condigao de ser semidloga, cla se tor hard um espelhamento estéril de formas € cores”"'. A imagem pode, cla propria, ser taduzida em um significado sem 20 mesmo tempo perder seu valor de imagem; inversamente, nao pode ficar muito tempo como sendo um “espelhamento estéril de formas © cores”, vis~ to que até o mais perfeito ingénuo acaba por traduzir aquele puro sig- nificante em um significado (ao semiotizar a imagem). Michel Corvin tem, por outro lado, razio ao insistir na polissemia da imagem, na sua faculdade de produzir semiotizagdes ambiguas e polissémicas. A encenagdo nao € somente uma produgao de sentido (assim, reduti~ vel aos significados), porém € também uma produgao de sensagdes (conseqlientemente, de significantes que transmitem ¢ imterpelam o espectador sem que 0 mesmo saiba ao certo o que aquilo quer dizer). Esta pereepeao da materialidade do espeticulo, da corporalidade dos atores, faz parte da experiéncia teatral; é esta sedugao, esta insatis- fagao do desejo que impede que a encenagio se reduza a um sentido terminal € a uma decodificagao de signos ou de intengdes, A figuragio cénica — que seria o caso de se comparar com a figura gto do sonho ~ ea imagem “desfilante” cm face do texto enriquecem, © dispdem para a Ieitura © texto segundo estratégias eventualmente imprevistas. A encenagio, seja.a mais simples e explicita, “desloca™ 0 texto: faz dizer no texto aquilo que um comentario critico, verbal ou, escrito, nao conseguiria dizer: é quase o indizivel, ou qualquer coisa semelhante. ‘© conhecimento dos processos de comunicaggio ndo-verbal (cing siea, proxémica, percepgao do ritmo e das qualidades da voz) é ainda muito reduzido. Logo, ¢ através da sua elucidacio que passa a com- jeensiio do trabalho do ator, no qual 0 comportamento nao-verbal in- Mui sobremaneira quanto @ comprcensio do texto que 0 acompanta. A titulo de exemplo, ¢ antes de empreender um estudo sistemati- €0 desses processos ¢ do seu papel na constatagito do sentido, limitar- hos-emos a indicar algumas pistas para pesquisa ao criar exere a testar c precisar a teoria, 1. Inserigdo espacial do texto: © texto loria: sereve-se numa traje- locamentos, posigdes no espaco, posturas © pausas do ator, se determinar qual & a influéncia que essa trajetéria exerc hu leitura do texto. Nao se trata simplesmente da disposicao (do b/o- ing que diz respeito as relagSes espaciais dos atores-enunciadores), porém do espago na sua relagaio com o sentido. 2. Encenagdo da voz: a Sprachregie da qual falam os alemies: a0 ke neutralizar signos distintos aos da voz, observam-se quais signifi- 1 CEM. Carvin 30 (© TEATRO NO CRUZAMENTO DE CULTURAS. cados sto produzidos e, sobretudo, de que maneira a voz nao se deixa reduzir a um sentido essencial e traduzivel em um significado claro. ‘A encenagao ¢ a recepeao pelo espectador consistem na percep- iio dos ritmos diferentes do discurso visual € cénico e do desfilar auditivo © textual. O espectador, escreve muito a propésito Michel Corvin, “é submetido a um curioso efeito de estrabismo: 0 texto de- senvolve-se num ritmo préprio, com seus meandros € seus segredos, enquanto que © discurso visual da encenagio o acentua, contraria ou antecipa-se a ele, a0 introduzir um didlogo direto entre 0 encenador © © espectador sem passar pelo intérprete do personagem ¢ das pala vas que © constituem™®, A encenagao faz sempre dialogar 0 dito e © mostrado e, acrescenta Vitez, “o prazer teatral, para o espectador, repousa na diferenga entre aquilo que se diz € aquilo que se mostra L.-J aquilo que, para o espectador, parece excitar, desemboca nesta idéia: no mostrar aquilo que € dito” 30. Reviravolta da Perspectiva As pesquisas da encenagao, assim como sua tearizagao, indi forma o mais claro possivel uma reviravolta na perspectiva e no de- sejo de se escapar de um logocentrismo que faz do texto © elemento estivel e inicial da encenagao, a transcrigao obrigatéria e acesséria, a figuragao c a explicagao do texto, Aig o advento das experigneias pos-modernas sobre © texto con siderado como material ndo semintico, manipulavel pelos processos de ready-made, colagens, citagdes ¢ poesia concreta, 0 texto draméti- co surgia como 0 pivd da ficgao e da encenagio. As experiéncias mais recentes do pds-modernismo' sobre 9 ndo-verbal, 0 nove estatuto que as mesmus concedem ao texto ~ qual seja, 0 de um sound pattern ¢ uma estrutura significante ritmica —, tudo isso ocorre sem se recair ha concepeao de texto dramitico clissica, sem se centrar na encena- Ao que, além do mais volta-se sempre, ou quase sempre, a0 redor do pivé semantico do texto. Mas sera assim tao simples escapar do texto € do logocentrismo? O texto estaria, pelo menos no momento em que surge timidamente no paleo, liberado de uma relagio de autoridade 12, Idem, p12 13. Cf. Antoine Vitez, Ne pas moniter ce qui est dit, Zravait thédiral, 14, 1974, p, 42, Pique entendido: esta nao & mais do que uma possibilidade estéticn entre tantas ou tras, Pode-be deparar com a concepeao inversa, que desejaria que a eneenasito confton tea palavra ea cena, aquela de Michel Vinaver, por exemplo: “Evitar a qualquer custo {que haja dias narratives: a narrativa que emsna da palavra, de unt lado, a narrativa que relataria os movimentos agdes no espago por outro lado. O discurso que € reeebido pelos ouvidas e aquele que entra pelos olhos". M. Vinaves, Theaire pour Poeil, Thestre por Poreille, L“anmuel cy sheer, p- 138. 14. CEP Pavis, The Classical Heritage of Modern Drama: the case of postmodern ou vassalagem por conta do scu vineulo com a representagio? “O texto”, escreve Jean-Marie Piemme, ows de volta, sim, porém no seu exilie sucumbiu & sua pretensio de ser objeto fetiche, sheralizade, imperial. O motive de nos desembaragarmos dos seus vellos espeetros & 0 {que nos leva a questioné-lo atualmente, tanto isso € verdae que a sua abordagem nao ‘mais se deixa arregimentar por sus dupla figura terrorista de fidetidade © waiga0! © texto resiste & banalizagao € a sua “musicalizacao insignifi- cante™ na encenagao. Ele continua interrogando © resto de sua re~ presentagdo, ao dar “para quem o domina um pouco de embaraco”” Criando embarago ou texto embaragoso, resulta que a sua leitura no caminha mais de modo isolado. A encenagio torna dificil, porém ne- cessiirio, a distingao entre trés Teituras: - A leitura do texto tal como a realizaria um simples leitor, tal como eventualmente © espectador a tenha feito antes de assistir & representagao. A dificuldade, neste caso, é abstrair-se a enunciag3o eénica conereta em que se situa © texto, visto que qualquer leitura do lexto dramatico precisa de uma concretizagfo/figuracao que é uma espécie de “pré-encenagiio” mental. ‘A leitura do texto jf enunciada na representagao. Portanto, 0 texto esti concretizado, realizado numa determinada situagao que Ihe confere a sua prépria iluminago ¢ © seu sentido. Na realidade, esta lei tura é impossfvel sem se ter em vista a terceira, a do texto espetacular — A leitura do texto espetacular, ou seja, em especial, na nos- sa terminologia, da encenagao do conjunto dos sistemas cénicos, em enjo conjunto deve-se inserir 0 texto dramdtico. A leitura do texto espetacular implica perceber-se a mancira pela qual a encenagao leu © texto, pois a Ieitura do texto precedeu a encenagao e é, desse modo, uuma realizado cénica (quer dizer, através dos meios da cena) dessa Jeitura, Esta terceira leitura & 0 resultado das duas p) que ¢ propria da encenagao, id. Metatexto ou Discurso da Encenagao Para conhecer essa “Ieitura do texto espetacular , procurar-s patar aquilo que se poderia chamar de metatexto da encenagao, isto é, © seu comentirio a propésito do texto, a reescritura cénica proposta. A dificuldade consiste em localizar esse metatexto (ou esse discurso) da encenagao, Sobretudo, € preciso ndo se confundir esse metatexto (ou texto no escrito da encenagao) com o texto da série de comenta~ ‘ios que uma obra, principalmente classica, provocou no decorrer da histOria © que, por vezes, acaba por “incrustar-se” no texto dramatic, 15. Ch JoM, Piomime, Le soumMeur ingquiet, Aermatives ehédirates, 20021, 9. 42 2 O TEATRO NO CRUZAMENTO DE CULTURAS © até por se tornar parte integrante ou obrigatéria do mesmo (MAR- GEM 8). O metatexto nao existe em parte alguma como texto acabado; ele esti disseminado nas opgdes da representagao, da cenografia, do ritmo, dos sistemas significantes. Segundo a nossa concepeao produ tivo-receptiva da encenacao, por outro lado, ele nfo existe enquanto nao for reconhecido € nao for, de alguma forma, compartilhado pelo pUblico. Mais do que um texto (cénico) juntamente com o texto dra- matico, © metatexto 0 que organiza, a partir de dentro do conjunto da encenagao, aquilo que no se encontra no texto dramdtico mas que, de algum modo, esta no seu interior. A encenagao precisa apoiar-se no texto, precisa aparecer como sua concretizagio. Ela é independente dele, o que nao significa, apesar disso, que cm compensagao deixars de iluminar, abrir e metaforizar o texto dramatico. Coloca-se a questao normativa, e mesmo politica, de se saber se esse metatexto, ou esse discurso, deve Ser facilmente reconhecivel, formali- zavel: se deve “anunciar a cor”, formar um arscnal de opsOes € teses ex- plicitas sobre o texto dramitico; ou se tem, a0 contrério, acima de tudo interesse em mostrar-se discreto ¢ quase clandestino, ja que foi produzido, sobretudo — completado e “reescrito” — para o espectador: Seja qual for a Tesposta a esta questo, a encenagao tal como a estamos redefinindo nao existe a nao ser quando 0 espectador a reconstréi, quando ela se toma a projesao eriadors do espectador (MARGEM 9), Para arrematar este exame da regulagao entre texto © represen tagao— regulagio efetuada por cada encenagao —, colocaremos tres questdes cuja resposta permitir estabelecer 0 circuito entre 0 texto dramitico © o Contexto Social, cada questiio encadeando a seguinte: — Qual é a concretizagao do texto dramético feita por ocasiao de qualquer nova leitura ou encenagao? Qual € © circuito de conereti~ zagao que se estabelece, entio, entre obra-coisa, Contexto Social objcto estético? Qual & a ficvionalizagao, ou seja, qual & 2 produgio de fiegao que se estabelece a partir do texto © a partir do paleo gracas aos efeitos conjugados do texto e do leitor, do palco © do espectador? Em que a mistura das duas fiegSes, textual © cénica, & indispensavel para a ficcionalizagao teatral? Esta questao retoma a primeira ao especificar 0s efeitos da fiegao: simulacro do referente, construcio de um mundo possivel ete, Qual é a ideologizagdo do texto dramitico e da representagao? O texto, seja dramatico ou espetacular, ndo pode ser compreendido se- no em sua intertextualidade, especialmente com relagio As formagoes discursivas ¢ ideolégicas de uma epoca ou de um corpus de textos. ‘Tentamos imaginar o vineulo do texto dramatic & Contexto Social, isto & com os outros textos ¢ discursos apoiados no da sociedade, Sendo esta rela espetacular com © o mesmo texto dramético produz facilmente uma infinidade de leitu- fas. No que tange as duas primeiras questdes, esta questo adiciona {sua perspectiva a inscrigao social do texto, 0 seu lugar na historia por meio da cadeia ininterrupta dos outros textos. E © que permite hpreender a encenagao também como praitica social, a saber, como Inecanismo ideoldpico que dccitra, pelo menos, na medida em que a feflete, a realidade histérica (mesmo que a ficgio se dé precisamente como negagao da realidade) te. A Encenacdo como Discurso no Vazio ¢ na Ambigitidade. Solucdo Imagindria e Discurso Parédico © relacionamento das duas ficgoes, textual € cénica, nao se limita a welecer uma cireularidade entre enunciado ¢ enunciagao, ausén~ cia e presenga. Significa confrontar os lugares de indeterminagao © as ambigiiidades do texto ¢ da representagio. Estes no coinci- dem necessariamente no texto © no paleo. Por vezes, a representa glo toma partido por uma contradigao ou por uma indetermin: textual, Da mesma maneira, © texto dramitico tem condigoes de suprimir as ambigdidades da figuragiio cénica ou, a0 contrario, in~ toduzir nova: Tornar opaco, no paleo, o que estava claro lo que estava opaco no texto: tais operagdes de dete determinagao esto no cerne da encenagao. Durante a maior parte do tempo, a encenagao é uma explicagao do texto que se encarre ya da mediagao entre o receptor original ¢ © receptor contempor heo, Algumas vezes, a0 contririo, € uma “complicay uma vontade deliberada de impedir qualquer comunics Contextos Sociais das duas recepgdes. Em algumas cncenagoes (particularmente naquelas inspiradas por uma anélise dramatrgica brechtiana, porém nao somente ne: tas), trata-se de demonstrar como o texto dramético foi, propriamen- te, 4 solug&o imaginaria de contradig6es ideoldgicas reais, aquelas da época na qual se estabeleceu a ficgao. Neste caso, a encenagao tem a incumbéncia de tornar a contradigdo textual imagindvel e re presentivel, Para as encenagdes preocupadas com a revelacao de um subtexto de tipo stanislavskiano, supde-se que o inconsciente do texto acompanhe, num texto paralelo, o desfile continuo — e em si mesmo pertinente — do texto realmente pronunciado pelos personagens. ‘eja qual for a vontade, explicita ou nio, de mostrar a contradi- 1 ou a verdade profunda do texto através da visibilizaga0 subtexto, a eneenagaio “desloca” o texto, € sempre um discurso poralclo ao texto, de um texto que permanecerd “ndio enunciado”, isto uiro ¢ insignificante, A encenagao &, portanto, sempre marginal e ntido ctimoldgico do termo, » texto, ou acl qui inagae/in > do texto" Ao entre os 4, UMA TIPOLOGIA DAS ENCENAGOES? Se a teoria da encenagao — na qual se torna possivel, esperamos, es capar do discurso impressionista sobre © estilo, a inventividade, a ori- ginalidade do encenador ~, “projeta”, por assim dizer, © seu universo ou apde a sua grife num texto-bibeld intocdvel e fechado, cla esté razoavelmente desarmada no sentido de responder a duas questes muito frequientes FE uma encenagio fi — Quais encenagdes o texto dramitico é passivel de receber? A primeira dessas duas perguntas é sem sentido, como foi expos- to, porque pressupSe que © texto tem um sentido ideal e inaliendvel, inclependentemente das variacées histéricas. Para responder A segun- da pergunta, evitando-se recair nas ing miologia examinara de que forma a encenagao se determina segundo as suas dimensbes, autotextual, intertextual e ideolégica (ou melhor, ideotextual). Essas trés dimenses, que em outra ocasido"” definimos como as trés componentes ou estigios de qualquer texto, coexistem em qualquer encenagao. A tipologia proposta nfo tem outra ambigao a nfo ser analisar a especial insisténcia numa dessas trés dimensoes, & nAo © seu carater exelusivo, A encenagiio autotextual esforga-se por apreender os mecanis mos textuais ea construgae da fibula na sua légica interna, sem fa- zer referéncia a um texto exterior que viria confirmar ou contradizer © texto; A esta categoria pertencem também muitas encenagdes que procuram~ alias, muito em vao — reconstituir arqucologicamente as condigdes historicas da representago sem abrir 0 texto € a cena ao novo Contexto Social — quantas encenagdes hermeticamente fe- chadas numa idéia ou numa tese do encenador e atribuindo-se uma reeriagho total, com os seus préprios principios estéticas! Foi este © caso das encenagdes simbolistas, como também o caso dos “en- cenadores fundadores” (como Craig ou Appia), que inyentaram um universo cénico coerente © fechado sobre si mesmo, concentrado num discurso de encenagao muito legivel € rigorose quanto as suas opgdes estéticas. A encenagio ideotextual representa a opedo inversa. Mais do que © texto, trata-se dos subtextos politico, social ¢, sobretudo, psi- col6gico que ela almeja colocar em cena, como se 0 metatexto— 0 olhar que langa sobre a obra — quisesse substituir-se ao texto propria- mente dito. O texto dramatico no é mais do que um péndulo morto ¢ embaracoso, tolerado como massa significante indeterminada, situa- da indiferentemente antes ou depois da encenagao. Encenar ¢, para a encenagao ideotextual, abrir-se a0 mundo, até o ponto de modetar midades da primeira, a se- 17. CFP Pais, Hoi ef images de la sede, 28K, © Marina: Féprenve de fr © objeto textual nesse mundo € na sua nova situag&o de recepgao. © texto mima o seu referente, tem mesmo a aparéneia de substitui- lo, Nesse caso, 0 texto perde a sua textura em proveito de saberes € discursos prontos, exteriores a cle, vitima de uma explicagdo global do mundo, da tirania das ideologias de que fala Michel Vinaver. Esse tipo de encenagfio assume plenamente a mediagiio entre 0 Contexto Social do texto outrora produzido € o Contexto Social do texto ago- ra recebido por determinado publico; esta encenagdo assegura-se da Sfungo de comunicagao”" com referéncia a obra de arte, permite que um novo piiblico leia um texto antigo. Esse tipo de encenagao é particularmente criticado na atualidade, pois critica-se no encenador © fata de comportar-se como um “eacique” da ideologia™, — A encenagao intertextual assegura-se de uma mediagio neces- siria entre a autotextualidade da primeira e a referéncia ideolégica da segunda. Relativiza cada encenagdo como uma possibilidade dentre outras, situa-a na série de interpretagdes, procura distinguir-se pole- micamente de outras solugdes. No que se refere particularmente ao texto dramatic classico, a encenagao nao pode deixar de marcar po- sigho com relagao aos metatextos passados. Essa “interlucidez” vale para todos os compartimentos da representacao: a encenagio posiciona apenas ao citar, ela &, como diz Vitez, a arte da variagao. 5. CONCLUSOES (PROVISORIAS) Partindo de uma nova defini¢o estrutural da encenagao, pudet descrever alguns mecanismos de sua recepgio. A teoria di de suas duas vertentes, a concretizacao ¢ a ideologizagao, 0 elo in ensavel para a produgdio de sentido. A partir desta teoria, ndo nos pareceu ser possivel extrair qualquer ensinamento para se saber o que pode acontecer com os textos dramaticos caso se queira relé-los ou remonté-los; ¢ impossivel prever-se, para um texto, © campo de suas possiveis encenagées. A falha nto decorre do impressionismo da teo- ria, mas sim da muhiplicidade de variantes, notadamente naquilo que se refere ao Contexto Social, e por conseguinte quanto a imprevisibi lidade de futuros circuitos de concretizagio. A necessidade de se unir a coneretizagao textual ¢ cénica ao Contexto Social do piiblico— ¢, fiegao © 18, Ch. J. Makarowsky, art comme fait sémiologique, Poérigue, 3, p. 391 19. M. Vinaver testemunha sobre esta “tirania das ideologias™ que explica, sevun- pele, ‘do encenador nesta tendéncia “ideolouica”: “Encenar &, a partir de lima explicagao global do mundo (marxismo, freudismo ou outra), proceder a wma de~ heal, & pesauisar @ Yealidade do texto um subtexto, 0 qual tambem esti conee- “um sisfoma eral de explicagao © depois descrito, depois revelado a0 se estender nixine a ulilizagto des recursos quic a Gena oferece para «plano dos sigmificantes ne Lanne ee thee, p82. 36 (0 TEATRO NO CRUZAMENTO DE CULTURAS em conseqiiéncia, relativizar qualquer concretizago/interpretagaio evidencior A dificuldade parece estar, no momento, em teorizara experiéncia do texto por conta de iniimeros enunciados possiveis. A enunciagiio & © ritmo global do desenrolar do espetaculo so ainda mal definides, pois tem-se apenas podido dizer que nfo se limitam a dicgao ou as mudangas gestuais € visuais, mas sim que inervam qualquer ence- nagao, Dai em diante, 4 compreendemos e aceitamos a idgia de que encenar ndo é enunciar~ gaguejar ou cantar— um texto, ao inserir 0 tom e os “temperos” da representagao no intuito de que todos se aper- cebam do bom senso: € fabricar e regular as situagSes de enunciagao, fem que as trocas entre o verbal e o nao-verbal possam realizar-se, Esta cnunciagao dirige-se sempre a um espectador, de sorte que a en- cenagao, longe de o ignorar, torna-se 0 pélo receptive de um cireuito entre a encenagio produzida pelos artistas e a encenagao produzida pelos espectadores. O teatro — tanto 0 texto dramatico, quanto a encenagilo — trans- formou-se num texto espetacular, tanto espetculo do discurso quanto, discurso do espetaculo™. A producto teatral est doravante impreg- nada por nossa teorizago. A encenagao tornou-se 0 discurso auto- reflexivo da obra de arte e, a mesmo tempo, um desejo de teorizagao do pliblico no sentido de que 0 funcionamento da obra de arte deve, de acordo com palavra de ordem atual, ndo conter mais nenhum sceredo. A obra de arte moderna — ¢ singularmente a encenagao tea: tral — no existe enquanto nao tenhamos reszatado explicitamente © sistema, enquanto no tenhamos podido desenhar o texto espetacular, desfrutar © prazer da reconstrugao, constatar a diregao de todo funcio~ namento M 10) “O charme discreto da boa direcao”, tal 6 0 titulo do espetaculo priitice-tedrico que nbs nos oferecemos a0 ir assistir ao Tartufo, de Planchon, ao Rei Lear, de Strehler, ou a0 Hamlet, de Vitez. (MARGEM 11) Quem ainda haveria de ousar falar, nese caso, do parto da ence~ nagilo a partir de um texto, com os forceps mais ou menos artisticos de um encenador todo poderaso? “Tudo nao passa de criancices”, pensa a semiologia da encenacao: “Fstrutural eu nasci, estrutural continuo”. -se claramente. MARGENS, MARGEM 1 — Aqui nao abordamos © debate do estatuto do texto dra~ matico, a questao de saber se a pega existe de maneira auténoma com relagiio ao texto ou se existe enquanto encenada, Vamos determinar simplesmente que, por certo, pode-se ler o texto dramatico “na bro: chura™, porém que ser-se-4 convidado @ pensar numa maneira através 20. CIM. Isanchuroff, Le: spectucte i dlscours, da qual 0 mesmo pode/deve ser enunciado, portanto, para uma pos- sivel encenagao. Ver a este respeito 0 inquérito de Michel Vinaver junto a 73 autores franceses, que se subdividiram em autonomistas (do texto: 13%), fusionistas (do texto e da representagio: 22%), ex cepcionalistas (a peca raramente autonoma: 11%) © a massa dos coabitacionistas (a pega nao &, em si mesma, objeto de leitura, mas pode-se de todo modo lé-la: 43%)"! MARGEM 2— Posi¢do a nosso ver errOnea e idealista, que Daniéle Sallenave retoma: “Existem encenagées desiguais de um mesmo tex- to. Ahierarquia que se pode estabelecer entre elas deve levar em con- sideragao se o texto foi mais ou menos realizado [...] A encenagao & digna de ser vista pela verdade do texto, com © que Gadamer chama de realizagto como manifestagao do verdadeira (sto ja estava conti do em A Podtica de Aristételes)™ MARGEM 3— Posigto que representa 0 meio— © com muito mais rigor -, em Michael Issacharoff, em Le spectacle du discours © no artigo “Inscribed Performance”: para cle, a representacao (perfor mance) esti mais ou menos, porém sempre pouco, inserita no texto dramatico, muito pouco em Racine, muito em Beckett ou Shaw. Nao nego que haja nas didascélias ou no texto elementos que & para dar uma imagem de sua possivel representagao, mas nada, ab- solutamente nada obriga (nem mesmo a Sociedade de Autores) 6 en eenador a obediénci © encenador produz eneenagiio que quer; desde que ocorram leitura ¢ encenagao, a insti cia da encenagao vem do exterior do texto, nao esté inscrita no texto, ou em todo easo nao necessariamente. Falar de representacao (ou de encenagao) implica que se conceba o teatro como uma pratica de co- locagao em jogo do texto, € nao uma leitura inerente 0 texto. Para representar (encenar) um texto é preciso vir-se do exterior ¢ “derrubar \ barraca textual” ao colocd-lo em enunciagao, ou seja, num tempo, hum lugar, com corpos coneretos. Na maioria das yeze: MARGEM 4 — Reconhecemos aqui a atitude de autodenegagao da en- enagao; 0 encenador faz-se modesto, e diz: “Sirvo o autor ao invés dle me servit™, “Eu, eu nao me imiscuo na cena”. Esclaregamos as coisas. Este discurso 6, de inicio: (1) ingénuo, ¢ em seguida (2) enun- cit uma pesquisa auténtica para induzir junto ao ator e ao espectador uma “escuta flutuante” (Freud), Dois exemples: wer, Le compte rene Avignon, pe BIRR, mentor © commpnastte, ¥. XHXIN 38 0 TRATRO NO CRUZAMENTO DE CULTURAS 1. J. P. Vineent: “No sentido em que habitualmente se emprega esta palavra, nao (haveria) encenagao em Penas de Amor Perdidas [...] Tentei fazer brotar a realidade ¢énica do interior do texto”. Esta atitude de no interpretagao € freqtientemente reivindicada pelos pré- Prios autores: que 0s encenadores deixem portanto, dizem eles, os textos dos autores falar por si mesmos. H. Miller clogia desta forma ‘© trabalho de encenagao de Bob Wilson: “Ele nao interpreta nunea um texto, contrariamente Aquilo que habitualmente fazem os encena- dores do teatro europe. Um bom texto nao tem necessidade de ser ‘interpretado” por um encenador ou por um ator”* 2. Dois exemplos, agora, de denegagao produtiva: Claude Régy: “Aquilo que tento empregar como principio de encenagao € a0 fa- zer encenagdo; que isso Seja, antes de mais nada, uma espécie de trabalho de parto; deixar acontecer, abrir as palavras a fim de que se possa escoar livremente aquilo que vem de longe do inconscien- te do autor; do inconsciente dos atores, ¢ que dessa forma, sempre nte dos espectadores™*. Outro som barreiras, isso atinja 9 inconse: exemplo em que a denegacao é um proceso criativo de exibigaio do inconsciente, vem de Lassalle e do que chama de um “teatro da vor branca™: “O texto de Seghers (Remagen), ele préprio material inean- descente, condensade, essencial... atravessa 0 corpo dos comedian- tes-narradores © proveca uma espécie de choque devide unicamente 8 forga do seu pronuneiamento’ M 5 — Salvo, evidentemente, 0 caso de textos cléssicos muito 5 em que o espectador esteja vendo a enésima versio. Nao & impossivel, de todo modo, que um encenador muito treinade pos sa tentar reconstituir 0 texto de origem. No seu prefiicio ao livro de David Ball, Backwards and Forwards, Michael Langham relata que © encenador britinico Sir Barry Jackson, “quando ele assistia a uma pega, © que procurava era imagina-la de volta ao livro”™'. Ble acres centa, no entanto, que Jackson era um homem muito excéntrico... MARGEM 6— Num artigo. recente, “Theatrical Performance: Ulustration, Translation, Fulfilment, Supplément™*, Marvin Carlson, 24. Un thétitre de I'écoute, Thédere/Publie, 46-47, p. 20, 28. Mhedire Public, n. 67. p.37 26, Citado por M. C. Parduier, Claude Régy: garder le secret du livee, Mart chi théaure, 1.6, P62. 37. Prutiques, 0. 244, 1979, p, 68, Citudo por Jean-Michel Déprats, Glissement progressife du discours, L'ar? dhe thédrre. m.6, p- 27. 38, M. Langham, Foreword, em David Bull, Backwards and Forwands p. vn (Pr Bleio, em Para Tris e Para Frome. p19), 20 Theatical Performance: Mustration, Trmstation, Kultilment, Suppkément Theatrical dover, sa. ORT utiliza, para também criticd-las, algumas das nossas préprias cate- gorias, que chama de i/ustracdo, traducao, realizacao (fulfilment) A teoria da ilustracdo engana-se ao encarar a encenagao como ilus~ tragao visual para aqueles que no sabem ler (ou que 1éem mal desejam ilustragoes) (cf. nosso § 2.2). A teoria da fracucdo supde erradamente que 0 texto esti traduzido por signos verbais (cf. nosso § 2.6). A teoria da realizado, apresentada como o inverso daquela da ilustragao, vé na representagio a realizagiio do texto (ef. nosso § 2.7 © nossa margem 2), um pouco na linha de Anne Ubersfeld, que fala do texto esburacado que seré preenchido pela eneenagao", Carlson prop0c descrever a relacio entre texto € representagao ma neira de Derrida no Gramarologia, isto 6, como © acréscimo de um com relacao ao outro, ¢ inversamente: ‘Uma pega inevitavelmente revelara no paleo elementos que faltam no texto eseri- to, que provavelmiente também ago pareceiAo ausentes antes que se da representasse, tas que em seguida se revelam como significantes e importantes. Ao revelar estas a séncias, a representagao ao mesmo tempo revel tambem tima serie infinita de funaras Fepresentagdes que condusirao a outro acréscime" Carlson acha esta teoria adequada para explicar a riqueza po- ial infinita do texto dramatic ¢ a incompletude de qualquer en- eenagdo desse texto. Esta visto derridiana nao nos parece longe da eonceituagao de Vitez, para quem a encenagio 6 uma arte da varia~ ho. Ela se arrisca, a nosso ver, a desembocar num relativismo de Ieituras © num jogo de espelhos infinito, 0 que pode desviar o leitor de uma pesquisa mais ancorada na histéria e, em resuma, explicavel por meio do conjunto complexe dos parametros de uma recepeio € de uma dada concretizagao. E verdade que Vitez, recentemente, reviu a sua teoria da variagao: ste da variagie embriaga-me tanto mais porque descobri, rocentemente, qe fun realidade, no teatro nilo deve haver mais do que tee ou quatro familias de interpre~ joo do personagem Celimene. Existe, € verdade, uma inlinidace de interpretagdes org podem-se teagrupsl-las em #08 Tanniliag, to maximo, Dat mesma FOr” uumas mnaneiras fundameniais de se represontar 0 teatro de Tehékhow e no, sviamente aquilo que teria podido, eu proprio, ever outrors, wana infinidsde de wpresentagoes. [...] O prazer da encenagao do teatro, » praver do teatro em si mest, into, essa variagio: 6 aquilo que ae inscreve na meméria das gentes. Vé-se wma re reventacao do Afisantopo e pode-se comparsc-la, de meméria, a outra representacde, ¢ Ahoso hit prazer. Fis ai 9 prazer do teatro. F parecewne que, com a tradueo, acontece & four corsa, 0 trade jo esté sempre necessariamente para ser refeita” 30, Line le theatre, p. 24 Pana Ler 0 Teatro, p. 12). 31, Theattieal Pertonmance: Ikeiealion, Translation, Pultiment, Supplément, op. it, po Intervengae de Aniwine Viter ao fone dit discussto: La triduetion: déstr Bitoric, peathie, tcten chen premieres avsines ie ha traduction titéruite, p. MIS 1NG 40 (0 TEATRO NO CRUZAMENTO DE CULTURAS A mesma visio “derridiana” — parece — corre com Mesguich: ‘A apropriagao — se apropriagao ocorre — é sempre momentanea; nela jd se opera a restituigao: no ato mesmo da apropriagao jazia o ato da cessdio; © no se pode dizer, ao invés de “Planchon apodera-se de ‘Tartufo”, de forma categérica, que é assim que cle mostrow?”™. Parece dificil julgar o trabalho do encenador em termos neutros, ou seja, nao como “o desvio, a manipulacdo, a utilizacao para outros fins, a apropriagdo, a subversio, a redugao... decorrentes da atitude do encenador?”™", Estarfamos tentados a ver esta apropriagde como inevitével na medida em que € a apropriagao de uma situagio de enunciagaio que da ao texto © seu sentido (o faz funcionar), MARGEM 7 — Bernard Dort®* nao esté longe de partilhar esta visio de confrento do texto com a cena, com um quase detathe’ Ba representagdo teatral: como representagdio dentre as priticas irredutiveis wim 8 ovtra, © muito menos conjugadas; camo momenzo em que ambas se affontam © se interrogam; como combare mito em que o espectador &, ne final das eontas, © juiz tea aposta, sendo que € preciso, a partir disso, tentar pensar, O texto, todos 08 textos, fem 0 seu lugar. Nem 0 primeiro, nem o ultimo: o lugar do exerito € do permane num evento concreia ¢ cfémers, Esse confronto mencionado esti, pelo menos, lone de acaba" 0 texto nao tem nada, a nosso ver, de permanente: por certo est materializado e fixado na eserita € no livro, porém fica para ser lido incessantemente, ¢ em conseqliéncia para se reconeretizar c, assim sendo, é eminenicmente instivel; nao saberfamos dar-nos conta dele como alguma coisa invariante duravel MARGEM 8 — Metafora da pocira devida a Vitez, e que atualmente faz fortuna no discurso eritico, no caso de Mesguich, por exemplo texto é muito maior no sentido de ser trabalhado, destocado, contami- nado, reavaliado por um encenador; 6 muito mais “gravido" de afluen- .. de suas encenagées. Elas so a sua poeira, 0 seu sangue, a sua historia, o seu valor, a sua carreira"™ tes de seus leitore: MARGEM 9— Decorre dai, desta vez, a nossa concordancia com Daniéle Sallenave quando insiste, a justo titulo, na atividade do 33._La mise em setne ou Ie double jew, Eneyelopedier Universalis, Le Sympo- sium, p. 245, 34, Michel Vinaver, Sur le probléme de fa relation suceur/metteurem scene, fan Imacl a spectacte, p.A32. ‘35, Le texte ot la scene: pour une nouvelle alliance, Hacyefopedia Universalis, Le ‘Symposium, p. 234-242, 36. Idem. p. 241 7, Lat mine em sone DO'TEXTO PARA O FALCO: UM PARTO DIFICH. 4 espectador, que representa a representa ao reconhecer o trabalho do encenador: Podomos acrescentar a este propdsito, outra referéneia & obra de Gadamer [Verite ‘et méthode (Nerdade e Méiode)]: no instante em que coloca gue, no teatro, © ator ver- uuiciro € 0 espectadar. © ator representa us pose, porém o especador represents @ Pe presemacdo. Para que espectador possa representar a representagao, € necessario Ge Slguiém efotue a representacso; esse alguéin & o encenador. Porém quiande, & sez, © ‘espectador representa o jogo, ndo representa com o encenador, em mesmo com © ator, tis com 0 texto, com 6 pensamento do texto, O apagamento do encensdor e ainda, de Alguma mancira, 0 “esquecimente”” do stor, sto necersarios para que se estabelega © peensamento do texto™ Esta “representagao com o texto” é aquilo que chamamos de per- cepyo da encenagio como sistema estrutural, totalmente indepen- dente da pessoa do encenador A nogdo de autor (da encenagiio) desaparece, da mesma forma como desapareceu a do autor do texto; ela é “substituida” pela da estrutura ou diseurso da encenagao, € a do autor, segundo Flaubert invisivel e presente por todo Indo”, que Sallenave vai citar um pouco adiante™, A mesma metifora do autor ausente ocorre em Mesguich. A primeira qualidade deste rebento, para 0 qual doravante toxla ingenuidade & proibida, desta evianga nascida adulta, é 2 de nay enconirar nunca 0 sew nome, de i Isis apoiar-se numa s6 palavra. A estratdgia desse trabalhador clandestine, sem papers, esse forastsiro ilegal no reino do teatro, 6 a de retiran-se precipitadamente apenas Jroferidas as palavras, a de jamais ter estado ld onde ve supae «us esti, a de passar © Fepassar as frontciras carregando-ns eonsigo, © seu comportamenta & a asticia™, MARGEM 10 —G, Banu" pergunta-se se o encenador pode ainda, hoje em dia, pretender-se um artista, o autor de uma obra: “O desejo de ‘bra do encenador tem razao dé ser? Sim, porem ele muda de tona- lidade, pois menos agressivo, menos evidente. [...] A presenga do encenador somente interessa se mediatizada, percebida através dos outros”, Na atualidade, 0 encenador no almeja mais impor a sua lei- tura: “O encenador quer dar a entender 0 texto em toda a sua ambi- gilidade, isso é 0 que tem valor. Ele no quer mais fazer-lhe violencia 0 propor leituras fortes, mas passa por cima dele a fim de prender-se 4 sua organizagao secreta”. ‘© que se pode, no minimo, é estar de acordo com essa constata~ pho de descompromisso do encenador: com efeito, ele procura manter fy ambigdidades do texto, 9 que se coloca como © contrério de uma 3K, turn crthédire, Ne 6, 96 1B, a1 O-TRATRO NO CRUZAMENTO DE CULTURAS neutralidade ou tética que teriam em mente deixar o texto falar. Nao 0 caso, no entanto, do texto na sua literalidade, como pensa J. M. Piemme. Piemme vé a encenagao oscilar “constantemente entre dois pélos, todos os dois dramaturgicamente justificados: 0 pélo da deci- fragao ¢ o da legibilidade™?. Sugere que a encenagao possa “produzir, para 0 espectador, um espago de mediagao no qual se dé a ver, nto mais uma interpretagao especifica, mas o texto na sua literalidade™’. Contestaremos este ponto de vista da literalidade do texto. Nao se pode evitar o interpretar, o vir do exterior com uma interpretagio, Sempre se pespega ao texto uma interpretagiio vinda do exterior. A li- teralidade do texto nao existe, ou entiio existiriam tantas literalidades quanto Ieitores, Um texto nao fala de si mesmo, € preciso fazé-lo fa- lar. Entretanto, acalmemo-nos: 0 encenador, assim como 0 torturador, tem os seus meios para fazer falar. A palavra de ordem freqlientemente ouvida no momento ~ é pre- ciso fazer entender — se 0 texto ndo interferir ete. ~ parece-D0s, por tanto, ou de uma grande ingenuidade ou de uma ma fé extrema. Nao se saberia como neutralizar a cena para que o texto pudesse falar por ji mesmo, ou para que pudesse ser entendido sem mediagao ¢ sem de- formagiio, Nio € porque ela se nega, que a encenagao ir subitamente desaparecer como que por encanto a fim de fazer entender 0 texto. MARGEM 11 ~ Aquilo que chamamos de “o charme disereto da boa di regao” é um equilibrio delicado entre a visibilidade e a invisibilidade da encenagao como sistema de sentido. Fendmeno que Régis Durand descreve de modo enfitico jus amente nestes termos: Para que uma encenagia soja perceptivel & preciso que o espectadar apreenda © conceita que a anima, mesma que no entenda nada. Bste conceito deve ser tornado vi= sivel de uma maneira ou de outta; caso 0 expectador nie o perceba, ele teria impress {de que nd viu uma encensga, que viu coisas neontocerem, porsm a partir dela nak pervebera a cocrénein, a unidade. Inversamente, se 0 coneeito € tornado muito visivel pelo Tato de ser simplista, rudimentar ou porque se exibe muito, nesse exato momento Toremos pela frente tina obra cam um sistema que nos daa impressdo de que, uma vez ‘sistema estar compreendido, 0 resto se segue” 42, Le sens du jou, fart dee shddire, 0.6, p76. 43, Kemp. 76-77 4b [arte tec 3. Algumas Razées Sociolégicas do Sucesso dos Classicos no Teatro na Franga depois de 1945" Na produgao cénica francesa contempordinea, as pegas clissicas oeu- pam grande parte do repertério: parece que 0s encenadores niio se- lo reconhecidos se nao tiverem feito as suas experiéncias com esses textos, na maioria das vezes dificilmente compreens{veis, para um piblico que carece de referéncias mitolégicas ou culturais. Por que esse recurso a um material anacrOnico absolutamente ultrapassado? Arriscar-nos-emos a langar algumas hipéteses sobre tal sucesso, espe- cial quantitativo, das representagdes clissicas apés 1945, na Franca, bem come sobre as causas desse culto dos antepassados classicos. Antes vamos frisar, sem ver nisto qualquer lei ciclica ou uma Wworia das crises de fim de século, que os anos de 1780-1830 © 1880- 1920 marcam duas etapas capitais na formagao da nogao de clissico. A passagem dos séculos XVII e XIX assiste ao grande debate europeu sobre as literaturas classica © romantica’. A transigao para © século XxX se produz depois da apropriago burguesa dos bens culturais das épocas anteriores, em nome daquilo que Hans Meyer chamou de a * Este estude foi escrito A margem de meu livre Marivants d Péprenve de la que examina as encenagbes contemporineas de Marivaus na Franga. Astige edi laude ons Zexte, Komexte, Strukturen: 1 Notadamente em Racine ef Shakespeare (182: de Stendhal, no qual o roman sobre « elassictsna: “O ramantisnia & a arie de apresencar aos poves. « Iterdriag que no estado atual de seus habits © de sums crengas sto suscetiveis de Thor dao maior prazer possivel,/O-elnsicismo, ne contriria, apresentatiies 4 Hterae a (0 TEATRO NO CRUZAMENTO DE CULTURAS. trilogia da veneragao clissica: educagdo, propriedade ¢ teatro*, ¢ isto ‘num momento em que a nogao de encenagao se impde", relativizando com um 86 golpe (sem, alids, aperceber-se disso) 0 texto no qual os sentidos (¢ nao mais a esséncia) formam, doravante, 0 nd de todas as interrogagdes, Se o século XIX tomou posse da heranga, exigindo uma reconstituigio arqueolégica © uma fidelidade verista, interpretando Moliére e Racine de acordo com uma tradi¢o que era, de fato, como, bem o mostra Bernard Dort, “a do teatro psicalégico burgués do sé- culo XIxX™, a eneenagao comega a subverter esta tomada de posse, ao multiplicar os significados da obra de acordo com os piiblicos, os diversos gostos e a subjetividade dos encenadores. Entretanto, é também o momento (por volta da metade do século XIX) em que a nogdo de fidelidade 4 obra aparece: exige-se das pes soas de teatro que representem o texto sem nenhum corte, sem censt~ rae sem romper com a tradig&o. A liberdade que alguns teatros, como, a Foire des Italiens, tinham conhecido ou com que alguns “adaptado- res-encenadores”, como Goethe e Schiller, manifestaram vis~ “classicos™, conheceu uma eclipse que duraré até a metade de século XX; no seu lugar, entra em jogo a reivindicagao de uma fidelidade a toda prova para a letra do texto ¢ a poeira da tradigao. OS CLASSICOS HOJE No século Xx, ¢ especialmente na Franga depois de 1945, é sobretudo 0 Estado que impde cada vez mais uma politica cultural © procura um pu- blico expandido, Procura-se um nove pablico ¢ um repertério oriundo da heranga cultural do qual ele foi privade por muito tempo". © retorno aos clissicos esti sempre associado, pelo menos no discurso oficial, & 2. CF. 0 estudo de 1. Mayer, Bildung, Besitz und Theater, Das Geschehen wid das Schweigen, p, 69.99. 3. CFP, Pavis, Le jeu de Pavan sémiotogie, Voix et images de la sedne 4. Dore. Les elussiques au thestre 0M la metamorphose sans fin, Histoire tae naire de ta France (1660-1713), p- 60. ‘5. Na sua comunicagio Was ist cine werkyetreue Inszenierung?, Das Drama und seine fiszenierung, . Fixcher-Lichte estudn a evolugdo da nogao de fidelidale ao texto (A propésito da representagin de Prince Constant, de Calderon, Goethe pide escrever oeatn ver, nda demos recentemente uma pega escrita hi duzentos anos debaixe de um outro eeu por um pove de nma cultura diferente, como se ela tivesse sido da estuta” Lettre a Sartorius di fev, 1811, ettado por Fiseher-Lichte, p. 37 “Vilar €-0 encenador em que a influéneia fica mais evidente com relagso a ests promogto dos clissices do pablico popular: “Este estilo de teatro popular no po: Gls naseer a nto ser da apresentagio privilegiada dos eldssicos, destas obras-mes dis quais tudo pode e deve sain, e que pertencem a todos (& por isso que elas dexafiam 0 tempo), E que jamais tiveramn come abjetivo provocar a reflexdo do espectattor. Flas se Girizem diretamente ao povo, © canstiuiem, no dominio da cultura, o ponto de rouniz po nivel o mais elevada, da grande 1 Jenn Vilurs ix ans le Theatre Natio ALGUMAS RAZOES SOCIOLOGICAS DO SUCESSO DOS CLASSICOS. as Vontade de restituir um maior néimero de textos que se estimam tenham sido indevidamente confiscades pelos privilegiados que os estudaram (ou que se Ihes submeteram) nas grandes classes. Uma ideologia a0 mesmo tempo humanista e populista, proveniente da Front populaire (Frente Popular) e ressurgida nos anos do pés-guerra, proclama o di- reito a cultura, A igualdade diante dos grandes textos, a restituigdo dos lassicos do povo"”. Ela se baseia na crenga em uma virtude rezenera- dora da obra clissica, gragas as suas origens miticamente provenientes do povo ¢ de pretensSes universais. A heranga cultural propiciaria, a quem soubesse assimilar esta pogio mégica, © poder de contemplar o passado ¢ de preparar o futuro, porém, por vezes, a consciéncia de que ®heranga diz respeito somente a alguns criadores isolados, que se nu- iririamn do trabalho andnimo de seus contemporaneos: [A heranea] cultural encontna no materialismo histérico um observador bastante isianciado, Para tais riquezas culturais, na medida em que as avalfa, tudo revela uma Dorigem que ele no pode contemplar # no ser com horror, Elas devem sua existéncia filo somente ao trabalho dos grandes crindares qqic as prodiziram, mas igualmente a9 Iunbatho forgado anonimo de seus contempordieos. Jamats existiv um documento de ultra que mio tenha sido, so mesmo tempo, sim documenta de barbarict A partir de ent&o, o retorno a terra clissica assumiu ares de uma peregrinagem, cfetuada por uma multidao ardente nos lugares de um suntudrio coletive: retorno as origens presumidas da expressiio artis: ica, a infncia da arte; respeito A lei ¢ A letra do texto, a weragdes passadas no seu cuidado de conserva grados, simples ¢ undnimes na sua complexidade; desejo de aceder ao senso comunitario sem perturbar a tradi¢ao; submis: Jo intelectual e do artista a fatalidade do “sentido almejado pela Este fendmeno de colocar em conserver cultural (para retomar 0 ahtimila da parddia de Cid por R Planchon'), respande ae fervor da fossa época pelo muscu € pela cultura-muscu. Sao tantas as riquezas, pensa ela, acumuladas no decorrer dos tempos, que devemos nos sen- ir depositarios ¢ responsiveis pelo repertorio nacional ¢ considerar os slissicos como um bem inaliensvel e um aliado de toda a arte acadé- > trabalho das 10; FE nos textos sa ao neces stor 7. Tal € omome de wma colegio de grandes textos clissicos publicados pelas Edi ‘ions Sociales. As colegdes publiendas par ours editoras levatn os nomes sintomstieos Alp “petits classiqiues™ (pequenos clissieos), “noavenun classiques” (novos classicos), Pelassiques France” (elassicos da Franga), “elnssiques illistrés” (elissicos ilustrades) Walter Benjamin, Theses sur [a philosophic de histoire, These Vil, eltade por cso, The Political Unconsctons, p. 182. D. Sabre # imayem do autor no vecabulério dos erfticos dramaticos, ver nosso tiger Le discours de la eritique dramatiqne, Hors et tmages ce la scene, p. 135 10“A conlestagao e montagem da mas lustre das tragédias francesas Le Pierre Comet, soya de urn cruel assassinate do autor dramético © de uma distr igo jratuita de diversas conscrvas culturais” (1968), Vd 46 (© TEATRO NO CRUZAMENTO DE CULTURAS mica't, Para a pintura ou os objetos de arte, é su receptaiculo ou um esiajo que os conserve ou os valorize. Para a litera~ tura, ¢ ainda mais para o teatro, © contetido ¢ imaterial, mas no entanto inteiramente necessario © presente. Representar Racine ou Moliére € contribuir para manter a sua marca na consciéneia e no imaginario do puiblico; porém nao saberiamos conserva: que a matéria linguajar de que sao feitos, o contexte que representam € 0 piblico que reclamam para ser recchidos © compreendidos esto submetidos a variagdes imperceptiveis, as quais a encenagao, sc quiscr simplesmente manté-las vivas, deve absolutamente levar em conta, A importincia desta cultura museogrifica é de tal ordem, atual~ mente, que a gente se coloca no direito de se perguntar se a obra clis~ sica s@ manteve pelo Tato de possuir um valor intrinseco, ou se ex (ainda) tem valor pelo fato de a mantermos artificialmente viva a cust de encenagdes, de estudos universitirios ¢ de homenagens retrospe: tivas. Que os classics continuem a agradar a um piiblico pequeno- burgués, cle proprio “educado nos classicos”, niio seria de admirar. Isolados, os modos © os azares das programagdes (tanto de (eatros quanto de escolas) decidem favorecer muito particularmente um au- tor; as grandes tendéncias “estruturais” dependem de fatores de longo, prazo, tais como o poder da classe encarregada de administrar os bens: industviais e culturais. Nao deve Moliére a sua fortuna atual a consol: dagaio burguesa do século XIX, que quis ver nele o triunfo da razao, da norma, do bom senso e do meio termo? Para Marivaux, a travessia do deserto, na mesma época, celebra a superficialidade aristocratica que Ihe foi emprestada; se foi entao tolerado © se foi redescoberto no en- tre-guerras, € devido unicamente ao fato de que Ihe clegdincia, um artistocratismo e qualidades de coragiio e de fineza que se atribuem, com toda a modéstia, a “Franca eterna’. ‘A historia do impacto de um autor € as circunstincias socivld= gicas que contribuem para a sua notoriedade ou a sua ocultagao, res~ surgiram, te, na critica na teoria literaria; constitui, nao obstante, um dominio auténomo que ultrapassa a recepeio individual da obra, enquanto rebrota toda no estabelecimento de suas diferentes concretizagSes, Esta Wirkungseeschichte— a hist6ria dos efeitos e das influéncias — pesquisa os fatores que preparam a recepgao dos (extos ¢ tecem uma parte importante do metatexto por meio do qual o leitor ‘ou o espectador abordam a obra. ciente construir um. jos como um quadro, visto conferida uma 11, Realmente, uma cseala de estilo © um exereicio preparatério para 0 elencs quc‘os representa: “O teperterio classice 6, antes de mais nada, uma qutrigao [...J. Est portanto, em primeire lugar no objetivo de aperfeigoar [o elenco] que nos represent nos determinadgs clissicos, O clasice &, antes de mais mada, uma escola de estilo IL, Barraull. Une troupe ef Se ainreurs «P. 9. ALGUMAS RAZOES SOCIOLOGICAS DO SUCESSO BOS CLASSICOS, a ©“EFEITO-CLASSICO” © pablico potencial encontra-se, logo na entrada, informado a favor da obra devido a um “efeito clissico”. Valor seguro da heranga, n&io convém questiond-lo: ela & necessariamente util para quem a conso- me. No methor dos casos, o encenador tira partido da institucionali- gayao ou da fossilizagao do sentido para determinar, ¢ até contradizer © metatexto assim recebido. Isso evita-Ihe ter que estabelecer, a pro- pdsito, uma norma ao invés de modificé-Ia, Em conseqiiéncia, resulta, assim um suplemento de prazer: fazer uma coisa nova com o velho, O clissico cauciona © nosso apego aos valores do passado, na medida fem que sugere que tal riqueza convida-nes inclusive a pilhagem € 40 potlateh®. Alguns encenadores atribuiram-se a especialidade de maltratar os textos classicos, representando-os com os sentimentos sadomasoquistas de um pdblico por sua vez indignado e secretamen- te radiante de que se ouse (por fim) atribuir atengao ao patriménio cultural e escolar. Eles sabem que a influencia da instituigao (escola, “pequenos chissicos ilustrados”, manuais com comentérios definit Vos, com “temas de deveres e relatérios” ete.) € de tal ordem, que 0 Cspectadores (€m necessariamente enfrentado uma normalizacao {para nao dizer uma repressio) que nao podem sinsplesmente desear- Jor e cuja leitura classica continua a associar sofrimento e prazer, odio © amor, Foram vitimas daquilo que Brecht chamava: “a intimidagao pelos clissicos™ A chance desses classicos, depois de 1880 © sobretudo 1945, foi 4 de enderegar-se a um piiblico que fez uma leitura escolar bastante hhomogénea, leitura banalizada, asseptizada, que hoje em dia encoraja toda sorte de contraproposicoes © de releituras. Esta referéncia co- mum permite, com ef ito, contra-interpretar a tradiga, buscando-se apoio nela. Tem-se fregtientemente destavado a caréneia do repert6rio gontemporaneo ¢ 0 frenesi da releitura dos classicos, um explicando 0 ‘outro. Tal explicagdo, por mais rapida que parega, nao esta destituida dle fundamento. Isso se da devido ao fato de 6 encenador ser encora- judo pela instituigao teatral a re-/er os clissicos (isto se daria com 0 intuito de lotar os teatros © satisfazer © servigo publico encarregado dia Sobrevivencia do repertorio), de ser constrangido a contradizer © 4 “contra-interpretar® uma tradigao de interpretagao, de nao apenas espanar 0 texto, porém de dedicar-se aos milhares de recénditos tor- Juidos obscuras. Ele deve entrar em conflito com os outros Ieitores Wo texto, fazer-se notar por um olhar original sobre um texto classico que se acredi jitivamente arquivado. Lugar privilegiado pela obscrvagaio semiolégica, visto que sdo 0 deslocamento, a diferenga & + Pont dom. na linguayem iva em que um chee ofercee farias rajuezae no rival pare humni= nook Thiet 46 O TEATRO NO CRUZAMENTO DE CULTURAS. a deferéncia ao prazer que se configuram como os melhores observ veis, escreve Jean-Marie Piemme: s eléssicos foram € so ainda um suporte privilegiade para a produedo de wma Jiferenga somiologicamente extraordindria: eles oferecem boas garantias para © Te ‘conhocimento da nova letra, Para ver abrit-se diate deles 0 caminho do reconhe- ccimento © da legitimidade para ser aquilo que silo, ox encenidores, asim como os ‘outorandes, dever aportar'a sti peda para 6 edificia, devem nerescentar un aivel & ‘massa folbada cultural, A releitura de Marivaux, que foi obra dos encenadores antes de 0 ser da critica, nos di um exemplo brilhante: é por conta da diferenca, e flo mais pela deferéneia, que encenadores como Planchon e, atual- mente, Chéroau © Lassalle, mostraram Marivaux. Eneenagdes como as da Seconde surprise de l'amour (A Segunda Surpresa do Amor), por Planchon, em 1959, ou do Jew de amour et du hasard (Joo do Amor ¢ da Sorte) por Bluwal, em 1967, introduzem cenas com uma representagao voluntariamente parddica calcada sobre o estilo do francés, O bloqueio da interpretagio pela Comédie-Frangaise tera, pelo menos, dado a oportunidade, para muitos criadores, de “cas- sar” © discurso pretensamente elegante © emperucado de Marivaux. Podemos nos perguntar, atualmente, se 0 abandono da politica cultu- ral do Théatre Frangais (conservar 0 repertério no mesmo estilo) nae se arrisca, no presente, pelo contragolpe, a esterilizar a encenacao de vanguard, Da mesma maneira, as mudangas nos programas, © aban- dono dos textos eliissicos pelos textos contemporaneos, ou dos textos nao-literirios, no acontece sem que se modifique © terreno no qual se faz a recepeaio do teatro clissico. Evidentemente nao exis priori contra 0s classicos junto ao publico jovem, porém ja ndo se encontra mais interpretagao toda pronta ¢ esclerosada desses textos. interprotagdio que o motatexto da encenagae viria, de todo modo, di namitar. Nao possuindo mais qualquer referéncia desta problematica clissica, como € que 0 piiblico jovem haveria de pereeber © trabalho: iconoclasta da encenagio? Se no existe nada mais a destruir, a ence- nagde acha-se privada de sua eficacia (© “efeito eldssico” nutre-se de um sentimento de distingao mes- clado aquilo que K. Valentin" chamou de OGPTe (Obrigagto Geral da Platéia no Teatro como Espectador)", que faz com que a pessoa per- coba a fonte do prazer ligada ao scu reconhecimento cultural © & s resisténcia, A versio intelectual, ainda mais distinta, deste “efcito clis- co”, conduz & impressao de se participar de um empreendimento de 13. J.-M, Piemme, Savoir et pouvoir: la mise en sebne, Theva! dhédinal. a. 319.51 14, CER. Demarey, Bloments une soeiologie dir spectacle, p. 300. Para ais tired, Vor P, Bowrdien, La distinetion Bm frances: OGars (Obligation Géndrate d?Assistanes aus Theatre comme ALGUMAS RAZOES SOCIOLOGICAS DO SUCESSO DOS CLASSICS, 9 reabilitagao de textos presumidamente velhos e simples, de se entregar dis “complicagdes do texto”, de concluir as anslises dramatirgicas por um: “Como € que, até hoje, ntio nos demos conta de que . Mais ainda do que o texto contemporaneo, a obra eldssiea depen- de, para sua recepgiio, do horizonte de expectativa do puiblico: qual a finalidade? Admirar, reproduzir, eritiear, liquidar? Qual é a titica? Reduzir ou ampliar? Simplificar ou complicar? Assim encurralados por todas estas titicas de interpretagdo, o texto classico torna-se como que esvaziado do seu sentido, fendmeno que Dort descreve nestes lermos: “Ao se empurrar as coisas para o absurdo, poder-se-ia sus- tentar que as obras clissicas no possuem muis, atualmente, qualquer sentido. E que é exatamente por isso que sao clissicas. Este sentido hos € dade na medida em que Ihe dermos um". E © descarte historico, a dificuldade de se apropriar o texto na sua referéncia de outrora que faz da obra classica um rexro moderno: ambiguo, contraditério, paradoxal, “escrevivel”, quer dizer, exigin- do, para ser lido, ser reeserito'”. Ou seja, a unanimidade dos criticos reprovam que os encenadores se sobreponham em proveito do autor ou do ator". © CLASSICO, “OBRA DO PASSADO” Bsta polivaléncia da obra clissica nfio é unieamente uma conseqitén- via de sua estrutura textual especifica: cla conduz a fatores sociologi- £05 ais como a configuragao do publico e do repertério, Para além da escolha de teatros e encenadores, foi o pablico quem, por conta da lei da oferta e da procura, em termos culturais fez, no- ludamente depois de 1945, na Franga, o sucesso das representagdes ehissicas. Os grandes textos surgiram para um publico de classe mé- dia como o meio mais seguro para se apossarem de um pai iménio de valores j4 reconhecidos, bastante limitados porém para uma intelli- _gentsia ou para uma camada da burguesia definida, desde a segunda jnetade do século XIX, pela alianga de “educagio, da propriedade e do featro™. Data dessa época a reivindicagae de uma encenagio fief a palavra do autor: nenhum corte, mas sobretudo uma significacao que gorresponda aquela da tradigzo e da doxa. ‘Aquilo que Dort chama de “idade de ouro dos classicos na Franga’ (entre 1945 © 1960), viu, gragas especialmente ao TNP de Vilar, no 15, De acordo com as palavras de‘ Todorov, Une complication de texte: “tes Mluminations™, Porigic, 0-34, abe 1978, 16, Les classiqnes iw théitre ou la métainerphose san fin, op. cit. p. 159. 18, Encontraremon urna impressionante Hist tals ingenuidades 0 nrtigo de P Revit, Meticurs on acéne et mamacroura, Spectacle di mre Festival de Avignon, encenadores como Barrault ou Planchon, “o de- sejo de tocar um novo pilblico e de abrir um ditilogo com cle™". Ora, esta abertura para um anditério renovado ¢ justamente uma condigAo sine qua non de um retorno aos classicos, caso deva ser outra coisa que nao uma nova ilustrag’io ou uma procura de efeitos espetaculares ficeis que deixam intactas as velhas certezas dramatargicas © os sen- tidos dos textos conhecidos por antecipagao. J4 o havia claramente reconhecido Herbert Shering a propésito da renovagao dos classicos, nos anos de 1920, por Brecht, Engel © Piscator: sua forga cstava em, que “dirigiam-se para outro piiblico e trabalharam pensando em ou- tras massas de espectadores”! Para pablico novo, novo repertério: tal é a segunda condigao para © Impulse dos elssicus. De acorde com Cesare Molinari”, as noytes de chissico e repertério esto intimamente ligadas desde a sua apari- ‘gho, visto que as leis gregas (de 386 a 330 antes de nossa era) instituem, a tradigao de representar uma tragédia de um dos trés mestres do sé: culo V como prelidio 4 competigao dramatica das Grandes Dionisias, bem como exigindo uma espécie de “depésito legal” dos textos tri- gicos, o que di nascimento ao primero repertério, Nao & sendo no decorrer da segunda metade do século XIX que © repertério passa a nao mais designar obras do passado, mas aquilo que 4 época moderna criou, ela mesma, ¢ aquilo que se trata de conservar. Fo esfacelamento da modernidade na procura de seu proprio repertério que estimula nu- merosos encenadores, os inovadores da cena dos anos de 1920-1930, na Europa, a $e voltarem para os classicos. Essa ¢, pelo menos, a expli cagao que um encenador come Copeau dia esse fendmeno: Carecendo de emprego mais argente, as suas faculdades voltaram-se para as obras do passindo, ainda que eles woubeswom bern que, com todas as outras energy Uo hhomem, as da arte viva, pars fecundar o fulura, devem provocar o presente Porem eles encontraram na tragedia gregh e na do século XVI, no drama de Shakespeare, na comédia de Moligre, « solider de estrutura © a riguoza material, @ amplitude de destino ea seyurangit de execugao, enfim, 0 fmpeto posticn gue permitl- fim ao seu proprio génio eontraporem-se 4 forga e a grandee, e que inspiraraen sts tnculdaclos de intérprotes com a emulagao, © ate com # embriages Se o presente recorre ao passado, isto se daria porque, de acordo com Copeau, carente de saber abordar a nossa época, os classicos se 20. B, Dort, Un Sige d’or ou: sur In mise en scéne des classiquies en France entre 1945 et 1960, Revue if histolre thréraire de tr France, 77e, nade, n. 8. 1003, 21. H. Jhering, Reinharch, Jessner, Piscator oder Klassikertod?, Der Kampf wns Theater. p. 319. 22.,C, Molinari, Appunti per una storia del repertorio, Quadderné dé Teatro, WU 1978. Gitado por M. De Marinis, I classici nel teatro contemporaneo: ta rifiuto © pre dilezione, Rivista tallana di drammatungia, n. 14, p. 100-101 23.3. Copean, Linterprétation des ouvrages dramatiques du passé, Resists Appels, ps 198 ALGUMAS RAZOES SOCIOLOGICAS DO SUCESSO DOS CLASSICS. st tomam inimitiveis. © mesmo argumento em “En finir avec les chefs- oeuvre” (E Preciso Acabar com as Obras-Primas), no qual Artaud estigmatiza: “Fsta nova forma de idolatria, esta idolatria das obras- primas fixas, que ¢ um dos aspectos do conformismo burgués”™. Desta vez, portanto, a conclusao é mais radical na rejeigfo As obras do passado: “As obras-primas do passado so boas para o pasado: elas nao sao boas mais para nds. Temos o dircito de dizer aquilo que foi dito € mesmo aquilo que nao foi dito de um jeito nosso, que seja imediato, direto, que responda aos modos de sentir atuais e que todo mundo compreenda™**. Estes dois testemunhos de Copeau e Artaud, que aliés datam ambos de 1938, reflotem uma tendéncia bastante generalizada a este desprezo pelo passado, a partir do momento em que se substitos a um presente deficiente: o clissico seria em vo uma obra sélida, rica e formalmente inigualivel, caso perea a sua eficdcia no contexte con {emporaneo, inclusive porque bloqueia — de acordo com Copeau — as pesquisas de vanguarda que se deixam desviar, entdo, pelas “expe- timentagdes sem fim, pelos refinamentos exteriores, pelas pesquisas nagao”**; uma vanguarda que — para Artaud — nao multidao # nao ser por meio “das roupas e de uma, palayra falsificada que pertence a épecas mortas ¢ que jamais recupe- faremos"””, Isto se deve a que muitas vezes, nos anos de 1920-1930. ha Europa, em todo caso antes da chegada de homens de teatro como, Piseator, Brecht, Artaud ou Copeau, 0 recurso aos classics perma: “neceu como uma pesquisa puramenie formal, sem nova anélise dra~ matirgica, uma invengdio de efeitos cenicos Liceis que dao ao antizo um ar nove, sem the modificar a perspectiva. E aquilo que, num dos lextos os mais percucientes sobre “a morte dos classicos”, o criti £0 Herbert Jhoring diagnosticou em 1929: “A modificagao das obras Clissicas, a adaptagdo de pecas antigas torna-se contestivel desde que jenha como objeto razdes exteriores © (enicas, estilisticas e, portan- 10, puramente acrobaticas”™ 24, A, Artaud, En finir avec les chefi-d"oeuvees, Le tidine et som double, p. 195. 25. Wem, p. 113-114, J. Capeau, Linterprétation des ouvrages dramatiques di pass, op. elt, p. 198; ‘A. Artaud En finir avec les chefs-doeuvres, op. cits P. 115. 28. H. thering, Reinhardt, Jessner, Piseator oder Klassikertod?, op. cl. p. 321. As "as “olnosieas” da encenasdo estdo unanimemente de acoro em eolocar em david Injresse numa reconstituigae fiel na apresentagao de estréia, Elas preferem um taba: Tho ue love em conta uma abordagem estética (© nto simplesmente histories) da obra fetabelosar wins passarcla em diteydo ao pablica de huje. Dessa forma, Copeau chaina a "lois obsticulos, sem als propor qualquer forma ideal: "No que se refere a cago vealizada de umn espirto atal Com a criasao de um posta, cult obra data tos séculos, @-eneenador terd dois obsticilos para vericer: 0 da fia reconstituigso Pol exces de reapcito code urna mexlemizacao exizcrada, ob pretext de dar conta da ndo pas pelt p20 HISTORICIZAGAO OU ATUALIZAGAO? Por tras desta desconfianga frente ao uso puramente decorative dos clissicos surge a dificuldade absoluta de situar tais obras em relagaio ‘a0 passado e ao presente. Com efeito, existem duas maneiras de con siderar a obra classica: como uma obra que, situada num passado lon- ginquo, permanece ¢ sobrevive frente a todas as mudangas histéricas: ou, pelo contririo, como uma obra que, embora tenha chegado até o presente, nao mais pertence a um tempo passado, 0 qual € impossivel reconstituir a nfo ser por um processo de historicizagao, Cada um destes pontos de vista esti representado nas inémeras declaragdes, ¢ qualquer encenag3o escolhe mais ou menos conscien- temente a solucdo que the convém. F curiose encontrar 0 primeira: ponto de vista sob a pena de Marx que, quando fala de literatura, enfrenta grandes dificuldades para obter um discurso marxista, © ob- serva— com muita honestidade ¢ humor ~a dificuldade de conceituar a sobrevivéncia do prazer estético ao longo do tempo: ‘Tomemos como exemple i ligago da arte grega ¢ de Shakespeare com a nossst epoca. f sabe que a mitologia groga ndo 6 apenas © arsenal da arte grega, mas que reprotenta 0 seu sol. A conlemplagao da naturers © das relapdes socials que estio na Dave di imaginago greg c, portanto, da mitologia greg, seria possivel com as m- ‘quinas de tevidos, as estradas de ferro, as locomotivas ¢ 0: telEurafos elétticos? O que Yom a ser Vuleso contra Robert ¢ Cis, Jopiter contra © pira-raios © Hermes contra. 0 ceredito imabiliario? [..] Paréin, # dificldade esti em compreender que a ane ¢ a poesia areas esto lis lendas a determinadas formas sociais de desenvolvimento, A dificuldade € que clas nos proporeionam ainda uin prazer estético © que, de certa forma, passam por uma norins {© par mexdelos inimitveis” Marx nfo nos propoe receit los clissicos considerados como a uma teoria para determinar quais elementos da obra sobrevivem a to das as concretizagdes; ele limita a comparagao com nossa época a ume relacao de qualidade inimitdvel, ao invés de procurar de que maneira a coneretizacdio da obra se modifica em fangiio da recepgdo, como se estabelecem as passagens entre os dois horizontes da recepgao. (© segundo ponto de vista, do qual Brecht constitui um exemplo comodo ¢ jé eandnico, formula, ao contrario, que o “pano de fundo de nossa época” é indispensdvel para a compreensdo do texto clissico. mesmo no caso de os sentimentos reproduzidos estarem ainda vivos para que se rejeite a identificagao do personagem: s para explicar 0 valor dos mode- infancia da arte, Ele nao estabelece Trambém nés, somos 05 pais de tempos novos € filhos dos tempos antigos. nos compreendemos muitas coisas de uin passado longinguo ¢ ainda somos eapazes te 20. K. Marx, Intratuction & i critique de Pécononie polit Ronee st ALGUMAS RAZOES SOCIOLOGICAS DO SUCESSO DOS CLASSICS 2 pertithar 0s sentimentos outrora todo poderosos e cujo despertar fai um grande neg’ bio. Pois, enfim, a sociedade no interior da qual vivemos € muito eomplexs, ‘O essencial & 0 fato de se representar essas obmis antigas de perfil histarico, quer dizer: coloci-las em vigorosa eposigao frente & nossa époct, Poryiie € somiente sobre 0 ppano de fundo da nossa época que a sia form se revela estar velha, e Guvido que, sem fise pane de findo, esta Forma poss, soja de que mane for, eveine-te ‘Com Brecht, a relagao dialética das épocas e dos modos de per- cepeao da arte esti claramente estubelecida. Este modelo deu lugar, depois, a indmeras encenagoes ou adaptagdes historicizadas. Os acon tecimentos da fabula sao restituidos ao seu aspecto ef€mero € relativo, levando-se em conta os desvios entre os dois sistemas sociais. Nao apenas 0 conhecimento dos mecanismos sociais da época é desejado: ele € também indispensavel para quem qucita devifial a ubia cléssies. A favor dessa tese est outro contemporiineo de Brecht, Ernst Bloch: Sem a compreensio viva, dialeticamente atenta, © passado cultural ele proprio 4e imobiliza: se torna um entreposto de mereadorias da cultura do qual extraimos ima Neinas abstratas de fizer. O resultado & que a relagt0 reciproca ¢ decisiva aprociaeao, ftien do presente © com a possibilidade de tomar posse, de mancire prodtivay da Inoranga do passado™ Areviravolta & completa quando, com Walter Benjamin, 0 leitor convidado a decifrar sua época por meio daquela pertencente obra studada, visto que se trata, para ele, de “representar, na época duran- 4 qual apareceram as obras da literatura, a époea que as reeonhega, seja, a nossa”, A historicizagao obriga distinguir-se as perspectivas presentes wssadas, bem como considerar pelo menos trés historicidades: 1. O impo de enunciagie cénica (aquele do momento historico em que obra é encenada); 2. O tempo da fibula e de sua légica actancial po dramatico); 3. O tempo da criagio da pega ¢ das praticas ar ticas que na época estavam em vigor. O conhecimento dessas tres jariaveis temporais evolui sem cessar: isto fica evidente pela prime’ historicidade, porém é também o caso para 0 reconhecimento re- Ispective que temos da época na qual a obra apareceu™. Quanto & 50, Brecht, L'achart dv endvre,p. ULL 51. E, Bloch, Liart d'heriter: hésitage sehématique et heritage product, Trail Wiral,w. 28-39, p. 35 2, W. Renjamin, Schriften, p. 456. 33, Esta distingfo nfo € adequada a uma concepese brechtiana © historicizante de ynagae. Um enecnador como Vitez retomaa a0 falar das Tous no tent: Para a es possibilidades. Em primeiro lugar, o tempo da fabula: exemplo: Britarricus pas do império romano. Em segundo higar, o tempo da escrita (que pode ser, no Aisuntpo, por exemple, 0 mesind que o da fabula); exernplo: Beianiens ot XVI Ein ferceito lugar, 0 tempo atual: exemple: 0 Misan- frevenle: ess Wreeira possibllidade signifies stunlizagto, bine Vier, There Public. nA, p, 22-23, s © TEATRO NO CRUZAMENTO DE CULTURAS Idgica temporal da fabula, ela nao esté fixada indefinidamente: ela se constitui em funcao da perspectiva escolhida, a fim de reconstituir a fibula ¢ avaliar os acontecimentos relatados. Para quem deseja inter- pretar, no presente, a pega classica impde-se, portanto, em primeiro lugar a colocacao em relagdo das trés historicidades. Estas nao 120 jamais situadas no mesmo plano e eqdipolentes: qualquer passe gem de uma época para outra parece resultar de um empilhamento: a Epoca mais recente (a da enuneiagio cénica) devolve-Ihe aquela da qual fala. Tomemos @ exemplo de Triomphe de Vamour (Triunfo do Amor): a temporalidade do século xviii devolve-Ihe a Antiguidade grega ficcional em que se situa a fabula; a temporalidade do século Xx devolve-the a do séeulo XViN, que produziu o texto ea sua relagao com a Antiguidade, © que conta para os niveis temporais ¢ 0 processo da chegada (portanto, da nossa época), 0 modo como a tiltima tem~ poralidade (a que pertence ao espectador atual) funcionaliza e coloce em signo (semiotiza) as precedentes. B impossivel tratar no mesmo, plang, ¢ como universes distintos de referéncia, as trés historicidade: nada acessamos além do sistema de suas funcionalizagdes sucessivas, no empilhamento de cada conjunto naquele que © sucede no tempo. Esta imbricagiio de signos das historicidades explica a grande difi culdade para se levar em conta a dialética entre © passado ¢ 0 presente. a heranga e sua valoragao, Cada encenagilo efetua a sua propria regula. odo destes pardmetros, em fungio de sua leitura das és historicidades Tudo se situa entre os dois easos-limites (igualmente irrealizdveis) do historicismo e da atwalizagao. O historicismo seria o funtasma que pre- tenderia reconstituir tudo de acordo com a temporalidade ¢ o horizonte de observagao, portanto, da criagao; a atualizagdo seria a transposi¢o completa da fibula dentro de um universo de referéncia que corres: ponderia exatamente aquele do receptor contemporaneo. A realidad: da produgao/recepeao situa-se sempre entre estes dois casos-limites, OS CLASSICOS TEM SEU FUTURO ATRAS DE SI? Neo deeuier dos anos de 1980 continuamos a ropresentii Los, porém « atitude face a historicidade do texto mudou, @ partir do momento en) que nao mais se considerou a encenagiio como a colocagio da obr em fungito do sentido do texto, e em que se criticou implicitamente o conceito das opgdes dramatiirgicas ou de discurso global da encenagio As declaragdes de numerosos encenadores vio no sentido deste despo jamento do texto tanto na sua historicidade quanto na sua atualidade Este movimento de retrocesso teérico toma a distingao entre fexto me derno ¢ obra classica antes caduco, como bem o demonstrou Roland Barthes", Na pritica eénica continuou-se, portanto, a funcionar dc ALGUMAS RAZOES SOCIOLOGICAS DO SUCESSO DOS CLASSICOS. ss geordo com a altemativa historicizaco/atualizagao, todo mundo dan- do a tais termos acepgdes que se diferenciam consideravelmente da leoria “classica” de Brecht sobre o assunto. Tudo acontece como se a ‘encenagao procurasse negar a histéria em proveito de um pretendido Imediatismo do acontecimento cénico, como se ela tomasse 0 texto, a ena, 0s comediantes como os materiais imediatos que nfo terinm sido sinda viciados pela historia; fantasma pés-moderno da pés-histéria, na qual foda a produgao artistica ocorreria para além de uma tradigaio, sob © pretexto de que nossa epoca nao conheceria nem tradigéio, nem me- Moria, nem significagao estavel. Esta visto p6s-moderna das coisas tebaixou completamente a perspectiva sobre os classices ao pretender feduzi-los a textos iguais aos outros, sem se preocupar com as condi- (es histéricas especificas de sua enunciaga, Desde entio, as pesas Chissicas nada mais sio do que dlibis fceis, pretendendo ocupar-se do. passado e do patriménio, todo mundo representando com um material gue, 20 mesmo tempo, recusa ou aceita muito qualquer coneretizagao. "ou qualquer sentido, que representa a polissemia como uma indecidibi- “Jidade do sentido. O sentido do texto, pelo menos o sentido elevado a Jum sentido tinico, a uma intengao do autor, a uma Besserwisserei™ — sa~ her melhor do que os outros ~ dos encenadores, tal sentido é negado por los. E possivel que seja 0 meio de “se acabar com as obras-primas” jcomo © sublinha Artaud), as custas do abandono e da negagio, alias Wito artificiais, da nogao de clissico, no sentido de heranga cultural & historicidade de qualquer texto. Restaria por avaliar quais fatores eo ye preside ao seu /nsucesso, isto é, a sua ineficdcia, 4 sua abertura © a0 flagrante anacronismo nestes tempos p6s-modemos. Porém, isto jé ‘outra historia, ‘oF Movdern Dram: the case of postmedeen . A Heranga Classica do Teatro Pos-Moderno” 108 brincar com as palavras: quem diz pés-moderno diz moderno, quem diz moderno diz. clissieo, de tal modo que © teatro pés-mo- mo remete necessariamente a um passado ¢ ¢ tributario de toda tradigfo teatral que n&o pode ultrapassar a no ser assimilando-a, jaracteriza-se por uma recusa em romper objetivamente com um Wimento ou uma vanguarda para melhor integrar os materiais que cupera onde bem entender. Também ¢ ‘itil examinar a heranga ea nma clissica desse teatro em evolugao, fato que, da mesma ma- ‘ra, nos aguea a visio a respeito das mudangas a que todas essas \igdes teatrais tém que se submeter. BRA CLASSICA OU TEXTO MODERNO? Obra e 0 Texto smo antes de esbogar uma definigao do teatro pés-moderno — ter 10 hoje em dia freqientemente utilizado nos Fstades Unidos sem * ste texto completa e desenvolve algunas passagens de nosso artigo'The Cl cal Heritaze of Modern Dransa, Modern Drama, ©. XXtX, m. Iymat. 1986, p, 1-22. Ele | pronunciado soba forma de eonferdecia no coldguio The Question of tne Post Mo~ (A Questo do Bos Modema), organizade por Michael Hays a Universidade de prnell (804), de 12 a 1 de abril de JNA, Cima verde francesa mis eur 0 Journal of Drannatte Cruicisn, Wall 1ONE, Lste texts & dedeue a) Miche se O TEATRO NO CRUZAMENTO DE CULTURAS grande precaugio metodolégica! —, € © caso de se testar a nogiio de texto classico, retomando-se as definigdes barthesianas de obra cldis~ sica & de texto de vanguarda, Habitualmente, a definigdo histérica de texto ou autor cldssico esta ligada 4 nogae muito imprecisa de tempo antigo, afastado do presente. As dificuldades comecam a partir do ponto em que se buscam as propriedades estruturais inerentes ac texto clissico: seria necessdrio, com efeito, avaliarse o papel da his- toricidade no processo de significagaio do texto, na sia concretizagao” nos diversos momentos da historia em contextos distintos, especial- mente em fungao de sua recepeao e significagao (estabelecimento de sentido) para 0 leitor ou 0 espectador. A concretizagao do texto, 0 es- tabclecimento do seu sentido depende de fatores de recep¢ao, a qual nao pode de maneira alguma ignorar a produgao © # estrutura fox! intrinseca do texto. Ao término do circuito da coneretizagao, estar=se-i em condigdes de atribuir um sentido tanto ao texto mais “antigo” (o mais chissico), quanto ao texto mais recente (mais moderno), ume significacio especifica, o que levaria a relativizar consideravelmente a distingao entre cldssico © moderno. Existe, com efeito, a tentagao de fazer do texto classico seja uma obra como as outras, simplesmente mais recuada no tempo, seja ~ e ¢ isto que a encenagao contempori- nea faz. freqlientemente — um texto mais aberto © produtive que o textos escritos no presente e cujo contexto de enunciagao determina e limita mais precisamente o sentido. Roland Barthes coloca-se de sobreaviso contra essa tentagdo de separar a obra chissiea do texto moderno eim virtude de sua situagao cronolégica: © texto nto deve fer entendido como objeto computivel. Seria initil procurss separar materisimente as obras dos textos, Em particular, nao se deve eeder & tentagio de dizer: a obra éclissica, @ texto € de vanguarda: nfo se trata de estabelecer, em nom ‘dn mademicicle, uma selego grosscirm © das methores © declarar que determinads Produgoes iterarits sho rire que outras sto our devido 4 sua situaeao eronoloyticw © possivel que exista “o texto numa obra muito antiga © que muitos produtos da litera Tura cantempordnea nfo scjam absolutamente textos. A diferenga é a seguinte: a obra umn fragmento da substaneia (ocupa una porgao do expaco dos livros, por exemp! numa biblioteca). O texto &, ele prdprio, um campo metodolSgico” A oposigdio que Barthes se recusa novamente a levar em cont: estabelecer-se-ia como segue: 1. Cf. especialmente M, enhamont; Chatles Caramello (eds.), Performance: Postmodern Culture. J. Feral; J, Lalo Savona E. Walker (eds), Thdiraling, deritn 2. Sobre essa nogo, ver nossos artigos: Produetion et réception au thestne: | conerdtisation du texte dramatique et spectaculaire, Revue des setences Iiumaines 189, e La reception du texte dramatiqne et spectaculaire: les processus de fietionmalts tion et d'idéologisation, Hersus. n. 4 3. R. Barthes, De Poeiere au texte, Re “ 1971. Texto retonns A HERANGA CLASSICA DO TEATRO POS-MODERNO %” Obra Texto cléssica moderna legivel cescrevivel linear espacial simples aieit Esta oposigio entre obra e texto é, nao obstante, muito frigil. Ela ameaga a todo momento inverter-se tendo em vista que a obra pode Ser moderna, eo fexio classico. Qualquer pesquisa sobre a especifi- cidade da obra clissica em termos textuais esté, portanto, compro- metida. A obra ou 0 fexfo nao sio: nem antigo versus modern, nem: ultrapassado versus vanguardista; sao antes de mais nada sextuais, ou Aja, estao em relagao com outros textos, € isso em fungéo das varia- es de suas instancias produtivas e sobretudo receptivas'. ‘Vamos nos limitar a alguns exemplos que definem a obra el a ¢ 0 texto moderno. A legibilidade do texto classico funda-se no minimo de esforgos que o leitor teria de efetuar para determinar as agdes, os personagens, fs légica da narrativa. Isto, sem contar com a opacidade que a lingua elissiea impde a sua decodificagtio e as variantes, que a determinagao ia fibula é capaz de fazer a pega experimentar, Se o texto classico pa- fece simples A primeira leitura, torna-se muito complexo caso se co- yece a relé-lo, no se ficando mais salisfeito com a sua si jimeira e literal. Inversamente, caso sé admita a idéia de que o texto joderno no tem sentido, a no ser quando inteiramente reconstitut- através das hipéteses ¢ pistas abertas pela leitura, o fato é que ele Jegivel de acordo com um esquema construido inteiramente pelo eptor, € uma dificuldade como a da polissemia eseapa por com- cto: a “espacialidade” do texto, isto 6, as pistas abertas, tais como lintisculas veiazinhas de sentido no seu corpo textual, nada mais é que uma legibilidade univoea ¢ simplificadora, ‘A dificuldade é um critério tanto relative quanto reversivel: todo Alo € dificil, visto que exige do leitor um reconhecimento das Zonas indeterminagao, ambiguidades ¢ contradigdes. O paradoxo de tal iiculdade é que ela deixa de existir assim que estiver decifrada e incionalizada e que se trate de determinar © que causa dificuldade lexto: seria a compreensio da lingua clissica? © deslocamento horizontes de expectativa dos leitores de ontem © de hoje? As 4 wwicas possiveis da narrativa? © tapamento de buracos de indetermi- No? A nogae de dificuldade — sua fun io © Sua avaliagaio— varia do texto comm 4 autor, inter © ideo-ten idace, ver nosso artigo iMijue ct spectaculaite: les processus de iceionalisation et ni am desc nian ~o (© TEATRO NO CRUZAMENTO DE CULTURAS historicamente, ela propria, visto que depende do Contexto Social® de recepeaio e de um fator muito esquecido ou condenado devide ao seu psicologismo: 0 desejo ou a vontade de ler neste ou naquele nivel do texto a regulagao textual que se segue fazendo com que © mesmo texto dé lugar a leituras divergentes; por fim, a decisdo de ler © texto com este ou aquele objetive: acompanhar a histéria e distrair-se a0 traduzir imediatamente os enunciados do texto num universo fieticio, negligenciando com isso a fatura (auto)textual da obra; multiplicar as aberturas da fibula e do texto; ler para escrever uma tese univer sitaria, uma resenha jomalistica ou uma contribuigao a uma revis Jacaniana ou marxista, por exemple. Nao obstante a relatividade € mesmo 0 intereambio de critérios especificos do texto cldssico, malgrado a instabilidade que faz de ‘obra um texto © que nBo garante que um texto moderno ja nao seja uma obra clissica na medida em que se reduz logo de inicio ao caso clissico de um sentido evidente, nao nos parece muito arriscado enu- merar alguns critérios do texto classico — critérios que nao possuem nada de eterno ¢ de logicamente estavel. mas que teriam como obje- mplesmente testemunhar a maneira pela qual 0 texto classico & hoje recebido € pereebido. 1. O texto eldssico &, sem qualquer objegto, ideolégico: por tris fachada homogénea de uma fibula clara © apaixonante, de ums jtura que evita qualquer queda de tensao nos diversos discursos dos locutores, ele esconde os cédigos mecanismos que © mant vivo. A periei¢o © o acabamento de sua escritura fazem esau eddigos de sua produgao, a tal ponto que se tornaram os critérios pu ramente avaliadores do classicismo: um texto cuja perfeigao formal & tal que nos esquecemos que 6 texto — e texto situado na historia. Para este género de texto, a verossimithanga ¢ sua técnica de persuasio fazem com que se acredite depress numa hist6ria real, com persone- gens de came € asso; esquecemo-nos que & 0 texto © Seus processes que fabricam todos esses efeitos de realidade. A reagao a uma leitura. aliés, no caso do teatro de uma encenagao critica, serd no sentido de “descobrir os cédigos””, de acentua-los até, pelo grotesco ou pela iro, nia barroca e pelo cardter fabricado e artificial. tivo 6. Por Comexto Social entendemos, com J. MukarSvski, 8 “relagao com a cos significada, relacao que visa nto uma existencia distinta~ visto que se ata de un Signo autonome porém a contexte total dos fendmenos socisis (ciéncia, ilosofia, re Tigido, politica, economia ete.) de determinado meta”, L'art comme fait sémlolosiauic Postigiie. 0. 3, 1970, 7. De avordo com 2 frmula de Alain Gicaule (Pourqus n classi La nouvette eritigue, p. 79). 0 reméd ‘consiste om apoie a formas a fextuais para liberar a ideologia do seu efeito de transparcneia. "Quando os cod permanccem visiv Felacho & “realidade AHERANCA CLASSICA DO TEATRO P6S-MODERNO o 2. A relagao do texto clissico com a intertextualidade é igualmen- te sublinhada de forma particular; no somente porque a poética exige dos autores que se refiram fielmente a Antiguidade e que nao inven- tem a no ser o estritamente minimo, mas também devide a série de textos falhos cujo conhecimento se pressupée ser muito longa. Essa teferéncia intertextual é, neste ponto, importante porque impede o lei tor contemporaneo, ignorante dessas referéncias, de aprender o fun- cionamento do (exto classico. Chega-se a0 caso €m que Certos textos, filoséficos mas igualmente literarios, estejam, cles préprios, na origem de transformagdes ¢ releituras de outros textos no campo do saber. Este texto-Fénix que ¢ a obra classica, nem sempre tem a sorte de fenascer de modo a renovar 0 entendimento que possuimes. De fato, muito mais prosaicamente, 0 seu ouvinte contemporanco nao esta nun ca completamente seguro de © compreender com texto de ontem, nao mais do que como texto de hoje. Esse texto, proeminente durante int- meros séculos, é cronicamente mal entendido: seu ouvinte (mais ainda que o seu Ieitor) experimenta um sentimento de estranha familiarida- dle em face da lingua de Moliére ou de Marivaux (embora as tradu- es sucessivas de Shakespeare ou Goethe tenham a arte paradoxal de Adaptar-se & evolugao € ao imagindrio da lingua francesa). O franc lissico € como uma placa opaca entre nés ¢ 6 mundo ficcional ins {urado pelo texto. Entre o discurso e 0 mundo nfo hi mais relagao direta € transitiva. © ouvinte 6 obrigado a emprestar uma orelha mais lenta © a colocar em xeque, incessantemente, a relagdo desse texto no “inundo, ou seja, a sua dimensio ideolégica. Ora, isso no advém a nae ser por meio da percepgao do artefato formal do texto. Assim, acha-se estabelecida uma conexiio (sobre a qual vimos que & constitutiva do funcionamento textual) entre texto ¢ ideologia. Nao é raro que, tendo assim ficado atento a uma forma que rejeita qualquer transparéncia, 0 Jetor/espectador atribui ao texto significagoes profundas © ocultas tas que uma Ieitura historicizante jamais suspeitaria. Todo 0 trabalho sobre siforma de enunciagao cénica — cédigos da ironia barroca, diego exa- geradamente retérica ou cantada, teatralizagso do personagem — tem gomo resultado opacificar o franeés classico € convida-nos a sondar-Ihe 0s abismos vertiginosos. Disso resulta que © discurso classico, contra- Hamente a uma idéia recebida, nfo britha por uma clareza que faria da Jingua um espelho fiel do mundo. Por muito tempo, a critica dos classi- 60s © a interpretagaio das encenagdes acreditaram que o tempo nfo fez mais do que acumular camadas de pocira sobre o texto ¢ que bastava, ‘dual a iectogin da “te sabre a elarera em Roland Barthe Cho debate Beritien © Verdude, ein Crittea ¢ Verda, o (0 TEATRO NO CRUZAMENTO DE CULTURAS. para torné-lo respeitavel, limpar a casa, desembaragando-o dos depési- tos que a historia, de camada interpretativa a sedimento hermenéutico, t€-los-ia deixado num texto intacto. Essa visio fantasmatica da obra classica tanto poderia desembocar numa tentativa de reconstituigao arqueolégica das condicSes histéricas da representacao, quanto sobre uma modernizagio do estilo de representardo (cléssicos em roupas modemas, inyencionices fazendo anacronicamente alusao & vida con- temporinea). Nos dois casos, o desempoeiramento do texto repousa na assungio idealista segundo a qual basta corrigir a lingua clissica para acessar, no mesmo nivel, o mundo ficcional e os ideologemas redu dos a um objeto fixo, mistura de tempo antigo ¢ modemidade. A reagiio dos dramaturgos e dos encenadores a esta vistio estitica da critica/en- cenagiio como mistura, felizmente nao se fez esperar. Alain Girault ob- servou que “a operagaio de “desempoeiramento’ implica uma filosofia idealista da permanéncia do homem. ‘Desempoeirar’ ¢, finalmente, ‘desistorieizar’, é negar a histGria (reduzi-la as *cintilagdes da super ficie”, A ‘pocira’)"”. Recusar-se a desempocirar os textos & assumir & defasagem histérica, constranger © publico pela consciéneia de um des: vio nas formas que remete a um desvio nas visdes do mundo. Brecht relata que, depois da encenagie dos Bandoleiros, de Schiller, Piscator disse-Ihe “que ele tinha procurado fazer com que as pessoas, ao deixar © teatro, estivessem cientes de que 150 anos nao eram uma coisa sem importdncia’", Hoje, a reflexao dramatiirgiea recusa-se a ceder a ver- tigem do desempociramento através da “solugao miraculosa”. Antoine Vitez baniu essa expressao © sua prittica no seu proprio trabalho; Se falamos de “desemposiramento” & poraue supomos gue hé empoeiramento uum objeto intacto do qual perdemos o sentido, © @ qual redeseabrimos tal como ers LUcpois de limpera.¢ polimento. 6 que acontece exntamente com os objetos de arte, Ov hhom se deixa'a pasira e se continua como antes — este fo par multo tempo o traball dds Comedic Frangaize: acumular eamadas de pocita sucessivas, © exconder definitive mniente a pocira pasando neva earmada de cera ~, ou enifo se fenta outa coisa. Porgu ‘nde existe apents uma pocira que ¢ possivel remover; existem jpualmentealteragdes ‘objeto em st mesma, Um vase que tenha sido milagrosamente conservado pode semp1s fer util. Uma pera de teatro & de natureza totalmente distinta. © objeto em si mesm sé profundamente transformuada, mesmo que o texto tena permaneeido perfsitamen fe intacto, Pademos chegar # 16-10 como o poderiam [sie!] fzé-To squeles para quer foi escrito. O que lemos est no dmbito da memeéria, da lembranga, «isso consiste © fazer reaparecer, no presente da vida, elementos deformados; de fate, a corresponde ccs entre'o individao 0 corpo social" Desse modo, importante para o texto clissico parece ser o pode de historicizar a poeira, ao invés de nega-la ou recobri-la. Pratica qu: 9. A. Girault, Pourquoi monter un classique, op. eit. p. 79, 10. B. Brecht, Wie soll man heute Klassiker splcke?; Gesammctte Werke, v. 1 p. 112, 11, Lecture den vlassiqwes: enteetion avec Antoine Viter, Prutiquen, i. 1S: A HERANGA CLASSICA DO TEATRO POS-MODERNO 6 hilo esta muito distante daquela da tradugao, que da ao texto de ori gem uma versio adaptada a lingua do novo leitor e que tem a escolha entre uma traducao-adapiagao que, para evitar calear-se no texto a ser traduzido © “fazer tradugao”, transpoe o texto para 0 seu nove contex- lo cultural, procedendo a uma tradug80 mais literal as custas de um sentimento de estranhamento ¢ uma falta de idiomatismo, que preser= Ya um pouco a retorica ¢ a visto de mundo da lingua de origem. 3. Assim, como para a tradugio, a leitura do classico € acompa- hada sempre de um fendmeno de desperdicio de sentido, na verdade le destruigao das faces inteiras da significagao. Preferivelmente a fa- Jur dos elementos que, no texto, a cada nova leitura, permanecem ou " desaparecem, que esto sempre ausentes ou presentes, seria mais jus~ {o falar das zonas de indeterminagtio ou de ambigitidade que sa, por um lado, perceptiveis, © por outro lado climinaveis. Assim como para 6 texto literdrio em geral, 0 texto classico possui ambigiidades estru- lurais, programadas ¢ necessirias para o desenvolvimento da fic¢ao, hem como ambigilidades devidas a alteragio das coneretizagdes do proprio texto, As ambigitidades do primeiro tipo nao devem ser su imidas; pelo contrario, a sua solugao nao faria mais do que destruir mecanismos de suspense, de procura; sobretudo, simplificaria e to- uiria partido pelos ideologemas implicitos que 0 texto, na sua histo- idade, articula sem o saber: trabalho certamente itil (oh, quanto!), Mis quase apenas para o tedrico da literatura ¢ da ideologia. As ambigilidades clo segundo tip provém de modificagdes im- visiveis das circunstincias de recepso, portanto, da defasagem mporal ou cultural entre a emissio e a recepeao, particularmente r causa do aumento da defasazem entre os Contextos Sociais da spo e da duragao do intervalo temporal entre a produgao © a re~ elo do texto. Por exemplo, € perturbador fazer uma estimativa, partir do discurso e do comportamento de um personagem, sobre al meio ou grupo ele deve pertencer, se 0 seu discurso esta de acor~ ‘ou € estranho ao seu meio de origem. Nao se trata, no caso, de \ ambigttidade estrutural, porém da produgso de uma nova zona indeterminago que modifica a leitura da fibula. E freqliente que o Xto cissico, do qual muitos sinais de guiamento da recepgio desa- Feceram, parega, no presente, um texto construido sobre uma tética ambigitidade ou mistério e que, por isso, adquira uma valorizacio ais das vezes indevida. Bis ai uma raz3o adicional para 0 suces- que uma obra, Se ‘outrora monossémica, se torne hoje a cneenagaio possiii, além disso, a arte >, de 1s zonas de indeter veis percursos de sentide, 6 (© TEATRO NO CRUZAMENTO DE CULTURAS ¢ pelas interpretagdes banalizadas. Esse fendmeno de reciclagem as- segura a perenidade do texto classico, ao fundamenté-lo desta vez na mudanga e na adaptagao, € no mais na permanéncia da significagao. © IMPOSSIVEL ESPAGO UNITARIO © texto dramitico cldssico parece nao poder mais ser utilizado tal como se apresenta pelos autores contemporineos. Tornou-se impen- sdvel para 0s autores de hoje proper pecas com didlogos trocados en- tre os personagens como numa conversagao cotidiana. O fendmeno niio é nove e marca, como 0 mostrou admiravelmente Peter Szondi'*. 08 inicios do “drama moderno”, por volta de 1880 ¢ até por volta de 1950. Esse momento caracteriza-se por uma ruptura da comunicagao da troca dialégica, pela aparigao de uma crise do drama ¢ tentativas de resgate (naturalismo, pecas de conversag%io ou em um ato, exis- tencialismo), ou tentativas de solugao (expressionismo, teatro épico, montagem, pirandelismo etc.). Mesmo 0 Teatro do Absurdo pertence 120 modernismo (e n&io ao pés-modernismo), visto que o ndo-sentido ainda faz. sentido € reclama uma interpretaco e uma concep¢ao do mundo, Como esereve Adorno: Mesos pretendida literatura absuda tem a ver, nas suas Tepresentagdes mais clevadas, com a diaética, pelo fato de que exprime, em termos de coeréncia de sentido. ideoloricamente organizada em si, que nao existe sentido algum. Ela conserva, ainde sass, na nepagao determinad ido; isso que toma possivel © exigs fa sua interpretagao”. sseategoria de sen Depois da literatura do absurdo, prossegue Adorno — especial- mente, poderiamos acrescentar, com © pés-modernismo —, nao mais 0 sentido que se nega como principio organizador, ou 0 ndo-sentide como hilosotia: Mesmo na arte que obedece sem restrigsio mental idéia descosida, encontramos no jogo, mesmo que se tenia transformade de mancira a ser irreconhectvel, 0 princlpic fia harmonia, visio que at idias descosidas, para terem valieade, devem manter-se ce taeordo com 0 modo de falar dos artistas Na arte pés-moderna, por outro lado — ¢ diferentemente da arte absurda —, ¢ preciso levar em conta uma nova totalidade, nfo a dos enuneiados, mas a de sua enunciagHo, de sua organizagao no discur so dos artistas, Fenémeno de retotalizagAo do fragmento que Adorno: atribui as obras que praticam uma negago conseqtente de sentido, “A obra que nega rigorosamente o sentide é mantida por essa légics 12. P. Szondi, Theavie des maclernen Dramas 13.7, W. Adorno, Asthetische Theorie, p. 235; taduhe Tranvesa Theorie ext A IERANGA CLASSICA DO TEATRO POS-MODERNO 6s com a mesma coeréncia e a mesma unidade que deviam outrora evo- ‘ear o sentido””s ‘A partir dos anos de 1960, ap6s © periodo dito “absurd”, 0 problema nao & mais o do debate entre dialogismo ¢ monologis- mo, comunicagao ou cacofonia, sentido ou ndo-sentido. Os autores (por exemplo e entre outros: Peter Handke, Michel Vinaver, Samuel Beckett, Heiner Maller, Bernard-Marie Koligs) nflo procuram mais fazer nos scus textos 0 mimo de locutores pretendendo comunicar © enredar-se numa palayra indecifrivel. Eles apresentam um texto que — mesmo que assuma, ainda, a forma de palavras alternadas emi. tidas pelos diversos locutores ~ no é mais realmente permutivel, re- sumivel, resolvivel, prestes a desembocar na aco. A propria palavra (reytorna como ago. Ele se dirige ao piblico em bloco, como um. poema “jogado na cara” dos ouvintes, para pegar ou largar, como que ‘em busca de um impossivel espaco unitirio. O teatro teria como pre fensiio retornar a época anterior ao dialogo, como nas “mais antigas formas cénicas”: © teatra & a arte de representar cam a divisio, ap introduzi-lo no espago através Mio didiogo. A nogae de didloge & tardia. Nas formas eéniess mais andigas, exda pslaves Tila solitariamente, drigica somente em diregao 0s homens que se tenham reunida Jeligiosamente para entendé-Ia: ndo ha comunicagae lateral; é #0 publico que se dirige vem fala, numa plenitude que exclu qualquer resposta, palavra vinda do alto, de urna Jelagao sem reeiprovidade™ Porém, esse puiblico religiosamente reunido num lugar protegido, fesse enderecamento global a uma assisténcia unitatia, essa esfinge ca- par de religar os ffagmentos esparsos que nao existem mais, mesmo ho caso de autores que, como Handke, Duras ou Kolt2s, procuram Tentar o contato com um grupo unido pelo desejo de reviver em blo Inum espago que niio mais seja visto por meio de cortes cénico, fami- liar, social ou individual, Essa procura de um espago estético e social fomum, longe das grandes contradigdes ou dos confivos da histéria, Implica justamente, como se vers, uma ligagho estreita com a tradi- flo ea heranga, nao apenas a heranca cuftural (os grandes autores, tbs urandes textos elassicos, os mitas fundadores da vida simbsliea © al), como também heranga das praficas gestuats, vocals, ento- Mativas que sdo, elas mesmas, da algada do teatro, ou seja: do autor, n cenogtrafia, do encenador, Trata-se de encontrar a relago com o jorpo e com 6 gesto de toda uma tradiglio teatral e social ‘A con, sssinal Antaine Vitex, & Inboratério da Lingua € dos gestos da nagao. A poled naive, ais om metios claramente, que nesses edifices chamados teats, a 66 (© TEATRO NO CRUZAMENTO DE CULTURAS ‘pessoas trabalham muitas horas para ampliar, depurar, wansformar os gestos € as ento~ hhapdes da vida corrente. Para question-Is, cities [_.] Se 0 teatro é em arande parte 6 laboratirio des gestos e palavras da nociedade, € a0 mesmo tempo o conservador das hhormas antigas de expresso © 0 adversiio das tadigoes"” © espago unitério ¢ unificador esconde a origem da palavra ou Ihe relativiza 0 alcance. Em L ‘ordinaire (O Ordinario), “pega em sete quadros” de Michel Vinaver, cada um dos personagens da multinacio- nal Housies dialoga com seus companheiros de infortinio: ele traz, sem o saber, a sua pedra para 0 ediffcio e o mito da multinacional que se consome ao sonhar com a sobrevivéncia e a reconstrugao. Em Quartest (Quarteto), de Heiner Miller, tanto o homem quanto a mu- Thor deselahram-se em um homem e uma mulher, de sorte que se torna, dificil, realmente impossivel, determinar quem & a vor que toma a palavra e a quem ela se dirige”*. Em Dans fa solitude des champs de coton (Na Solidio dos Campos de Algodio), 0 comprador e 0 nego. ciante nao visam mais do que trocar as suas posigdes discursivas. NOVA RELACAO COM A OBRA CLASSICA, © que muda nao tanto a concepgae do homem ¢ do seu lugar ne so, quanto a concepgao que os encenadores se fazem das Obras Ninguém (afora os teéricos do drama) acredita mais na especifi cidade do texto dramdtico, na existéneia de regras e leis de didlogo. de personagem, de estrutura dramitica ete. Prova-o essa procura por textos niio eseritos inicialmente para a cena © que permitiram as es periencias do teatro de narragdo (Cathérine a partir de Les Cloches de Balle (Os Sinos de Bali), de Aragon, na “encenago” de Vitez; Louve hasse (va Paixa), a partir de Denis Roche. montado por Georges Lavaudant: Z ‘arrivante (A Chegante), a partir de La, de Héléne Cixous, montado por Viviane Théophilidés). Trata-se de tomar o texto roma- hesco no como substrato para uma fibula e para personagens, porém de se fazer uma leitura cGnica mais ou menos dramatizada através das improvisagoes de seus varios leitores. O texto nao & nem um conjunto privilegiado de didlogos que “operam como teatro”, nem um mate- rial de construgao do qual os brechtianos se serviram sem esertipulos. hem, seguramente, um texto romanesco lide por um leitor que ima- gina os eventos narrades. JJ4 nao se encena mais em fungtio de uma analise psicologica ou sociolégica de ages e personagens, de espago, ce tempo. 17. A. Vitex, Le devoir de trade, Thédire/Pattie. 6 AB, 9 18 C16, Schule, Abschied won Mongent veaen Frinengestalten im Werk Heiner A HERANGA CLASSICA DO TEATRO POS-MODERNO o Na nova escritura dramética, 0 diflogo de conversagio & banido das cenas como saido de uma dramaturgia de conflito e troca; a hist6- ria, a intriga ou @ fabula amarradas demais doravante sao suspeitas. Os autores ou encenadores procuram desnarrativizar sitas produgdes, eli- minar qualquer mares narrativa que permita reconstiteir uma fibula impossivel nos textos recentes ~ como Les Cephcides (Os Cefeidas), de Jean-Christophe Bailly, Oci! pore ceil (Otho por Otho), de Louis- Jacques Sirjacq, ou Fant-if réver? Fautil choisir? (E Precise Sonhar? 1 Preciso Escolher?), de Bruno Bayen, Réves de Franz Kafka (Sonhos dle Franz Kafka), de Enzo Corman ¢ Philippe Adrien, Hivoua, de Pierre Guyotat — reencontrar as delicias da narragao © da fibula Seja moderno ou classico, 0 texto € como que esvaziado de sen- tido, ¢ antes de mais nada do seu sentido mimetico imediato, de um, significado que jé estaria 1a, somente a espera de uma expressiio céni- ea adequada, Qualquer procura por sua dimensao sécio-histérica, por Sua inscricao numa historia passada e presente € banida, ou pelo me- hos retardada tanto tempo quanto possivel: ficcionaliza quem puder Trata-se de manter seu sentido na reserva, ou multiplicar as suas va- Fiantes © potencialidades, de nao explicitilo através do que acredita mos saber no comogo da representagao, a partir da leitura “na mesa, com a invencivel armada de dramaturgos, socidlogos, encenadores" O teatro pés-moderno nao deseja limitar-se mais a uma leitura “ideo Ibgiea” do texto ou do mundo. Ele tem por assim dizer esgotado Série de “solugdes” do texto e do sentido, aeabando por declarar todos equivalentes. Ele nao se assume mais como um texto ou espeticulo Interpretaveis, mas sim como uma pratica significante que engloba, entre outros, um texto lingaistico. O lugar da andlise dramatirgica Visa determinar os proviveis significados, as priticas significantes preocupam-se com uma multiplicidade de significagdes; elas abrem 0 fexto dramarico a experimentagao céniea, tomando euidado para a0 separar a leitura do texto, a descoberta do sen sentido e a traducdo o& nica que explicaria 0 sentido pré-existente do texto, O texto é mantido como 0 objeto das perauntas, trabalho de cédigos © nao seatiéncia de situagdes e alusdes a um subtexto que seria necessirio fazer sentir a0 espectadar: O texto é reccbido como uma série de sentidos que s¢ con- tradizem, que se respondem e se recusam a aniquilar-se num sentido final global. A pratica signifcante recusa-se a lustrar on confirmar Aiguilo que a andlise acredita descobrir na primeira concretizagao pelo Jeitor. A phuratidade de significados ¢ mantida pela multiplicagio, no nico, dos enunciadores (atores, misi ritmo de apresen- lugao ete), peta re temas cénicos, de separd- sa cle hi « © TEATRO NO CRUZAMENTO DE CULTORAS 2 no final das contas, pela recusa em interpretar. Peter Brook: fer-se 0 teérico dessa recusa hermenéutica, pretendendo que as for mas dos grandes textos, tais como as formas shakespearianas, sao formas abertas a “inierpretagdes ao infinito™’, uma “forma to vaga quanto possivel, de propésito, para nfo dar a interpretagao"™" Parece-nos que tal descjo de abertura infinita do texto a significa~ flo, mesmo que se invoquem Barthes ou Kristeva™, nada mais ¢ do que um artificio produtivo visando atender o mais tardar possivel an tes de se tomar partido e com 0 objetivo de confiar essa tarefa extrema a0 leitor-espectador. Ali no ponto em que 0 teatro se distingue do texte lido é que ele pode mostrar ou esconder © que 0 texto, por seu tuo, ja diz. Duas taticas sito possiveis: mostrar 0 que ndo € dito (¢ isso qu propde, freqilentemente, a representagao historicizada) ou, como faz Vitez, campeao da abertura do texto as significagdes, “ que € dito”, nao “desenvolver, indiferente ¢ impunemente, nao impor- ta qual ponto-de vista™™', porém, “entregar-se @ variagdes infinitas” que “haverdio de ter uma Higagio entre si”. Este tipo de encenayao instaura um jogo perpétuo entre mostrarfesconder, texto € cena. O sen: tio nao sera acessivel ao espectador caso ele nao se submeta a uma pratica que esclarega tanto os signos cénicos quanto 0s significados do texto. Antoine Vitez é, hoje, o seu melhor representante: 1 mostrar © (© prazer teatral, para o espectador, repost na diferenga entre aquilo que se diz & aquito que se mosina[..,] 2 no ser assim, que interesse ele experimentaris pelo tentro? Aldiferenga € que & interessante [...] © que me parece excitante para o espectador refere-se a esta Hdéia: nilo mostrar 6 que € dito Com essa abordagem, a dialética entre texto cena est verda deiramente instituida (mesmo porque, a cena deriva sempre da leitura do texto), A encenagao torna-se uma valorizagao daquilo que Jean- Loup Riviere denomina, com referencia ao trabalho de Vite. sobre Racine, a “pantomima do texto”, portant, 4s defasogens sueessivas, os xaltos entre estas duas séries para fizer do texto, em con junto com as palavens, um gest (movimento que a dieeao desahada de cada alexan, 20, P, Prowk, Travail tiderah, m. 18, p- 87 21. Idem, sbidom 22! Minterpretar um texto no € darthe um sentido (mais ou menos fundamentado. ‘mais ou menos livre), ao contrério é apreciar de que phuralidade ele € feito”. s/2, p. 11 33, Kristeva define a "pritica significante” come “uma cen em que se engends quite que ¢ entendida como estrutura™. Seniozike, p. 301 ‘24. Conversation entire Gildas Bourdet et Antoine Viter sur Britannicus de Ra National de Chailiot. »1, Pe eine, Journal pensite! du Théditn 25. Idem, ibidem. 26. Ne pas moniier ce qui est dit: entretion d” Antoine Vitex avec Emile Copter smn, Travan shedirad, XIV. p50. AHERANCA CLASSICA DO TEATRO POS:MODERNO. ry ring atua), que com ox mesmos direitos do gesto corporal do ator, do seu deslo- eamento (e numa relagio dialética/ldidica com ele), contribu para escrever esse novo texto que ¢ 0 espetaeulo®, © texto espetacular tomou-se de tal complexidade e indecidibilida- de que © seu receptor deve procurar orientar-se por si proprio no Ia~ birinto de significantes, sem jamais poder reduzir 0s mesmos a um significado, a uma comunicagio. O que se revela, ento, nfo é a co- municabilidade do sentido, mas a “opacidade irremediavel no seio da prépria Tinguagem™, o desafio langado a uma ciéneia ou a uma semiologia da comunicagao, INSUFLAR, DESCENTRALIZAR, DESRITMAR A encenagao da obra classica, ou antes, a sua colecacao na boca, pressupde, doravante, insuflar-Ihe um sentido fisico ¢ respiratério que a conseqiiéneia da sua onunciagiio global. As pesquisas atuais sobre 6 ritmo da dicgao e da versificagao classieus, na interpretagao vocal & gestual tendem, todas elas, quer provenham de Brook, Mnouchkine (0s Shakespeare), Vitez (Fedra, Britannicus, Le soulier de Satin {O Sapato de Cetim]) ou de Griber (Berenice), a desritmar o texto na sua primeira leitura (evidente ou habitual). © teatro, bem como a enun- tiag%0 cénica, tornam-se, por meio do joge do ater, um novo sacerdo- te do proferimento, o lugar mitico em que esta desritmizagtio imprime ‘i obra cldssica um novo sentido. Ora, tudo isso ja foi esbogado por Jouvet na sua teoria da leitura do texto. de sua respiragio e de sua “execuciio”. O texto, mesmo o clissico, ¢ sempre ¢ ainda utilizado. Apenas a ctiqueta ea receita pés-modernas sto novas. Na perspectiva pos-moderna o texto, seja clissico ou moderno, nao é mais depositi- rio do sentido a espera de uma encenagao auc 0 exprima, © interpre- fc, 0 transcreva, um sentido sem problema que os homens de teatro (ramaturgo, encenador, ator) podem sublinhar & eusta de crudiga0 € paciéncia. O texto transformou-se numa matéria significante, a espera de sentido, um objeto de desejo, a hipdtese de um sentido (em meio a outros) que no est sensivel e nem concretizado a nao ser ha situagao de uma dada enunciagao, gragas aos esforgos conjugados da encen: gio do publico (receptor da enunciagao). ‘A reavaliagao do texto, a experimentagio sobre a Ohra clés: 60 considerada como cruzamento de sentido, caminham em paralelo 0m 6 paradigma dominante da representagio teatral e, singularmen- fe, da representagao chissica. Nao so mais 0 texto © a fabula que esto no centro da representagao, nem mesmo 0 espago e os sistemas €énicos (a escritura eéniea, assim como a clapa seguinte, a da epoca

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