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27 ria ZEX7e &- Fenéima he i Co Avtas gory a Pst ies"tnadice Quadro de correspondéncia.. IX Apresentacdo, de Alain Lempereur. . xm PRIMERA PARTE, AETICA mai Dsmvinee Cara! (957-75 Capito T~ A justiga = ea alae Pes § 1. Dajustiga... nee: 3 14 33 4, Igualdade e regularidade 41 5. Da arbitvariedade na ju: SI 66 § 2. 68 § 3. A regra de justica 85 § 4. O ideal de raci guido de uma discussao ¢: coeur, Lacan, ...) .. 93 § 5. Cinco aulas sobre a just 145 1. A justica seus problema: 46 2. A regra de justia e a eqilidade 156 3. Da justiga das regras, 168 fae ETICA E DIREITO diam dizer verdades validas para todos ou valores absolutus? O fato de utilizarem palavras como verdade, valores universais ‘ou valores absolutos, prova que seus argumentos ultrapassam ‘esse pequeno grupo, porque, de outro modo, néo teriam utiliza- do esses termos. ‘Sr. Ohana. — Mas € uma maneira pretensio a universalida- de que ndo é fundamentada objetivamente, enquanto o senhor deseja precisamente que seja fundamentada objetivamente. Sr. Perelman. ~ Nao, nao. Digo que ela jamais € funda- mentada abjetivamente. Digo que sempre hé apenas uma pre- tensao, porém cla é mais, ou menos, bem realizada. B uma questiio de mais ou de menos. A encaragao do auditério uni- versal varia com os séculos com as épocas, com os progressos da cigncia, etc. O que foi considerado normal, vilido universal- mente em tal €poéa nio o foi mais noutra época; isso quer dizer que essa idéia do auditério universal sempre é uma idéia situa- da histérica, social, psicologicamente; mas ha sempre uma dia- lética entre as diferontes concepgdes que podemos ter desse audit6rio. St. Ohana, — Todo o mundo tem pretenséo a universalida- de; 0 que importa é atualizé-la perante um audit6rio universal que a reconheca efetivamente. Hé uma diferenga extremamen- te importante entre 0 fato de se dirigir a sentiments universais que se tornam objeto de juizos de valor verdadeiros (porque so precisamente universais) ¢ 0 fato de se dirigir a sentimen- tos particulares de um auditério sociologicamente fechado para obter-Ihe a cumplicidade. Sr. Perelman. ~ Nesses casos, um filésofo também pode fazer obra de politico ¢ também pode fazer obra... ‘Sr. Ohana, — Isso € lamentvel, mas 0 faz. E-6 por isso que, na minha opinido, o senhor néo assinaiou 0 suficiente a distingao entre o que deveria ser a filosofia e 0 que ela foi amitide de fato. Sr. Perelman. ~ Digamos isto: um filésofo pode ter toda espécie de atividades. Digo que faz obra de filosofia quando pretende dirigir-se ao audit6rio universal, mesmo que a encar- nagdo desse audit6rio seja muito limitada. Agora seria preciso ver na pritica como isso se passa. AKTICA 145 Sr J. Wahl. ~ Creio que isto pode conduzir-nos a uma Freon © Sr. Perelman dirigiu-se a um auditério universal raclecemos-Ihe, assim como a todos que partic i ticiparar a bonita sesséo. ee eared § 5. Cinco aulas sobre a justicat Apresentacao __ Faz exatamente vinte anos que terminei a redagio de meu primeiro estudo sobre a justica. Mas, em ver. de considerar tet- minada a minha tarefa e de voltar-me para outros trabalhos nao parei de refletir sobre essa nogao, nas dificuldades que presenta seu manejo, no paradoxo resultante de que, aparente. miente racional, ela suscita discusses e divergéncias de visdes tio opostas 3 idéia tradicional da razio e do racional Os valores e as normas pressupostos pela execugio da jus- tiga poderdo ser objeto de um exame racional ou serio apenas a cexpressilo de nossas paixées e de nossos interesses? Como se raciocina sobre os valores e as normas, ¢ como se pode conce- ber a idéia da razdo pritica? Todas ossas questées provocaratn minha reflexdo filoséfica e suscitaram pesquisas cujos resulta. dos foram publicados em diversos estudos, durante estes vinte Gltimos anos. . © professor Sciacca, que ditige os cursos de aperfeigoa- mento em filosofia na Universidade de Genova, convidou-me & apresentar, em cinco aulas, no més de abril de 1964, uma visto sintética de minhas idéias sobre a justiga e a mostrar como elas se desenvolveram desde 0 meu primeiro estudo. Aceitei pron tamente essa oportunidade de aprimorar minhas concepgdes sobre a matéria fico feliz.de poder apresentar ao piblico o texto dessas aulas, ligeixamente modificado para a publicagSo. 146 ETICA E DIREITO 1. A justiga e seus problemas A justiga 6 uma das nogdes mais prestigiosas de nosso universo espiritual. Seja-se crente ou incréu, conservador ou revoluciondrio, cada qual invoca a justiga, e ninguém ousa renegé-la. A aspiragao a justia caracteriza as objurgagées dos profes judeus¢ as eeflexSes dos filésofos gregos. Favoos-se a justiga para proteger a ordem estabelecida e para justificar as reviravoltas revoluciondrias. Nesse sentido, a justiga é um va- universal. : Grease tee justia que incita os homens a realizarem o ideal da sociedade de scus sonhos, a se reyoltarem contra 8 a de cortos atos, de certas situagées, fornece u - vaso suttcients tanto para cs malo sublimes saccion corso vara os pres defitos. O mesmo inpeto entusiasta que os langa a perseguicgao de um mundo melhor pode varrer sem pic tado-quanto the faz obstéculo:perect mundus, fiat justtia. Mas a justiga esté longe de ser um valor exclusivament revolucionério, Os tribunais de justiga e toda 2 administragao da justica so esendos que protegem a ordem estabelecida exsos puardides so 08 juvzes, pois seu papel ¢ aplicar alee Pros que a transgridem. Para os conservadores, 0 fato de nao violar a lei, de amoldar-Ihe a ago, é a manifestagao usual to de justiga. ; 10 Gan vor que um confito opde adverséros, tanto nos t bunais como nos campos de batalha, os dois campos reclamam a vit6ria da causa justa. B, se uma voz neutra pleiteia 0 fim do conflito, gragas a uma décisao justa ou pela conclusio de _ paz justa, ninguém a acusaré de parcialidade, pois cada qual esta convencido de que a justia triunfara com a vit6ria de sua PrP esa situagto paradoxal no deve incentivar-nos a con- cluir imediatamente que, em todos os conflitos, pelo menos um dos adversdrios age de ma-fé. Qutra explicagao € nao s6 possf- vel, mas também a mais verossimil, a saber: 0s campos opostos indo tém a mesma concepgao da justiga. Apés ter mostrado que a justiga € um valor universal, ou soja, universalmente admiti- do, urge assinalar que é também uma nogao confusa. AETICA 147 kim seu Traité de Morale, Bugéne Dupréel insistiu longa mente nesse aspecto da questo: “Como uma noco moral tate corresponde nem a uma coisa que basta observar para verificar © ue deta se afirma, nem a uma demonstragao perante a qual basta render-se, mas na verdade a uma convencdo para defini. la de uma certa maneira, quando ur adversério tomou a ofen. siva, pondo de seu lado as aparéncias da justiga, 2 outra parte ficard inclinada a dar da justica uma definigdo tal que sua causa fique-Ihe conforme.”* Opondo-se ao realismo platOnico das idéias ¢ negando a existéncia de uma tinica verdadeira justica, Dupréel adota um Ponto de vista convencionalista, que é a expresso de seu hominalismo, Cada qual seria livre para definir a justiga como Ihe aprouvesse, como conviesse aos seus interesses pessoal dafa irremediavel confusio da nogio. Deveremos entdo concluir que as concepgées da justiga $80 puramente arbitrarias, ¢ tera Pascal raziio de afirmar que a forga sempre pode dar, & mingua de critério objetivo na mate. tia, as aparéncias da justica, sem recear ser contradita, pois “6 a forca que faz a opinifio"™? Mas serd realmente preciso que, em matéria de justiga, como em tantas outras matérias, oscilemos constantemente entre uma concepgio realista, objetiva e dogmiética, e uma con. cepeio nominalista, subjetiva c arbitraria? Haverd meios de escapar a esse dilema, cujos dois ramos nos parecem igual. mente ruinosos? Seja qual for a resposta a esta dltima pergunta, é um fato inegavel que a justica assume rostos diversos, adaptados todas as vezes as tescs dos adversarios confrontados, E, se dizern que, hé milénios, nos conflitos piiblicos e privados, nas guerras € has revolugGes, nos processos ¢ nas disputas de interesses, todos os antagonistas declaram e se empenham em provar que a justiga esté de sen lado, que se invoca a justiga todas as veses gue se recorre a. um juiz ou a um Arbitro, perccbe-se a confu. sao, & primeira vista inextricdvel, que os usos miiltiplos dessa nogiio nao deixaram de provocar. E por isso que a primeira tarefa que se impée é uma ansli- se cientifica do conceito de justica que permita, tal como a 150 SSTICA E DIREITO Se encararmos a justiva como confurmnidade & Tei, bastard uma decisio arbitréria do legislador para criar normas de uma conduta justa, ou essa propria decisio e a lei que ela promulgar deverio visar ao interesse comum, a produzir ¢ a conservar a felicidade de uma comunidade politica, segundo a expresso de Aristételes? Sera que uma prescri¢ao qualquer do legislador merece obediéncia e respeito? Por que as leis devem ser obede- cidas, de onde Ihes vem a autoridade? Este problema central de qualquer fitosofia politica merece algum exame. Para grande nimero de autores, a lei tira sua autoridade da fonte de que emana. ‘A fonte menos contestada das normas morais ¢ juridicas & costume. Com efeito, desde que um arranjo social foi admiti- do, explicitamente ou, 0 mais das vezes, implicitamente, desde «que as pessoas s¢ conformem a ele durante um tempo suficien- te, desde que ele $e torne costumeiro ou tradicional, acha-se normal ¢ justo ater-se a ele e injusto afastar-se dele. Um modo de agir adotado sem protestos cria um precedente, e nao se en- contra nada que censurar em comportamentos conformes aos precedentes. O principio de inércia, que transforma em norma todo modo de fazer habitual, esté na base das regras que se descnvolvem espontaneamente em toda sociedade; constatam- se seus efeitos desde a mais tenra infancia. A conduta habitual, costumeira, conforme a expectativa dos membros do grupo, nfo necesita ser justificada: espontaneaménte sera reconheci- da. como justa, como conforme ao que deve ser. Obscrvou-se com freqléneia, desde Hume, que nfo se pode deduzir logicamente 0 direito do fato, nem 0 dever-ser do ser. Mas prescindimos dessa deducao, quando se trata de con- duta conforme ao costume, de situagao conforme a tradigéo. E unicamente quando se pretende que o diteito nao é conforme ao fato que uma prova deve ser fornecida. A prova compete, de fato, a quem pretende que a conduta costumeira injusta, no a quem se conforma ao costume. O fato presume o direito; é para derrubar uma presungao que ¢ preciso fornecer provas. O prin- cipio de inércia desempenha também um papel estabilizador indispensavel na vida social. Isto no quer dizer que tudo que AETICA rl existe deve ficar imutavel, mas sim que néo convém mudé-lo sem razo: apenas a mudanca deve ser justificada. As inovacées so o mais das vezes justificadas pragas & intervengéo de uma vontade, as vezes uma vontade superior, mas sempre uma vontade que tem autoridade na matéria: serio avontade divina, a vontade de individuos ou a da nagio. Os mandamentos da divindade, seja seu objetivo santificar €, portanto, fortalecer 0 costume, ou visem eles a modificé-io, devem ser seguidos. Nas sociedades teocraticas, pressupde-se que toda norma seja, direta ou indiretamente, de origem divina. O justo € aquele que obedece a Deus, encarnagao da justica suprema. E justo, para Abrado, sacrificar a Deus, que lho orde- a, seu filho querido, Isaac; € justo, para todos os crentes, observar as prescrigées gerais do decélogo: “Observareis”, diz Moisés, “os mandamentos de Javé, vosso Deus, as instrugdes as leis que ele vos prescreveu, Fareis 0 que é justo ¢ bom aos olhos de Javé” (Deuteronémio, VI, 17-18). _ Toda regra emanante de uma fonte sagrada possui uma ga- rantia suficiente de sua justiga. A religifio e as autoridades que ela houver santificado formulardo as regras divinas que nao podem ser violadas, as prescrig&es que sio obrigatorias para todos os fiéis. Os individuos, na medida em que Ihes 6 reconhecida certa autonomia, e desde que respeitem as regras do grupo, podem, ademais, assumir compromissos que deverio entio respeitar acta sunt servanda. Aquele que aceita uma mudanga do status quo cin seu desfavor no pode queixar-se, salvo fraude ou erro, de haver sofrido uma injustiga: volenti non fit injuria, __ As convengées devem ser respeitadas. Assim é que a alianga contratada por Abrado com seu Deus, pacto selado no sangue © que deve ser ratificado, mediante a circuncisao, por cada descendente vardio de Abrado, € um exemplo de contrato Social pelo qual a tribo se compromete a aceitar Javé como ‘inico Deus e ‘nico legistador. Assim também, as teorias que Presumem um contrato social na origem de toda sociedade constitufda derivam a autoridade da lei da autonomia indivi- dual prévia, da capacidade de comprometer-se e da obrigagaio correlativa de cumprir seus compromissos. 1s2 ETICAE DIREITO Sabemos como Rousseau fundamenta no contrato social uum poder soberano, absoluto, sagrado e inviolével. As leis que so a expressao da vontade geral devem ser obedecidas: ndo podem ser injustas, pois so a expresso da vontade de cada qual, Para Rousseau, assim como para Hegel, que justifica a soberania do Estado enquanto expresso da vontade nacional, as leis emanantes do Estado, portanto da vontade geral, sero por isso mesmo justas. Historicamente, 0 costume, a vontade divina, a vontade dos individuos ou a da nagao (representada pelo Fstado) cons- tituem as quatro fontes da legitimidade das normas e dos man- damentos. Poder-se-4, ademais, encontrar algum critério obje- tivo da justica de uma regra, sem se ater a indicar as contingén- cias hist6ricas ou a vontade autorizada que permitem legiti- mar-lhes a fonte? Para consegui-lo, cumpriria definir a justiga consoante certa racionalidade, seja esta concebida cm termos de igualdade, de proporcionalidade, de eficacia ou de confor- midade a natureza das coisas. Foi & determinagao de tais crité- ios que foram consagradas, entre outras, as diversas teorias do direito natural ou racional. ‘A busca de um direito que tivesse uma base diferente que ‘© costume ou uma vontade soberana'se impOs ao pretor pere- grino, o magistrado romano encarregado de resolver os confli tos nos quais estavam envolvidos estrangeiros. Formalmente, @ lei romana nao Ihes era aplicavel. Nao obstante, quando as prescrigdes do jus civile, ou seja, do direito aplicével aos cida- dios, parecia ao pretor que podiam ser estendidas aos estran- geiros, ele as integrava ao jus gentium, ou seja, a0 direito apli- cAvel a todos. Para realizar essa extensao, amparava-se na fic- [40 que identificava os estrangeiros wos cidadios romanos. Em Contrapartida, quando a lei romana nao era aplicével, porque as situagdes por resolver eram imprevistas, ele tinha de inventar regras que fossem eqilitativas. Procuraria as regras razoaveis, conformes a natureza das coisas, ou seja, as situages normais nas relacdes entre os homens, pois 0 direito justo conduz acon seqiiéncias que partes de boa-fé deveriam normalmente ter esperado, mesmo que elas nao houvessern previsto o ramo dos acontecimentos. AETICA 153 Para descobri-to, bastava com muita freq estender¢ tomar obigatérias as resras conmucutiniies cence radas pelos comerciantes do Império Romano, A funcao alo pretor nao era inventar um direito novo, e sim aplicar um dire, to suposto preexistente, mesmo que este ainda nao estiveses oficialmente promulgado. A afirmagao da existéncia de uma lei justa, aplicével @ todos, era conforme & concepgzo do mundo dos etoicos" en. entramos uma expressio eloguente sua nesta passagem bern “Bxiste uma lei verdadeira, razdo reta conforme 3 nature- 2a, presente em todos, imutavel, etema; ela chama o homem ao bem com seus mandamentos e 6 desvia do mal com suas inter, digdes, seja que orcene ou prosba, ela nfo se dirige em vao ae pessoas de bem, mas no exerce a menor influéneis sobre ne maus. Nao € permitido infirmé-la por outras leis, nem derroger um de seus preceitos; é impossivel ab-rogé-la por inteiro. New © Senado nem o povo pode nos libertar dela, ¢ nao se deve buc, car fora de nés alguém para explicé-Ia e interpreta la. La nao serd diferente nem em Roma nem em Atenas, e ndo ser no futuro diferente do que é hoje, mas uma tinica Ici eterna inet, terdvel, xegerd a um s6 tempo todos os povos, ein todos os temn os; um tinico Deus é, de fato, como o mestre ¢ 0 chele de todos. Ble que € 0 autor dessa lei, que a promulgou e a sancio, nna. Quem nao a obedece foge de si mesmo, renegando sua hatureza humana ¢ se reserva os maiores castigos, mesmo que ogre escapar aos outros suplicios [os dos homens]:"? Para que 0 direito natural possa ser acimitido como tal, é lhe necessério mais do que uma origem divina, E-lhe nesesod, rio, de fato, impor-se no a um tinico povo, como a lei mosaica ue une apenas os descendentes de Abratio em virtude de urna alianga, mas 2 todos os homens, independentemente das com, tingéncias hist6ricas, Para que a vontade divina esteja na ori. gem de um direito natural, cumpre que seja um Deus nico, que imponha seus mandamentos A sociedade universal dos seres racionais e que as leis que prescreve sejam conhecides ela razdio reta de cada qual. O que as leis ordenam v vedam deve decorrer da natureza das coisas, tais como Deus as eriow it 0 ed ETICAE DIREITO ‘Ao lado das leis naturais, que regem o curso dos fendmeno existiriam prescrigdes racionais que ordenam agir em confor- midade com a natureza das coisas; essas prescrig&es so justas e obrigatérias. ‘Bastard que o pensamento cristéo, tal como 0 encontramos expresso no decreto de Graciano (cerca de 1140) identifique o direito natural, descrito por Cicero, com as prescrigées das Escrituras edo Evangelho (0 direito natural é 0 que esté contido na Lei e nos Evangelhos)”, para que se desenvolva a teoria ica do direito natural. O decreto de Graciano afirma que atural prevalece de forma absoluta sobre os costumes © as constituigdes. Tudo quanto foi reconhecido pelo uso, ou posto por escrito, se contradiz a lei natural, deve ser considerado milo € inexistente". Aqui o direito natural ndo serve somente, para o pretor romano, para estender ou para completar uma lei positiva, mas para julgar e, se for o caso, para condenar. Na perspectiva de Santo Tomés, 0 direito natural nada mais é que a participacao das criaturas racionais na lei eterna \e Deus impdc a0 universo, Deus nos esclarece a razio € nos petite discernir 0 bem do mal. © homem, decafdo desde 0 pecado original, & incapaz de se conduzir de um modo justo sem 0 auxilio da graga, mas isso nfo o impede de distinguir 0 bem do mal gragas apenas & sua razéo, ‘passo a mais, e passaremos para as teorias clssicas € icas do diteito natural, que se desenvolveram nos séculos XVII ¢ XVIII, notadamente em Grotius, Pufendorf e Montesquieu. Grotius afirma, nos prolegémenos de s pacis, que 0 direito natural é fundamentado na evidéncia racio- do claros ¢ evidentes como pt Deus seria incapaz de modificé-1 10 Deus nao poderia fazer que dois mais dois ndo sejam ‘quatro, ele néo pode fazer que o que € intrinsecamente mal nao seja.um Essa comparagao sera retomada por Montesquieu: “Dizer que no hé nada de justo ou dk do que ordenam ou vedam as leis positivas € dizer que antes que se houvesse traga ul todos os raios eram iguais. Logo, cumpre re- AETICA 155 conhecer relagées de eqitidade anteriores estabelece.™* Como essas relagbes nko dependem da vontade diving elas continuariam idémticas quer Deus exista, quer néo. Fa conclusio légica que Mo positiva que as “Se hd um Deus, meu caro Rhédi, urge necessariamente que seja justo, pois, se nao fosse, seria o pior € 0 m to de todos os seres. ‘A justiga é uma relagao de conveniéneia que se encontra realmente entre duas coisas; essa relagio é sempre a mesma, seja qual for o ser que a considere, quer seja Deus, quer scja um anjo, quer see, enfim, um homes meee Mardade que os homens nem sempre véem essas rela- ‘ses; muitas vezes mesmo, quando as véern, afastam-se delas, © seu interesse 6 sempre 0 que véem melhor... Os homens podem fazer injustigas, porque t@m interesse em cometé-las.. ‘Mas ndo € possivel que Deus jamais faga algo injusto... ‘Assim, ainda que no houvesse Deus, deverfamos sem- Pre amar a justica; ou seja, fazer esforgos para nos assemelhar @ esse ser de que temos uma tio bela idéia c que, se existisse, seria necessariamente justo." , ara os racionalistas, a justica € uma ine dependente da vontade divine, No entanto, Devs, se east 06 pode ser justo, e os homens deveri 10 como modelo de sua conduta: devem obedecer & voz de Deus em nés, que é a vor da consciéucia, Se a razdo nos faz conhecer as regias jus~ tas, a conscincia nos ensina, em cada circunstincia, como agir moralmente, Devemos tomar como modelo, diré Kant, “a con. duta desse homem divino que trazemos em nés e com 0 qual nos comparamos para nos corrigir assim, mas sem nunca poder atingir a sua perfeigao”™. Segundo os partidérios do direito natural, a razao é, pois, uma faculdade capaz de nos fazer conhecer ndo 56 0 que objetivamente verdadeiro ou falso, mas também o que & justo 0u injusto, Seré esse realmente o caso? Haver normas de ago justas, porque conformes & raziio? Outra tradi¢ao duas vezes 156 ETICA E DIREITO secular, que vai de Hume a Kelsen, se opde & idéia da razao ptética. Ela nega a existéncia de um direito natural, acessivel a jue nos forneceria normas de conduta justas para guiar nossa vontade, Cumprira dar razio aos partidérios ou aos adversérios do 10 natural? A razio pritica nao seria sendo aparéncia? Se, pelo contrario, nés Ihe reconhecermos um papel na ago, como se deverd compreendé-lo, pois que os homens no esto de acor- do sobre 0 que é justo? O problema é essencial para a filosofia. O ideal tradicional da filosofia como mestra da sabedoria, como guia da comunidade, seré uma mera ilusio, um mito andlogo 20 do paraiso perdido? Se a filosofia nao é uma atividade puramen- te te6rica e critica, mas pode cumprir uma fungo construtiva na conduta das individuos e das sociedades, determinando racio- nalmente as normas ¢ os valores, cumpre-nos apresentar, com ais preciso, as relagSes entre a justica e a razao. 2. regra de justia ¢ a eqitidade m_ guiar a condu- leradas racionais, a de sempre saber: a prudéncia ¢ a justi¢a”. : ‘A prudéncia € a virtude que nos faz escolher os meios mais seguros e menos onerosos de alcangarmos nossos fins. Se apenas o nosso interesse devesse nos imporfar, a prudéncia nos aconselharia a agir de forma que nossos atos fossem os mais Siteis, apresentassem 0 maximo de vantagens € 0 minimo de in convenientes. : Mas em que medida deveremos levar em nosso interesse ou 0 dos ‘as nossas obrigagées, como agit para que nossa conduta seja ndo 86 eficaz, mas também justa, a prudéncia sozinha nao nos pode ensinar. Quando se submete o conjunto de uma conduta 20 crivo da razio, e n&o somente seus aspectos instrumentais € puramente técnicos, cumpre recorrer ao conceito de justiga, a justiga é que € a virtude caracteristica do homem razoavel ‘A justiga, diz-nos Leibniz, € a caridade do sébio ¢ abr ge, segundo ele, “além da tendéncia para fazer o bem, alivian- AETICA 157 do os sofrimentos, a regra da razdo”, A ago justa deve dar provas de uma racionalidade que faltaria ao ato que fosse ape- nas caridoso. Mas em que consiste essa racionalidade e em que medida a regra da razao sera realmente capaz de nos guiar a aco? Nunca foi possivel fornecer um critério de justiga que obtives- se aadesio, sc nig ce todos, pelo menos de todos aqueles cuja inteligéncia e moralidade apreciamos. A profusio de contro- vérsias referentes a esse conceito e a suas aplicagdes deve xar-nos muito circunspectos na questao. Leibniz precisa que a regra da razio exige que proporcio- emos 0 bem que queremos propiciar a todos com as nece: dades e com os méritos de cada qual’'. Mas haverd outro crité- rio além dos méritos ¢ das necessidades? A definicaio mais fre- qliente da justica nao € cuique suum, 2 cada qual o que Ihe cabe, sendo os direitos e as obrigacdes de cada qual determina dos pela lei? Acha-se que a todos da mesma forma? Ou as vezes proporcionar seu trata- mento com suas obras ou com sua posi¢ao? Nenhum desses pontos de vista é inteiramente irrelevante, mas, na prética, con- duzem freqiientemente a c pativeis. Que fazer entio? problema esté Jonge de ser simples e, para no deixar nada na sombra, procedamos passo a passo em nossa anilise. ‘Um comportamento ou um jufzo humano s6 pode ser qua- ido de justo se puder ser submetido a regras ou a critérios. a estima pode ser justa, se estiver proporcionada com os méritos da pessoa est mas a idéia de um amor justo nos . 0 amor € dirigido a um ser que é ico ¢ incompardvel, trate-se de uma pessoa ou de uma entidade, tal como a patria, eventualmente personificada. Esse amor ndo pode resultar simple: de uma avaliagao is defeitos, das vantagens ¢ dos inconvenientes que ela propicia. Nada de mais alheio a0 amor do que semelhante pensamento, Se dizemos que 0 amor 6 cego € porque ele se desinteressa de ver tais como sio, e a fortiori de esar, os defeitos do ser amado. 158 ETICAE DIREITO Para a justiga, apenas a pesagem conta, A venda que tradi- cionalmente cobre os olhos das estétuas da justiga atesta que testa s6 levaré em conta o resultado da pesagem. Nao se deixard jimpressionar por outras consideragées © amor concede favores, a justiga se preocupa com @ imparcialidade. © amor & estritamente pessoal, mas a justiga no faz acepgao das pessoas. ‘© comportamento justo é regular, Conforma-se a regras, & critérios, Poderd a razdo ajudar-nos a determiné-los? Desde os antigos grogos, foi esse o problema essencial daqueles viamn na razao, expressa pela filosofia, um guia capaz. de esc| recer-noso juizo ¢ dirigit-nos a acao. Desde Arist6teles, como vimos, 0 conceito de justiga foi aproximado da igualdade. Uma andlise da relagto de igualdade Gecerto projetaré alguma luz sobre a idéia de justica. Diz se de dois objetos, a e b, que so iguais se siio permu- taveis, ou seja, se toda propriedade de um é também uma pro~ pricdade do outro. Logo, € justo tratar da mesma forma seres auais, porquanto nada justifica seu tratamento desigual, Em consequéncia, o que se diz. de um deve poder ser dito do outro, fo que €a formulacdo pragmatica do principio de identidade. “Assim, numa primeira aproximagao, a regra de justica estabelece a exigéncia do tratamento igual de seres iguais. ‘Essa regra € indiseutivel, mas qual serd seu alcance? Seu campo de aplicagao pare fato, extremamente reduzido. Ele ¢ mesmo inteiramente nulo, se admitimos © principio dos js de Leibniz, segundo 0 qual nao existem dois se ‘cos, ov seja, dois seres cujas propriedades sejarn .¢ fosse assim, a afirmagao de que ae b so idén- jo em termos. ¢ andlise do l6gico alemio Gottlob Prege mostrou™ que se pode, sem se contradizer, afirmar a identidade de a e b; isso significaria que “a” ¢ “b” sao dois homes de um mesmo objeto, que € designado de diversas ma- neiras,como na afirmagio de que a estrela da manbé idéntica aestrela danoite. ‘Se ndio ha seres idénticos, a regra de justiga s6 tem interes- se se nos diz, come tratar seres que nao sao iden AETICA 159 B, efetivamente, ¢ apenas iss que import 0 ouvir pessoas se queixarem de uma injusti m de uma injustiga, por nfo receberam 0 mesmo tratamento que o vizinho ouo conor. rents, ninguém pensar& que essas pessoas sio idénticas aquelas quem se comparam ou que, aos olhios delas, qualquer dife- renga teria bastado para ju: contrério, citarao expreséam mais rica ou mais influente, q cionario, que faz parte de um cla, de um grupo politico ou r soso Broximno do Poder. Queixam-se ainda mais por causa , persuadidas de que essas diferet lever luenciado a decisao. reer ___ Pode também acontecer que se igual ¢ que, em nome da justca,reivindiquem um tatamento preferencial. Enumerario, para justifiar suas pretensécs, es ferengas essenciais que foram desprezadas e que deveriam ter sido levadas em consideragao. vo oem 86 © injustamentetatado pretende que apenas cer {os elementos, pertinentes no caro, deveriam ter influenciado a conclusio; ¢ injusto desprezar esses elements, assim como € sto Jevarem conta elementos irelevantes, alheios & stuago esigh niustiga, assim concebida, jamais resulta do tatamento desigual de sexes idénticos. No primero caso, queixam-se do mento desigual de seres diferentes: com efeito, se as dife- rengas nfo concemem a caract ciais, as partes de. veriam ter sido tratadas igualmente, como se fossem semelhan- nversamente, no segundo caso, acham injusto um trata- mento igual ou ndo-diferenciado, reservado a seres soante 08 critérios adotados, séo essencialmente diferentes fazem parte, portanto, de categorias diferentes, iais serdo as diferencas que imy a > jue importam € as que nao importam, om cada situagao particular? Eis 0 4 importa, ex cada: ponto em que dei- amen npomnames que se estabelega umm sistema de raciona nto de viveres em perfodo de pentiria. Cumpriré tr mpriré tratar Sao be Sr art trio, adaptar esse tratamento @ situacio particular deles © ‘em conta necessidades dos idosos, dos doentes, das crian- ie, con- 160 ETICA E DIREITO as e das mulheres grévidas? Cumpriré distribuir rages suple- mentares aos que fornecem um trabalho que exige forga ou aos elementos mais titeis & comunidade? Cumpriré tratar da mes- ma forma os homens e as mulheres, os cidados ¢ os estrangei- ros? Cumprira, ou ndo, desprezar as diferencas de raga, de clas- se, de religiao ou de filiagao politica? Para os funcionarios en- carregados de aplicar o regulamento elaborado no final das contas, a justiga consiste cm segui-lo, dando a cada qual as ra- ges que a lei Ihe atribui. De todas as distribuiges possiveis, existirdo algumas mais conformes a regra de razao? Nao ¢ facil responder a essa pergunta. Mas notemos, desde j4, que, seja qual for a regula- mentagao adotada, ela sempre seré um caso de aplicago da regra de justica. Esta, na medida em que € concebida para se aplicar a seres que nio séo idénticos, exige, nao o tratamento igual de seres idén- ticos, mas um tratamento igual de seres essencialmente seme- thantes. Entendemos por seres essencialmente semelhantes os seres entre os quais nao existem diferengas essenciais, ou seja, diferengas que importam e que cabe levar em conta no caso, ‘A regra de justica assim definida é uma regra formal por- que nio precisa quando dois seres sdo essencialmente seme- Ibantes nem como se deve traté-los para set justo” Em situagdes concretas, é indispensdvel especificar esses dois elementos. Quando € a lei positiva quejfornece os critérios de sua aplicacao, a regra de justiga se precisa e se torna a regra de direito (the rule of law), que exige que sejam tratados de uma forma determinada pela lei todos os que sio semelhantes aos olhos da lei. A regra de direito € a regra de justica acompa- nhada de modalidades determinadas pela vontade do legisla- dor. A ago conforme & regra de direito € justa porque aplica corretamente a lei. Qual seré a importéncia da regra de justiga, concebida ‘como regra puramente format? Ela se atém a exigir que se seja, em sua ago, fiel a uma linha de conduta regular. Essa exigén- cia define o que E, Dupréel chama de justica estatica*, porque se casacteriza pela conformidade com a regra estabelecida ou com o precedente reconhecido, sejam eles quais forem. Quan- AETICA 161 do uma decisdo autorizada resolvew um caso, é justo tratar da mesma forma um caso essencialmente semelhante (stare deci. sis). Transformamos em precedente, ou seja, cm caso de apli cagiio de uma regra implicita, toda decisao anterior emanante de uma autoridade reconhecida™. A regra de justiga, na area do pensamento ou na da a¢ao, apresenta como normal a repetigao de un mesmo modo de agir. Ela conduz a seguranca jurfdica ¢ se encarna no silogismo judicidrio que prescreve ao juiz tratar cada membro de uma categoria como devem ser tratados todos os membros dessa categoria. O juiz imparcial € justo porque trata da mesma forma to- dos aqueles aos quais a mesma regra 6 aplicavel, sejam quais forem as conseqtiéncias. Ele é compardvel a uma balanga, a uma méquina & qual é alheia qualquer paixdo: nfo se pode inti- midé-lo, nem corrompé-lo, ou despertar-lhe a piedade. Dura Jex, sed lex: a regra € a igualdade perante a lei, ou seja, a per mutabilidade dos que estio sujeitos a jurisdigao, Nessa concepgo da justiga, 0 juiz nfo tem, enquanto juiz, de questionar a lei. Essa concepcao, inaccitével em moral, ¢ fur damentada na doutrina da separagao dos poderes, que concede 20 legislativo 0 direito exclusive de legislar, imitando-se o papel da Conte de Cassagao a ser o policial, encarregado pelo poder egislativo de vigiar para que os juizes nao violem a lei em suas sentengas e arestos. E Sbvio, como veremos mais adiante, que ndo se pode limitar assim a funcdo do juiz quando se lhe reco. nhece um papel ativo na elaboragao da lei nem sobretudo, como na common law, quando ele deve julgar com eqitidade, ‘Todas as grandes tradigdes morais c religiosas contém, en- tre seus preceitos, a regra durea que nos convida a tratar os outros como a nés mesmos. Fis, dentre as mais conhecidas, al. ‘guns modos de formulé-la: Ama teu prdximo como a ti mesmo, [Nii fagas a teu somethante 0 que ndo gostarias que ele te fizesse, Age para com teu semelhante como gostarias que cle agisse para contigo, Age do modo que gostarias que agissem teus semelhantes, 162 ETICA E DIREITO Esta ditima formulagdo nos aproxima do imperativo cate- g6rico de Kant (age de tal modo que a maxima da ta vontade possa, a0 mesmo tempo, valer sempre como principio de uma, legislacao universal) ¢ do principio de generalizagio de Singer (O que € bom — on mau — para uma pessoa, deve ser born ~ ou mau — para qualquer pessoa semelhante que se encontre em circunstncias semelhantes)™. Podemos ver nas diversas formulagées da regra aurea alguns casos de aplicacao da regra de justiga da qual certos ele- ‘mentos foram precisados. A regra de justiga ndo diz quando os, seres devem ser considerados essencialmente semelhantes; a regra durea precisard que se deve entender com isso 0s nossos prdximos ou todos os que sto homens semmelhantes a nés mes- mos, A regra de justiga ndo diz. como se deve traté-los; a regra urea considerard como modelo de conduta aquela que gosta- ramos que pratique, quer a nosso respeito, quer a respeito de todos os nossos semethantes. gragas a regra de justiga que um jutzo subjetivo pode tansformar-se numa norma de moral, aregra éurea, ‘A regra de justica, por exigit a uniformidade, conduz & previsibilidade e 4 seguranga. Permite 0 funcionamento coe- rente ¢ estdvel de uma ordem jurfdica. Mas isto nao basta para satisfazer a nossa necessidade de justiga. ordem assim realizada seja justa. | Por outro lado, acaso a eqiiidade nao ke opde as vezes & aplicagao uniforme e, por assim dizer, mecanica da mesma regra, sem se preocupar com as conseqiiéncias? A aplicagao de uma regra, que regulamenta os casos mais habituais, nko pode- 14 produzir efeitos moraimente chocantes em casos excepcio nais? Arist6teles previu a objegao ¢ nao hesitou em dar um lugar a eqiiidade: “A cqilidade, mesmo sendo justa, no se resume a essa justicn que € a conformidade & lei, mas é, antes, um corretivo a justia legal. Se a eqliidade € assim, € porque a lei é sempre uma disposicao universal © porque, em certos dominios, € impossivel falar corretamente permanccendo no plano do universal; portanto, quando se dove editar uma dispo- sigdo universal sem ser capaz de fazé-lo corretamente, a lei rer que a propria AETICA a eva em consideragdo 0 que ocorre na maioria dos casos, sem ignorar a parte de erro que contém. Nem por isso deixa de ser uma boa lei: pois 0 ero nio esté na lei, tampouco esta em quem faz a lei; esté na propria natureza do caso considerado; a matéria das agdes morais é, de fato, no mais profundo de si mesma, rebelde a uma legislagao universal. Entio é legitimo, na medida em que a disposigao tomada pelo legistador é insufi ciente ¢ errénea por causa de seu cardter absoluto, trazer um corretivo para cuniprir essa missio, editando 0 que o proprio Jegislador editaria se 14 estivesse € © que teria prescrito na lei, se tivesse tido conhecimento do caso em questio.”” B assim que Aristételes justifica 0 recurso a cqitidade, que qualifiquei, noutro estado, de “muleta da justiga”, 0 que indica que 0 recurso & eqliidade s6 é permitide quando a lei parece manca, Ora, ess¢ fato nao se presume; é preciso, a0 con- trario, justificar qualquer derrogagao da lei. O recurso & eqitidade €, pois, um recurso ao juiz contra a lei; apela-se ao seu senso de eqilidade quando a lei, aplicada rigorosamente, em conformidade com a regra de justiga, ou quando o precedente, seguido a letra, conduzem a conseqiién- cias infquas. Isso pode ser explicado por tr€s razées: a primei- Fa, aquela a que Aristoteles alude, é a obrigacdo de aplicar a lei um caso singular, no qual 0 legislador nao pensara; a segunda se apresenta quando condigdes externas, tais como uma desva. lorizago da moeda, uma guerra ou uma catastrofe, modificam tanto as condigdes do‘ contrato que sua execugao estrita lesa gravemente uma das partes; a terceira se deve & evolucio do sentimento moral, do que resulta que certas distingées, que o legislador, ou o juiz que havia enunciado o precedente, havia menosprezado no passado, se tomam essenciais na apreciagio atual dos fatos. Quando o proprio legislador se d4 conta de que as situa- ges que cle deseja resolver sdo to variadas e tho movedicas ‘que no pode regulamenté-las de um modo preciso, contenta-se as vezes com algumas indicagdes genéricas, ao mesmo tempo que abandona & eqtiidade do juiz sua aplicagao em cada caso lar (cf. varias legislagdes que limitam os aluguéis na 164 ETICAE DIREITO Europa depois da Primeira Guerra Mundial). Geralmente, a lei nao deixa ao juiz. uma liberdade tao grande de apreciacao, mas ainda assim o juiz se empenhard em interpreté-la de forma que se evitem as conseqiiéncias iniquas. Dé-se 0 mesmo com 0 juiz federal, nos Estados Unidos, que deve interpretar os termos da Constituig&io americana, assim como com o juiz da common Jaw anglo-saxa que, presume-se, se atém aos precedentes”, ‘Nao se deve esquecer, de fato, que nem as leis nem os pre- cedentes sio aplicados mecanicamente. Obrigado a julgar em todos os casos que entram em sua competéncia, 0 juiz dispée, para 0 tanto, do poder de interpretagaio. Com efeito, 0 art. 4¢do Cédigo de Napoledo ~ ¢ existem prescrigdes similares em todos os sistemas de direito nacionais, sendo conhecidas exce- ‘ges apenas em direito internacional ptiblico — afirma que o Juiz nfo pode recusar-se a julgar a pretexto do silencio, da obs- curidade ou da insufici¢ncia da lei. O juiz. deve dizer o direito, ainda que nao possa motivar sua deciso pela invocagéo de uma lei indiscutida e cujos termos so todos eles claros. Note- se, a esse respeito, que existe uma relagao inversa entre a clare- zac precisao da Ici ¢ o poder de interpretacao do juiz. Eis alguns exemplos que permitem compreender melhor ‘como 0 juiz nfo se contenta em aplicar a regra de justiga, mas se serve de seu poder de interpretagao e de apreciagao para que suas decisées se conformem ao seu senso de eqiiidade. © art. 11 do Cédigo Civil francés (e belga) diz que “o estrangeiro usufruiré na Franga (na Bélgica) direitos civis iguais aos que sio ou serio concedidos aos franceses (20s bel- gas) pelos tratados da nacdo a qual esse estrangeiro pertence”. Qual sera a situagao do apétrida? Dever-se-A recusar qualquer direito civil ao estrangeiro cuja nagdo nao concluiu nenhum tratado de reciprocidade com a Bélgica? O problema se apre- sentou com uma acuidade particular em 1880, quando o Cédigo Civil estava em vigor na Bélgica ha cerca de meio século. Como a aplicagéo normal do art, 11 devia conduzir a conseqiténcias moralmente inaceitaveis, a Corte de Cassagio da Bélgica decidiu, por seu aresto de 1° de outubro de 1880 (Pasi i tie belge, 1880, I, 292), interpretar 0 texto da lei de AETICA 165 forma que the fossem climinados os efeitos iniquos. Ela deci- diu que a expresso “dircitos civis”, que figura no art, 11, designa unicamente os direitos civis que viesser a juntar-se aos direitos naturais (como o direito & assisténcia piiblica em caso de necessidade), mas nao tem em vista os direitos nat rais, tais como o direito de casar-se, o de litigar em juizo, os d reitos de propriedade ¢ de sucessio, que o estrangeiro usufruird em qualquer circunstancia Outro eminente exemplo de trabalho criativo, em matéria Jurisprudencial, é fornecido pelas sucessivas interpretagoes do art, 1.382 do Cédigo de Napoledo, que se contenta em afirmar gue “Todo ¢ qualquer ato do homem que causa a outrem um dano obriga aquele por, cuja culpa ele ocorreu, a reparé-lo” Através de sucessivas interpretagoes, a jurisprudéncia belga ¢ francesa péde estender e até transformar o sentido dos termos “causa” € “citlpa” de modo que se imputasse a responsabilidade de um dano nao sé Aquele que cometeu um erro, mas também Aquele que deu origem a um risco. Essa extensao levou de modo natural a0 seguro obrigatério dos riscos comportados pelo uso de um automével ou pela exploraco de uma indtstria, Assim também, 0 juiz da conunon law, que parece atado pelos precedentes (stare decisis) péde, niio obstante, escapar a uma rigidez excessiva, geradora de injusticas, limitando 0 al- cance dos precedentes & ratio decidendi, que ele esclarece & sua moda, ¢ introduzindo distingGes quando se faz sentir a necessidade”, Em vez de adaptar uma lei mediante a interpretagao de seus termos, pode-se modificd-ta atuando sobre o campo de aplicagdo de seus termos, mediante 0 uso da qualificagdo". Ao decidir incluir um caso particular no campo de aplicagao da lei, on ao decidir exclui-Io dele, o juiz pode modificat os efeitos da lei. Essa era a técnica utilizada pelo pretor romano para esten- der aos estrangeiros a aplicacdo de uma lei referente apenas 408 cidadaos romanos; € a uma ficgao igual que o juiz, sobretu- do o juiz de primeira instancia, pode recorrer, negando, por exemplo, contra a cvidéncia, que os fatos punfveis tenham ecorrido, Tendo de julgar uma mic, culpada de ter matado, 168 ETICA E DIREITO HA critérios racionais que permitiriam distinguir as regras justas daquelas que nao 0 sao? A razdo sera capaz de ir além das exigéncias puramente formais da regra de justica para nos guiar nia busca das regras justas? Os te6ticos do direito natural se empenharam em forecer uma resposta positiva a essa pergunta, sem obter, porém, a prova convincente da maior parte dos princspios de justiga, tao indiscutiveis quanto os principios matemdticos? Se assim no fosse, dever-se-ia considerd-los racionalmente arbitrérios? Po- der-se-4, descartando essas posigdes extremas, chegar a um acordo sobre critérios razoaveis de uma regra justa? A conti- nuacao de nossa andlise se empenhara em responder a essas questdes fundamentais. 3, Da justiga das regras A observancia da regra de justica assegura a regularidade, ‘a seguranga ¢ a imparcialidade na administragao da justica. Mas ela & incapaz de julgar as proprias regras. Existirdo crité- ros racionais para nos guiar nessa matéria, para nos permitir icar de justas ou de pécie? Com efeito, € cor leis que se insurgem aqueles que querem modificar ou revisar a ordem estabelecida. muitas vezes contra o abuso do poder dos governantes, em especial dos legisladores, que os te6ricos do direito natural recorrem & razdo justa; & natureza das coi- sas. Mas sero suas téorias fundamentadas noutra coisa além de intuigdes incomunicéveis e de posicionamentos controverti dos? Serd isso que nos empenharemos em examinar. Vimos que a regra de justiga nto quais so as distin- goes que se deve das categorias de seres ess que maneita convém tratar esses seres. Ora, € sobre um ou outro desses pontos que incidiré a critica de umia lei considera- da injusta: dirdo que as distingdes que a lei estabelece, que os tratamentos que impée, S40 arbitrarios e injustificados. Supo numa legislagao, 0 conjunto dos seres por ela abrangidos seja dividido em trés categorias, A, Be C,e AgTICA _ que ela prescreva que “Todos os A devem ser P", “Todos os B devem ser R” © “Todos os C devem ser S”. O critico que com- bate, quer o principio da classificagio, quer o género de trata- reservado aos membros de cada categoria, procurard modificar um ou outro, ¢ as vezes esses dois elementos da le- gislagao, Suponhamos que uma legislagao que consagra um sistema de abonos familiares seja apresentada como a expresso de uma aspiracio de satisfazer As necessidades fundamentais dos abathadores. Um exitico poderia atacar 0 préprio principio dessa legis- lagdo e as classificagdes que ela determina, achando injusto que, na determinacao do saléio dos operdrios, se leve em conta outra coisa além do trabalho fornecido ou do scu rendimento. Brandindo 0 aforismo “a trabalho igual, sal cumpre de fato achar irrelevantes, nao essenci: todas as idade, na raga ou no estatuto familiar dos trabalhadotes. O fato de nao desprezar essas diferengas, mas de nelas fundamentar uma escala de salérios diferenciada, pode parecer a alguns profun- dament Outros, ao mesmo tempo que aderem ao principio mesmo da legislagao, podem criticé-la por outras razdes. Mesmo admi tindo que se tem de levar em conta encargos fami © saldrio dos operdrios, podem achar perfeitamente injusto que abono concedido para 0 quarto filho, por exemplo, scja 0 do montante outorgado para 0 primeixo, quando é este que aumenta de modo mais sensivel os encargos do casal As duas criticas tém um alcance.muito diferente. A pri- meira recusa misturar consideragdes de natureza social ou po- litica com o que Ihe parece ser uma contribuigao puramente econémica, para a qual apenas consideracées referentes & qua- jade, & duragao ¢ ao rendimento do trabalho podem fomecer 98 clementos pertinentes de uma classificagio accitavel. A se- gunda critica, em contrapartida, aceita colocar-se do ponto de vista adotado pela legislacdo, mas critica-lhe a execugao. Bis outro exemplo. Proudhon critica com paixio as leis penais francesas: 170 ETICA E DIREITO “O pobre diabo, cujos fithos choram de fome, rouba, & noite, num 36t40, depois de arrombamento € escalada, um pio de quatro libras. O padeiro o faz condenar a oito anos de traba- thos forgados: eis 0 direito... Em contrapartida, o mesmo pa. deiro, acusado de ter posto gesso 2 guisa de farinha e vitriolo como fermento, € condenado a cinco libras de multa: é a lei. Ora, a consciéncia brada que esse traficante 6 um monstro ¢ a prépria lei absurda ¢ odiosa.””® Proudhon ataca com violéncia a injustiga de um Codigo Penal que prevé penas tio desproporcionais entre as duas espé- cies de delitos. Para ele, 0 delito do padeiro é infinitamente mais odioso do que 0 do pobre diabo, ao passo que a pena que ‘© pune é muito mais leve. Proudhon reclama uma proporciona- lidade entre os delitos ¢ as penas, devendo estas, sob pena de injustiga ou de arbitrariedade, ser proporcionais gravidade dos danos & ordem piiblica. Assim também, se nos perguntarmos: “Sera justo que este médico ganhe vinte vezes mais do que aquele trabalhador bra- sal?” poderfamos evitar responder, alegando que, numa eco- nomia liberal, 0 prego ¢ 0s salfrios estao sujeitos a lei da oferta ¢ da procura e no dependem de consideragdes de justica. Mas impde-se uma resposta, se tanto o médico como 0 operdrio so ambos funcionérios do Estado. Cumprir4 entio justificar a diferenga, mostrando que ela nao € arbitraria, mas que os ven- cimentos de um ¢ de outro siio proporcionais a um elemento suscetivel de apreciagao, tal como, por exemplo, os servicos prestados por um e pelo outro a comunidade. Estes poucos exemplos nos esclarecem sobre 0 conceito de injustica aplicado a uma regra ou a uma legislagao, Quando se trata de justiga ou de injustiga formal, de apli- cago correta ou nao da tegra de justiga, comparam-se os trata- mentos reservados aos membros da mesma categoria essencial, mas no se dispée de nenhum meio para comparar os seres que pertencem a categorias diferentes e para julgar os tratamentos thes concernem. Em contrapartida, € disso que se trata ndo se declara que uma regra é injusta, porque os critérios de classificacdo sao irrelevantes ¢ os tratamentos aplicados so AETICA a arbitrérios. Para refutar a primeira critica, dever-se-4 mostrar a Pertinéncia da classificagio estabelecida pela legislagao em ‘questo, ¢ sua superioridade sobre aquela que se queria por em. seu lugar. Para refutar a segunda critica, cumprird mostrar que 98 tratamentos previstos, trate-se de recompensas ou de puni- es, no so arbitrérios, mas conformes a princfpios gerais que permitem sua sistematizagao racional. ‘Um sistema de regras absolutamente justo, que se imporia somo tal a todas as mentes razodveis, deveria apresentar classi- ficagdes em categorias ¢ prever tratamentos que sejam indiscu- tivcis, por serem os Gnicos conformes & razao. A busca de um sistema assim no seré ilusGria? Dada a grande variedade de nossas sociedades, de suas concepgies religiosas, filoséficas ¢ politicas, sera possivel elaborar principios racionalmente fun- damentados, que poderiam servir de base para instituicoes con- sideradas justas por todos os seres razoaveis? Antes de respon- der a essa pergunta, em toda a sua generalidade, examinemos a tentativa do professor John Rawls, que se empenhou, em traba- thos recentes®, em responder de um modo afirmativo a esta il- lima questao. O professor Rawls define a justiga como uma virtude especifica que, aplicada a uma instituigo ou a uma pritica, exige a eliminagao das distingdes arbitrérias ¢ o estabeleci- mento, em suas estruturas, de um equilibrio apropriado entre as pretensdes opostas™. Os principios de justiga deve especi- ficar em que condicao a balanga, ou a parte de cada qual, pode ser considerada conveniente ¢ justa, ¢ quais distingdes justifi- cam diferengas de tratamento que nao seriam arbitrérias. Exa- minando o papel da justiga na sociedade, o professor Rawls s6 se ocupa com a justiga das regras que, determinando as fun- ‘90es © as situages, os direitos e as obrigagées, as recompen- sas e as punigées, dio forma ¢ estrutura a atividade social, A justica, por ele concebida consoante a idéia de correga0 Yairness), se inspira nitidamente no modelo do jogo correto Yair-play). Segundo ele, é essa idéia de fairness que é funda- mental na justiga uplicada a priticus (practices) definidas por regras. 172 ETICA E DIREITO A concepeao da justica, cujas consequéncias ele desenvol- veré, € fundamentada nos dois seguintes principios, que Ihe , participante de uma instituigdo ou de uma prética, ou afetada por seu funcionamento, tem um direito igual A mais ampla liberdade, compat{vel com a mesma liber- dade para todos. 2. Desigualdades definidas ou favorecidas pela estrutura institucional sfo arbitrérias, a nao ser que seja razodvel prever que elas se mostrarao titeis a cada qu Gées € as situagées de que resultam sejam ack E considerada justa uma liberdade igual para todos os que participam de uma instituigao ou de uma prtica, igualda- de que é normal entre os jogadorés no comego de qualquer jogo. Supse-se que as desigualdades sao arbitrérias e injustas, a nfo ser que se tenha condigo de justificé-las provando que so proveitosas a cada qual © que ninguém esta exclufdo a priori de uma fungao vantajosa. 6 ébvio que a pessoa se pau- tard, para avaliar as instituigdes ¢ as préticas, pela regra de jus- tiga, que exige tratamento igual de todos os casos essencial- mente semeliantes, Mas assim que, nas regras do sistema, se segundo principio, 86 se permitira, alias, uma limitagdo, mes- mo igual, dos direitos de cada qual, se se provar que € indis- pensdvel para o bem de todos. A situacao que nao exige satis- faco alguma, porque parece conforme & razio e A justiga, € a liberdade para todos. Entretanto, néo cabe justificar todas as diferengas que 0 sistema estabelece, mas unicamente as distingdes na atribui¢ao das fungSes e das situagbes de que resultam, direta ou indireta- mente, desigualdades na distribuigao das vantagens ¢ dos nus. As limitagdes de liberdade € as d idades no serao consi- deradas justificadas, porém, se delas resultarem vantagens para © conjunto da sociedade, pois cumpre ainda que estas benefi- AETICA 173 ciem a cada um de seus membros. E sobretudo sobre esse ponto que 0 professor Rawls é mais exigente que os utilitaristas Alids, ele nao apresenta seus principios para que sirvam de base para um novo contrato social; apercebe-se perfeita- mente de que, como nossa sociedade ja funciona com 0 con- Junto de suas instituigdes e de suas leis, é impossivel recome- ar tudo do zero; suas sugestdes visam unicamente 2 fornecer principios suscetiveis ce tomar scu funcionamento mais justo do que € atualmente. fi por isso que propde regras de procedi- mento que devem permitir a realizagdo desse objetivo, Uma condigdo prévia, ¢ indispensavel, é que s¢ lide com pessoas razoaveis, capazes de conhecer seus interesses, de pre- ver as provaveis conseqi€ncias que resultam da adogfo de tal espécie de regras, de se amoldar as regras adotadas e de resistir As tentagdes que acarretariam a violagdo destas. Cumpre, ade- mais, que elas tenham condigdes de resistir A inveja que nasce- ria da percepedo da superioridade de alguma outra pessoa, ape- sar das inegdveis vantagens que proporcionaria a esta a posicao de comando que se Ihe poderia confiar. Supde-se, ademais, que cessas pessoas t de modo que sua colaboracdo se mostre vantajosa, e so sufi- cientemente iguais em poder e em habilidade para que nenhum membro do grupo seja, em circunstai dominar os outros”. Para melhorar suas institui justas, 0s membros da sociedade discutem entre si, cada qual expondo os motivos de suas queixas ¢ apresentando suas rei- seu ponto de vista, mas as decisGes que sei riam amoldar-se as seguintes regras: 1. Se 08 critétios de decisao propostos por alguém forem aceitos, as reivindicagdes dos outros sero julgadas segundo 0 mesmo critério. 2. Nenhuma queixa serd ouvida antes que cada um esteja de acordo, em linhas gerais, sobre os principios segundo os quais as queixas deverao ser julgadas. 3. Os principios propostos ¢ reconhecidos, numa ocasifio qualquer, sero considerados obrigatorios, salvo circunsténcias especiais, em todas as ocasides posteriores. 174 Erica E Dinero As regras assim institufdas sertam, segundo o protessor Rawls, as de um sistema justo, pois seriam regras de um siste- ma imaginado por alguém que sabe que seu inimigo tem o direito de Ihe destinar seu lugar dentro do sistema” Em que medida os prinefpios ¢ as regras de procedimento, apresentadas pelo professor Rawls, podem ser consideradas racionais, eficazes € suficientes para que, pautando-nos por elas, possamos estar certos de tomar cada vez mais justo 0 fun- cionamento das institaigdes humanas? B isso que nos propo- mos examinar. Observe-se, para comegar, que toda sociedade organizada € regida por leis e regulamentos que se referem nao s6 a0 fundo, mas também 20s procedimentos reconhecidos para mo- dificar e aplicar suas leis. Daf resulta que, como o professor Rawls nao quer fazer tébula casa do passado mas unicamente melhorar as instituiges existentes, € preciso que as trés regras de procedimento que preconiza, se j& niio so admitidas na so- ciedade que se deve reformar, sejam aceitas em conformidade com as leis ¢ regulamentos atualmente em vigor. Assinale-se, a esse respeito, que quase todos os sistemas de direito modemos aceitam o valor do precedente no solucio- namento dos conflitos, ainda que 0 estatuto do precedente pos- sa variar de um sistema para outro. No entanto, so indispensd- veis juizes para decidir se um caso novo é ou ndo € essencial- menie semelhante a um caso anteriormentejjulgado. Se a primeira regra de procedimento &, pois, geralmente admitida, a segunda exige um aprimoramento indispensdvel Com efcito, o professor Rawls exige que todos estejam de acordo com os procedimentos adotados. Tomado ao pé da letra, esse principio é inaplicavel, pois € evidentemente impos sivel pedir 0 acordo dos bebés que acabaram de nascer, ou dos alienados mentais incapazes de raciocinar sadiamente. Esse modo de proceder é, alids, conforme as exigéncias do professor Rawls, cujo sistema s6 pode funcionar com a colaboragao de seres eminentemente razo4veis. Mas, ento, no cumpriré limi- taro direito de voto e, em geral, o de participar ativamente dos negécios piiblicos, mesmo numa sociedade relativamente igua- AETICA 175 litéria? Cumprira recusar o exercfcio dos dircitos politicos uni- camente as criangas abaixo de certa idade ou igualmente aque- les que nao teriam passado com sucesso por testes de intcligén- cia ¢ de conhecimento, ¢ os conceder, em contrapaitida, aos estrangeiros que habitam no pais? E que fazer quando, a pre- texto de que apenas os seres razodveis podem exercer seus direitos polfticos, denega-se 0 direito de voto a classes inteiras da sociedade? Essa ¢, como se sabe, a pretensio de qualquer paternalismo politico. Cumprird conformar-se aos procedimentos vigentes nu- ma sociedade, ainda que pareca profundamente iniquos, ou uma revolugao justa poderd esforgar-se em modlificar 0 estado de coisas existente? Por outro lado, a exigéncia da unanimidade, mesmo limi- tada aos que exercem seus direitos politicos, leva ao liberum veto e, portanto, & anarquia. Logo, é indispensavel, & mingua de conquistar a adesio de cada qual, elaborar técnicas que per- mitiriam, & maioria simples ou a uma maioria qualificada, que se supde representar a vontade geral, chegar a uma de: Poder-se-4, sem risco de enganar-se, ter certeza de que o fi cionamento de uma democracia, mesmo fundamentada no sufrigio universal igualitério, nunca conduziré a injustiga na aplicagao das duas regras fundamentais que o professor Rawls considera essenciais e suficientes para a claboracdo de institui- (96es justas? Mas, suponhamos resolvidas todas essas dificuldades pré- vias e admitamos que existe um acordo sobre as regras de pro- cedimento que permitem levar em consideragto as queixas ¢ as reivindicagbes de todos. Teremos certeza, nesse caso, de que as instituigdes serio progressivamente melhoradas para se torna- rem to justas quanto o possfvel? Quem nos diz que nao chega- remos muito répido a uma sociedade, tal como queriam insti- tui-la os tedricos do liberalismo classico, em que 0 funciona~ mento das leis econdmicas do mercado, embora podendo ser perfeitamente correto, fair, no sentido do professor Rawls, re- dundaria, nao obstante, numa distribuigdo muito desigual das riquezas? 176 ETICA E DIREITO Isso constitui a objegao fundame fessor Chapman i ra a concep¢ao da justiga como fairness”, Confrontando o sistema imaginado pelo professor Rawls com rismo, o professor Chapman mostra que este tiltimo, ao- Jevar em conta conseqiiéncias dos atos, mais do que sua con- formidade com certos procedimentos considerados justos, por- que corretos, apresenta a vantagem de buscar uma melhor dis- estabelecer mais justica profunda do liberalismo modemo, tal como € defendido por Lorde Beveridge. O professor Rawls presume, ao elaborar seu sistema, que seres racionais, capazes de prever as conseqtiéncias de seus atos, elaborarao regras que, igual funcionarao de modo que se mantenha essa igualdade indefinidamente. Mas que fazer se essa esperanga nao se realizar? Tendo os membros de uma sociedade aceitado certas regras de fundo e de procedimento, seus filhos e seus netos estardo ligados para sempre por convengées de seus antepassados, como parece exigir a terceira regra introduzida pelo professor Rawls para solucionamento dos conflitos? Cumpriré, ao contrério, que cada geragio seja convidada, em intervalos regulares, a con- cluir um novo contrato social ou, pelo menos, que seja livre para apalavrar novos procedimentos em questo de adogao e de modificagio das regras, sem levar em conta procedimentos existentes? i cada geragio restabelega, de novo, um pi m conformidade com 0 segundo principio do professor Rawls, suprimindo, por exemplo, 0 direito & heranga? Mas, uma vez nessa via, ndo cumpriria tam- bém limitar de mil maneiras 0 direito de dispor da propriedade privada, mesmo em vida, a fim de ar as desigualdades io da sociedade? nos ensina, de fato, que procedimentos, que se queria igualitérios, podem Jevar-nos a conseqiiéncias que, com o tempo, podem mostrar-se infquas. Sabemos que se su- punha que a Revolugao Francesa, ao abolir todos os privilégios AETICA do Antigo Regime, ia a e alimentaram seus ataques de prvada dos meios de produgao Essa hist s ensina que mesmo a idéia de privilé ida como desigualdade injustificada, livel de ieee variadas. O que nao pareceu a burguesia liberal cansar danos a0 principio da igualdade pode parce os, a base de todas as desigualdades e a raiz de todas as injustigas. AS questes que acabamos de evocar, as dificuldades por ¢las reveladas, mostram-nos a insuficiéneia do modelo fornee!. do por um jogo corretamente conduzido para responder a todas as exigéncias dos que aspiram a mais justica social, Regras de fair-play so faceis de estabelecer quando se trata de um jogo, em que cada qual comeca, por conta prop em condiges de igualdade relativa, em que os lances permit, dos e proibidos so conhecidos de antemao, em que é fécil prever todos os desenvolvimentos possiveis, assim como todas as situagSes que determinam 0 ganho ou a perda, Todos os jogadores, antes de comegar, conhecem as regras do jogo, aceitam-nas, © a presenga de um arbitro permite, em caso de necessidade, garantir a sua observancia pontual, Ninguém é obrigado a participar de um jogo cujas regras recusa, ¢ jamais em nome dessas regras, impor-lhe-4o uma coereao contrarian as suas conviegdes mais intimas. Mas, quando se trata do fun. cionamento das instituig6es sociais e politicas ¢ das regras que as regem, o problema da justica se situa num contexto deveras diferente, As regras de uma sociedade constitufda, as pessoas que nela exercem os direitos politicos bem como suas respectivas situagdes, seus direitos e suas obrigacdes, so, em stia maioria, Produtos de um passado hist6rico. Cumprira, em nome de prin. Gipios de justiga abstrata, nfo fazer caso desse passado e deci di apagat tudo, em imervalosregulares,c recomegat do 2o10? uma ambigdo dessas que encontramos em pensadores racio- is ELICA E DIREIrO nalistas, tais como Descartes, que, depois de fazer tabula rasa dos preconceitos, das tradicdes, dos costumes de seu meio, se propéem reconstruir ab ovo um novo saber. Mas eles dispéem, pelo menos assim créem, de um método novo que, fundamen. tando-se na evid8ncia racional, Ihes permitiria reconstruir sobre a rocha uma ciéncia que seria digna desse nome. Para recons- truir, da mesma forma, uma sociedade perfeitamente justa, seria preciso que scus membros reconhecessem com evidéncia que 6 justo renunciar as vantagens que a situagio hist6rica thes Proporcionou, que logrem-encontrar regras evidentes que justi- ficardo as desigualdades sociais assim como aquelas a que terdo de amoldar-se para encontrar uma solucao justa para os conflitos que 0s opdem, ‘Mas, se € justo ¢ razoavel renunciar as situagSes historica mente adquiridas, por que procurar melhorar as instituigdes de uma sociedade’ politicamente organizada que é, também ela, um produto da histéria, ¢ ndo estabelecer, jé no infcio, uma jus tiga igualitaria entre 03 homens que vivem na terra, supri do, na medida do possfvel, as desigualdades na distribuigao das riquezas ¢ das competéncias entre as diversas regides do globo, das quais algumas conhecem uma pentiria permanente? Sem sombra de dtivida, as leis © os regulamentos justos ngo podem ser arbitrérios, mas cumprir admitir como eviden- te, € no necessitando de nenhuma justificagao, o principio de igualdade completa de todos os que participam do funciona- mento de uma instituigao, e como arbitréria toda desigualdade que nao é justificada pelas vantagens que cada qual dela retira? Essa igualdade ideal, reconhecida no infcio, devera, ade- mais, ser negativa ou positiva? Deverd ela consistir no fato de que cada qual usufruiré um direito igual A vida, uma liberdade igual de consciéncia, de palavra, de imprensa, de associagao ¢ de trabalho, no sentido de que o Estado nao limitard, sem razao suficiente, nenhuma dessas liberdades ¢ Ihes proteger4 0 exer- cicio? Cumpriré, ao contrério, que a igualdade exigida seja po- sitiva, no sentido de que o Estado deixaré cada qual capaz, mediante a criagdo de instituigdes de toda espécie, tais como hospitais, escolas, fabricas ou igrejas, de exercer efetivamente 08 direitos que so assim warantidus? AETICA ‘78 bend Professor Rawls parece, antes, partidétio da concepcao liberal, ou soja, negativa, da igualdade, pois s6 gostaria de eal. tar @ liberdade individual na medida em que essa limitagao ve Justificar por vantagens que proporcionard a cada qual, ¢ nao 20 maior ndmero. O principio que ele apresenta como eviden, { cuja racionalidade se imporia a todos os que aspiramn a uma Sociedade justa, sofie dos equivocos da nogdo de igualdade, culas interpretagdes diametralmente opostas so apresentadas elas ideologias liberais © socialistas. Aos que reclamam o minimo de intervengao do poder politico no que consideram seus negocios privados, opdem-se, em quase todos os dom! Bios, 08 que reclamam uma intervengao maior da coletividade, Ssperando que dessa forma seré possivel satisfazer, as expen. Sas da comunidade, um mimero crescente das necessidades de cada qual. A menor experigncia da vida politica deixa patents a vaidade de qualquer esperanga de acordo espontineo de todos (0s membros da sociedade nessas matérias essencialmente con troversas. Alias, € por isso que, em vez de se fandamentarem pum acordo garantido pela evidéncia, as instituigdes politicas foram organizadas de modo que pudessem funcionan mesime ha auséncia de semethante acordo. Numa sociedade democratica e pluratista, cada qual é livre para adotar uma moral, para elaborar regras de vide, para inspi_ rar-se num ideal e para viver a vida, como a entende, contanto gue nfo transgrida regras de ordem piblica. Mas nao se dé o mesmo quando se trata de regras juridicas, que determina os direitos ¢ as obrigagves de cada qual, em conformidade com os (eseios e as aspiragdes da coletividade politicamente organiza. a ou pelo menos tais como os concebem € os interpretarn Seus representantes © seus funcionatios. Como & vio esperar ue @ expresso desses desejos e a forraulacio dessas aspira, §Ses scjam objeto de um acordo sempre unanime, mesmo entre os representantes eleitos da nacdo, o dircito de cada Estado tem de tomar precaugdes para que as questdes controversas nao Sejam resolvidas por um recurso & violéncia. Portanto, ele

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